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Referência: GARCIA, Agnaldo (org). Pesquisas sobre o Relacionamento Interpessoal.

Vitória: Editora da ABPRI, 2010, NO PRELO.

Bullying: de onde vem a Violência que assola a Escola?

Luciene Regina Paulino Tognetta1

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.


Adaptado de Martin Luther King

Resumo:
Entre as urgentes preocupações que assolam a educação mundial, o tema dos conflitos
tem sido alvo de constantes discussões entre aqueles que se esforçam por traduzir ações
que possam contribuir para a superação da problemática da violência, da agressividade e
da indisciplina em contextos escolares. Por certo, tal preocupação é extremamente
relevante. No entanto, a literatura parece propensa apenas a validar uma única forma de
problema na escola: a indisciplina. Esta é, convenhamos, uma preocupação legítima,
pois se constata na escola inúmeras cenas de desrespeito às normas de condutas.
Contudo, não pode ser a única, visto que milhões de crianças e adolescentes sofrem
calados os dramas do desrespeito a si pelos próprios pares e mesmo pelos seus
professores. Para tratar desse tema, é preciso pensá-lo na ambigüidade de sua natureza
gestacional. Objetivando diagnosticar a realidade de meninos e meninas que se sentem
menosprezados, humilhados ou maltratados na escola, diferentes estudos têm nos
permitido encontrar uma faceta escondida na escola: crianças e adolescentes nos
revelam que há na escola muitos episódios de violência advinda de seus pares assim
como uma violência velada do próprio professor que, com ofensas verbais, exposição
pública e outras formas de intervenção, deixa clara a falta de formação, de reflexão e de
maneiras mais equilibradas e adequadas de intervenção nos conflitos interpessoais.

Palavras-chave: violência, indisciplina, bullying, psicologia moral.

1
Coordenadora da linha de pesquisa “Afetividade e Virtudes” do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Moral – Unesp/Unicamp.
Existe um grande problema nas questões de como educamos nossos meninos e
meninas exatamente porque a leitura que fazemos dos problemas de violência na escola
e entre eles o bullying, é sempre através das manifestações mais evidentes ao menos aos
olhos das autoridades escolares: pela indisciplina. As situações de indisciplina indicam a
não obediência às regras, o que convenhamos, para os professores, significa muitas
vezes desobedecer às figuras que fazem a regra 2. Estamos acostumados a agir pautados
na perspectiva de que as regras existem em função da obediência à autoridade e para dar
conta de tal ordem estabelecida, comumente usamos formas de punições, que são
também tão violentas quanto às formas de violência que assistimos em nossas escolas.
Por certo, parece que quando discutimos esses problemas falamos sob apenas uma
perspectiva, instigados comumente pela mídia que a retrata: da violência cometida por
nossos alunos contra os professores. Numa pesquisa recente realizada pela APEOESP,
órgão sindical dos professores de escolas públicas do Estado de São Paulo, em 2008,
dos 580 questionários respondidos por educadores da rede estadual de ensino, apurou-se
que 24% dos professores já haviam sido vítimas de violência física; 43%
disseram ter sido alvos de palavras xingamentos; 30% se referiram a
humilhações que passaram e 27% foram alvo de agressões verbais e intimidações. Outra
pesquisa, agora da FIPE, financiada pelo MEC3 em 2009 chama também a atenção para
a violência na escola: “quase 9% dos professores e 8% dos funcionários de escola
pública do país sofreram, por parte dos alunos, algum tipo de discriminação, como
agressão física, acusação injusta ou humilhação”. Dados como esses parecem descrever
um cenário de relações em que alunos e professores não se entendem e em que os
últimos, vitimados pelo sistema que não pune os vilões da história, parecem não saber o
que fazer.
Entretanto, não pensamos nas formas de violências que nós, professores,
podemos utilizar com nossos alunos, muitas vezes expondo-os, humilhando-os,
aplicando-lhes sanções que os fazem persistir na convicção de que as regras existem
porque a autoridade ali está e as cobra veementemente. Contudo, essas formas de

2
Uma característica da heteronomia é acreditar que as regras existem em função da autoridade. Crianças
pequenas explicam o valor da regra em razão da existência de alguém que devido ao seu não
cumprimento, pode punir (Piaget, 1932). Lamentavelmente, muitos adultos também acreditam que as
regras existem somente em função da autoridade e guardam ‘dinheiro público nas meias’ quando acham
que não estão sendo vistos....

3
http://g1.globo.com/Noticias acesso em 17/06/09 - 16h02 - Atualizado em 17/06/09 - 18h24 .
violência que a escola se utiliza para combater o que também chama de violência por
parte dos alunos não são explícitas, são veladas, sutis. Aqui se esconde outro problema,
que é uma crença de que as crianças sentem de maneira diferente de nós. E que as
crianças não se sentiriam humilhadas, menosprezadas, atacadas pelos adultos quando
colocadas em situação de exposição. Porque nós não teríamos coragem de fazer isso
com o adulto, mas fazemos isso constantemente com as crianças 4? Isso, portanto, requer
um olhar atento aos problemas infantis, exatamente aqueles que se referem a como
nossas crianças têm sido desrespeitadas.
Antes ainda de passarmos ao enfrentamento da questão central dessa reflexão
sobre o bullying, é preciso ir adiante nesta discussão sobre os problemas de violência
notadamente percebidos pelos professores como desrespeito às regras que sustentam as
relações na escola. Sim, pois, é preciso lembrar que comumente nos incomodamos com
pequenos fatos cotidianos e criamos novas regras, como aquela que proíbe o uso do
boné, que não sustentam um valor moral como o respeito a toda e qualquer pessoa.
Perdemos nosso tempo com esse tipo de regra e não damos a devida atenção às questões
morais. Bilhetinhos ou torpedos durante a aula nos aborrecem. Celular, chinelos ou
shorts curtos nos incomodam, no entanto, tais ações não nos fazem repensar a
necessidade de que nossas aulas possam trazer sentido aos alunos para que esses se
interessem de fato por aquilo que é bem maior – o conhecimento e o uso deste em
benefício do homem. Gastamos tempo demasiadamente grande com discursos sobre a
importância do uniforme não composto pelo boné, mas não paramos para discutir os
problemas que acontecem nos recreios em que meninos e meninas são deixados de lado,
são ameaçados por não serem “iguais” aos demais...
Tudo isso para mostrar que a escola se preocupa demasiadamente com os
problemas de indisciplina e se esquece de um problema que é freqüente entre meninos e
meninas – o bullying. Vamos a ele. Uma forma de violência não necessariamente dessa
geração visto que é um problema de seres humanos que têm algo em comum desde o
primeiro momento em que nascem - a necessidade de serem vistos como valor nas
relações que estabelecem com os outros. Um problema que é muitas vezes esquecido
4
Elkind (1975) apresenta vários equívocos que enquanto adultos temos para com o desenvolvimento
infantil: um deles é que de fato, as crianças seriam diferentes quanto aos seus sentimentos – não se
sentiriam constrangidas quando chamamos sua atenção na frente de todos, ou não se sentiriam
humilhadas quando nos voltamos aos outros para questionar sobre sua atitude. Porém constantemente,
acreditamos que as crianças ‘pensam’ como os adultos conseguindo manter-se, por exemplo, quatro horas
a fio, sentadas para ‘aprender’: crianças, principalmente cujo pensamento pré-lógico persiste, precisam
da ação – brincar, pegar,puxar, falar para que seu pensamento possa se desenvolver.
pela escola, primeiro porque aqueles que inserem as futuras gerações no mundo moral
se incomodam mais com situações de indisciplina, segundo, pois concebem que os
problemas das crianças não são relevantes já que acreditam que elas não sentem como
nós adultos.
Primeiramente, vamos apontar suas características principais para entender,
posteriormente, como podemos agir. Sim, pois, para agirmos contra aquilo que nos
angustia quando vemos nossas crianças passarem por situações de violência precisamos
primeiro identificar o problema e compreender suas características.
Bullying é uma forma de intimidação entre pares, ou seja, entre crianças 5, entre
adolescentes ou entre adultos. Não chamamos de bullying quando a violência é entre
pais e filhos, ou entre professor e aluno e sim; a esse respeito, chamamos assédio moral.
O prefixo inglês Bull remetendo-se a touro simboliza a força física ou
psicológica daquele que é o Bully ou autor. Este escolhe um alvo frágil para passar por
situações constrangedoras, batendo, xingando, inventando mentiras a seu respeito,
roubando, deixando de lado em grupo de trabalho ou times, usando a internet para
enviar comentários maldosos, etc. Todas são situações de bullying, marcadas pela
violência. Entretanto, existem algumas características importantes que diferenciam esse
fenômeno de outras formas de violência. Temos insistido nelas justamente pelo fato de
que o conjunto dessas características nos leva a um fenômeno diferente que não poderia
ser traduzido como ‘maus tratos’ entre iguais ou apenas como ‘maus tratos’6.
A primeira delas é que não são brincadeiras momentâneas e esporádicas, mas
ações repetidas sempre com um mesmo alvo fazendo com que a vida desse último se
torne um inferno e, portanto, que sua rotina seja marcada pela incidência de violência. A
segunda característica dessa forma de violência é a intencionalidade das agressões:
esses meninos e meninas, que são autores do bullying, querem fazer com que o outro se
sinta menosprezado, diminuído e exposto, ou seja, há a intenção de ferir e que exige de
nós um esforço para pensar nas correções necessárias a essa forma de desrespeito com o
outro. Querem ser vistos como líderes, ou como melhores ou como maiores naquilo que
atribuem como valor. Nessa segunda característica, a intenção de ferir gera no autor
uma espécie de prazer. Existem alguns estudos das neurociências que mostram que
esses meninos, ao agirem mal, têm liberado uma substância orgânica que lhes gera uma

5
De acordo com Ruiz & Mora-merchán (1997) há pesquisas que comprovam que crianças a partir dos 3
anos de idade já se envolvem em situações de bullying.
6
Para mais explicações sobre o uso da palavra em inglês bullying ver Tognetta, 2010.
sensação de prazer. Se nossas reflexões parassem por aqui, obviamente poderíamos
supor que rigorosamente o que falta a esses meninos e meninas autores de bullying seria
a punição, pois são ‘maus’. É preciso então, ainda que não adentremos as ações que
podemos e devemos tomar como intervenções, nos lembrar que tais crianças e
adolescentes, embora sintam prazer em provocar os outros, precisam ser vistos como
também necessitando de ajuda, pois carecem de um ‘mal’ cujo remédio também é de
responsabilidade da escola: carecem de sensibilidade moral (a que se referiu Smith,
1999, quando tratou da necessária participação dos sentimentos numa ação moral) uma
espécie de capacidade de sair de si, do ponto de vista cognitivo e afetivo para ver o
outro como um sujeito digno de respeito 7 (Tognetta, 2010). Veremos ainda como podem
e devem ser nossas intervenções ao considerarmos essa demanda.
Uma terceira característica é que existe um alvo além de um autor. A atribuição
dessas nomenclaturas8 permite-nos superar um estereotipo que tem sido constante nos
estudos de bullying e nas propostas que se tem, principalmente em termos de políticas
de intervenções: chamávamos os protagonistas desse fenômeno como agressores e
vítimas; quando falamos em ‘agressor’ pensamos em um sujeito ‘mau’, e quando
falamos em ‘vítima’ atribuímos a ela um sentimento de piedade que parece por si só
resolver a situação – agimos por ela e não suscitamos no alvo de bullying, ao sentir
pena, a necessidade de se defender. Portanto, a alteração dos nomes não é somente uma
mudança de linguagem, mas de significação.
Por certo, os autores de bullying, embora tenham a intenção de ferir, também
precisam de ajuda porque não conseguem se ver como valor (no sentido moral e não
estético ou socialmente estabelecido), são muitas vezes incapazes de reconhecer seus
próprios sentimentos e consequentemente os sentimentos dos outros. Por sua vez, os
alvos de bullying são meninos e meninas vitimizados pelos estereótipos sociais e por
isso sofrem. Sim, pois estes alvos comumente têm uma característica que foge do que é
culturalmente estabelecido: usam óculos, choram demais, são gordinhos ou tímidos, ou
seja, têm um padrão e um comportamento que os diferencia dos demais.
Contudo, ainda que caibam as explicações das ciências sociais para a
necessidade de se pensar o bullying do ponto de vista do preconceito, nos parece pouco

7
Por essa e outras razões ainda trataremos o bullying do ponto de vista das imagens que os sujeitos
desejam e têm de si diante dos outros e dessa forma pensamos que a inserção do tema do bullying no
universo da Psicologia Moral é promissor.
8
Maiores discussões o leitor pode encontrar em Tognetta & Vinha (2008).
para pensar a grandeza desse fenômeno: como explicamos o fato de que nem todo
mundo que usa óculos, ou que é baixinho, ou gordinho, por exemplo, se torna alvo de
bullying? Exatamente porque essa é a imagem que têm de si, ou seja, quem se torna
alvo de bullying concorda com aquela imagem que os outros apresentam dele se
sentindo por isso menosprezado e sem forças para reagir aos escárnios a que são
submetidos. Eis a contribuição da Psicologia Moral: bullying é um problema moral e
pode ser entendido sob a perspectiva dos avanços nos estudos desta ciência. Meninos e
meninas precisam sentir por si um auto-respeito que os levem a respeitar o outro. Alvos
de bullying assim o são até que não consigam enfrentar seus próprios medos e desafios
por se sentirem desrespeitados. Nossas investigações atuais têm nos apresentado
notadamente tais pressupostos: interessantemente, numa pesquisa com 63 adolescentes
que se envolvem em cyberbullying (bullying no espaço virtual) 20 meninos e meninas
que se apresentaram como já tendo sido vitimizados por algozes na internet, quando
foram questionados sobre seus sentimentos em relação a outras vítimas que sofriam
ataques, 30% das respostas se referiram ao “merecimento” desses alvos (Tognetta &
Bozza, 2010). Isso denota o quanto os alvos de bullying o são em função de certa
concordância com aqueles valores aos quais são relacionados.
Outra característica importante é que o bullying, diferentemente do que se
apresenta no senso comum, não é um fenômeno de violência que acontece entre
professor e aluno, como já dissemos anteriormente. Bullying é uma forma de violência
que acontece numa simetria de poder instituído em que não há alguém com menos ou
mais autoridade. Se existem formas de violências do aluno para com o professor, ou se
existem formas de intimidação, de humilhação ou de exposição do professor para com a
criança, essas são formas de violência, mas não podemos caracterizar como bullying.
A próxima característica é uma das mais imprescindíveis para pensarmos na
nossa atuação em sala de aula, exatamente pelo fato de que o que caracteriza o autor de
bullying é a necessidade de manter uma boa imagem diante dos outros. O autor precisa
se sentir aceito, precisa se sentir valor. Se ele tem essa necessidade onde estará o fator
que vai motivar as suas ações? No público, ou seja, na platéia que assiste ao espetáculo.
Interessantemente, podemos pensar que boas soluções para combater o bullying
na escola, implicariam então, formas de ajudar os nossos meninos e meninas que são em
número muito maior- o público, a se indignarem contra as injustiças que vêem dia-a-dia.
Isso porque, novamente, é o que temos encontrado em nossas investigações atuais e que
correspondem aos dados elucidados em outras pesquisas mundialmente reconhecidas
(Almeida et al, 2003; Avilés & Casares, 2005; Fante, 2005). Numa investigação com
150 adolescentes do nono ano de Ensino Fundamental II e primeiro ano do Ensino
Médio de escolas públicas da região metropolitana de Campinas (Tognetta et al),
encontramos números que assim descrevem essa forma de violência entre pares: 16% de
nossa amostra foi considerada entre autores convictos cujas ações de bullying são
reveladas na freqüência contínua de seus ataques; 29,3% são aqueles autores que
eventualmente se colocam, muitas vezes como forma de proteção e revanche, como
autores esporádicos de uma forma de violência que se pareceria com aquelas
consideradas bullying; 60% como aqueles que já passaram por processos de vitimização
e finalmente, 92% que dizem já terem assistido a alguma situação de bullying na escola.
Vejamos: quase que a totalidade dos alunos já assistiram a cenas desse tipo de violência
na escola, já foram, portanto, “público”. É ele quem dá a atenção e assim promove o
autor. Bullying é um fenômeno escondido aos olhos do professor, os quais estão mais
atentos a situações que os afetam diretamente, mas não é escondido aos olhos dos
alunos. O autor fará os colegas ou até a classe inteira saber que chamou um colega de
um apelido que ele não gosta, porque é essa a maior recompensa de um autor de
bullying: ver a dor do outro com seu sucesso diante dos outros. Quanto mais souberem
daquilo que ele é capaz de provocar em alguém, mais satisfeito ele se sente.
As pesquisas mais recentes realizadas por Fante (2005) mostram que na região
de Rio Preto a violência chamada bullying existe. Outras, conduzidas por Mascarenhas
(2009) na região norte do país também atestam a urgência das intervenções. Na região
de Campinas encontramos em 2010 (como já mencionados anteriormente) dados
também alarmantes. Em 2004 e 2005, conduzimos investigações que puderam constatar
o fato em nossa região (Tognetta & Vinha, 2010a). Naquela ocasião, perguntamos a
cerca de 800 crianças e adolescentes de escolas públicas e particulares da região de
Campinas: “Você já foi humilhado, diminuído, desprezado ou caçoado por parte de
alguns alunos?”, para sabermos se essas crianças se viam muitas vezes como alvo de
bullying dos seus pares, e assim pensarmos em intervenções para essas questões de
agressividade que não chegam até nós. Entretanto, introduzimos uma pergunta (“Você
já foi humilhado, diminuído, desprezado ou caçoado por algum de seus professores?”)
neste mesmo questionário que dizia a respeito de situações de violência na escola
advindas de outras fontes. Para nossa surpresa o grande problema que encontramos foi,
além do bullying, o fato de que crianças e adolescentes serem vítimas dos próprios
professores. Numa das amostras, do 4º ano do Ensino Fundamental ao 2º ano do Ensino
Médio encontramos 22% de respostas que indicaram já terem sido menosprezados,
ameaçados, zombados pelos professores. Não podemos dizer que este seja um número
pequeno quando pensamos em pessoas. A violência é tão velada que não pensamos que
as formas de atuação de um professor também podem levar as crianças a serem alvos e
autores de bullying, ainda que indiretamente. Isso porque, imaginemos a seguinte
situação: em determinada escola conhecida por nós e em que conduzimos as pesquisas
de 2004 e 2005 na região de Campinas, os pais de dez principais alunos que eram
considerados “terríveis” pela escola são convocados para uma reunião em que os filhos
estão presentes. Coletivamente a professora vai apontando os defeitos de cada um
desses alunos na frente de todos. Seus pais, sentindo-se ridicularizados, culpados... É
dessa forma velada, não intencional, que também a escola expõe suas violências: expõe
publicamente o que deveria ser particular. Infelizmente um dos grandes equívocos da
escola, além de todos os já citados, é que trabalhamos o que é público como particular e
o que é particular como público: quando temos uma ‘briga de galo’ – aqueles momentos
em que há espectadores que se rejubilam com a briga de outros dois, constantemente
como resolvemos? Encaminhamos os ‘brigões’ para a direção e pedimos ao grupo que
se aglomera que se disperse. O problema era público e não particular. Todos estavam,
de alguma forma, envolvidos ainda que pela ausência de indignação a essa situação de
injustiça. Todos deveriam ser questionados: e se fosse com você? O que vocês poderiam
ter feito para impedir que essa briga acontecesse? Tudo isso para que aqueles que são
indiferentes se sintam implicados a tomar uma posição, para que se indignem com as
injustiças na escola.
Há de fato uma explicação para que crianças e adolescentes cada vez mais se
distanciem de pensar no coletivo da escola, como vimos numa investigação realizada
com outros 150 estudantes de escolas públicas e particulares do Estado de São Paulo em
2009: falta-lhes indignação ao que é público, pois se encontram pensando numa espécie
justiça apenas auto-referenciada sem se implicar com os outros (Tognetta & Vinha,
2009).
De fato, embora seja objetivo da escola que as crianças e adolescentes se sintam
responsáveis pelo que é público, pouco fazemos para chegar a tal realização.
Realizamos outra pesquisa na região de São Paulo (Tognetta & Vinha, 2010b), com 100
crianças e adolescentes, perguntando se já tinham visto ou tinham sido tirados da sala de
aula para permanecerem no corredor de castigo, ou então, excluídos da sala e colocados
em exposição pública. Esses meninos apresentaram altos índices de exclusão deles ou
de colegas da sala de aula. E o interessante é que perguntamos também quanto tempo
durava essa exposição na sala de aula ao que obtivemos diferentes respostas como de 3-
5 minutos, 10 minutos, 1 hora, e alguns responderam “muito tempo”. O que seria
“muito tempo” para uma criança? Na verdade seu tempo psicológico é o que está em
jogo, não podemos caracterizar se são 5 minutos, 1 minuto, 10 minutos ou 50 minutos
ou quantos minutos e horas são de fato, mas, na verdade, uma grande porção de tempo
de exposição.
Por certo, essa pesquisa nos dá um viés enorme para pensarmos como vamos
combater a violência entre pares na escola, cuja própria escola é fonte de violência, em
que aqueles que formam não consideram que as crianças têm sentimentos e consideram
que a moral deve ser algo a ser tratada sempre publicamente. Vejamos como é difícil
levar para frente uma proposta de intervenção ao bullying se na verdade, precisamos
inicialmente formar os educadores, ajudá-los a pensar e a lidar com quaisquer situações
rotineiras, para depois então intervir em casos específicos de bullying.
Não significa que os professores tenham realmente culpa dessa situação, até
porque eles não sabem o que fazer, não há tempo para discutir sobre isso em sala de
aula, nos cursos de graduação; são poucas horas para tais discussões em disciplinas de
Psicologia da Educação. Não se trata de procurar culpados, mas, de fato, entender que
está na formação dos professores um canal para a compreensão desse fenômeno humano
e a possibilidade de intervenção.
Falta-nos, portanto formação adequada para fazer com que esses meninos e
meninas se indignem com situações de injustiça. Falta-nos, enquanto professores, olhar
para o bullying não como brincadeira, mas exatamente como mais uma oportunidade de,
a partir de um conflito, se aprender a conviver. As pesquisas em psicologia moral vão
defender que é verdadeira a necessidade de que se tenha consciência das regras que
regulam a convivência humana, mas que é preciso mais que isso: é preciso um querer,
que nos move a agir. Portanto, é preciso trabalhar com os sentimentos desses meninos e
meninas que pouco se sensibilizam com os outros, por isso os questionamos: como
vocês se sentiriam se fossem chamados desse jeito? Como as pessoas se sentem nessa
situação?
Esquecemo-nos que generosidade, misericórdia, sensibilidade à dor do outro,
são construídas na relação entre pares, e não através do processo de “ensinamentos da
moral”. Ou seja, na verdade tentamos acreditar que somos nós que ensinamos e todo
trabalho de disciplinar é nosso. O fato é que uma forma promissora de superar o
bullying é quando as crianças são instigadas, levadas e ajudadas a dizer a quem é de
direito a maneira como se sentem, a buscar soluções alternativas para os problemas que
têm no cotidiano, a dizer como são tratadas e como gostariam que fossem respeitadas
para que de fato possam tomar consciência de seu valor e do outro.
Dessa forma, superar formas de violência significa dar a essas crianças espaços
para que elas possam compreender que existem outras maneiras de se resolver um
conflito. Pouco adianta punir o autor de bullying e afirmar que ele é mau já que é
preciso ajudá-lo a perceber a perspectiva do outro. E como fazemos isso? Primeiro este
outro terá que falar como se sente e não o professor, porque quando falamos, o valor
está em nos obedecer e não respeitar àquele que sofreu as ofensas. Por essa razão
crianças e adolescentes precisam ser acostumadas a dizer como se sentem. Esses alunos,
autores ou alvos, infelizmente, não têm espaço para dizer como se sentem, se chateados
ou revoltados, porque quando se sentem revoltados agem da mesma maneira, causando
revolta nos outros. Há algo já nos revelado por Winnicott (1999): “a manifestação de
um comportamento agressivo da criança, é na verdade a dramatização de um mau
interior que é ruim de mais para ser tolerado como tal”, ou seja, há muitas vezes algo de
errado com aquele que agride somado a uma necessidade de se sentir valor, própria do
ser humano como nos alertou Adler (Tognetta, 2009) e para isso precisa primeiro ser
respeitado pelas suas autoridades, dizendo o que pensa, o que sente... Se auto conhecer
para poder reconhecer como se sente em diferentes situações e assim respeitar os outros.
É por isso que temos insistido em atividades e jogos para ajudar essas crianças a
reconhecer como se sentem em diferentes situações que vivem (Tognetta, 2003; 2009).
Enfim, em uma palavra, as ações iniciais para vencer o bullying precisam ser da
escola. Infelizmente, o que temos hoje como nos recorda Leme (2006) é um “processo
de terceirização” dessas ações formadoras já que acreditamos que chamar o conselho
tutelar, discar 0800... Resolveremos o problema de bullying. É dentro da escola que as
ações para ajudar essas crianças e adolescentes a superarem esses atos violentos, a falta
de valor, a ausência de reconhecimento de sentimentos deve começar.
Nossas investigações têm provado que o bullying é um problema moral 9 e,
portanto a constituição de um ambiente cooperativo mais do que ações pontuais aos
dramas cotidianos é necessária.
E nossa última palavra: precisamos resgatar a idéia de que meninos e meninas
que desrespeitam os outros também se sentem desrespeitados primeiro. Respeitar as
crianças (o que não significa permitir o desrespeito como pensamos ter evidenciado) é
nosso grande desafio para vencer, não só as situações de bullying, mas qualquer outro
tipo de violência na escola.

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9
Numa investigação com 63 adolescentes, não encontramos, entre meninos e meninas que são autores de
cyberbullying, aqueles cujas representações de si aspiram por conteúdos éticos, ou seja: as imagens de si
que aspiram autores de bullying ou cyberbullying são aquelas ligadas à estereótipos sociais ou a
conteúdos individualistas que não integram a si e ao outro como sujeitos que precisam de tolerância,
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WINNICOTT, Donald W. Privação e delinqüência. São Paulo: Martins Fontes. 1999.

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