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Francisco Monteiro
franciscomonteir@gmail.com
Clotilde Rosa (1930 – 2017) foi um nome maior da música portuguesa do séc. XX. Harpista e
compositora, as suas composições, inseridas à peine estetica e tecnicamente em algum tipo de pos-
serialismo de índole vanguardista, ou mesmo nalgum pos-modernismo, parecem mostrar uma
compositora multifacetada:
1. Foi uma compositora vanguardista histórica à maneira dos anos 60, utilizando técnicas que
Karlheinz Stockhausem, John Cage, Pierre Boulez, Earl Brown e outros desenvolveram a
partir dos anos 50, marcando um espaço estético revolucionário anti-romântico;
4. Afirmou sempre a sua identidade como instrumentista, como harpista, mesmo quando se
dedicou inteiramente à composição e quando escreveu para outros instrumentos;
5. Inseriu-se nos movimentos vanguardistas de choque dos anos 60 e 70 mas, porventura, com
alguma delicadeza.
A apreciação que se segue parte essencialmente da obra para piano e de câmara, e mostra visões
dialeticamente antagónicas, que eventualmente se completam na caracterização de uma
personalidade a meu ver bastante complexa.
Para além de pianista, harpista por opção pessoal, tal como nos relata numa entrevista a César
Viana1, filha de um cantor de ópera e de uma harpista profissionais, a sua música parece revelar esse
estereótipo feminino ligado à harpa, instrumento socialmente entendido, desde sempre, para umas
delicadas mãos, por vezes as únicas de uma senhora num mundo orquestral marcadamente
masculino.
1. Devotada mulher/mãe protetora, que se retirou das lides artísticas quando os seus filhos
eram pequenos, sempre preocupada com o seu desenvolvimento (2 dos 3 filhos homens são
1
César Viana, «Clotilde Rosa: Entrevista», Arte Musical - JMP, IV series, n. 4 (Julho de 1996).
2
2. Foi uma amiga que sempre olhou pelos seus colegas, músicos que lhe eram próximos, por
vezes em relação amorosa, outras quase maternal, para além de ter sido uma verdadeira
copine de route da rebeldia artística dos seus contemporâneos como Jorge Peixinho, Salette
Tavares, E. M. de Melo e Castro, António Aragão, José Ernesto de Sousa, etc.
3. Foi uma profissional multifaceta; pianista e harpista, dedicada à música barroca, à música
romântica nas orquestras onde tocou e, muito especialmente, à música contemporânea;
conhecedora da tradição musical apreendida no Conservatório, na Orquestra Sinfónica da
E.N. Porto e na Orquestra do S. Carlos, mas também das novas maneiras artísticas com as
quais foi convivendo, em especial depois do contacto com Jorge Peixinho em 1962.
4. Foi uma harpista que também se dedicou à composição. E ser compositora – no feminino –
era algo extravagante em Portugal nos anos setenta. Mas parece que, como compositora,
manteve sempre essa matriz fortemente expressiva, usando concomitantemente elementos
da vanguarda e da tradição, mostrando, mesmo nos seus tiques vanguardistas de choque, um
eventual toque delicado, expressivo, será que feminino?
1) O facto de ter usado em diversas obras uma espécie de campo harmónico – diria mais um
campo de possibilidades melódicas e harmónicas – como base fundamental para as suas peças,
tal como amplamente referido 2; talvez seja de notar que, embora Clotilde Rosa tenha trabalhado
com uma série dodecafónica como um desses campos de possibilidades harmónicas, estas
possibilidades harmónicas são, por vezes, próximas do tonalismo novecentista e pós-tonalismo,
bem como portadoras de potencialidades melódicas evidentes e presentes em diversas peças.
2) A presença da expressividade vocal, linear, melódica, usada em obras para voz, mas também
mascarada com elementos mais complexos, tal como se pode ver em diferentes obras como
Alternâncias (1976), Variantes II (1982) e nos Estudos para piano (2007).
2
Manuel Pedro Ferreira, Dez Compositores Portugueses. (Lisboa: Don Quixote, 2007); Anne
Kaasa, «Uma aproximação à estética da obra para piano de Clotilde Rosa» (Tese de Mestrado,
Aveiro, Aveiro - DeCa, 2008); Francisco Monteiro, «The Portuguese Darmstadt Generation: The
Piano Music of the Portuguese Avant-Garde» (PhD Thesis, Sheffield, Sheffield - dep. music, 2003).
3
Fig. 4 Variantes II
4
Fig. 5 Estudo V
3) Refira-se, ainda, o carácter marcadamente lírico de múltiplas obras, entendendo até os clusters
em Variantes II (1982) como se acordes (razoavelmente consonantes) se tratasse. Mas também
esse lirismo está presente noutras obras como Jogo Projetado I (1979), Castelos d’Oiro em
Mundos Irreais… (1990), Elos (1992), Canto de Zéfiro (1997), ou mesmo em alguns dos
estudos para piano de 2007.
Mesmo quando Clotilde Rosa exercitou a sua faceta de vanguarda pelo uso de técnicas estendidas
de performance dos instrumentos, usando tudos os sons possíveis de obter, não parece ter desejado
o choque, uma afirmação estética de vanguarda, mas talvez o lado mais expressivo – diria mesmo
lírico – que essas técnicas possibilitam, aliás como Jorge Peixinho em algumas obras, talvez o seu
alter ego. Mas não esqueçamos que Peixinho persistiu, bastantes vezes, nessa mesma estética de
choque, de afrontamento do público, talvez mais com obras de outros compositores – como
performer – do que com as suas próprias.
Clotilde Rosa assumiu essa tradição harmónica novecentista de uma mulher harpista filha de
músicos eruditos, clássicos, exercitou-a e transformou-a em algo novo, eventualmente vanguardista,
como compositora de cariz sempre expressivo e até lírico. E exerceu o seu poder agregador,
feminino, dedicando-se integralmente aos seus filhos na primeira infância, depois harpista de
orquestra, inserida no mundo da vanguarda pelas mãos de um outro harpista (Mário Falcão),
transformando-se em âncora maternal psicológica desse novo mundo da vanguarda musical dentro
do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa.
Clotilde Rosa foi performer e compositora de cariz radical, tanto pelo seu particular sentido de
autonomia expressiva, como pela educação familiar e pelas suas opções de aprendizagem ao longo
6
da sua vida. Filha de um cantor de ópera e de uma harpista, cedo apreendeu a vida musical lisboeta
de forma intensa, com as estreias e as récitas de ópera, os ensaios em casa, os convívios com
músicos de nomeada; e cedo viveu a perda de ambos os pais aos 9 anos de idade. Mais tarde,
vivendo com uma tia-avó, estudou harpa e piano ao mais alto nível no Conservatório Nacional,
terminando os cursos superiores com 18 e 19 anos respetivamente. O piano foi, talvez, o seu
primeiro instrumento, apesar de a compositora ter decidido enveredar por uma carreira na harpa3.
Irmã do arquiteto e escultor Artur Rosa (1926), a sua vida sem dúvida terá passado bem perto das
evoluções sociais, estéticas e pessoais deste arquiteto e de sua esposa, a pintora Helena Almeida
(1934 – 2018), filha do também renomado escultor Leopoldo de Almeida.
Tal como Helena Almeida, dedica-se integralmente aos seus 2 filhos nos primeiros anos, nascidos
fruto do seu primeiro casamento com Jorge Sá Machado, também músico (pianista e violoncelista),
então já mais dedicado à música ligeira 4. Mas em 1959, ano do nascimento do seu 3º e último filho,
ingressa como harpista numa orquestra em Lisboa. A partir de então a sua carreira vai adquirindo
experiências sempre novas: música barroca com Santiago Kastner e estudos em Amsterdão com a
harpista da orquestra do Concertgebow Phia Berkhout, com uma bolsa Gulbenkian, em 1961.
Em 1962 o harpista Mário Falcão, também aluno de Berkhout, entusiasta da música contemporânea,
convida Clotilde Rosa para tocar Imagens Sonoras, uma peça de 1961 para 2 harpas composta pelo
jovem e irrascível Jorge Peixinho. Este encontro, aos 32 anos de idade, torna-se decisivo para a
compositora, não só pelo estudo da obra – um projeto radical, mesmo na obra de Peixinho – como
pelos primeiros contactos pessoais com este compositor ligeiramente mais novo, recém doutrinado
nas lides mais vanguardistas musicais da Europa, seu futuro companheiro em diferentes jornadas,
tempos e partilhas: como companheiro de vida numa casa na rua da Boavista onde os dois viveram,
nos anos 60, com os 3 filhos de Clotilde, como mestre compositor e maestro, como compagnon de
route e, até à morte de Peixinho, como amigo da maior confiança.
A sua faceta como compositora iniciou-se já bastante tarde, quando a compositora tinha 34 anos de
idade, dentro da força criadora que fervia, na altura, dentro do Grupo de Música Contemporânea de
Lisboa formado por Jorge Peixinho, Clotilde Rosa, Carlos Franco (seu futuro companheiro),
António Oliveira e Silva e Catarina Latino; todos já falecidos.
A primeira obra importante é Alternâncias, para flauta e piano, cuja primeira versão é de 1976 (ou
de 1977 conforme um manuscrito), dedicada em 1978 a uma outra materfamilias: Marta Araújo,
amiga e confidente dos tempos do Porto do casal Clotilde/Peixinho, galerista e poetisa. Clotilde
Rosa evidencia logo essa pertença à vanguarda tal como era entendida nos anos 60 e 70:
na proposta de participação do corpo performativo como parte que reage ao que rodeia os
músicos,
no uso de clusters, todos os sons possíveis simultaneamente num determinado âmbito, como
3
Kaasa, «Uma aproximação à estética da obra para piano de Clotilde Rosa»; Viana, «Clotilde Rosa: Entrevista».
4
«Jorge Machado», em Wikipedia, acedido 30 de Outubro de 2017, https://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Machado.
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Mas quando Clotilde Rosa começa a compor era tida já como essa pasionaria da vanguarda musical
portuguesa: destaque-se o primeiro happening português na Galeria Divulgação em 1965, onde
participaram António Aragão, E. M. Melo e Castro, Salette Tavares (poetas), Manuel Baptista, Jorge
Peixinho (compositor), Clotilde Rosa e Mário Falcão (harpistas).
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E, a par da carreira multifacetada da Clotilde, a sua cunhada Helena Almeida, talvez bem mais
estável emocionalmente, caminhava novas propostas pictóricas de cariz marcadamente corpório
e/ou conceptual, sempre ao lado do seu fotógrafo de eleição Artur Rosa, seu marido e irmão de
Clotilde.
Jogo Projectado I, de 1979, é já uma obra colaborativa com a poetisa Marta Araújo e com o pintor
(e também músico) Eduardo Sérgio, amigos e compagnons dessa vanguarda que refervia no pós 25
de Abril: é uma obra aberta, com um poema em si também “aberto”, com propostas de imagens
feitas para a ocasião e atualmente disponíveis após um trabalho árduo de investigação e remaster de
Andreia Nogueira 5. É um poema e uma obra musical sobre o amor, quiçá romântico, alternando
acordes algo doces, talvez demasiado doces na sua ironia, com passagens que são propostas gráficas
para a performance.
5
Andreia Nogueira, «Que Futuro para o Património Musical Contemporâneo Nacional?» (Dissertação de
Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências e Tecnologia, 2018),
https://run.unl.pt/handle/10362/58912.
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E essa ideia de amor é misturada com morte, oiro, fogo, num texto onde a poesia se mostra concreta
e visual/conceptual, numa partitura deveras pictórica e numa música desconcertante.
Variantes II (1982) tem como figura central uma melodia acompanhada insistentemente a clusters.
Mas a insistência nesses clusters e notas pedal e as secções contrastantes mostram uma outra
Clotilde, por vezes bastante negra, até deprimente, onde essas mais doces melodias se transformam
completamente. A repetição – a insistência em determinadas curtíssimas secções fortemente
expressivas – é uma das características desta compositora.
Na verdade, ao longo das obras de Clotilde Rosa aparecem com muita frequência obras com este
carácter marcadamente negro e impenetrável, talvez deprimente, de harmonias aparentemente claras
mas algo complexas, sempre com uma 4ª aumentada a fazer-se sentir acentuadamente, ou
abertamente complexas e impenetráveis. Vê-se esse lado mais obscuro da menos doce Clotide Rosa,
talvez de uma maneira muito especial, nas canções com textos do seu amigo Armando Silva
Carvalho (Quiet Fire – 1999) e de João Franco (Complexidades – 2001): o seu carácter hermético,
negro, distante e obscuro, que resiste à análise e à compreensão expressiva, remete-nos para uma
possível outra (3ª) faceta importante na música de câmara de Clotilde Rosa.
Algumas obras tardias para piano parecem ter um carácter de revisitação ou como estudo
6
Marta Araújo, poema de Jogo Projectado.
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estilístico/técnico: Model for John (2000) como memórias de Messiaen, Sonata per pianoforte
(2003) e Impromptu (2004) remetem para expressividades mais conservadoras, especialmente em
termos harmónicos (com harmonias deveras simplistas), de texturas claras e sem grandes alterações
e de macroestruturas simples, diria neo-clássicas e conservadoras. A meu ver Clotilde procurou, em
alguns momentos do final, músicos menos dados às maneiras da vanguarda mas que se interessaram
por tocar as suas obras.
É fácil e comum entender-se Clotilde Rosa como uma personalidade expressiva e maternal, a doce
Clotilde, harpista e também compositora, criadora muito interessante apesar de ter começado tarde a
compor, de ser mulher, de nunca ter frequentado o ensino superior de composição, de ter sido algo
protegida pelo seu tutor e alter ego Jorge Peixinho, mas que se foi autonomizando ao longo do
tempo.
Numa segunda visão procurou-se a outra face desta compositora, a mãe destemida que assume um
emprego de orquestra quando nasce o seu 3º filho, que vai para Amsterdão, para Darmstadt, para o
Porto viver com Jorge Peixinho, vai para onde tem de ir para aprender, para amar e para e se sentir
bem, que sempre esteve ao lado de personalidades cimeiras e disruptoras da arte portuguesa, que se
afirma nessa vanguarda como protagonista, apaixonadamente, centrando alguns mais estouvados
colegas para objetivos importantes, fazendo-se verdadeira materfamilias de músicos e artistas
dedicados à vanguarda musical dos anos 60 a 90. Ou mesmo, personalidade tutelar e verdadeira
materfamilias do que é o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa depois da morte de Jorge
Peixinho, nos últimos 20 anos: o diretor do grupo e um dos músicos fundamentais são seus filhos,
também herdeiros (por testamento) de Jorge Peixinho; nos ensaios outros músicos mais recentes
falavam de Clotilde Rosa, em tom algo carinhoso, como “a nossa mãe”.
Talvez Clotilde Rosa tenha sido tudo isto, simultaneamente materfamilias e pasionaria, mas
também várias outras coisas: uma mulher romântica e sonhadora, recordando o seu passado familiar
e profissional ligado ao mundo fantástico da ópera, uma mulher com uma faceta obscura que se
revela em peças por vezes tão impenetráveis quanto os seus poetas eleitos Armando Silva Carvalho
e João Franco, uma compositora que pretende ser mais amplamente tocada e que se aproxima de
intérpretes mais convencionais, uma compositora que se fez tocando, ouvindo e estudando outros
que acaba por homenagear em peças específicas, uma mulher de múltiplas paixões, encantamentos
e imposições, que sobreviveu mal, no final da sua vida, à perda do seu companheiro de múltiplas
vidas e de intimidade, o flautista Carlos Franco (1927-2016), mas que continuou a impor-se e a
marcar os seus mais próximos e o mundo musical português até ao seu falcimento a 24 de
Novembro de 2017.
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Referências
Ferreira, Manuel Pedro. Dez Compositores Portugueses. Lisboa: Don Quixote, 2007.
«Jorge Machado». Em Wikipedia. Acedido 30 de Outubro de 2017.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Machado.
Kaasa, Anne. «Uma aproximação à estética da obra para piano de Clotilde Rosa». Tese de
Mestrado, Aveiro - DeCa, 2008.
Monteiro, Francisco. «The Portuguese Darmstadt Generation: The Piano Music of the Portuguese
Avant-Garde». PhD Thesis, Sheffield - dep. music, 2003.
Nogueira, Andreia. «Que Futuro para o Património Musical Contemporâneo Nacional?»
Dissertação de Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências e
Tecnologia, 2018. https://run.unl.pt/handle/10362/58912.
Viana, César. «Clotilde Rosa: Entrevista». Arte Musical - JMP, IV series, n. 4 (Julho de 1996).