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Caroline Milman

Caroline Milman**

O presente trabalho surgiu, como costuma acontecer,


de uma situação clínica. Neste momento em que prepara-
mos a vinda de nosso convidado para a Jornada da Brasilei-
ra e tomamos contato com o tema dos paradoxos, não pôde
deixar de me chamar atenção a situação paradoxal que en-
volveu o atendimento de uma nova paciente.
Familiarizei-me com os estudos de Winnicott reconhe-
cendo no desenvolvimento da sua teoria o campo dos para-
doxos. A área de ilusão com o seio criado e oferecido, o eu-
não-eu da área transicional, o estar só na presença do outro,
o medo do colapso do que já aconteceu, etc. E todos esses
paradoxos considerados estruturantes.
Em seu livro “Paradoxos e situações limites da psica-
nálise”, Roussillon (2006) propõe uma epistemologia dos
paradoxos, na qual não só assinala o efeito organizador dos
paradoxos de Winnicott mas também aqueles que desembo-
cam em verdadeiros impasses para a continuidade psíquica.
O analista vive o drama desse tipo de impasse e deve
instrumentalizar-se para enfrentá-lo desde um lugar novo,
já que os padrões clássicos não são capazes de abarcá-lo.

* Trabalho apresentado como tema livre na VII Jornada Científica da Socieda-


de Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, 23 de novembro de 2007.
** Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de
Porto Alegre.
Este autor (2006, p. 39) coloca a pergunta: “Seriam os paradoxos que
acompanham os processos de maturação (paradoxo do objeto transicional,
da capacidade de estar só em presença do outro, da destrutividade, etc.) os
mesmos que bloqueiam o processo de desprendimento e, portanto, o de-
senvolvimento da organizacão e da complexidade psíquica?”. Os parado-
xos dos processos maturacionais ocorrem no sentido da continuidade psí-
quica, ou seja, uma suavizacão que torne as rupturas mais aceitáveis. Os
paradoxos “patógenos”, ao contrário, exacerbam as oposições, transfor-
mam-se em dilemas, não elaborando as situacões de ruptura e de luto. Tem
a ver com clivagem e ataques à ligação.
A transicionalidade é o campo paradoxal por excelência e dele poderi-
am ser derivadas todas as situações descritas como maturacionais, dentro
do referencial winnicottiano. Na paciente que inspirou este trabalho, a
questão mais chamativa foi o paradoxo da capacidade de estar só. Espero
poder transmitir essa vivência clínica de estar e não estar com alguém. E o
mais importante: não poder resolver esse dilema.
Estar só, como coloca Winnicott (1990), é uma capacidade que de-
monstra um dos principais sinais de amadurecimento do desenvolvimento
emocional. Pressupõe apreço e tranqüilidade de estar consigo próprio. Para
que se possa usufruir da solidão, é preciso muita companhia, e é justamente
aí que o paradoxo se instala, tendo como base um tipo de experiência pre-
coce no desenvolvimento emocional. Winnicott (1990, p. 32) assim a des-
creve: “[…] essa experiência é a de ficar só, como lactente ou criança pe-
quena, na presença da mãe. Assim, a base da capacidade de ficar só é um
paradoxo; é a capacidade de ficar só quando mais alguém está presente”. A
imagem é a de um bebê que brinca tranqüilo enquanto sua mãe ou substitu-
ta está afastada dos olhos, mas “confiantemente presente”, fazendo-se re-
presentar pela atmosfera geral do ambiente. É uma distância/presença. Não
há ruptura. A mãe suficientemente boa inclui o seu filho num espaço que
pode esticar-se como um forte elástico, e para isso a questão geográfica não
é a mais importante.
Conforme Roussillon (2006), trata-se de experimentar a solidão em
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presença do outro. Na experiência da solidão paradoxal, a mãe está dupla-
mente presente: de um lado, como fundo silencioso real (mãe-ambiente); e
de outro, no jogo auto-erótico da criança, sozinha em presenca da mãe,
portanto presente como objeto. É nessa experiência de solidão que a crian-
ça começa a elaborar a ausência da mãe. Ou seja, é na presença da mãe que
se elaboram as primeiras representações de sua ausência. Bollas (1992)
vincula a solidão ao verdadeiro self. Remete-se a Winnicott quando assina-
la que o ser humano possui uma solidão inerente, mas que essa solidão só
pode ocorrer sob condições máximas de dependência. A progressão a partir
da solidão inerente pré-natal para a capacidade de ficar só no adulto teste-
munha a experiência do idioma do self verdadeiro. “Em nosso self verda-
deiro estamos essencialmente sozinhos” (WINNICOTT, 1990, p. 34).
Nas experiências paradoxais maturacionais, a área de controle onipo-
tente, que inicialmente deve ser total, não é desafiada quando não deve ser
e passa a ser desafiada de uma forma tão gradual, que a onipotência não
precisa ser desbancada completamente para a entrada do objetivo, exterior,
ou princípio da realidade. A relação do indivíduo com a realidade é tal que
ele pode sentir-se membro da realidade compartilhada sem abrir mão de
seu verdadeiro self, e isso é uma conquista. E um paradoxo, na medida em
que as várias e possíveis realidades se mesclam. Essa mescla não é confusa
nem louca. É a base da criatividade, que se apóia no tradicional e no novo
ao mesmo tempo.
A paciente, Tânia, 41 anos, chegou a mim através de um convênio.
Não me conhecia, nem recebera nenhuma indicação do meu nome. Pelo
telefone me conta que esteve com outro profissional, mas não ficou por
alguns motivos, entre eles, questão de honorários. Mostra-se um pouco
preocupada com a distância de seu local de trabalho para o meu consultório
e permanecemos algum tempo examinando a melhor forma de ela poder
chegar. Ofereci-lhe um horário de final de tarde, ao que ela sinalizou a
possibilidade de iniciarmos. Marcada a primeira sessão, fiquei com a sen-
sação de uma “cautela” no ar, como se Tânia estivesse sem confiar muito
na possibilidade de darmos certo. Recebo-a pontualmente. Vejo uma mu-
lher simpática, cordial e bastante bonita, apesar da pele do rosto. Não que
ela possua rugas, mas certa flacidez perto das bochechas e abaixo dos
olhos. Ao me ver, estende prontamente o braço para que nos cumprimente-
mos com um aperto de mão.
Tânia começa a falar com facilidade e rapidamente fico sabendo que
ela já se trata há muito, desde os 20 anos, e que já mudou algumas vezes de
terapeuta, de linhas. O último tratamento que fez, quando morou a trabalho
numa outra cidade, foi sem dúvida o mais marcante e o que mais lhe aju-
dou. Ela diz que naquela cidade passou a viver para o dia da terapia. Era
seu bálsamo. Aliás, ela descobriu que terapia é a melhor coisa para ela, o
lugar onde ela pode falar e chorar à vontade. O fato de ser algo profissional
é o que torna possível o seu despreendimento, pois, afinal, ela paga e o
terapeuta pode vê-la chorar ou contar coisas difíceis, e ele não vai chorar
junto. Para ela, isso é importante. Conta-me que, quando disse para a ex-
terapeuta que o pagamento era importante para equacionar o vínculo, a
terapeuta questionou se não haveria vínculo, independentemente da ques-
tão do pagamento. Tânia então fala de suas duas tentativas de procurar um
terapeuta em Porto Alegre, após ter sido transferida. A primeira, uma mu-
lher muito querida, mas que na chegada lhe deu um abraço apertado e um
beijo. Tânia nunca mais voltou. “Saí de lá apavorada, não agüentei essa
proximidade”. O outro foi um homem, indicado por ser conhecido, ligado
a uma universidade. Sentiu-se mal, pois, quando foram ver a questão de
honorários, ele lhe disse: “Não sou eu que vou te dizer quanto tu achas que
deves me pagar”. Ela sentiu um constrangimento absurdo, não pôde recu-
perar-se disso e também nunca mais voltou.
Tânia é uma mulher solteira, sem filhos, funcionária pública num bom
cargo. Possui uma única irmã e duas sobrinhas. Seus pais são falecidos.
Tem ainda duas tias, uma com quem se dá melhor e que está bem velhinha.
Essa é sua família. Ela sempre fez concursos e seu primeiro trabalho já era
como concursada. Por conta de vários cargos que ocupou, sempre viajou
muito, morando em diferentes estados. A última foi uma cidade do interior
do Rio Grande do Sul. Comenta que nunca conseguiu se sentir bem longe
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de Porto Alegre, onde está sua irmã e sobrinhas. É como se sentisse que
não pode estar longe, pois algo lhe puxa constantemente para cá, e a me-
lhor coisa que lhe aconteceu foi quando finalmente conseguiu uma transfe-
rência definitiva. Mora num apartamento próximo ao da irmã, embora esta
esteja de mudança – irá para outro bairro –, o que para Tânia significa uma
perda. E isso tudo ela conta chorando bastante. Aliás, Tânia chora ao falar
sobre quase tudo. Sente-se sempre muito tocada pelas coisas que vai con-
tando, e então me parece que a flacidez de seu rosto combina com um rosto
choroso.
Há um ano, Tânia tem um relacionamento. Ela menciona o quanto
ama esse homem e exalta suas qualidades como pessoa. Ele está separado
há 3 anos e tem 3 filhos. Durante a semana, eles jamais se encontram; um
fim de semana sim outro não ele fica com os filhos, de modo que só namo-
ram nos finais de semana que ele está disponível. Ela, num primeiro mo-
mento, diz entender que a relação deles é assim, que os filhos estão em
primeiro lugar. Não quer fazer cobranças, tem medo de perdê-lo. Ela ja-
mais teve satisfação sexual com ele por conta de sua ejaculação precoce.
Mas o ama profundamente, foi a melhor pessoa que já apareceu na sua
vida.
Fico então sabendo que ela já teve alguns relacionamentos, um deles
mais sério, mas todos foram bastante tumultuados. Em todos eles, ela era a
amante, sendo que em um a mulher descobriu e rompeu o casamento, quan-
do então ele passou a morar com Tânia. Chegaram a tentar uma vida de
casados. Ela investiu bastante nisso e pensaram até em ter filhos, mas após
várias crises acabaram se separando. Ela fala e chora que a questão de fi-
lhos é delicada para ela, que sempre teve o sonho de ser mãe e vê o tempo
passando e cada vez mais remota a possibilidade disso acontecer.
Esse tipo de material desencadeia suas associações mais sofridas: diz
que se sente apartada do mundo, que não sabe por que as coisas não acon-
tecem para ela, que seguidamente tem a sensação de que está incomodando
e se metendo na vida da irmã e das sobrinhas. Tem o sentimento de não ser
bem-vinda quando telefona, embora saiba que as sobrinhas a adoram. Diz
possuir extrema dificuldade em se manifestar para as pessoas e dizer o que
está sentindo ou perguntar algo sobre o outro. Tem uma tendência a ficar
quieta, no seu canto, e ruminando sentimentos invejosos e ressentimentos.
Acha horrível, mas confessa que morre de ciúmes da irmã, que não parece
ir bem em seu segundo casamento, mas pelo menos tem as filhas. Há pro-
blemas de diálogo também com o namorado. “Eu não sei o que ele sente,
não sei como é a relação dele com os filhos; ele também não me pergunta
nada sobre mim e eu não consigo conversar sobre nada com ele, como se
tivesse uma barreira. Mas ao mesmo tempo é muito bom estar com ele,
receber o carinho dele”.
Tânia possui poucas grandes amigas, com quem se encontra esporadi-
camente. Na maioria das vezes, Tânia se sente sozinha e, para quebrar a
solidão, ela é quem sempre tem de procurar as pessoas. As questões sobre
sua história de infância, seu relacionamento familiar, etc., não chegam com
naturalidade. Passamos algumas sessões em que ela referia ao falecimento
dos pais, mas eu não sabia quando e como; também passei um tempo sem
perguntar, enquanto minha fantasia apontava para um acidente. Depois
soube que o pai, já idoso, adoecera do coração e, um ano depois, sua mãe
fora vítima de um câncer. De modo que, em um ano, ela perdera pai e mãe.
Seus pais nasceram em uma mesma cidade do interior. O pai fora ca-
sado e tivera dois filhos quando conheceu a mãe de Tânia, bem mais jo-
vem. Os dois vieram juntos para Porto Alegre, tendo o pai abandonado sua
primeira família. Conforme minha paciente, nunca houve, após isto, um
contato maior entre eles, nenhum relacionamento das novas filhas com os
irmãos. Sua vida familiar foi marcada por dificuldades financeiras, embora
nunca tenha faltado nada a elas. O pai já era velho, aos olhos de Tânia,
quando decaiu sua produção profissional. Desde quando ela é capaz de
lembrar, vê o pai sentado em sua poltrona vendo televisão ou lendo. “Ele
ficava lá naquele canto dele e não conversava com ninguém”. A mãe preci-
sou “se mexer” para ganhar dinheiro e passou a cozinhar para fora.
A mãe, diferentemente do pai, é descrita como uma pessoa cheia de
vida, cheia de amigas, que estava sempre rodeada de pessoas. Ela gostaria
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de ser como a mãe. Há uma idealização em sua fala ao referir-se aos pais.
Não esboça queixa alguma sobre sua vida infantil. Conta que a mãe criou
as filhas para não terem problemas financeiros, de modo que sempre houve
investimento e facilidade para os estudos, e as duas irmãs de fato fizeram
concursos públicos tão logo puderam, e ambas estão com estabilidade fi-
nanceira.
A irmã teve um primeiro casamento do qual nasceram suas duas fi-
lhas. Minha paciente descreve essa relação como tumultuada, sendo que
em uma primeira separação a irmã morou com a filha na casa dos pais.
Então T. descreve a seguinte situação: “A gente ficava babando pela ne-
ném, em volta dela, daí ela tava dormindo no berço e quando acordava a
gente queria ir lá e minha mãe dizia para não irmos, que ela tinha que se
acostumar a ficar sozinha e quando ela precisasse de alguém ela choraria.
Então a gente ficava esperando ela chorar para ir”. Através dessa ima-
gem, Tânia associou um aspecto de sua infância que acabou se tornando
um primeiro ponto de “ancoragem” para minhas idéias, tão dispersas no
mundo nebuloso dessa paciente. Ela conta que quando pensa em sua infân-
cia o que mais recorda é a quantidade de tempo em que ela ficava brincan-
do sozinha em seu quarto. “Eram muitas horas, é estranho, porque eu me
sentia bem assim. Eu sabia que minha mãe estava na outra peça cozinhan-
do, ou trabalhando e eu ouvia a voz dela e isso me bastava”.
Estávamos conversando há algum tempo, numa frequência de uma
vez por semana. Eu me sentia insegura para fazer uma indicação formal do
número de sessões; preferi ver como ela gostaria de seguir. Ela achou que
uma vez por semana estava bom, já que na outra terapeuta ela ia duas –
muitas vezes gostava, mas muitas vezes também sentia que não era neces-
sário. Na verdade, o que ocorreu nesse ponto em mim foi alguma confusão,
algo que na hora eu não pude entender, mas esse assunto da freqüência foi
difícil de tratar. É como se eu perdesse completamente meu referencial. Por
alguns instantes, ficamos num vazio: “Como queres – pois é, não sei – o
que tu achas? – A indicação é mais de uma sessão por semana, mas pode-
mos começar devagar – que bom, me sinto bem de saber que podemos ir
devagar, que não está sendo nada imposto”. Mas não era isso. Por que
seria algo imposto colocar a indicação de tratamento... podiam ser duas,
três, quatro… Em todo o caso, como ela disse que se sentia bem assim,
achei que tinha sido o melhor naquela situação.
Tânia seguiu com seu choro, suas palavras bem articuladas. Eu ia lhe
achando cada vez mais uma pessoa interessante, e, ao contrario de seus
temores sobre sua capacidade de envolver alguém, eu me sentia agradavel-
mente postada a sua frente, atenta e desejosa da próxima sessão, que ao
meu gosto ficava muito distante no tempo. Mas ao mesmo tempo me per-
guntava por que estaria eu tão confortável com uma paciente? Por que Tâ-
nia estava me fazendo esse favor, me facilitando a vida, me dando água,
comida e roupa lavada. Ela carrega assuntos que para ela são pesados, mas
eu não sinto peso algum. Ela acha que sempre está atrás dos outros, que
precisa abrir com esforço um espaço no mundo, que tem um namorado que
não lhe corresponde tanto, e o desejo de ser mãe...; e sua família querida, as
sobrinhas que ela ama, apesar da sensação de que sempre que liga ou vai lá,
está sobrando.
Eu penso: ela está chorando no berço à espera de alguém. Mas tam-
bém penso que se esse alguém, no caso eu, ou um outro namorado, quises-
se estar bem perto dela, querendo-a, desejando sua presença, como ela rea-
giria? Então, no final de uma sessão, percebendo meu desejo de vê-la mais,
pergunto: “E como seria se tu tivesses te relacionando com alguém que te
quisesse muito, que te ligasse muito, que te desse o que tu tens dito que
sentes falta na vida?”. A sessão acaba aí, para recomeçar na semana seguin-
te com a mesma frase, que, segundo Tânia, ficou em sua cabeça.
Ela responde dizendo que acha que não conseguiria levar, que percebe
que muita coisa é assim para ela. Ela sabe que cria uma barreira, ela sabe
que se coloca distante das pessoas. Imediatamente recoloco a questão de
seu quarto, onde ficava por muitas horas separada da mãe pela parede, e já
estava bom assim. “Esta parede”, digo-lhe, “ao mesmo tempo une e sepa-
ra. É ai que tu estás.” Mas ao mesmo tempo é aí que nós estamos, porque
acabei por compreender nesse mesmo momento qual viria a ser o material
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da nossa transferência. A mãe de Tânia tinha a teoria de que não se deve ir
ao encontro dos bebês até que eles chorem. Ela me conta que a terapia é o
lugar onde ela pode chorar, já que jamais chora com outras pessoas. Na
terapia, então, ela poderia ter a mãe por 50 minutos, já que a mãe vem se
ela chora. Mas se a mãe vai, o que acontece? Aconteceu que, envolvida por
essa temática, disse a ela que eu percebia que poderia ser um assunto difícil
tratarmos do aumento de freqüência, embora eu também percebesse que
todo o seu apelo era por aproximação. Isto gerou uma desorganização na
paciente. Atônita, ela refere sentir imediatamente que eu a estou querendo
explorar, que esta proposta visa somente a meu benefício.
Já que chegáramos àquele ponto, e orientada por alguma voz interior
que me aconselhava prosseguir, coloco que para ela é difícil pensar que
alguém, inclusive eu, possa querer aproximar-se dela. Ela se diz confusa,
diz que não sabe, simplesmente não sabe conversar sobre isso. Eu sou pro-
fissional, como assim quero me aproximar? Isso a assusta e ela vai choran-
do. Sei que sua reação é bastante extremada, que ela chora desorganizada-
mente, mas o que é isso de eu não me sentir implicada? Não acho que
Tânia esteja sendo falsa, não acho que está dramatizando, tenho certeza da
profundidade de seus sentimentos, no entanto eu lhe assisto. Nem à frente
de uma parede me sinto tão fria. Por onde circulam minhas comunicacões
com ela e as dela comigo?
Eu não me sinto irritada, nem entediada. Apenas fria. Vou vasculhar
em minha auto-análise que tipo de repercussão interna uma pessoa como
Tânia pode me gerar. Penso na representação do choro para mim e dentro
da minha história, e consigo me sentir limpando algum terreno. Por muitas
vezes pensei se estava errando com Tânia. Era certo eu cutucá-la? Não
havia aprendido essa psicanálise. Prezo a não-invasão. Mas ainda assim,
estava eu pronta para perfurar a parede de seu quarto. Sentia-me correta.
Não deixava de me ocorrer a dúvida sobre se ela voltaria na semana se-
guinte, mas sempre voltava.
Está lá, rigorosamente no horário, me sorri e estende o braço fime para
me cumprimentar. Seu braço fica muito esticado – nosso encontro é sem-
pre marcado pela distância, ela não me deixa esquecer. Observei claramen-
te o impasse na vida de Tânia, a paralisia e cristalização, que ela vem para
resolver. Mas para tentar resolver, a analista vem. Vejo o seguinte: Tânia,
em seu quarto, tendo desistido de sair, encontrando benefício secundário.
Sobreposto a isso, Tânia chorando, pedindo companhia. Vejo que eu estou
de fora do quarto, pensando que essa mulher bonita e inteligente está com
41 anos, não é mãe e já se trata desde os 20. Infelizmente, só posso pensar
que quase nada mudou. Não, definitivamente não posso entreter-me com a
vida do lado de fora do quarto e esperar que ela saia no momento certo.
Não mais. Terei de entrar, mesmo sem ser convidada, e sua confiante pre-
sença na sessão seguinte me confirma isso.
Recentemente, Tânia percebeu que seu relacionamento fôra recheado
de ilusões. Quando ela o conheceu, pareceu-lhe de que rendia frutos seu
tratamento, afinal, conseguia ter alguém que a amasse. Viu, com muita dor,
que ele é indisponível para ela e sempre será. Continua sozinha. Foi nessa
sessão que, sem nenhum planejamento, me vi oferecendo análise a ela.
Sabia o que nos esperava. Pensei que o momento para falar de análise1 com
um paciente seria o de quando já sabemos do que será feito o impasse.
Obstáculos de logística foram rapidamente secundarizados. Tânia tinha
prazer e urgência no olhar. Eu tinha convicção de estar oferecendo o meu
melhor a ela. Ao final da sessão, ela me diz: “Eu não tenho problema ne-
nhum de deitar no divã, de vir mais vezes, eu faço o que for preciso pra eu
melhorar […] eu invisto tudo nisso aqui, eu posso te dizer que vivo para
chegar esse dia; meu único medo, portanto, é de me decepcionar.
Este trabalho enfocou a primeira etapa de um processo analítico com
uma nova paciente. Essa paciente sente-se solitária no mundo. Paradoxal-
mente, ela tende a repelir as aproximacões. Eu vivenciei o drama desse
impasse até conseguir encontrar um lugar seguro em minha mente para
abrigar a análise, sabendo que a paciente demorará a sentir minha compa-
nhia como verdadeira.

1
Esclareço que o termo análise aqui se refere à sugestão de aumento de freqüência, bem como à
experiência do divã, o que não anula o fato de o tratamento ser analítico desde o início.
Caroline Milman
BOLLAS, C. Forças do destino: psicanálise e idioma humano. Rio de Janeiro:
Imago, 1992.
ROUSSILLON, R. Paradoxos e situações limite da psicanálise. São Leopoldo:
Editora Unisinos, 2006.
WINNICOTT, D. W. A capacidade para estar só. In: . O ambiente e os
processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

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