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inquisições
*****
JORGE LUIS
BORGES
Este livro: Outras inquisições, é parte integrante da coleção:
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em
qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação
etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora.
Impressão e acabamento:
Gráfica Círculo
CDD-ar863.4
Índices para catálogo sistemático
OUTRAS INQUISIÇÕES
Otras Inquisiciones
Tradução de Sérgio Molina
http://groups.google.com/group/digitalsource
Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de
maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem
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OU TR AS
IN Q U IS I Ç Õ E S
– 1952 -
A Margot Guerrero
A MURALHA E OS LIVROS
Li, dias atrás, que o homem que ordenou a edificação da quase infinita
muralha chinesa foi aquele primeiro Imperador, Che Huang-ti, que também
mandou queimar todos os livros anteriores a ele. O fato de as duas vastas
operações – as quinhentas a seiscentas léguas de pedra opostas aos bárbaros, a
rigorosa abolição da história, isto é, do passado – procederem da mesma pessoa
e serem de certo modo seus atributos inexplicavelmente agradou-me e, ao
mesmo tempo, inquietou-me. Indagar as razões dessa emoção é o fito desta
nota.
Historicamente, não há mistério nas duas medidas. Contemporâneo das
guerras de Aníbal, Che Huang-ti, rei de Tsin, reduziu os Seis Reinos a seu
poder e aboliu o sistema feudal; erigiu a muralha, porque as muralhas eram
defesas; queimou os livros, porque a oposição os invocava para louvar os
antigos imperadores. Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum dos
príncipes; a única singularidade de Che Huang-ti foi a escala em que ele atuou.
É o que dão a entender alguns sinólogos, mas eu sinto que os fatos referidos
são algo mais que um exagero ou uma hipérbole de disposições triviais. Cercar
uma horta ou um jardim é comum; não, cercar um império. Tampouco é
rotineiro pretender que a mais tradicional das raças renuncie à memória de seu
passado, mítico ou verdadeiro. Três mil anos de cronologia tinham os chineses
(e, nesses anos, o Imperador Amarelo, e Chuang Tzu, e Confúcio, e Lao-tsé),
quando Che Huang-ti ordenou que a história começasse com ele.
Che Huang-ti condenara a mãe ao desterro por libertinagem; em sua dura
justiça, os ortodoxos não viram senão impiedade; Che Huang-ti talvez quisesse
suprimir os livros canônicos porque estes o acusavam; Che Huang-ti talvez
quisesse abolir todo o passado para abolir uma única lembrança: a infâmia de
sua mãe. (Não de outra sorte um rei, na Judéia, mandou matar todas as crianças
para matar uma.) Essa conjetura é aceitável, mas nada nos diz da muralha, da
segunda face do mito. Che Huang-ti, segundo os historiadores, proibiu
qualquer menção à morte, e procurou o elixir da imortalidade, e recluiu-se em
um palácio figurativo, que constava de tantos aposentos como dias tem o ano;
esses dados sugerem que a muralha no espaço e o incêndio no tempo foram
barreiras mágicas destinadas a deter a morte. Todas as coisas querem persistir
em seu ser, escreveu Baruch Spinoza; pode ser que o imperador e seus magos
acreditassem que a imortalidade é intrínseca e que a corrupção não pode entrar
em um orbe fechado. Pode ser que o Imperador tenha tentado recriar o
princípio do tempo, tenha-se chamado Primeiro para ser realmente o primeiro,
e Huang-ti para de certo modo ser Huang-ti, o legendário imperador que
inventou a escrita e a bússola. Este, segundo o Livro dos Ritos, deu às coisas
seu nome verdadeiro; semelhantemente, Che Huang-ti jactou-se, em inscrições
que perduram, de que, sob seu império, todas as coisas receberam o nome que
lhes convém. Sonhou em fundar uma dinastia imortal; ordenou que seus
herdeiros se chamassem Segundo Imperador, Terceiro Imperador, Quarto
Imperador, e assem até o infinito... Falei de um propósito mágico; também
poderíamos supor que erigir a muralha e queimar os livros não foram atos
simultâneos. Isso (segundo a ordem que escolhêssemos) dar-nos-ia a imagem
de um rei que começou por destruir e mais tarde resignou-se a conservar, ou a
de um rei desiludido que destruiu o que antes defendia. Ambas as conjeturas
são dramáticas, mas, que eu saiba, carecem de base histórica. Herbert Allen
Giles conta que aqueles que ocultaram livros foram marcados a ferro candente
e condenados a construir, até o dia de sua morte, a desmedida muralha. Essa
notícia favorece ou tolera outra interpretação. Talvez a muralha fosse uma
metáfora, talvez Che Huang-ti tenha condenado aqueles que adoravam o
passado a uma obra tão vasta quanto o passado, tão néscia e tão inútil. Talvez a
muralha fosse um desafio e Che Huang-ti tenha pensado: "Os homens amam o
passado, e contra esse amor nada posso nem podem meus carrascos, mas um
dia há de viver um homem que sinta como eu, e ele destruirá minha muralha,
como eu destruí os livros, e ele apagará minha memória e será minha sombra e
meu espelho, e não o saberá". Talvez Che Huang-ti tenha amuralhado o
império porque sabia que este era precário e destruído os livros por entender
que eram livros sagrados, ou seja, livros que ensinam o que ensina o universo
inteiro ou a consciência de cada homem. Talvez o incêndio das bibliotecas e a
edificação da muralha sejam operações que de modo secreto se anulam.
A muralha tenaz que neste momento, e em todos, projeta seu sistema de
sombras sobre terras que não verei é a sombra de um César que ordenou que a
mais reverente das nações queimasse seu passado; é verossímil que a idéia nos
toque por si mesma, para além das conjeturas que permite. (Sua virtude pode
estar na oposição entre construir e destruir, em enorme escala.) Generalizando
o caso anterior, poderíamos inferir que todas as formas têm sua virtude em si
mesmas e não em um "conteúdo" conjeturai. Isso coincidiria com a tese de
Benedetto Croce; já Pater, em 1877, afirmou que todas as artes aspiram à
condição da música, que é apenas forma. A música, os estados de felicidade, a
mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares
querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão
prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é
talvez o fato estético.
Por volta de 1938, Paul Valéry escreveu: "A história da literatura não
deveria ser a história dos autores e dos acidentes de sua carreira ou da carreira
de suas obras, e sim a história do Espírito como produtor ou consumidor de
literatura. Essa história poderia ser levada a termo sem mencionar um único
escritor". Não era a primeira vez que o Espírito formulava essa observação; em
1844, no povoado de Concord, outro de seus amanuenses anotara: "Dir-se-ia
que uma única pessoa redigiu quantos livros há no mundo; há neles tal unidade
central que é inegável serem obra de um único cavalheiro onisciente"
(Emerson: Essays, 2, VIII). Vinte anos antes, Shelley sentenciou que todos os
poemas do passado, do presente e do porvir são episódios ou fragmentos de um
único poema infinito, construído por todos os poetas do orbe (A Defence of
Poetry, 1821).
Essas considerações (implícitas, sem dúvida, no panteísmo) permitiriam
um infindável debate; eu, agora, invoco-as para executar um modesto
propósito: a história da evolução de uma idéia, por meio dos textos
heterogêneos de três autores. O primeiro texto é uma nota de Coleridge, ignoro
se escrita em fins do século XV11I ou princípios do XIX. Diz, literalmente:
"Se um homem atravessasse o Paraíso em um sonho e lhe dessem uma
flor como prova de que estivera ali, e ao despertar encontrasse essa flor em sua
mão... O que pensar?"
Não sei qual será a opinião de meu leitor acerca dessa imaginação; eu a
considero perfeita. Usá-la como base de outras invenções felizes parece
previamente impossível; tem a integridade e a unidade de um terminus ad
quem, de uma meta. Claro que o é; na ordem da literatura, como em outras, não
há ato que não seja coroação de uma infinita série de causas e manancial de
uma infinita série de efeitos. Por trás da invenção de Coleridge está a geral e
antiga invenção das gerações de amantes que pediram uma flor como prova.
O segundo texto que alegarei é um romance que Wells esboçou em 1887
e reescreveu sete anos mais tarde, no verão de 1894. A primeira versão
intitulava-se The Chronic Argonauts (neste titulo descartado, chronic tem o
valor etimológico de "temporal"); a definitiva, The Time Machine. Wells, nesse
romance, continua e reforma uma antiqüíssima tradição literária: a previsão de
fatos futuros. Isaías vê a desolação de Babilônia e a restauração de Israel;
Enéias, o destino militar de sua posteridade, os romanos; a profetisa de Edda
Saemundi, o retorno dos deuses que, depois da cíclica batalha em que nossa
terra há de perecer, descobrirão, espalhadas entre as ervas de uma nova
pradaria, as peças de xadrez com que antes jogaram... O protagonista de Wells,
ao contrário desses espectadores proféticos, viaja fisicamente ao futuro. Volta
exausto, empoeirado e muito abatido; volta de uma remota humanidade que se
bifurcou em espécies que se odeiam (os ociosos eloi, que habitam em palácios
dilapidados e ruinosos jardins; os subterrâneos e nictalopes morlocks, que se
alimentam dos primeiros); volta com as têmporas encanecidas e traz do porvir
uma flor murcha. Essa é a segunda versão da imagem de Coleridge. Mais
inacreditável que uma flor celestial ou que a flor de um sonho é a flor futura, a
contraditória flor cujos átomos agora ocupam outros lugares e ainda não se
combinaram.
A terceira versão que comentarei, a mais trabalhada, é invenção de um
escritor muito mais complexo que Wells, embora menos dotado dessas
agradáveis virtudes que se costuma chamar de clássicas. Refiro-me ao autor de
A Humilhação dos Northmore, o triste e labiríntico Henry James. Este, ao
morrer, deixou inacabado um romance de caráter fantástico, The Sense of the
Past, que é uma variante ou elaboração de The Time Machine.1 O protagonista
de Wells viaja ao futuro em um inconcebível veículo, que avança ou recua no
tempo como os outros veículos no espaço; o de James volta ao passado, ao
século XVIII, à força de compenetrar-se dessa época. (Os dois procedimentos
são impossíveis, mas o de James é menos arbitrário.) Em The Sense of the Past,
o nexo entre o real e o imaginário (entre atualidade e passado) não é uma flor,
como nas ficções anteriores; é um retrato que data do século XVIII e que
misteriosamente representa o protagonista. Este, fascinado por essa tela,
consegue trasladar-se à data em que foi executada. Entre as pessoas que
encontra, figura, necessariamente, o pintor; este o pinta com temor e aversão,
pois intui algo de incomum e anômalo nessas feições futuras... James cria,
assim, um incomparável regressos in infinitum, já que seu herói, Ralph
Pendrel, traslada-se ao século XVIII. A causa é posterior ao efeito, o motivo da
viagem é uma das conseqüências da viagem.
Wells, verossimilmente, desconhecia o texto de Coleridge; Henry James
conhecia e admirava o texto de Wells. Claro que, se for válida a doutrina de
que todos os autores são um autor,2 tais fatos são irrelevantes. A rigor, não é
indispensável ir tão longe; o panteísta que declara que a pluralidade dos autores
é ilusória encontra inesperado apoio no classicista, segundo o qual essa
1
Não li The Sense of Past, mas conheço a suficiente análise de Stephen Spender, em sua obra The
Destructive Element (p. 1O5-1O). James foi amigo de Wells; sobre a relação deles pode-se consultar o
vasto Experiment in Autobiography, deste último.
2
Em meados do século XVII, o epigramatista do panteísmo Angelus Silesius disse que todos os bem-
aventurados são um (Cherubinischer Wandersmann, V, 7) e que todo cristão deve ser Cristo (op. cit., V,
9).
pluralidade importa muito pouco. Para as mentes clássicas, a literatura é o
essencial, não os indivíduos. George Moore e James Joyce incorporaram, em
suas obras, páginas e sentenças alheias; Oscar Wilde costumava dar seus
argumentos de presente para que outros os executassem; ambas as condutas,
embora superficialmente opostas, podem evidenciar um mesmo sentido da arte.
Um sentido ecumênico, impessoal... Outra testemunha da unidade profunda do
Verbo, outro pegador dos limites do sujeito, foi o insigne Ben Johnson, que,
empenhado na tarefa de formular seu testamento literário e os ditames
favoráveis ou adversos que dele mereciam seus contemporâneos, limitou-se a
combinar fragmentos de Sêneca, de Quintiliano, de Justo Lipsio, de Vives, de
Erasmo, de Maquiavel, de Bacon e dos dois Escalígeros.
Uma última observação. Aqueles que copiam minuciosamente um
escritor fazem-no de modo impessoal, fazem-no por confundir esse escritor
com a literatura, fazem-no por supor que se afastar dele em um ponto é afastar-
se da razão e da ortodoxia. Durante muitos anos, eu acreditei que a quase
infinita literatura estava em um homem. Esse homem foi Carlyle, foi Johannes
Becher, foi Whitman, foi Rafael Caninos-Asséns, foi De Quincey.
O SONHO DE COLERIDGE
1
No início do século XIX ou final do XVIII, julgado por leitores de gosto clássico, Kubla Khan era muito
mais ousado que hoje. Em 1884, o primeiro biógrafo de Coleridge, Traill, ainda pôde escrever: "O
extravagante poema onírico Kubla Khan é pouco mais que uma curiosidade psicológica".
2
Ver John Livingston Lowes: The Road to Xanadu, 1927, p. 358, 585.
O TEMPO E J. W. DUNNE
1
Nachvedische Philosophie der Inder, p. 318.
nas não menos inumeráveis dimensões do tempo. Antes de esclarecer esse
esclarecimento, convido meu leitor para repensarmos o que diz este parágrafo.
Huxley, como bom herdeiro dos nominalistas britânicos, sustenta que há
apenas uma diferença verbal entre o fato de perceber uma dor e o de saber que
a percebemos e zomba dos metafísicos puros, que em toda sensação distinguem
"um sujeito sensível, um objeto sensígeno e esse personagem imperioso: o Eu"
(Essays, tomo 6, p. 87). Gustav Spiller (The Mind of Man, 1902) admite que a
consciência da dor e a dor são dois fatos distintos, mas considera-os tão
compreensíveis quanto a simultânea percepção de uma voz e de um rosto. Sua
opinião parece-me válida. Quanto à consciência da consciência, invocada por
Dunne para instalar em cada indivíduo uma vertiginosa e nebulosa hierarquia
de sujeitos, prefiro supor que se trata de estados sucessivos (ou imaginários) do
sujeito inicial. "Se o espírito – disse Leibniz – tivesse de repensar o pensado,
bastaria perceber um sentimento para pensar nele e para depois pensar no
pensamento e depois no pensamento do pensamento, e assim até o infinito"
(Nouveaux Essais sor l’Entendement Humain, livro 2, capítulo 1).
O procedimento criado por Dunne para a obtenção imediata de um
número infinito de tempos é menos convincente e mais engenhoso. Assim
como Juan de Mena em seu Labyrintho,2 como Uspenski no Tertium Organum,
ele postula que o futuro já existe, com suas vicissitudes e pormenores. Para o
futuro preexistente (ou do futuro preexistente, como prefere Bradley) flui o rio
absoluto do tempo cósmico, ou os rios mortais de nossas vidas. Essa
translação, esse fluir, exige, como todos os movimentos, um tempo
determinado; teremos, portanto, um tempo segundo para o traslado do
primeiro; um terceiro para o traslado do segundo, e assim até o infinito...3
Assim é a máquina proposta por Dunne. Nesses tempos hipotéticos ou ilusórios
têm interminável morada os sujeitos imperceptíveis que o outro regressus
multiplica.
‘Não sei qual será a opinião de meu leitor. Não pretendo saber que coisa é
o tempo (nem mesmo se é uma "coisa"), mas intuo que o curso do tempo e o
tempo são um único mistério, e não dois. Dunne, suspeito, comete um erro
semelhante ao dos distraídos poetas que falam (digamos) da lua que mostra seu
rubro disco, substituindo assim uma indivisa imagem visual por um sujeito, um
verbo e um complemento, que não é outro senão o próprio sujeito, ligeiramente
2
Neste poema do século XV há uma visão de "três mui grandes rodas": a primeira, imóvel, é o passado; a
segunda, giratória, o presente; a terceira, imóvel, o futuro.
3
Meio século antes de ser proposta por Dunne, "a absurda conjetura de um segundo tempo, no qual flui,
rápida ou lentamente, o primeiro", fora descoberta e recusada por Schopenhauer, em uma nota manuscrita
anexa a seu Welt als Wille und Vorstellung. Consta na página 829 do segundo volume da edição histórico-
crítica de Otto Weiss.
mascarado... Dunne é uma vítima ilustre desse mau hábito intelectual
denunciado por Bergson: conceber o tempo como uma quarta dimensão do
espaço. Postula que o futuro já existe e que devemos trasladar-nos a ele, mas
esse postulado basta para transformá-lo em espaço e para requerer um tempo
segundo (que também é concebido sob forma espacial, sob a forma de linha ou
de rio) e depois um terceiro e um milionésimo. Nenhum dos quatro livros de
Dunne deixa de propor infinitas dimensões do tempo,4 mas essas dimensões são
espaciais. O tempo verdadeiro, para Dunne, é o inatingível último termo de
uma série infinita.
Que razões haveria para postular que o futuro já existe? Dunne fornece
duas: uma, os sonhos premonitórios; outra, a relativa simplicidade que essa
hipótese outorga aos inextricáveis diagramas típicos de seu estilo. Ele também
quer evitar os problemas de uma criação contínua...
Os teólogos definem a eternidade como a simultânea e lúcida posse de
todos os instantes do tempo e declaram-na um dos atributos divinos. Dunne,
surpreendentemente, supõe que a eternidade já nos pertence e que isso é
corroborado pelos sonhos de cada noite. Nestes, segundo ele, confluem o
passado imediato e o imediato porvir. Na vigília percorremos o tempo
sucessivo a uma velocidade uniforme, no sonho abarcamos uma área que pode
ser vastíssima. Sonhar é coordenar os vislumbres dessa contemplação e com
eles urdir uma história, ou uma série de histórias. Vemos a imagem de uma
esfinge e a de uma botica e inventamos que uma botica se transforma em
esfinge. No homem que amanhã conheceremos colocamos a boca de um rosto
que nos olhou ontem à noite... (Schopenhauer escreveu que a vida e os sonhos
são folhas de um mesmo livro e que lê-las em ordem é viver; folheá-las,
sonhar.)
Dunne garante que na morte aprenderemos o feliz manejo da eternidade.
Recuperaremos todos os instantes de nossa vida e os combinaremos como bem
entendermos. Deus, e nossos amigos, e Shakespeare colaborarão conosco.
Diante de uma tese tão esplêndida, qualquer falácia cometida pelo autor
resulta insignificante.
4
A frase é reveladora. No capítulo XXI do livro An Experiment with Time, o autor fala de um tempo que
é perpendicular a outro.
A CRIAÇÃO E P H. GOSSE
"The man without a Navel yet lives in me" (o homem sem Umbigo
perdura em mim), escreve, curiosamente, Sir Thomas Browne (Religio Medici,
1642), para denotar que foi concebido em pecado, por descender de Adão. No
primeiro capítulo do Ulisses, Joyce também evoca o ventre imaculado e liso da
mulher sem mãe: "Heva, naked Eve. She had no navel". O tema (sei bem) corre
o risco de parecer grotesco e banal, mas o zoólogo Philip Henry Gosse
vinculou-o ao problema central da metafísica: o problema do tempo. Essa
vinculação é de 1857; oitenta anos de esquecimento talvez equivalham à
novidade.
Duas passagens da Escritura (Romanos 5; 1 Coríntios 15) contrapõem o
primeiro homem, Adão, aquele em que morrem todos os homens, ao derradeiro
Adão, que é Jesus.1 Essa contraposição, para ser mais que uma simples
blasfêmia, pressupõe certa enigmática paridade, traduzida em mitos e em
simetria. A Lenda Áurea diz que o lenho da Cruz provém daquela Árvore
proibida que está no Paraíso; os teólogos, que Adão foi criado pelo Pai e pelo
Filho com a idade exata que o Filho teria ao morrer: trinta e três anos. Essa
insensata precisão certamente influenciou a cosmogonia de Gosse.
Este a divulgou no livro Omphalos (Londres, 1857), cujo subtítulo é
Tentativa de Desatar o Nó Geológico. Em vão vasculhei as bibliotecas em
busca desse livro; para redigir esta nota, recorrerei aos resumos de Edmund
Gosse (Father and Son, 1907) e de H. G. Wells (All Aboard for Ararat, 1940).
Introduzo exemplos ilustrativos que não constam nessas breves páginas, mas
que julgo compatíveis com o pensamento de Gosse.
No capítulo de sua Lógica que trata da lei da causalidade, John Stuart
Mill sustenta que o estado do universo em qualquer instante é conseqüência de
seu estado no instante precedente e que a uma inteligência infinita bastaria o
conhecimento perfeito de um único instante para saber a história do universo,
passada e vindoura. (Também deduz – oh, Louis Auguste Blanqui! oh,
Nietzsche! oh, Pitágoras! – que a repetição de qualquer estado comportaria a
1
Na poesia devota, essa conjunção é comum. Talvez o exemplo mais intenso esteja na penúltima estrofe
de "Hymn to God, my God, in my sickness", March 23,163O, composto por John Donne:
2
Cf. Spencer: Facts and Comments, 1902, p. 148-51.
ulterior, e assim até o infinito. Não sei se ele conheceu a antiga sentença que
consta das páginas iniciais da antologia talmúdica de Rafael Caninos-Asséns:
"Não era senão a primeira noite, mas uma série de séculos já a precedera".
Duas virtudes quero reivindicar para a esquecida tese de Gosse. A
primeira: sua elegância um tanto monstruosa. A segunda: sua involuntária
redução ao absurdo de uma creatio ex Nihilo, sua demonstração indireta de que
o universo é eterno, como pensaram o Vedanta e Heráclito, Spinoza e os
atomistas... Bertrand Russell atualizou-a. No capítulo nove do livro The
Analysis of Mind (Londres, 1921), supõe que o planeta foi criado há poucos
minutos, provido de uma humanidade que "recorda" um passado ilusório.
El bacán le acanaló
el escracho a la minushia;
después espirajushió
por temor a la canushia.4
3
Tradução literal dos versos em caló (linguagem dos ciganos na Espanha): "O sexo dessa mulher / dizem
que não tem pêlos; / eu mesmo os vi, / ela os tem muito vistosos... / / No melhor dia do ano / peguei o
touro à unha: / conheci uma freira / e me deitei com ela". (N. da T.)
4
Consta do vocabulário giriesco de Luis Villamayor: El Lenguaje del Bajo Fondo (Buenos Aires, 1915).
Castro ignora esse léxico, talvez por ter sido citado por Arturo Costa Álvarez em um livro essencial: El
Castellano en la Argentina (La Plata, 1928). Desnecessário advertir que ninguém diz minushia [mulher],
canushia [polícia], espirajushiar [fugir]. [Tradução literal dos versos em lunfardo: "O grã-fino retalhou /
a cara da mulher / e depois fugiu / por medo da polícia". (N. da T.)]
que as pessoas mais cultas de San Mamed de Puga, em Orense, esqueceram
esta ou aquela acepção desta ou daquela palavra; imediatamente resolve que os
argentinos também devem esquecê-la... É fato que o idioma espanhol padece
de várias imperfeições (monótono predomínio das vogais, excessivo relevo das
palavras, inépcia para formar palavras compostas), mas não da imperfeição que
seus desastrados vindicadores lhe assacam: a dificuldade. O espanhol é
facílimo. Só os espanhóis julgam-no árduo: talvez porque os perturbem as
atrações do catalão, do bable, do maiorquino, do galego, do basco e do
valenciano; talvez por um erro da vaidade; talvez por certa rudeza verbal
(confundem acusativo com dativo, dizem le mató em vez de lo mató,
costumam ser incapazes de pronunciar Atlántico ou Madrid, acham que um
livro pode suportar este cacofônico título: La Peculiaridad Lingüística
Rioplatense y Su Sentido Histórico).
O doutor Castro, em cada página desse livro, é pródigo em superstições
convencionais. Despreza López e venera Ricardo Rojas; nega os tangos e
refere-se às xácaras com respeito; pensa que Rosas foi um caudilho de
guerrilhas, um homem ao estilo de Ramírez ou Artigas, e ridiculamente chama-
o "centauro máximo". (Com melhor estilo e juízo mais lúcido, Groussac
preferiu a definição: "miliciano de retaguarda".) Proscreve – entendo que com
toda a razão – a palavra cachada, por zombaria, mas aceita a tomadura de pelo,
que, visivelmente, não é mais lógica nem mais encantadora. Condena os
idiotismos americanos, por preferir os idiotismos espanhóis. Não quer que
digamos de arriba; quer que digamos de gorra... Esse examinador do "fato
lingüístico buenairense" registra seriamente que os portenhos chamam o
gafanhoto de acrídio; esse inexplicável leitor de Carlos de la Púa e de Yacaré
revela-nos que taita significa "pai" no linguajar suburbano.
Nesse livro, a forma não contradiz o conteúdo. Às vezes o estilo é
comercial: "As bibliotecas do México possuíam livros de alta qualidade" (p.
49); "A alfândega seca... impunha preços fabulosos" (p. 52). Por vezes, a
contínua trivialidade do pensamento não exclui o pitoresco dislate: "Surge
então a única coisa possível, o tirano, condensação da energia sem rumo da
massa, que ele não canaliza porque não é guia, e sim corpulência esmagadora,
ingente aparelho ortopédico que mecanicamente, bestialmente, encurrala o
rebanho disperso" (p. 71, 72). Às vezes o pesquisador de Vacarezza tenta o mot
juste: "Pelos mesmos motivos alegados para torpedear a maravilhosa gramática
de A. Alonso e P. Henríquez Ureña" (p. 31).
Os compadritos de Last Reason emitem metáforas hípicas;o doutor
Castro, mais versátil no erro, conjuga a radiotelefonia com o football: "O
pensamento e a arte rio-platense são valiosas antenas para tudo aquilo que no
mundo significa valor e esforço, atitude intensamente receptiva que não
demorará a converter-se em força criadora, se o destino não torcer o rumo dos
sinais propícios. A poesia, o romance e o ensaio conseguiram muito mais que
um goal perfeito. A ciência e o pensamento filosófico têm nomes de extrema
distinção entre seus cultivadores" (p. 9).
À errônea e mínima erudição o doutor Castro acrescenta o incansável
exercício da adulação, da prosa rimada e do terrorismo.
P.S. – Leio na página 136: "Tentar escrever como Ascasubi, Del Campo
ou Hernández, a sério, sem ironia, é algo que dá o que pensar". Transcrevo
aqui as últimas estrofes do Martín Fierro:
"A sério, sem ironia", eu pergunto: Quem é mais dialetal? O cantor das
límpidas estrofes que repeti acima ou o incoerente redator dos aparelhos
ortopédicos que encurralam rebanhos, dos gêneros literários que jogam football
e das gramáticas torpedeadas?
Na página 122, o doutor Castro enumerou alguns escritores cujo estilo
considera correto; apesar da inclusão de meu nome nesse catálogo, não me
julgo totalmente incapacitado para falar de estilística.
NOSSO POBRE INDIVIDUALISMO
1
O Estado é impessoal: o argentino só concebe relações pessoais. Por isso, para ele, roubar dinheiro
público não é crime. Apenas constato um fato; não o justifico nem desculpo.
prêmio qualquer; o argentino admite a possibilidade de não ser ruim, apesar do
prêmio. Em geral, o argentino descrê das circunstâncias. Pode ignorar a fábula
de que a humanidade sempre inclui trinta e seis homens justos – os Lamed
Wufniks – que não se conhecem entre si, mas que secretamente sustentam o
universo; quando a ouvir, não estranhará que esses beneméritos sejam obscuros
e anônimos... Seu herói popular é o homem só que luta contra a partida, seja
em ato (Fierro, Moreira, Hormiga Negra), seja em potência ou no passado
(Segundo Sombra). Outras literaturas não registram fatos análogos. Tomemos,
por exemplo, dois grandes escritores europeus: Kipling e Franz Kafka. A
primeira vista, nada há em comum entre os dois, mas o tema do primeiro é a
vindicação da ordem, de uma ordem (a estrada em Kim, a ponte em The
Bridge-Builders, a muralha romana em Puck of Pook’s Hill); o do segundo, a
insuportável e trágica solidão de quem carece de um lugar, por humilíssimo
que seja, na ordem do universo.
Dirão que os traços que assinalei são meramente negativos ou anárquicos;
acrescentarão que não comportam explicação política. Ouso sugerir o
contrário. O mais urgente dos problemas de nossa época (já denunciado com
profética lucidez pelo quase esquecido Spencer) é a gradual intromissão do
Estado nos atos do indivíduo; na luta contra esse mal, cujos nomes são
comunismo e nazismo, o individualismo argentino, talvez inútil ou prejudicial
até agora, há de encontrar justificativa e deveres.
Sem esperança e com nostalgia, penso na abstrata possibilidade de um
partido que tivesse alguma afinidade com os argentinos; um partido que nos
prometesse (digamos) um severo mínimo de governo.
O nacionalismo pretende embair-nos com a visão de um Estado
infinitamente incômodo; essa utopia, uma vez alcançada na terra, teria a
providencial virtude de fazer com que todos almejassem, e por fim
construíssem, sua antítese.
1
Reyes certeiramente observa (Capítulos de Literatura Española, 1939, p.133): "As obras políticas de
Quevedo não propõem uma nova interpretação dos valores políticos nem têm, agora, nenhum valor além
do retórico... Ou são panfletos circunstanciais, ou são obras de declamação acadêmica. A Política de Dios,
apesar de sua ambiciosa aparência, não passa de um arrazoado contra os maus ministros. Mas entre essas
páginas podem encontrar-se alguns dos traços mais característicos de Quevedo".
discrepância percebe-se no Marco Bruto, onde o pensamento não é memorável,
embora as cláusulas o sejam. Nesse tratado, o mais imponente dentre os estilos
exercidos por Quevedo atinge a perfeição. O espanhol, em suas páginas
lapidares, parece regressar ao árduo latim de Sêneca, de Tácito e de Lucano, ao
atormentado e duro latim da idade de prata. O ostentoso laconismo, o
hipérbato, o quase algébrico rigor, a oposição de termos, a aridez, a repetição
de palavras dão a esse texto uma precisão ilusória. Muitos períodos merecem,
ou exigem, ser julgados de perfeitos. Verbi gratia, este que transcrevo:
"Honraram com folhas de louro uma linhagem; pagaram grandes e soberanas
vitórias com as aclamações de um triunfo; recompensaram vidas quase divinas
com estátuas; e, para que não descaíssem de prerrogativas de tesouro os ramos,
as ervas, o mármore e as vozes, não as permitiram à pretensão, e sim ao
mérito". Outros estilos freqüentou Quevedo com não menos felicidade: o estilo
aparentemente oral do Buscón, o estilo desmesurado e orgiástico (mas não
ilógico) de La Hora de Todos.
"A linguagem – observou Chesterton (G. F. Watts, 1904, p. 91) – não é
um fato cientifico, e sim artístico; foi inventada por guerreiros e caçadores e é
muito anterior à ciência." Quevedo nunca a entendeu assim; para ele a
linguagem foi, essencialmente, um instrumento lógico. As trivialidades ou
eternidades da poesia – águas equiparadas a cristais, mãos equiparadas a neve,
olhos que brilham como estrelas e estrelas que fitam como olhos –
incomodavam-no por serem fáceis, mas muito mais por serem falsas.
Esqueceu-se, ao censurá-las, de que a metáfora é o contato momentâneo de
duas imagens, não a metódica assimilação de duas coisas... Também execrou
os idiotismos. Com o propósito de "expô-los à vergonha", urdiu com eles a
rapsódia intitulada Cuento de Cuentos; muitas gerações, fascinadas, preferiram
ver nessa redução ao absurdo um museu de primores, divinamente destinado a
salvar do esquecimento as locuções zurriburi, abarrisco, cochite hervite,
quítame allá esas pajas e a trochi-moche.2
Quevedo foi equiparado, em mais de uma ocasião, a Luciano de
Samósata. Há uma diferença fundamental: Luciano, combatendo as divindades
olímpicas no século II, faz uma obra de polêmica religiosa; Quevedo, ao repetir
esse ataque no século XVI de nossa era, limita-se a observar uma tradição
literária.
Examinada, ainda que brevemente, sua prosa, passo a discutir sua poesia,
não menos múltipla.
Considerados documentos de uma paixão, os poemas eróticos de
Quevedo são insatisfatórios; considerados jogos de hipérboles, deliberados
2
Zurriburi: 1. sujeito desprezível, canalha; 2. confusão. Abarrisco, ou a barrisco: conjuntamente e sem
distinção. Cochite y hervite: 1. feito rápida e atabalhoadamente; 2. pessoa precipitada. Quítame allá esas
pajas (en un): num átimo. Trochi-moche(a), ou a troche y moche: às tontas; sem eira nem beira. (N. da T.)
exercícios de petrarquismo, costumam ser admiráveis. Quevedo, homem de
apetites veementes, nunca deixou de aspirar ao ascetismo estóico; também
deve ter achado insensato depender de mulheres ("bem-avisado aquele que usa
de suas carícias e nestas não se fia"); esses motivos bastam para explicar o
artificialismo voluntário daquela Musa IV de seu Parnaso, que "canta façanhas
de amor e formosura". O acento pessoal de Quevedo está em outros poemas;
naqueles que lhe permitem publicar sua melancolia, sua coragem ou seu
desengano. Por exemplo, neste soneto que ele enviou, de sua Torre de Juan
Abad, a Dom José de Salas (Musa, H, 109):
Não faltam traços cultistas ao poema anterior (ouvir com os olhos, orar
despertos ao sonho da vida), mas o soneto é eficaz a despeito deles, não por
causa deles. Não direi que se trata de uma transcrição da realidade, porque a
realidade não é verbal, mas sim que suas palavras importam menos que a cena
que evocam ou que o acento viril que parece animá-las. Nem sempre ocorre o
mesmo; no mais ilustre soneto desse volume – "Memoria inmortal de don
Pedro Girón, duque de Osuna, muerto en la prisión" –, a esplêndida eficácia do
dístico
(Musa, IX)
5
À dura lide um animal nascido
E símbolo zeloso dos mortais,
De Jove foi disfarce, e foi vestido,
Que um tempo empederniu as mãos reais,
E por trás dele os cônsules gemeram,
E luz rumina em campos celestiais.
(Musa, II)
variantes de Pérsio, de Sêneca, de Juvenal, das Escrituras, de Joachim de
Bellay; brevidades latinas; troças;6 escárnios de curioso artifício;7 lúgubres
pompas da aniquilação e do caos.
6
A Méndez chegou berrando
De azeites bem suarenta,
Derramando pelos ombros
O balanço de suas lêndeas.
(Musa, V)
7
Este Dom Fábio cantava
Para gradis e sacadas
De Aminta, que de esquecê-lo
Disseram que não se lembra.
(Musa, VI)
Trezentos anos completou a morte corporal de Quevedo, mas ele continua
sendo o primeiro artífice das letras hispânicas. Como Joyce, como Goethe,
como Shakespeare, como Dante, como nenhum outro escritor, Francisco de
Quevedo é menos um homem que uma vasta e complexa literatura.
MAGIAS PARCIAIS DO QUIXOTE
1
Texto de uma conferência proferida no Colegio Libre de Estudios Superiores em março de 1949.
Salem; por exemplo, quando desaprovou que os escultores, em pleno século
XIX, esculpissem estátuas nuas...
Seu pai, o capitão Nathaniel Hawthorne, morreu em 1808, nas Índias
Orientais, no Suriname, de febre amarela; um de seus antepassados, John
Hawthorne, foi juiz nos processos de feitiçaria de 1692, em que dezenove
mulheres, entre elas uma escrava, Tituba, foram condenadas à forca. Nesses
curiosos processos (agora o fanatismo assume outras formas), Justice
Hawthorne procedeu com severidade e, sem dúvida, com sinceridade. "Tão
conspícuo foi – escreveu Nathaniel, o nosso Nathaniel – no martírio das bruxas
que é lícito pensar que o sangue dessas desventuradas tenha deixado nele uma
mancha. Uma mancha tão profunda que deve perdurar em seus velhos ossos,
no cemitério de Charter Street, se ainda não forem pó." Depois desse arroubo
pictórico, Hawthorne acrescenta: "Não sei se meus maiores se arrependeram e
suplicaram a misericórdia divina; agora, eu o faço em nome deles e peço que
qualquer maldição que se tenha abatido sobre minha raça seja-nos, desde o dia
de hoje, perdoada". Quando o capitão Hawthorne morreu, sua viúva, a mãe de
Nathaniel, recluiu-se em seu quarto, no segundo andar da casa. No mesmo
andar estavam os quartos das irmãs, Louisa e Elizabeth; no último, o de
Nathaniel. Essas pessoas não comiam juntas e quase não se falavam; a refeição
de cada um era deixada em uma bandeja, no corredor. Nathaniel passava os
dias escrevendo contos fantásticos; na hora do crepúsculo vespertino, saía para
caminhar. Esse furtivo regime de vida durou doze anos. Em 1837, escreveu a
Longfellow: "Vivi recluído, sem o menor propósito de fazê-lo, sem a menor
suspeita de que isso me ocorreria. Converti-me em prisioneiro, tranquei-me em
um calabouço, e agora já não encontro a chave, e, mesmo que a porta estivesse
aberta, quase teria medo de sair". Hawthorne era alto, bonito, magro, moreno.
Tinha o andar balançado dos homens do mar. Naquele tempo não existia (para
felicidade das crianças, sem dúvida) literatura infantil; Hawthorne leu aos seis
anos o Pilgrim’s Progress; o primeiro livro que ele comprou com o próprio
dinheiro foi The Faerie Queen: duas alegorias. Também, embora seus
biógrafos não o digam, a Bíblia; talvez a mesma que o primeiro Hawthorne,
William Hawthorne de Wilton, trouxera da Inglaterra junto com uma espada,
em 1630. Acabei de pronunciar a palavra alegorias; essa palavra é importante
e, em se tratando da obra de Hawthorne, talvez imprudente ou indiscreta. Sabe-
se que Edgar Allan Poe acusou Hawthorne de alegorizar e que aquele opinava
serem tal atividade e gênero indefensáveis. Duas tarefas nos deparam: a
primeira, indagar se o gênero alegórico é, de fato, ilícito; a segunda, indagar se
Nathaniel Hawthorne incorreu nesse gênero. Que eu saiba, a melhor refutação
das alegorias é a de Croce; a melhor vindicação, a de Chesterton. Croce acusa a
alegoria de ser um enfadonho pleonasmo, um jogo de vãs repetições, que
primeiro nos mostra (digamos) Dante guiado por Virgílio e Beatriz para depois
explicar, ou dar a entender, que Dante é a alma, Virgílio a filosofia, ou a razão,
ou a luz natural, e Beatriz a teologia ou a graça. Segundo Croce, segundo o
argumento de Croce (o exemplo não é dele), Dante primeiro teria pensado: "A
razão e a fé operam a salvação das almas" ou "A filosofia e a teologia nos
conduzem ao céu" e depois, onde pensou razão ou filosofia, pôs Virglio e, onde
pensou teologia ou fé, pôs Beatriz, o que seria uma espécie de mascarada. A
alegoria, segundo essa interpretação desdenhosa, viria a ser uma adivinhação,
mais extensa, mais lenta e muito mais incômoda que as outras. Seria um gênero
bárbaro ou infantil, uma distração da estética. Croce formulou essa refutação
em 1907; em 1904, Chesterton já a refutara sem que aquele o soubesse. Tão
incomunicada e tão vasta é a literatura! A página pertinente de Chesterton
aparece em uma monografia sobre o pintor Watts, ilustre na Inglaterra em fins
do século XIX e acusado, como Hawthorne, de alegorismo. Chesterton admite
que Watts produziu alegorias, mas nega que esse gênero seja condenável.
Argumenta que a realidade é,de uma interminável riqueza e que a linguagem
dos homens não esgota esse vertiginoso caudal. Escreve: "O homem sabe que
há na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos
que as cores de um bosque outonal... Crê, no entanto, que esses matizes, em
todas as suas fusões e conversões, podem ser representados com precisão por
meio de um mecanismo arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que mesmo de
dentro de um corretor da Bolsa realmente saem ruídos que significam todos os
mistérios da memória e todas as agonias do desejo...". Daí infere Chesterton a
possibilidade de haver diversas linguagens que de algum modo correspondam à
inapreensível realidade; entre muitas outras, a das alegorias e das fábulas.
Dito de outro modo: Beatriz não é um emblema da fé, um trabalhoso e
arbitrário sinônimo da palavra fé; a verdade é que no mundo há uma coisa –
um sentimento peculiar, um processo íntimo, uma série de estados análogos –
que é possível indicar por meio de dois símbolos: um, assaz pobre, o som "fé";
outro, Beatriz, a gloriosa Beatriz que desceu do céu e deixou suas pegadas no
Inferno para salvar Dante. Não sei se a tese de Chesterton é válida; sei que,
quanto menos uma alegoria for redutível a um esquema, a um frio jogo de
abstrações, melhor ela será. Há o escritor que pensa por meio de imagens
(Shakespeare, ou Donne, ou Victor Hugo, digamos) e o escritor que pensa por
meio de abstrações (Benda ou Bertrand Russell); a priori, uns valem tanto
quanto outros, mas quando um abstrato, um raciocinador, quer ser também
imaginativo, ou fazer-se passar por tal, ocorre o denunciado por Croce.
Percebemos que um processo lógico foi enfeitado ou disfarçado pelo autor,
"para desonra do entendimento do leitor", como disse Wordsworth. É, para
citar um exemplo notório desse mal, o caso de José Ortega y Gasset, cujo bom
pensamento é obstruído por laboriosas e adventícias metáforas; é, muitas vezes,
o de Hawthorne. No mais, os dois escritores são antagônicos. Ortega pode
raciocinar, bem ou mal, mas não imaginar; Hawthorne era homem de contínua
e curiosa imaginação; mas refratário, digamos assim, ao pensamento. Não digo
que ele fosse pouco inteligente; digo que pensava por meio de imagens, de
intuições, como costumam pensar as mulheres, não por meio de mecanismo
dialético. Foi prejudicado por um erro estético: o desejo puritano de fazer de
cada imaginação uma fábula levava Hawthorne a acrescentar-lhes moralidades
e, às vezes, a falseá-las e a deformá-las. Conservaram-se os cadernos onde ele
concisamente tomava nota de seus argumentos. Em um deles, de 1836, está
escrito: "Uma serpente é admitida no estômago de um homem e alimentada por
ele, dos quinze aos trinta e cinco anos, atormentando-o terrivelmente". Isso já
basta, mas Hawthorne se vê na obrigação de completar: "Poderia ser um
emblema da inveja ou de outra paixão maligna". Outro exemplo, este de 1838:
"Que ocorram fatos estranhos, misteriosos e atrozes que destruam a felicidade
de uma pessoa. Que essa pessoa os impute a inimigos secretos e que, por fim,
descubra que ela é a única culpada e a causa. Moral: a felicidade está em nós
mesmos". Mais um, do mesmo ano: "Um homem, durante a vigília, pensa bem
de outro e confia nele plenamente, mas inquietam-no sonhos em que esse
amigo age como inimigo mortal. Revela-se, por fim, que o caráter sonhado era
o verdadeiro. Os sonhos tinham razão. A explicação seria a percepção
instintiva da verdade". São melhores aquelas fantasias puras que não procuram
justificativa nem moralidade e que parecem não ter outro fundo além de um
obscuro terror. Esta, de 1838: "Imaginar no meio da multidão um homem cujo
destino e cuja vida estão sob o poder de outro, como se os dois estivessem em
um deserto". Esta, que é uma variante da anterior e que Hawthorne anotou
cinco anos depois: "Um homem de forte vontade ordena a outro, moralmente
submisso a ele, que execute uma ação. O que ordena morre, e o outro continua
executando aquela ação até o fim de seus dias". (Não sei de que maneira
Hawthorne teria desenvolvido esse argumento; não sei se ele teria decidido que
o ato executado fosse trivial, ou levemente horrível, ou fantástico, ou talvez
humilhante.) Ou este, cujo tema também é a escravidão, a sujeição ao outro:
"Um homem rico deixa em testamento sua mansão a um casal pobre. Os
herdeiros mudam-se para aí; encontram um criado sombrio que o testamento
proíbe demitir. Este os atormenta; descobre-se, por fim, que se trata do homem
que legou a casa". Citarei mais dois esboços, bastante curiosos, cujo tema (não
ignorado por Pirandello nem por André Gide) é a coincidência ou a confusão
do plano estético e do plano comum, da realidade e da arte. Eis aqui o
primeiro: "Duas pessoas encontram-se na rua, à espera de um acontecimento e
da aparição dos principais atores. O acontecimento já está ocorrendo, e são elas
mesmas os atores". O outro é mais complexo: "Que um homem escreva um
conto e constate que este se desenrola contra suas intenções; que os
personagens não se comportem como ele queria; que ocorram fatos não
previstos por ele e que se aproxime uma catástrofe que ele tentará, em vão,
evitar. Esse conto poderia prefigurar seu próprio destino, e um dos personagens
ser ele mesmo". Tais jogos, tais momentâneas confluências do mundo
imaginário e do mundo real – do mundo que no decorrer da leitura fingimos ser
real – são, ou parecem-nos, modernos. Sua origem, sua antiga origem, talvez
esteja naquela passagem da Ilíada em que Helena de Tróia tece seu tapete, e o
que ela tece são batalhas e desventuras da própria guerra de Tróia. Esse aspecto
deve ter impressionado Virgílio, pois na Eneida consta que Enéias, guerreiro
da guerra de Tróia, chegou ao porto de Cartago e viu cenas dessa guerra
esculpidas no mármore de um templo e, entre tantas imagens de guerreiros,
também sua própria imagem. Hawthorne gostava desses contatos entre o
imaginário e o real, como reflexos e duplicações da arte; também se nota, nos
esboços que citei, que ele propendia à noção panteísta de que um homem é os
outros, de que um homem é todos os homens.
Percebe-se nos esboços algo mais grave que as duplicações e o
panteísmo, mais grave vindo de um homem que aspira a ser romancista, quero
dizer. Percebe-se que o estímulo de Hawthorne, que o ponto de partida de
Hawthorne eram, em geral, situações. Situações, não personagens. Hawthorne
primeiro imaginava, quem sabe involuntariamente, uma situação para só depois
procurar personagens que a encarnassem. Não sou romancista, mas suspeito
que nenhum romancista procede dessa forma: "Creio que Schomberg é real",
escreveu Joseph Conrad sobre um dos personagens mais memoráveis de seu
romance Victory, e o mesmo poderia honestamente afirmar qualquer
romancista sobre qualquer personagem. As aventuras do Quixote não estão
muito bem idealizadas, os lentos e antitéticos diálogos – "arrazoados", acho
que o autor os chama assim – pecam por inverossímeis, mas não resta dúvida
de que Cervantes conhecia bem Dom Quixote e podia acreditar nele. Nossa
crença na crença do romancista salva todas as negligências e falhas. Pouco
importam fatos inacreditáveis ou grosseiros se nos consta que o autor os
idealizou, não para surpreender nossa boa-fé, e sim para definir seus
personagens. Pouco importam os pueris escândalos e os confusos crimes da
suposta Corte da Dinamarca se acreditamos no príncipe Hamlet. Hawthorne, ao
contrário, primeiro concebia uma situação, ou uma série de situações, e depois
elaborava as pessoas que seu plano requeria. Esse método pode produzir, ou
permitir, contos admiráveis, porque neles, dada sua brevidade, a trama é mais
visível que os atores, mas nunca romances admiráveis, onde a forma geral
(quando existe) só é visível ao final e onde um único personagem mal
inventado pode contaminar de irrealidade aqueles que o acompanham. Das
razões acima poder-se-ia deduzir, de antemão, que os contos de Hawthorne
valem mais que os romances de Hawthorne. Eu entendo que é assim. Os vinte e
quatro capítulos que compõem A Letra Escarlate contêm muitas passagens
memoráveis, redigidas em boa e sensível prosa, mas nenhum deles comoveu-
me tanto quanto a singular história de Wakefield, incluída nos Twíce-Told
Tales. Hawthorne lera no jornal, ou fingiu, com fins literários, ter lido no
jornal, o caso de um senhor inglês que abandonou a mulher sem motivo algum,
instalou-se a um passo de sua casa e aí, sem ninguém suspeitar, passou vinte
anos escondido. Durante esse longo período, passou todos os dias diante de sua
casa ou olhou-a da esquina, e muitas vezes avistou sua mulher. Quando já o
davam por morto, quando fazia muito tempo que sua mulher se resignara a ser
viúva, o homem, um dia, abriu a porta de casa e entrou. Simplesmente, como
se tivesse se ausentado por algumas horas. (Foi, até o dia de sua morte, um
marido exemplar.) Hawthorne leu com inquietude o curioso caso e procurou
entendê-lo, imaginá-lo. Refletiu sobre o tema; o conto "Wakefield" é a história
conjetura) desse desterrado. As interpretações do enigma podem ser infinitas;
vejamos a de Hawthorne.
Este imagina Wakefield como um homem pacato, timidamente vaidoso,
egoísta, propenso a mistérios pueris, a guardar segredos insignificantes; um
homem acanhado, de grande proeza imaginativa e mental, mas capaz de
longas, ociosas, incompletas e vagas meditações; um marido constante,
defendido pela preguiça. Wakefield, no entardecer de um dia de outubro,
despede-se da mulher. Diz a ela – não podemos esquecer que estamos no início
do século XIX – que vai tomar a diligência e que voltará, no mais tardar,
dentro de alguns dias. A mulher, que o sabe aficionado a inofensivos mistérios,
não lhe pergunta as razões da viagem. Wakefield está de botas, de cartola, de
sobretudo; leva guarda-chuva e malas. Wakefield – acho isto admirável – ainda
não sabe o que lhe acontecerá fatalmente. Sai, com a resolução mais ou menos
firme de inquietar ou assombrar a mulher, ausentando-se de casa por toda uma
semana. Sai, fecha a porta da rua, em seguida a entreabre e, por um instante,
sorri. Anos mais tarde, a mulher recordará esse sorriso último. Imaginará o
marido no caixão com o sorriso gelado no rosto, ou então no paraíso, na glória,
sorrindo com astúcia e serenidade. Todos acreditarão que está morto, e ela
recordará esse sorriso e pensará que talvez não seja viúva. Wakefield, depois
de dar algumas voltas, chega ao esconderijo que tinha preparado. Acomoda-se
junto à lareira e sorri; está a um passo de sua casa e tinha chegado ao fim da
viagem. Duvida, congratula-se, custa a acreditar que já está aí, teme que o
tenham observado e que o denunciem. Quase arrependido, deita-se; na grande
cama vazia, estende os braços e repete em voz alta: "Não dormirei sozinho
outra noite". No dia seguinte, acorda mais cedo que de costume e, perplexo,
pergunta-se o que fazer. Sabe que tem um propósito, mas custa-lhe defini-lo.
Descobre, por fim, que seu propósito é investigar a impressão que uma semana
de viuvez causará à exemplar senhora Wakefield. A curiosidade o impele para
a rua. Murmura: "Espiarei minha casa a distância". Caminha, distrai-se; de
repente percebe que o hábito, traiçoeiro, levou-o à própria porta e que está a
ponto de entrar. Então recua, aterrorizado. Será que alguém o viu? Será que
alguém o persegue? Chegando à esquina, volta-se para olhar sua casa; esta
parece-lhe diferente, porque ele já é outro, porque, embora não o saiba, uma
única noite causou nele uma transformação. Em sua alma operou-se a mudança
moral que o condenará a vinte anos de exílio. Nesse ponto começa, de fato, a
longa aventura. Wakefield compra uma peruca ruiva. Muda seus hábitos;
passado algum tempo, já estabelecera uma nova rotina. Aflige-o a suspeita de
que sua ausência não causara suficiente comoção à senhora Wakefield. Decide
não voltar antes de pregar-lhe um bom susto. Um dia o boticário entra na casa;
outro dia, o médico. Wakefield preocupa-se, mas teme que sua brusca
reaparição possa agravar o mal. Possuído, deixa o tempo correr; antes pensava:
"Voltarei dentro de tantos dias", agora, "dentro de tantas semanas". E assim
passam-se dez anos. Já há muito deixou de saber que sua conduta é estranha.
Com todo o morno afeto de que seu coração é capaz, Wakefield continua
amando sua mulher, e ela o vai esquecendo. Numa manhã de domingo, os dois
se cruzam na rua, em meio à multidão de Londres. Wakefield emagreceu;
caminha obliquamente, como que se ocultando, como que fugindo; sua fronte
baixa parece sulcada de rugas; seu rosto, antes comum, agora é extraordinário,
graças ao extraordinário intento que executou. Seus olhos miúdos espreitam ou
se perdem. A mulher engordou; leva na mão um missal e ela inteira parece um
emblema de plácida e resignada viuvez. Acostumou-se à tristeza, e talvez não a
trocasse pela felicidade. Cara a cara, os dois olham-se nos olhos. A multidão os
separa e os perde. Wakefield foge para seu esconderijo, tranca a porta com
duas voltas de chave e joga-se na cama, onde um soluço o estremece. Por um
instante, enxerga a miserável singularidade de sua vida. "Wakefield!
Wakefield! Você está louco!", diz a si mesmo. Talvez esteja. No centro de
Londres, desligou-se do mundo. Sem ter morrido, renunciou a seu lugar e a
seus privilégios entre os homens vivos. Mentalmente, ele continua vivendo ao
lado da mulher em seu lar. Não sabe, ou quase nunca sabe, que é outro. Repete
"logo voltarei", sem se dar conta de que há vinte anos vem repetindo a mesma
coisa. Na memória, os vinte anos de solidão parecem-lhe um interlúdio, um
mero parêntese. Uma tarde, uma tarde igual a outras tardes, a milhares de
tardes anteriores, Wakefield fita a própria casa. Pela janela vê que no primeiro
andar a lareira está acesa; contra o adornado forro, as chamas lançam
grotescamente a sombra da senhora Wakefield. Começa a chover; Wakefield
sente uma rajada de frio. Parece-lhe ridículo molhar-se quando sua casa, seu
lar, está bem ali. Sobe pesadamente a escada e abre a porta. Em seu rosto
brinca, espectral, o matreiro sorriso que conhecemos. Wakefield voltou, enfim.
Hawthorne não nos conta seu destino ulterior, mas deixa adivinhar que ele já
estava, de certo modo, morto. Transcrevo as palavras finais: "Na desordem
aparente de nosso misterioso mundo, cada homem vive ajustado a um sistema
com tão refinado rigor – e os sistemas entre si, e todos a tudo – que o indivíduo
que se desvia, por um momento que seja, corre o terrível risco de perder seu
lugar para sempre. Corre o risco de ser, como Wakefield, o Pária do Universo".
Nessa breve e ominosa parábola – que data de 1835 – já estamos no
mundo de Herman Melville, no mundo de Kafka. Um mundo de castigos
enigmáticos e de culpas indecifráveis. Dirão que isso nada tem de singular,
pois o orbe de Kafka é o judaísmo, e o de Hawthorne, as iras e os castigos do
Velho Testamento. A observação é justa, mas seu alcance não excede a ética, e
entre a horrenda história de Wakefield e muitas histórias de Kafka não há
apenas uma ética comum, mas uma retórica. Há, por exemplo, a profunda
trivialidade do protagonista, que contrasta com a magnitude de sua perdição e
que o entrega, ainda mais desvalido, às Fúrias. Há o fundo nebuloso, contra o
qual se perfila o pesadelo. Em outras narrações, Hawthorne invoca um passado
romântico; nesta limita-se a uma Londres burguesa, cujas multidões lhe
servem, aliás, para ocultar o herói.
Aqui, sem nenhum demérito de Hawthorne, eu gostaria de intercalar uma
observação. A circunstância, a estranha circunstância, de sentir em um conto de
Hawthorne, redigido no início do século XIX, o sabor mesmo dos contos de
Kafka, que trabalhou no início do século XX, não deve fazer-nos esquecer que
o sabor de Kafka foi criado, foi determinado por Kafka. "Wakefield" prefigura
Franz Kafka, mas este modifica, e afina, a leitura de "Wakefield". A dívida é
mútua; um grande escritor cria seus precursores. Cria-os e de certo modo os
justifica. Assim, o que seria de Marlowe sem Shakespeare?
O tradutor e crítico Malcom Cowley vê em "Wakefield" uma alegoria da
curiosa reclusão de Nathaniel Hawthorne. Schopenhauer escreveu,
famosamente, que não há ato, nem pensamento, nem doença que não sejam
voluntários; se há verdade nessa opinião, seria possível conjeturar que
Nathaniel Hawthorne retirou-se por muitos anos da sociedade dos homens para
que não faltasse ao universo, cujo fim é talvez a variedade, a singular história
de Wakefield. Se Kafka tivesse escrito essa história, Wakefield jamais
conseguiria voltar para casa; Hawthorne permite-lhe voltar, mas sua volta não é
menos lamentável nem menos atroz que sua longa ausência.
Uma parábola de Hawthorne que esteve a ponto de ser magistral mas não
é, prejudicada que foi pela preocupação com a ética, é a que se intitula Earth’s
Holocaust: o Holocausto da Terra. Nessa ficção alegórica, Hawthorne prevê
um momento em que os homens, fartos de acumulações inúteis, resolvem
destruir o passado. Para tanto, congregam-se ao entardecer em um dos vastos
territórios do oeste da América. A essa planície ocidental chegam homens de
todos os confins do mundo. No centro acendem uma altíssima fogueira que
alimentam com todas as genealogias, com todos os diplomas, com todas as
medalhas, com todas as ordens, com todos os títulos de nobreza, com todos os
brasões, com todas as coroas, com todos os cetros, com todas as tiaras, com
todas as púrpuras, com todos os dosséis, com todos os tronos, com todos os
álcoois, com todas as sacas de café, com todas as caixas de chá, com todos os
charutos, com todas as cartas de amor, com toda a artilharia, com todas as
espadas, com todas as bandeiras, com todos os tambores marciais, com todos
os instrumentos de tortura, com todas as guilhotinas, com todas as forcas, com
todos os metais preciosos, com todo o dinheiro, com todos os títulos de
propriedade, com todas as constituições e códigos, com todos os livros, com
todas as mitras, com todas as dalmáticas, com todas as sagradas escrituras que
povoam e fadigam a Terra. Hawthorne assiste com assombro e certo escândalo
à combustão; um homem com ar pensativo diz-lhe que ele não deve alegrar-se
nem se entristecer, pois a vasta pirâmide de fogo não consumiu senão aquilo
que nas coisas é consumível. Outro espectador – o demônio – observa que os
empresários do holocausto se esqueceram de atirar o essencial, o coração
humano, no qual se encontra a raiz de todo pecado, e que somente destruíram
algumas formas. Hawthorne conclui assim: "O coração, o coração, essa é a
breve esfera ilimitada onde radica a culpa daquilo que o crime e a miséria do
mundo são apenas símbolo. Purifiquemos essa esfera interior, e as muitas
formas do mal que entenebrecem este mundo visível fugirão como fantasmas,
pois, se não sobrepujarmos a inteligência e não tentarmos, com esse
instrumento imperfeito, discernir e corrigir o que nos aflige, toda nossa obra
será um sonho. Um sonho tão insubstancial que pouco importará que a
fogueira, aqui tão fielmente descrita, seja o que chamamos fato real e um fogo
que chamusca as mãos em vez de um fogo imaginado e uma parábola".
Hawthorne, aqui, deixou-se levar pela doutrina cristã, e especificamente
calvinista, da depravação ingênita dos homens e não parece ter percebido que
sua parábola de uma ilusória destruição de todas as coisas encerra um sentido
filosófico e não apenas moral. De fato, se o mundo é o sonho de Alguém, se há
Alguém que agora está sonhando-nos e que sonha a história do universo, como
é doutrina da escola idealista, a aniquilação das religiões e das artes, o incêndio
geral das bibliotecas não é muito mais importante que a destruição dos móveis
de um sonho. A mente que uma vez os sonhou voltará a sonhá-los; enquanto a
mente continuar sonhando, nada se terá perdido. A convicção dessa verdade,
que parece fantástica, fez com que Schopenhauer, em seu livro Parerga und
Paralipomena, comparasse a história a um caleidoscópio, no qual as figuras
mudam, mas não os fragmentos de vidro, a uma eterna e confusa tragicomédia
em que mudam os papéis e as máscaras, mas não os atores. Essa mesma
intuição de que o universo é uma projeção de nossa alma e de que a história
universal está em cada homem fez Emerson escrever o poema intitulado
"History".
Quanto à fantasia de abolir o passado, não sei se cabe lembrar que ela foi
ensaiada na China, com adversa fortuna, três séculos antes de Jesus Cristo.
Escreve Herbert Allen Giles: "O ministro Li Su propôs que a história
começasse com o novo monarca, que tomou para si o título de Primeiro
Imperador. Para extirpar as vãs pretensões da antigüidade, ordenou-se que
todos os livros fossem confiscados e queimados, salvo os que ensinassem
agricultura, medicina ou astrologia. Aqueles que ocultaram seus livros foram
marcados a ferro candente e obrigados a trabalhar na construção da Grande
Muralha. Muitas obras valiosas pereceram; é à abnegação e coragem de
obscuros e anônimos homens de letras que a posteridade deve a conservação do
cânone de Confúcio. Tantos literatos, conta-se, foram executados por desacatar
as ordens imperiais que no inverno cresceram melões no lugar onde haviam
sido enterrados". Na Inglaterra, em meados do século XVII, esse mesmo
propósito ressurgiu entre os puritanos, entre os antepassados de Hawthorne.
"Em um dos parlamentos populares convocados por Cromwell – conta Samuel
Johnson – apresentou-se, muito seriamente, a proposta de que se queimassem
os arquivos da Torre de Londres, que se apagasse toda a memória das coisas
pretéritas e que todo o regime da vida recomeçasse." Ou seja, o propósito de
abolir o passado já ocorreu no passado e – paradoxalmente – é uma das provas
de que o passado não pode ser abolido. O passado é indestrutível; cedo ou
tarde, todas as coisas voltam, e uma das coisas que voltam é o projeto de abolir
o passado.
Como Stevenson, também filho de puritanos, Hawthorne nunca deixou de
sentir que a tarefa do escritor era frívola ou, o que é pior, culpada. No prefácio
de A Letra Escarlate, imagina os espectros de seus antepassados observando-o
enquanto escreve o romance. A passagem é curiosa. "O que ele estará fazendo?
– pergunta um antigo espectro aos outros. – Está escrevendo um livro de
histórias! Que oficio será esse, que modo de glorificar a Deus ou de ser útil aos
homens, em seu devido tempo e geração? O mesmo valeria a esse desnaturado
ser violinista." A passagem é curiosa, porque encerra uma espécie de
confidência e corresponde a escrúpulos íntimos. Corresponde, também, ao
antigo pleito entre a ética e a estética ou, se se preferir, entre a teologia e a
estética. Um de seus primeiros testemunhos consta da Sagrada Escritura e
proíbe aos homens adorar ídolos. Outro é o de Platão, que no décimo livro da
República raciocina deste modo: "Deus cria o Arquétipo (a idéia original) da
mesa; o marceneiro, um simulacro". Outro é o de Maomé, que declarou que
toda representação de uma coisa viva comparecerá perante o Senhor, no dia do
Juízo Final. Os anjos ordenarão ao artífice que a anime; este fracassará e será
atirado no Inferno, por certo tempo. Alguns doutores muçulmanos postulam
que a proscrição vale apenas para as imagens capazes de projetar sombra (as
esculturas)... De Plotino, conta-se que quase sentia vergonha de habitar um
corpo e que não permitiu aos escultores a perpetuação de seus traços. Certa
vez, um amigo suplicou-lhe que se deixasse retratar; Plotino disse: "já muito
me pesa ter de arrastar este simulacro em que a natureza me encarcerou. Hei de
tolerar, ainda, que seja perpetuada a imagem desta imagem?".
Nathaniel Hawthorne desatou essa dificuldade (que não é ilusória) do
modo que sabemos; compôs moralidades e fábulas; fez e procurou fazer da arte
uma função da consciência. Assim, para nos limitarmos a um único exemplo, o
romance The House of the Seven Gables (A casa dos sete telhados) pretende
mostrar que o mal cometido por uma geração perdura e se prolonga nas
subseqüentes, como uma espécie de castigo herdado. Andrew Lang comparou
esse romance com os de Émile Zola, ou com a teoria dos romances de Émile
Zola; salvo um momentâneo assombro, não sei que utilidade pode resultar da
aproximação desses nomes heterogêneos. O fato de Hawthorne perseguir, ou
tolerar, propósitos de índole moral não invalida, não pode invalidar, sua obra.
No decorrer de uma vida consagrada menos a viver que a ler, pude muitas
vezes verificar que os propósitos e teorias literárias não passam de estímulos e
que a obra final costuma ignorá-los e até contradizê-los. Se há algo no autor,
nenhum propósito, por mais fútil ou errôneo que seja, poderá afetar de modo
irreparável sua obra. Um autor pode padecer de preconceitos absurdos, mas sua
obra, se for genuína, se responder a uma visão genuína, não poderá ser absurda.
Por volta de 1916, os romancistas da Inglaterra e da França acreditavam (ou
acreditavam acreditar) que todos os alemães eram demônios; em seus
romances, porém, costumavam apresentá-los como seres humanos. Em
Hawthorne, sempre a visão germinal era verdadeira; o falso, o eventualmente
falso, são as moralidades que ele acrescentava no último parágrafo ou os
personagens que idealizava, que armava, para representá-las. Os personagens
de A Letra Escarlate – sobretudo Hester Prynne, a heroína – são mais
independentes, mais autônomos, que os de outras ficções de Hawthorne;
assemelham-se mais aos habitantes da maioria dos romances e não são meras
projeções do autor ligeiramente disfarçadas. Essa objetividade, essa relativa e
parcial objetividade, é talvez a razão que levou dois escritores tão agudos (e tão
díspares) como Henry James e Ludwig Lewisohn a considerar A Letra
Escarlate a obra-prima de Hawthorne, seu testemunho imprescindível. Ouso
discordar dessas autoridades. Quem desejar objetividade, quem tiver fome e
sede de objetividade, que a procure em Joseph Conrad ou em Tolstói; quem
quiser o peculiar sabor de Nathaniel Hawthorne o encontrará menos em seus
laboriosos romances que em alguma página secundária ou nos leves e patéticos
contos. Não sei muito bem como justificar minha discrepância; nos três
romances americanos e no Fauno de Mármore vejo apenas uma série de
situações urdidas com destreza profissional para comover o leitor, não uma
espontânea e viva atividade da imaginação. Esta (repito) construiu o argumento
geral e as digressões, não o entrelaçamento dos episódios nem a psicologia – de
algum modo temos de chamá-la – dos atores.
Johnson observa que nenhum escritor gosta de dever algo a seus
contemporâneos; Hawthorne ignorou-os até onde lhe foi possível. Talvez tenha
feito bem; talvez nossos contemporâneos se pareçam – sempre – demais a nós
mesmos, e quem esteja em busca de novidades as encontrará com mais
facilidade nos antigos. Hawthorne, segundo seus biógrafos, não leu De
Quincey, não leu Keats, não leu Victor Hugo – que tampouco leram uns aos
outros. Groussac não suportava a possibilidade de um americano ser original;
em Hawthorne denunciou "a notável influência de Hoffmann"; ditame que
parece basear-se em uma equânime ignorância de ambos os autores. A
imaginação de Hawthorne é romântica; seu estilo, apesar de alguns excessos,
corresponde ao século XVIII, ao pálido fim do admirável século XVIII.
Li vários fragmentos do diário que Hawthorne escreveu para distrair sua
longa solidão; referi, ainda que brevemente, dois contos; agora lerei uma
página do Marble Faun para que vocês ouçam Hawthorne. O tema é aquele
poço ou abismo que, segundo os historiadores latinos, abriu-se no centro do
Fórum e em cujas cegas profundezas atirou-se um romano, armado e a cavalo,
para aplacar os deuses. Reza o texto de Hawthorne:
"Admitamos – disse Kenyon – que este seja o lugar exato onde se abriu a
caverna, aquela em que o herói se atirou com seu bom cavalo. Imaginemos o
enorme e escuro buraco, impenetravelmente fundo, com vagos monstros e
rostos atrozes olhando cá para cima e enchendo de horror os cidadãos que em
sua borda se debruçavam. Sem dúvida, estava cheio de visões proféticas
(cominações de todos os infortúnios de Roma), de sombras de gauleses, de
vândalos e dos soldados francos. Pena ter sido tapado tão depressa! Eu daria
qualquer coisa por uma olhada.
"Penso – disse Miriam – que não há pessoa que não lance um olhar nessa
fenda, em momentos de sombra e abatimento, ou seja, de intuição.
"Essa fenda – disse seu amigo – era apenas uma boca do abismo de
escuridão que está abaixo de nós, em toda a parte. A substância mais firme da
felicidade dos homens é uma lâmina interposta entre esse abismo e nós e que
sustenta nosso mundo ilusório. Não é necessário um terremoto para rompê-la;
basta apoiar o pé. Devemos pisar com muito cuidado. Inevitavelmente, no final
afundamos. Foi um tolo alarde de heroísmo o de Cúrcio, quando tomou a
dianteira e se atirou nas profundezas, pois Roma inteira, como vemos agora,
caiu aí. O Palácio dos Césares caiu, com um estrondo de pedras desabando.
Todos os templos caíram, e depois atiraram milhares de estátuas. Todos os
exércitos e os triunfos caíram, marchando, nessa caverna, e soava a música
marcial enquanto se precipitavam..."
Até aqui, Hawthorne. Do ponto de vista da razão (da mera razão que não
deve intrometer-se nas artes), a fervorosa passagem que acabo de traduzir é
indefensável. A fenda aberta no meio do fórum é demasiadas coisas. Ao longo
de um único parágrafo é a fenda de que falam os historiadores latinos e
também a boca do Inferno "com vagos monstros e rostos atrozes", e também é
o horror essencial da vida humana, e também o Tempo, que devora estátuas e
exércitos, e também a Eternidade, que encerra os tempos. É um símbolo
múltiplo, um símbolo capaz de muitos valores, talvez incompatíveis. Para a
razão, para o entendimento lógico, tal variedade de valores pode constituir um
escândalo, mas não para os sonhos, que têm sua álgebra singular e secreta, e
em cujo ambíguo território uma coisa pode ser muitas. Esse mundo de sonhos é
o de Hawthorne. Uma vez, ele propôs-se escrever um sonho, "que fosse como
um sonho verdadeiro e que tivesse a incoerência, as estranhezas e a falta de
propósito dos sonhos", e maravilhou-se de que ninguém, até então, tivesse
executado algo semelhante. No mesmo diário em que registrou esse estranho
projeto – que toda a nossa literatura "moderna" tenta em vão executar e que
talvez só Lewis Carroll tenha realizado –, Hawthorne anotou milhares de
impressões banais de pequenos aspectos concretos (o movimento de uma
galinha, a sombra de um galho na parede) que ocupam seis volumes, cuja
inexplicável abundância faz a consternação de todos os biógrafos. "Parecem
cartas gratas e inúteis – escreve com perplexidade Henry James – dirigidas a si
mesmo por um homem temeroso de que fossem abertas no correio e que por
isso tivesse resolvido não dizer nada de comprometedor." Tenho para mim que
Nathaniel Hawthorne registrou essas banalidades por anos a fio para provar a si
mesmo que ele era real, para de algum modo livrar-se da impressão de
irrealidade, de fantasmidade, que tanto o freqüentava.
Em um dos dias de 1840 escreveu: "Aqui estou em meu quarto habitual,
onde me parece sempre estar. Aqui terminei muitos contos, muitos que depois
queimei, muitos que, sem dúvida, mereciam esse ardente destino. Este é um
aposento assombrado, porque milhares e milhares de visões povoaram seu
âmbito, e algumas agora são visíveis ao mundo. Por momentos, eu acreditava
estar na sepultura, gelado, imóvel e intumescido; por momentos, acreditava ser
feliz... Agora começo a entender por que permaneci preso durante tantos anos
neste quarto solitário e por que não podia romper suas grades invisíveis. Se
tivesse escapado antes, agora seria duro e áspero e teria o coração coberto do
pó terrenal... Na verdade, não passamos de sombras...". Nas linhas que acabo
de transcrever, Hawthorne menciona "milhares e milhares de visões". A cifra
talvez não seja uma hipérbole; os doze volumes das obras completas de
Hawthorne incluem cento e tantos contos, e estes são apenas uma pequena
parte dos muitíssimos que ele esboçou em seu diário. (Entre os completos há
um – "Mr. Higginbotham’s catastrophe" [A morte repetida] – que prefigura o
gênero policial que Poe inventaria.) Miss Margaret Fuller, que conviveu com
ele na comunidade utópica de Brook Farm, escreveu depois: "Daquele oceano
recebemos somente algumas gotas", e Emerson, também amigo dele,
acreditava que Hawthorne nunca mostrara todo seu valor. Hawthorne casou-se
em 1842, ou seja, aos trinta e oito anos; sua vida, até essa data, foi quase
puramente imaginativa, mental. Trabalhou na alfândega de Boston, foi cônsul
dos Estados Unidos em Liverpool, viveu em Florença, em Roma e em Londres,
mas sua realidade foi, sempre, o tênue mundo crepuscular, ou lunar, das
imaginações fantásticas.
No início desta aula mencionei a doutrina do psicólogo Jung que equipara
as invenções literárias às invenções oníricas, a literatura aos sonhos. Essa
doutrina não parece aplicável às literaturas que utilizam a língua espanhola,
clientes do dicionário e da retórica, não da fantasia. Em contrapartida, é
adequada às letras da América do Norte. Estas (com as da Inglaterra ou da
Alemanha) são mais capazes de inventar que de transcrever, de criar que de
observar. Desse traço procede a curiosa veneração que os norte-americanos
tributam às obras realistas e que os leva a postular, por exemplo, que
Maupassant é mais importante que Hugo. A razão disso é que para um escritor
norte-americano é possível ser Hugo, mas não, sem violência, ser Maupassant.
Comparada à dos Estados Unidos, que já deu vários homens de gênio e que
influiu na da Inglaterra e na da França, nossa literatura argentina corre o risco
de parecer um tanto provinciana; entretanto, no século XIX, ela produziu
algumas páginas de realismo – algumas admiráveis crueldades de Echeverría,
de Ascasubi, de Hernández, do ignorado Eduardo Gutiérrez – que, até agora, os
norte-americanos não superaram (talvez nem tenham igualado). Faulkner,
alegarão, não é menos brutal que nossos gauchescos. Sei bem que ele o é, mas
de um modo alucinatório. De um modo infernal, não terrestre. Do modo dos
sonhos, do modo inaugurado por Hawthorne.
Este morreu em dezoito de maio de 1864, nas montanhas de New
Hampshire. Sua morte foi tranqüila e foi misteriosa, pois aconteceu durante o
sono. Nada nos impede de imaginar que ele morreu sonhando, e até podemos
inventar a história que ele sonhava – a última de uma série infinita – e de que
maneira foi coroada ou apagada pela morte. Quem sabe, um dia, eu ainda a
escreva e tente resgatar, com um conto aceitável, esta deficiente e por demais
digressiva lição.
Van Wyck Brooks, em The Flowering of New England, D. H. Lawrence,
em Studies in Classic American Literature, e Ludwig Lewisohn, em The Story
of American Literature, analisam e julgam a obra de Hawthorne. Existem
muitas biografias. Eu trabalhei com a que Henry James escreveu em 1879 para
a série English Men of Letters, de Morley.
Morto Hawthorne, os demais escritores herdaram sua tarefa de sonhar. Na
próxima aula estudaremos, se a indulgência de vocês tolerar, a glória e os
tormentos de Poe, em quem o sonho exaltou-se em pesadelo.
VALÉRY COMO SÍMBOLO
1
Cf. a curiosa tese de Leibniz, que tanto escandalizou Arnauld: "A noção de cada indivíduo encerra a
priori todos os fatos que a este hão de ocorrer". Segundo esse fatalismo dialético, o fato de Alexandre, o
Grande, morrer na Babilônia é uma qualidade desse rei, como a soberba.
2
A sentença é de Reyes, que a aplica ao homem mexicano (Reloj de Sol, p. 158).
SOBRE CHESTERTON
2
Não a explicação do inexplicável, e sim do confuso é a tarefa que, em geral, os autores de romances
policiais se impõem.
3
A noção de portas atrás de portas, que se interpõem entre o pecador e a glória, aparece no Zohar. Ver
Glatzer: In Time and Eternity, 3O; também Martin Buber: Tales of the Hasidim, 92.
O PRIMEIRO WELLS
1
Wells, em The Outline of History (1931), exalta a obra de outros dois precursores: Francis Bacon e
Luciano de Samósata.
para o prazer da leitura. Isso pode ser observado em todos os gêneros; os
melhores romances policiais não são os de melhor argumento. (Se os
argumentos fossem tudo, não existiria o Quixote e Shaw valeria menos que
O´Neill.) Em minha opinião, a precedência dos primeiros romances de Wells –
The Island of Dr. Moreau, por exemplo, ou The Invisible Man – deve-se a uma
razão mais profunda. O que eles narram não é apenas engenhoso; é também
simbólico de processos que de algum modo são inerentes a todos os destinos
humanos. O acossado homem invisível que é obrigado a dormir como se
estivesse de olhos abertos, porque suas pálpebras não vedam a luz, espelha
nossa solidão e nosso terror; o conciliábulo de monstros sentados que em sua
noite fanhoseiam um credo servil é o Vaticano e é Lhassa. A obra que perdura
é sempre capaz de uma infinita e plástica ambigüidade; é tudo para todos,
como o Apóstolo; é um espelho que delata os traços do leitor e é também um
mapa do mundo. Além do mais, tudo deve ocorrer de modo evanescente e
modesto, quase a despeito do autor; este deve parecer ignorante de todo
simbolismo. Com essa lúcida inocência Wells procedeu em seus primeiros
exercícios fantásticos, que são, em meu entender, o mais admirável de sua obra
admirável.
Aqueles que dizem que a arte não deve propagar doutrinas costumam
referir-se às doutrinas contrárias às suas. Evidentemente, esse não é o meu
caso; agradeço e professo quase todas as doutrinas de Wells, mas deploro que
ele as tenha intercalado em suas narrações. Bom herdeiro dos nominalistas
britânicos, Wells reprova nosso costume de falar da tenacidade da "Inglaterra"
ou das maquinações da "Prússia"; os argumentos contra essa mitologia
prejudicial parecem-me incontestáveis, mas não a circunstância de inseri-los no
relato do sonho do senhor Parham. Enquanto um autor se limita a narrar
acontecimentos ou a traçar os tênues desvios de uma consciência, podemos
considerá-lo onisciente, podemos confundi-lo com o universo ou com Deus;
assim que ele se rebaixa a arrazoar, sabemos que é falível. A realidade atua por
meio de fatos, não de arrazoados; toleramos que Deus afirme (Êxodo 3, 14)
"Eu Sou Aquele que Sou", mas não que declare e analise, como Hegel ou
Anselmo, o argumentum ontologicum. Deus não deve teologizar; o escritor não
deve invalidar com razões humanas a momentânea fé que a arte exige de nós.
Há outro motivo: o autor que mostra aversão por um personagem parece não
entendê-lo por completo, parece confessar que este não é inevitável para ele.
Duvidamos de sua inteligência, como duvidaríamos da inteligência de um Deus
que mantivesse céus e infernos. Deus, escreveu Spinoza (Ética, 5, 17), não
odeia ninguém nem ama ninguém.
Como Quevedo, como Voltaire, como Goethe, como mais algum outro,
Wells é menos um literato que uma literatura. Escreveu livros loquazes nos
quais de certo modo ressurge a gigantesca felicidade de Charles Dickens,
prodigou parábolas sociológicas, construiu enciclopédias, ampliou as
possibilidades do romance, reescreveu para nosso tempo o Livro de Jó, "essa
grande imitação hebréia do diálogo platônico", redigiu sem soberba nem
humildade uma autobiografia gratíssima, combateu o comunismo, o nazismo e
o cristianismo, polemizou (cortês e mortalmente) com Belloc, historiou o
passado, historiou o futuro, registrou vidas reais e imaginárias. Da vasta e
diversa biblioteca que ele nos deixou, nada me agrada mais que seu relato de
alguns milagres atrozes: The Time Machine, The Island of Dr. Moreau, The
Plattner Story, The First Men in the Moon. São os primeiros livros que eu li;
talvez sejam os últimos... Penso que haverão de incorporar-se, como a fórmula
de Teseu ou a de Ahasverus, à memória geral da espécie e que em seu seio se
multiplicarão, para além dos limites da glória de quem os escreveu, para além
da morte do idioma em que foram escritos.
O BIATHANATOS
Devo a De Quincey (com quem minha dívida é tão vasta que especificar
uma parte parece negar ou calar as outras) minha primeira informação sobre o
Biathanatos. Esse tratado foi composto no início do século XVII pelo grande
poeta John Donne,1 que deixou o manuscrito a Sir Robert Carr, sem nenhuma
proibição exceto a de dá-lo "à estampa ou ao fogo". Donne morreu em 1631;
em 1642 eclodiu a guerra civil; em 1644, o filho primogênito do poeta deu o
velho manuscrito à estampa, "para defendê-lo do fogo". O Biathanatos tem por
volta de duzentas páginas, que De Quincey (Writings, VIII, 336) resume assim:
o suicídio é uma das formas do homicídio; os canonistas distinguem o
homicídio voluntário do homicídio justificável; segundo a boa lógica, essa
distinção também deveria ser aplicável ao suicídio. Assim como nem todo
homicida é um assassino, nem todo suicida é culpado de pecado mortal. De
fato, essa é a tese aparente do Biathanatos, que é declarada no subtítulo (The
Self-homicide is not so naturally Sin that it may never be otherwise) e ilustrada,
ou sobrecarregada, por um douto catálogo de exemplos fabulosos ou
autênticos, de Homero,2 "que mil coisas escreveu que ninguém além dele
entendeu e de quem dizem que se enforcou por não ter entendido a adivinha
dos pescadores", até o pelicano, símbolo do amor paternal, e as abelhas, que,
segundo consta no Hexameron de Ambrósio, "matam-se quando infringem as
leis de seu rei". Três páginas ocupa o catálogo, e nelas pude notar esta vaidade:
a inclusão de exemplos obscuros ("Festo, favorito de Domiciano, que se matou
para ocultar os estragos de uma doença de pele"), a omissão de outros de
virtude persuasiva – Sêneca, Temístocles, Catão –, que poderiam parecer fáceis
demais.
Epicteto ("Lembra-te do essencial: a porta está aberta") e Schopenhauer
("Seria o monólogo de Hamlet a reflexão de um criminoso?") vindicaram o
suicídio em abundantes páginas; a prévia certeza de que esses defensores têm
1
De que ele realmente foi um grande poeta são prova estes versos:
(Elegies, XIX)
2
Cf. o epigrama sepulcral de Alceu de Messena (Antologia Grega, VII, 1).
razão faz com que os leiamos com negligência. Foi o que me aconteceu com o
Biathanatos até que percebi, ou julguei perceber, um argumento implícito ou
esotérico sob o argumento notório.
Nunca saberemos se Donne escreveu o Biathanatos com o deliberado fim
de insinuar esse oculto argumento ou se uma antevisão desse argumento,
mesmo que momentânea ou crepuscular, chamou-o à tarefa. Isto me parece
mais verossímil; a hipótese de um livro que para dizer A diz B, à maneira de
um criptograma, é artificial, mas não a de um trabalho animado por uma
intuição imperfeita. Hugh Fausset sugeriu que Donne pensava coroar sua
vindicação do suicídio com o próprio suicídio; que Donne tenha aventado essa
idéia é possível ou provável; que ela seja suficiente para explicar o Biathanatos
é, naturalmente, ridículo.
Donne, na terceira parte do Biathanatos, examina as mortes voluntárias
relatadas nas Escrituras; a nenhuma dedica tantas páginas como à de Sansão.
Começa por estabelecer que esse "homem exemplar" é emblema de Cristo e
que parece ter servido aos gregos como arquétipo de Hércules. Francisco de
Vitoria e o jesuíta Gregorio de Valencia negaram-se a incluí-lo entre os
suicidas; Donne, para refutá-los, transcreve as últimas palavras que ele teria
dito antes de cumprir sua vingança: "Morra eu com os filisteus" (Juízes 16, 30).
Também recusa a conjetura de Santo Agostinho, que afirma que Sansão, ao
derrubar os pilares do templo, não foi culpado pelas mortes alheias nem pela
própria, e sim que obedeceu a uma inspiração do Espírito Santo, "como a
espada que dirige seus gumes pela disposição de quem a empunha" (A Cidade
de Deus, I, 20). Donne, depois de provar que essa conjetura é gratuita, encerra
o capítulo com uma sentença de Benito Pereiro, que diz que Sansão, não menos
em sua morte que em outros atos, foi símbolo de Cristo.
Invertendo a tese agostiniana, os quietistas acreditaram que Sansão, "por
violência do demônio, matou-se juntamente com os filisteus" (Heterodoxos
Españoles, V, 1, 8); Milton (Samson Agonistes, in fine) defendeu-o da
acusação de suicídio; Donne, suspeito, viu nesse problema casuístico apenas
uma sorte de metáfora ou simulacro. Não lhe interessava o caso de Sansão – e
por que haveria de interessar-lhe? – ou só lhe interessava, digamos, como
"emblema de Cristo". Não há no Antigo Testamento herói que não tenha sido
alçado a essa dignidade; para São Paulo, Adão é imagem daquele que viria;
para Santo Agostinho, Abel representa a morte do Salvador, e seu irmão Seth, a
ressurreição; para Quevedo, "prodigioso esboço foi Jó de Cristo". Donne
incorreu nessa analogia trivial para que seu leitor entendesse: "O anterior, dito
de Sansão, bem pode ser falso; não o é, dito de Cristo".
O capítulo que fala diretamente de Cristo não é efusivo. Limita-se a
evocar duas passagens da Escritura: a frase "dou minha vida pelas ovelhas"
(João 10, 15) e a curiosa locução "entregou o espírito", que os quatro
evangelistas utilizam para dizer "morreu". Dessas passagens, confirmadas pelo
versículo "Ninguém tira a vida de mim. Sou eu mesmo que a dou" (João 10,
18), infere que o suplício da cruz não matou Jesus Cristo e que, na verdade,
este se matou com uma prodigiosa e voluntária emissão de sua alma. Donne
escreveu essa conjetura em 1608; em 1631 incluiu-a em um sermão que
proferiu, quase agonizante, na capela do palácio de Whitehall.
O declarado fim do Biathanatos é atenuar o suicídio; o fundamental,
indicar que Cristo se suicidou.3 O fato de Donne, para explicitar essa tese, ter-
se limitado a um versículo de São João e à repetição do verbo "expirar" é algo
inverossímil e até inacreditável; sem dúvida, preferiu não insistir sobre um
tema blasfemo. Para o cristão, a vida e a morte de Cristo são o acontecimento
central da história do mundo; os séculos anteriores o prepararam, os seguintes
o refletem. Antes de Adão ser moldado do pó da terra, antes de o firmamento
separar as águas das águas, o Pai já sabia que o Filho haveria de morrer na cruz
e, para teatro dessa morte futura, criou a terra e os céus. Cristo morreu de morte
voluntária, sugere Donne, e isso quer dizer que os elementos, e o orbe, e as
gerações de homens, e Egito, e Roma, e Babilônia, e Judá foram tirados do
nada para destruí-lo. Talvez o ferro tenha sido criado para os cravos, e os
espinhos, para a coroa do escárnio, e o sangue e a água, para a ferida. Essa
idéia barroca insinua-se por trás do Biathanatos. A de um deus que constrói o
universo para construir seu patíbulo.
Ao reler esta nota, penso naquele trágico Philipp Batz, que na história da
filosofia é chamado Philipp Mainländer. Ele foi, como eu, leitor apaixonado de
Schopenhauer. Sob sua influência (e talvez sob a dos gnósticos) imaginou que
somos fragmentos de um Deus que, no princípio dos tempos, destruiu a si
mesmo, ávido de não ser. A história universal é a obscura agonia desses
fragmentos. Mainländer nasceu em 1841; em 1876, publicou seu livro,
Filosofia da Redenção. Nesse mesmo ano, ele se matou.
3
Cf. De Quincey: Writings, VIII, 398; Kant: Religion innerhalb der Grenzen der Vernunft, II, 2.
PASCAL
1
Que eu me lembre, a história não registra deuses cônicos, cúbicos ou piramidais, embora registre ídolos.
A forma da esfera, ao contrário, é perfeita e convém à divindade (Cícero: De Natura Deorum,11, 17).
Esférico foi Deus para Xenófanes e para o poeta Parmênides. Na opinião de alguns historiadores,
Empédocles (fragmento 28) e Melisso conceberam-no como esfera infinita. Orígenes entendeu que os
mortos ressuscitarão em forma de esfera; Fechner (Vergleichende Anatomie der Engel) atribuiu essa
forma, que é a do órgão visual, aos anjos.
Antes de Pascal, o insigne panteísta Giordano Bruno (Da Causa, V) aplicou a sentença de
Trismegisto ao universo material.
2
De Coelo et Inferno, 535. Para Swedenborg, como para Boehme (Sex Puncta Theosophica, 9, 34), o céu
e o inferno são estados que o homem busca com liberdade, não um estabelecimento penal e um
estabelecimento piedoso. Cf. também Bernard Shaw: Man and Superman, III.
3
A de Zacharie Tourneur (Paris, 1942).
Le moindre grain de sable est un globe qui roule
Traînant comme la terre une lugubre foule
Qui s´abhorre et s´acharne...
1
O desconhecimento do animal sagrado e sua morte oprobriosa ou casual nas mãos do vulgo são temas
tradicionais da literatura chinesa. Ver o último capítulo de Psychologie und Alchemie (Zurique, 1944), de
Jung, que traz duas curiosas ilustrações.
O terceiro texto procede de uma fonte mais previsível: os escritos de
Kierkegaard. A afinidade mental de ambos os escritores é coisa por ninguém
ignorada; o que não se destacou ainda, que eu saiba, é o fato de Kierkegaard,
assim como Kafka, ter sido pródigo em parábolas religiosas de tema
contemporâneo e burguês. Lowrie, em seu Kierkegaard (Oxford University
Press, 1938), transcreve duas. Uma é a história de um falsificador que examina,
vigiado incessantemente, as cédulas do Banco da Inglaterra; Deus, do mesmo
modo, desconfiaria de Kierkegaard e lhe teria encomendado uma missão,
justamente por sabê-lo afeito ao mal. O sujeito da outra são as expedições ao
Pólo Norte. Os párocos dinamarqueses teriam declarado de seus púlpitos que
participar de tais expedições convinha à saúde eterna da alma. Teriam
admitido, entretanto, que chegar ao Pólo era difícil, talvez impossível, e que
nem todos poderiam empreender a aventura. Por fim, teriam anunciado que,
olhando-se bem, qualquer viagem – da Dinamarca a Londres, digamos, no
vapor de carreira – ou um passeio dominical em carro de praça são verdadeiras
expedições ao Pólo Norte. Quanto à quarta prefiguração, encontrei-a no poema
"Fears and scruples", de Browning, publicado em 1876. Um homem tem, ou
acredita ter, um amigo famoso. Ele nunca o viu, e o fato é que, até o momento,
o tal amigo não pôde ajudá-lo, mas dele contam-se gestos muito nobres e
circulam cartas autênticas. Há quem ponha em dúvida os gestos, e os
grafólogos afirmam a apocrifia das cartas. O homem, no último verso,
pergunta: "E se esse amigo for Deus?".
Minhas notas registram, também, dois contos. Um deles pertence às
Histoires Désobligeantes, de Léon Bloy, e relata o caso de algumas pessoas
que juntam globos terrestres, atlas, guias ferroviários e baús e que morrem sem
nunca ter conseguido sair de seu povoado natal. O outro intitula-se
"Carcassonne" e é obra de Lord Dunsany. Um invencível exército de guerreiros
parte de um castelo infinito, subjuga reinos, vê monstros e fadiga os desertos e
as montanhas, mas eles nunca chegam a Carcassonne, embora por vezes a
divisem. (Este conto é, como se percebe facilmente, o reverso exato do
anterior; no primeiro, nunca se sai de uma cidade; no último, não se chega.)
Se não me engano, os heterogêneos textos que enumerei parecem-se a
Kafka; se não me engano, nem todos se parecem entre si. Este último fato é o
mais significativo. Em cada um desses textos, em maior ou menor grau,
encontra-se a idiossincrasia de Kafka, mas, se ele não tivesse escrito, não a
perceberíamos; vale dizer, não existiria. O poema "Fears and scruples", de
Robert Browning, profetiza a obra de Kafka, mas nossa leitura de Kafka afina e
desvia sensivelmente nossa leitura do poema. Browning não o lia como agora
nós o lemos. No vocabulário crítico, a palavra precursor é indispensável, mas
se deveria tentar purificá-la de toda conotação de polêmica ou de rivalidade. O
fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa
concepção do passado, como há de modificar o futuro.2 Nessa correlação, não
importa a identidade ou a pluralidade dos homens. O primeiro Kafka de
Betrachtung é menos precursor do Kafka dos mitos sombrios e das instituições
atrozes que Browning ou Lord Dunsany.
2
Ver T S. Eliot: Points of View (1941), p. 25_26.
DO CULTO AOS LIVROS
1
A essa lista dever-se-ia acrescentar o genial poeta William Butler Yeats, que, na primeira estrofe de
“Sailing to Byzantium”, fala em “morrentes gerações” de pássaros, em unia alusão deliberada ou
involuntária à “Ode”. Ver T. R. Henn: The Lonely Tower, 1950, p. 211.
2
“Os entes não devem ser multiplicados além do necessário.” (N. da T.)
prefigura o não menos taxativo “esse est percipi”3 Os homens, disse Coleridge,
nascem aristotélicos ou platônicos; da mente inglesa cabe afirmar que nasceu
aristotélica. O real, para essa mente, não são os conceitos abstratos, e sim os
indivíduos; não o rouxinol genérico, e sim os rouxinóis concretos. E natural, é
talvez inevitável, que na Inglaterra a “Ode a um rouxinol” não seja bem
compreendida.
Que ninguém leia reprovação ou desdém nas palavras acima. O inglês
recusa o genérico porque sente que o individual é irredutível, inassimilável e
ímpar. Um escrúpulo ético, não uma incapacidade especulativa, impede-o de
transitar por abstrações, como os alemães. Não entende a “Ode a um rouxinol”;
essa valiosa incompreensão permite-lhe ser Locke, ser Berkeley e ser Hume, e
escrever, há cerca de setenta anos, as não escutadas e proféticas advertências
do Indivíduo contra o Estado.
O rouxinol, em todas as línguas do orbe, desfruta de nomes melodiosos
(nightingale, nachtigall, usignolo), como se os homens instintivamente
tivessem querido que esses não desmerecessem o canto que os maravilhou. De
tão exaltado pelos poetas, ele agora é um tanto irreal; menos afim com a
calhandra que com o anjo. Dos enigmas saxões do Livro de Exeter (“eu, antigo
cantor da tarde, trago aos nobres alegria nas vilas”) à trágica Atalanta, de
Swinburne, o infinito rouxinol tem cantado na literatura britânica; foi celebrado
por Chaucer e Shakespeare, por Milton e Matthew Arnold, mas é a John Keats
que fatalmente ligamos sua imagem como a Blake a do tigre.
3
“Ser é ser percebido.” (N. da T.)
O ESPELHO DOS ENIGMAS
1
Writings, 1896, volume 1, p. 129
L´Invendable. Não penso tê-las esgotado: espero que algum especialista em
Léon Bloy (eu não sou) venha a completá-las e retificá-las.
A primeira é de junho de 1894. Traduzo-a assim: "A sentença de São
Paulo: Videmus nuns per speculum in aenigmate seria uma clarabóia para
mergulhar no Abismo verdadeiro, que é a alma do homem. A aterrorizante
imensidão dos abismos do firmamento é uma ilusão, um reflexo exterior de
nossos abismos, percebidos ‘em um espelho’. Devemos inverter nossos olhos e
exercer uma astronomia sublime no infinito de nossos corações, pelo qual Deus
quis morrer... Se vemos a Via Láctea, é porque ela verdadeiramente existe em
nossa alma".
A segunda é de novembro do mesmo ano. "Recordo uma de minhas
idéias mais antigas. O Czar é o chefe e pai espiritual de cento e cinqüenta
milhões de homens. Atroz responsabilidade que não passa de aparência. Talvez
ele apenas seja responsável, perante Deus, por uns poucos seres humanos. Se
os pobres de seu império vivem oprimidos sob seu reinado, se desse reinado
resultam imensas catástrofes, quem pode garantir que não é o criado
encarregado de lustrar-lhe as botas o verdadeiro e único culpado? Nas
disposições misteriosas da Profundidade, quem é verdadeiramente Czar, quem
é rei, quem pode vangloriar-se de ser um simples criado?"
A terceira é de uma carta escrita em dezembro. "Tudo é símbolo, até a
dor mais lancinante. Somos dormentes que gritam durante o sono. Não
sabemos se tal coisa que nos aflige não é o secreto princípio de nossa alegria
ulterior. Vemos agora, afirma São Paulo, per speculum in aenigmate,
literalmente: ‘em enigma por um espelho’, e não veremos de outro modo até o
advento d´Aquele que está todo em chamas e que deve ensinar-nos todas as
coisas. "
A quarta é de maio de 1904. "Per speculum in aenigmate, diz São Paulo.
Vemos todas as coisas ao contrário. Quando pensamos dar, recebemos, etc.
Então (ouço de uma querida alma angustiada) nós estamos no céu e Deus sofre
na terra."
A quinta é de maio de 1908. "Aterrorizante idéia de Joana acerca do texto
Per speculum. Os prazeres deste mundo seriam os tormentos do inferno, vistos
ao contrário, em um espelho."
A sexta é de 1912. Em cada uma das páginas de L´Ame de Napoléon,
livro cujo propósito é decifrar o símbolo Napoleão, considerado precursor de
outro herói – também ele homem e símbolo – oculto no futuro. Basta-me citar
duas passagens. Uma: "Cada homem está na terra para simbolizar algo que
ignora e para realizar uma partícula, ou uma montanha, dos materiais invisíveis
que servirão para edificar A Cidade de Deus". Outra: "Não há na terra ser
humano capaz de declarar com certeza quem ele é. Ninguém sabe o que veio
fazer neste mundo, a que correspondem seus atos, seus sentimentos, suas
idéias, nem qual é seu nome verdadeiro, seu imorredouro Nome no registro da
Luz... A história é um imenso texto litúrgico no qual os iotas e os pontos não
valem menos que os versículos ou capítulos inteiros, mas a importância de uns
e de outros é indeterminável e está profundamente oculta".
Os parágrafos acima talvez pareçam ao leitor meras gratuidades de Bloy.
Que eu saiba, ninguém tratou de examiná-los. Ouso julgá-los verossímeis, e
talvez inevitáveis, dentro da doutrina cristã. Bloy (repito) só fez aplicar a toda a
Criação o método que os cabalistas judeus tinham aplicado à Escritura. Estes
pensaram que uma obra ditada pelo Espírito Santo era um texto absoluto: vale
dizer, um texto em que a colaboração do acaso é calculável em zero. Essa
premissa portentosa de um livro impenetrável à contingência, de uni livro que é
um mecanismo de propósitos infinitos, levou-os a permurtar as palavras
escriturais, a somar o valor numérico das letras, a fazer conta de sua forma, a
observar as minúsculas e maiúsculas, a procurar acrósticos e anagramas e a
outros rigores exegéticos dos quais não é difícil zombar. Sua apologia é que
nada pode ser contingente na obra de uma inteligência infinita.2 Léon Bloy
postula esse caráter hieroglífico – esse caráter de escrita divina, de criptografia
dos anjos – em todos os instantes e em todos os seres do mundo. O
supersticioso crê penetrar essa escrita orgânica: treze comensais articulam o
símbolo da morte; uma opala amarela, o da desgraça...
Parece improvável que o mundo tenha sentido; mais improvável, ainda,
que tenha duplo ou triplo sentido, observará o incrédulo. Eu entendo que é
assim; mas entendo que o mundo hieroglífico postulado por Bloy é o mais
conveniente à Dignidade do Deus intelectual dos teólogos.
"Nenhum homem sabe quem é", afirmou Léon Bloy. Ninguém como ele
para ilustrar essa ignorância íntima. Julgava-se um católico rigoroso e foi um
continuador dos cabalistas, irmão secreto de Swedenborg e de Blake:
heresiarcas.
2
O que é uma inteligência infinita?, poderá indagar o leitor. Não há teólogo que não a defina; eu prefiro
um exemplo. Os passos dados por um homem, desde o dia de seu nascimento até o de sua morte,
desenham no tempo uma inconcebível figura. A Inteligência Divina intui essa figura imediatamente,
como a dos homens um triângulo. Essa figura (talvez) tem uma função determinada na economia do
universo.
DOIS LIVROS
1
Da literatura, eu disse, não da mística: o eletivo Inferno de Swedenborg – De Coelo et Inferno, 545,
554 – é de data anterior.
uma árvore que já é mais, e menos, que uma árvore, e que, nos confins
orientais, algo, uma torre, cuja arquitetura, por si só, é malvada. Poe, no
Manuscrito Encontrado em uma Garrafa, fala de um mar austral onde o
volume do navio cresce como o corpo vivo do marinheiro; Melville dedica
muitas páginas de Moby Dick a elucidar o horror da brancura insuportável da
baleia... Excedi-me em alguns exemplos; talvez tivesse bastado observar que o
Inferno dantesco magnifica a idéia de uma prisão; o de Backford, os túneis de
um pesadelo. A Divina Comédia é o livro mais justificável e mais firme de
todas as literaturas: Vathek é uma mera curiosidade, the perfume and
suppliance of a minute; creio, contudo, que Vathek antecipa, mesmo que de
modo rudimentar, os satânicos esplendores de Thomas de Quincey e de Poe, de
Charles Baudelaire e de Huysmans. Há um intraduzível epíteto inglês, o epíteto
uncanny, para denotar o horror sobrenatural; esse epíteto (unheimlich, em
alemão) é aplicável a certas páginas de Vathek; que eu me lembre, a nenhum
livro anterior.
Chapman cita algumas obras que influenciaram Beckford: a Bibliothèque
Orientale, de Barthélemy d´Herbelot; os Quatre Facardins, de Hamilton; La
Princesse de Babylone, de Voltaire; as sempre menosprezadas e admiráveis
Mille et Une Nuits, de Galland. Eu complementaria essa lista com as Carceri
d´Invenzione, de Piranesi; águas-fortes elogiadas por Beckford, que
representam poderosos palácios que são também labirintos inextrincáveis.
Beckford, no primeiro capítulo de Vathek, enumera cinco palácios dedicados
aos cinco sentidos; Marino, em Adone, já descrevera cinco jardins análogos.
Só de três dias e duas noites do inverno de 1782 precisou William
Beckford para redigir a trágica história de seu califa. Escreveu-a no idioma
francês; Henley traduziu-a para o inglês em 1785. O original é infiel à
tradução; Saintsbury observa que o francês do século XVIII é menos apto que
o inglês para transmitir os "indefinidos horrores" (a expressão é de Beckford)
da singularíssima história.
A versão inglesa de Henley consta do volume 856 da Everyman´s
Library; a editora Perrin, de Paris, publicou o texto original, revisado e
prefaciado por Mallarmé. Causa estranheza que a esmerada bibliografia de
Chapman ignore essa revisão e esse prefácio.
1
No budismo, a figura se repete. Os primeiros textos narram que Buda, ao pé da figueira, intui a infinita
concatenação de todos os efeitos e causas do universo, as passadas e futuras encarnações de cada ser; os
últimos, escritos séculos mais tarde, afirmam que nada é real e que todo conhecimento é fictício, e que se
houvesse tantos Ganges como grãos de areia há no Ganges, e mais uma vez tantos Ganges como grãos de
areia nos novos Ganges, o número de grãos de areia seria menor que o número de coisas que Buda
ignora.
Buenos Aires, 1950.
FORMAS DE UMA LENDA
1
Esse sonho é, para nós, pura fealdade. Não o é para os hindus; o elefante, animal doméstico, é símbolo
de mansidão; a multiplicação das presas não pode incomodar os espectadores de uma arte que, para
sugerir que Deus é o todo, compõe figuras de múltiplos braços e rostos; o número seis é habitual (seis
vias de transmigração; seis Budas anteriores a Buda; seis pontos cardeais, contando o zênite e o nadir;
seis divindades que o Yajurveda chama "as seis portas de Brama").
2
Essa metáfora pode ter sugerido aos tibetanos a invenção das máquinas de rezar, rodas ou cilindros que
giram em torno de um eixo, cheias de tiras de papel enroladas nas quais se repetem palavras mágicas.
Algumas são manuais, outras são como grandes moinhos movidos pela água ou pelo vento.
em sua carruagem e vê com estupor um homem encurvado, "cujos cabelos não
são como os dos outros, cujo corpo não é como o dos outros", que caminha
apoiado em uma bengala e cuja carne treme. Pergunta que homem é esse; o
cocheiro explica que é um velho e que todos os homens da terra serão como
ele. Siddhartha, inquieto, ordena voltar imediatamente, mas em outra saída vê
um homem sendo devorado pela febre, coberto de lepra e de chagas; o cocheiro
explica que é um doente e que ninguém está livre desse perigo. Em outra saída
vê um homem sendo conduzido em um féretro, o homem imóvel é um morto,
explicam-lhe, e morrer é a lei de todo aquele que nasce. Em outra saída, a
última, vê um monge das ordens mendicantes que não deseja nem morrer nem
viver. A paz está em seu rosto; Siddhartha acaba de encontrar o caminho.
Hardy (Der Buddhismus nach älteren Pali-Werken) elogiou o colorido
dessa lenda; um indólogo contemporâneo, A. Foucher, cujo tom sarcástico nem
sempre é inteligente ou urbano, escreve que, admitida a ignorância prévia do
Bodhisattva, a história não carece de gradação dramática nem de valor
filosófico. No início do século V de nossa era, o monge Fa-Hsien peregrinou
aos reinos do Industão em busca de livros sagrados e viu as ruínas da cidade de
Kapilavastu e quatro imagens que Açoka erigiu, ao norte, ao sul, a leste e a
oeste das muralhas, para comemorar esses encontros. No início do século VII,
um monge cristão escreveu o romance intitulado Barlaão e Josafá; Josafá
(Josafat Bodhisattva) é filho de um rei da índia; os astrólogos predizem que ele
reinará sobre um reino maior, que é o da Glória; o rei confina-o em um palácio,
mas Josafá descobre o infortúnio da condição humana na figura de um cego, de
um leproso e de um moribundo e, por fim, é convertido à fé pelo ermitão
Barlaão. Essa versão cristã da lenda foi traduzida para muitos idiomas,
inclusive o holandês e o latim; a pedido do Haakon Haakonarson, foi composta
na Islândia, em meados do século XIII, uma Barlaams Saga. O cardeal César
Barônio incluiu Josafá em sua revisão (1585-1590) do Martirológio Romano;
em 1615, Diogo do Couto denunciou, em sua continuação das Décadas, as
analogias da falsa fábula indiana com a verdadeira e piedosa história de São
Josafá. Tudo isso e muito mais o leitor poderá encontrar no primeiro volume de
Orígenes de la Novela, de Menéndez y Pelayo.
A lenda que, em terras ocidentais, determinou que Buda fosse canonizado
por Roma tinha, porém, um defeito: os encontros que ela postula são eficazes
mas inverossímeis. Quatro saídas de Siddhartha e quatro figuras didáticas não
condizem com os hábitos do acaso. Menos atentos ao estético que à conversa
das pessoas, os doutores quiseram justificar essa anomalia; para Koeppen (Die
Religion des Buddha, 1, 82), na última forma da lenda, o leproso, o morto e o
monge são simulacros produzidos pelas divindades para instruir Siddhartha.
Assim, no terceiro livro da epopéia sânscrita Buddhacarita, diz-se que os
deuses criaram um morto e que nenhum homem o viu enquanto o levavam,
exceto o cocheiro e o príncipe. Em uma biografia lendária do século XVI, as
quatro aparições são quatro metamorfoses de um deus (Wieger: Vies Chinoises
du Bouddha, 37-41).
Mais longe foi o Lalitavistara. Dessa compilação em verso e prosa,
escrita em sânscrito impuro, costuma-se falar com certa ironia; em suas
páginas, a história do Redentor é inflada até a opressão e até a vertigem. O
Buda, rodeado por doze mil monges e trinta e dois mil Bodhisattvas, revela o
texto da obra aos deuses; instalado no quarto céu, ele fixou o período, o
continente, o reino e a casta em que renasceria para morrer pela última vez;
oitenta mil tambores acompanham as palavras de seu discurso e o corpo de sua
mãe tem a força de dez mil elefantes. Buda, no estranho poema, dirige cada
etapa de seu destino; faz as divindades projetarem as quatro figuras simbólicas
e, quando interroga o cocheiro, já sabe quem são e o que representam. Foucher
vê nisso um mero servilismo dos autores, que não podem tolerar que Buda não
saiba o que sabe um criado; o enigma merece em meu entender, outra solução.
Buda cria as imagens e em seguida indaga a um terceiro o sentido que
encerram. Teologicamente, talvez coubesse responder: o livro é da escola do
Mahayana, que ensina que o Buda temporal é emanação ou reflexo de um Buda
eterno; o do céu ordena as coisas, o da terra as padece ou executa. (Nosso
século, com outra mitologia ou vocabulário, fala em inconsciente.) A
humanidade do Filho, segunda pessoa de Deus pôde gritar da cruz: "Meu Deus,
meu Deus, por que me abandonaste?", a de Buda, analogamente, ode espantar-
se com formas criadas por sua própria divindade... Para desatar o problema não
são indispensáveis, porém, tais sutilezas dogmáticas; basta lembrar que todas
as religiões do Industão, e em particular o budismo, ensinam que o mundo é
ilusório. "Minuciosa relação do jogo" (de um Buda) é o que quer dizer,
segundo Winternitz, Lalitavistara; um jogo ou um sonho é para o Mahayana, a
vida de Buda sobre a terra, que é outro sonha. Siddhartha escolhe sua nação e
seus pais, Siddhartha produz quatro formas que o encherão de estupor,
Siddhartha ordena que outra forma declare o sentido das primeiras; tudo isso é
razoável se o entendermos como um sonho de Siddhartha. Melhor ainda se o
entendermos como um sonho em que aparece Siddhartha (assim como
aparecem o leproso e o monge) e que não é sonhado por ninguém, pois, aos
olhos do budismo do Norte,3 o mundo, e os prosélitos, e o Nirvana, e a roda das
transmigrações, e Buda são igualmente irreais. Ninguém se extingue no
Nirvana, lemos em um famoso tratado, porque a extinção de inumeráveis seres
no Nirvana é como a desaparição de uma fantasmagoria que um feiticeiro cria
em uma encruzilhada por meio de artes mágicas, e em outro lugar está escrito
que tudo é mera vacuidade, mero nome, incluído o livro que o declara e o
3
Rhys Davids suprime essa locução introduzida por Burnouf, mas seu emprego nessa frase é menos
incômodo que o de grande Travessia ou Grande Veículo, que teriam feito o leitor se deter.
homem que o lê. Paradoxalmente, os excessos numéricos do poema subtraem,
não acrescentam realidade; doze mil monges e trinta e dois mil Bodhisattvas
são menos concretos que um monge e que um Bodhisattva. As vastas formas e
os vastos algarismos (o capítulo X11 inclui uma série de vinte e três palavras
que indicam a unidade seguida de um número crescente de zeros, de 9 a 49, 51
e 53) são imensas e monstruosas bolhas, ênfases do Nada. O irreal, assim, foi
erodindo a história; primeiro tornou fantásticas as figuras, depois o príncipe e,
com o príncipe, todas as gerações e o universo.
Em fins do século XIX, Oscar Wilde propôs uma variante; o príncipe
feliz morre na reclusão do palácio, sem ter descoberto a dor, mas sua efígie
póstuma a divisa do alto do pedestal.
A cronologia do Industão é incerta; minha erudição, muito mais;
Koeppen e Hermann Beckh talvez sejam tão falíveis quanto o compilador que
arrisca esta nota; não me surpreenderia que minha história da lenda fosse
legendária, feita de verdade substancial e de erros fortuitos.
DAS ALEGORIAS AOS ROMANCES
Para todos nós, a alegoria é um erro estético. (Meu primeiro propósito foi
escrever "não é outra coisa senão um erro da estética", mas logo me dei conta
de que minha sentença comportava uma alegoria.) Que eu saiba, o gênero
alegórico foi analisado por Schopenhauer (Welt als Wille und Vorstellung, I,
50), por De Quincey (Writings, XI, 198), por Francesco De Sanctis (Storia
della Letteratura Italiana, VII), por Croce (Estetica, 39) e por Chesterton (G.
F. Watts, 83); neste ensaio, limitar-me-ei aos dois últimos. Croce nega a arte
alegórica, Chesterton a vindica; opino que aquele está com a razão, mas
gostaria de saber como uma forma que nos parece injustificável pôde desfrutar
de tantos favores.
As palavras de Croce são cristalinas; basta-me repeti-las em vernáculo:
"Se o símbolo for concebido como inseparável da intuição artística, será
sinônimo da intuição mesma, que sempre tem caráter ideal. Se o símbolo for
concebido como separável, podendo-se por um lado expressar o símbolo e por
outro a coisa simbolizada, recair-se-á em um erro intelectualista; o suposto
símbolo é a exposição de um conceito abstrato, é uma alegoria, é ciência, ou
arte arremedando a ciência. Mas também devemos ser justos com o alegórico e
advertir que em alguns casos é inócuo. Da Jerusalém Libertada pode-se extrair
qualquer moralidade; do Adone, de Marino, o poeta da lascívia, a reflexão de
que o prazer desmedido leva à dor; diante de uma estátua, o escultor pode pôr
um cartaz dizendo que se trata da Clemência ou da Bondade. Tais alegorias,
acrescentadas a uma obra concluída, não a prejudicam. São expressões que
extrinsecamente se adicionam a outras expressões. À Jerusalém adiciona-se
uma página em prosa que expressa outro pensamento do poeta; ao Adone, um
verso ou uma estrofe que expressa o que o poeta quer dar a entender; à estátua,
a palavra clemência ou a palavra bondade". Na página 222 do livro La Poesia
(Bári, 1946), o tom é mais hostil: "A alegoria não é um modo direto de
manifestação espiritual, e sim uma sorte de escrita ou de criptografia".
Croce não admite diferença entre conteúdo e forma. Esta é aquele e
aquele é esta. A alegoria parece-lhe monstruosa porque aspira a cifrar em uma
forma dois conteúdos: o imediato ou literal (Dante, guiado por Virgílio, chega
a Beatriz) e o figurado (o homem enfim alcança a fé, guiado pela razão). Julga
que essa maneira de escrever comporta laboriosos enigmas.
Chesterton, para vindicar o alegórico, começa por negar que a linguagem
esgote a expressão da realidade. "O homem sabe que há na alma matizes mais
desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos que as cores de um bosque
outonal... Crê, no entanto, que esses matizes, em todas as suas fusões e
conversões, podem ser representados com precisão por meio de um mecanismo
arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que mesmo de dentro de um corretor da
Bolsa realmente saem ruídos que significam todos os mistérios da memória e
todas as agonias do desejo." Declarada a insuficiência da linguagem, há lugar
para outras; a alegoria pode ser uma delas, como a arquitetura ou a música. É
feita de palavras, mas não é uma linguagem da linguagem, um signo de outros
signos da virtude valorosa e das iluminações secretas que essa palavra indica.
Um signo mais preciso que o monossílabo, mais rico e mais feliz.
Não sei muito bem qual dos eminentes contraditores tem razão; sei que a
arte alegórica pareceu em algum momento encantadora (o labiríntico Roman de
la Rose, que perdura em duzentos manuscritos, consta de vinte e quatro mil
versos) e agora é intolerável. Sentimos que, além de intolerável, é tola e
frívola. Nem Dante, que figurou a história de sua paixão em Vita Nuova, nem o
romano Boécio, escrevendo na torre de Pavia, à sombra da espada de seu
carrasco, o De Consolatione, teriam entendido esse sentimento. Como explicar
essa discórdia sem recorrer a uma petição de princípio sobre a volubilidade dos
gostos?
Coleridge observa que todos os homens nascem aristotélicos ou
platônicos. Os últimos intuem que as idéias são realidades; os primeiros, que
são generalizações; para estes, a linguagem não passa de um sistema de
símbolos arbitrários; para aqueles, é o mapa do universo. O platônico sabe que
o universo é de certo modo um cosmos, uma ordem; essa ordem, para o
aristotélico, pode ser um erro ou uma ficção de nosso conhecimento parcial.
Através das latitudes e das épocas, os dois antagonistas imortais mudam de
dialeto e de nome: um é Parmênides, Platão, Spinoza, Kant, Francis
Bradley; o outro, Heráclito, Aristóteles, Locke, Hume, William James. Nas
árduas escolas da Idade Média, todos invocam Aristóteles, mestre da humana
razão (Dante, Convívio, IV, 2); mas, se os nominalistas são Aristóteles, os
realistas são Platão. Segundo a opinião de George Henry Lewes, o único debate
medieval com algum valor filosófico é o que confrontou nominalismo e
realismo; o juízo é temerário, mas destaca a importância dessa controvérsia
tenaz que uma sentença de Porfírio, vertida e comentada por Boécio, provocou
nos inícios do século IX, que Anselmo e Roscelino mantiveram em fins do
século XI e que William de Occam reanimou no século XIV.
Como era de esperar, tantos anos multiplicaram até o infinito as posições
intermediárias e as distinções; entretanto, é possível afirmar que para o
realismo o primordial eram os universais (Platão diria as idéias, as formas; nós,
os conceitos abstratos), e para o nominalismo, os indivíduos. A história da
filosofia não é um vão museu de distrações e jogos verbais; verossimilmente,
as duas teses correspondem a duas maneiras de intuir a realidade. Maurice de
Wulf escreve: "O ultra-realismo recolheu as primeiras adesões. O cronista
Heriman (século XI) denomina antiqui doctores aqueles que ensinam a
dialética in re; Abelardo refere-se a ela como uma "antiga doutrina", e até o
fim do século XII seus adversários são chamados pelo nome de moderni". Uma
tese agora inconcebível pareceu evidente no século IX e de certo modo
perdurou até o século XIV O nominalismo, outrora novidade de uns poucos,
hoje abarca todas as pessoas; sua vitória é tão vasta e fundamental que seu
nome é inútil. Ninguém se declara nominalista porque não há quem seja outra
coisa. Mas procuremos entender que, para os homens da Idade Média, o
substantivo não eram os homens, e sim a humanidade, não os indivíduos, e sim
a espécie, não as espécies, e sim o gênero, não os gêneros, e sim Deus. De tais
conceitos (cuja manifestação mais clara talvez seja o quádruplo sistema de
Erígena) adveio, em meu entender, a literatura alegórica. Esta é fábula de
abstrações, assim como o romance o é de indivíduos. As abstrações são
personificadas; por isso, em toda alegoria há algo de romanesco. Os indivíduos
que os romancistas propõem aspiram a ser genéricos (Dupin é a razão, Dom
Segundo Sombra é o Gaúcho); os romances contêm um elemento alegórico.
A passagem da alegoria ao romance, de espécies a indivíduos, do
realismo ao nominalismo, demandou alguns séculos, mas ouso apontar uma
data ideal. Aquele dia de 1382 em que Geoffrey Chaucer, que talvez não se
julgasse nominalista, tentou traduzir para o inglês o verso de Boccaccio "E con
gli occulti ferri i Tradimenti" ("E com ferros ocultos as Traições") e o
reproduziu deste modo: "The smyler with the knyf under the cloke" ("Aquele
que sorri, com o punhal sob a capa"). O original está no sétimo livro da
Teseida; a versão, em Knightes Tale.
1
Assim foi interpretada por Milton e Dante, a julgar por certas passagens que parecem imitativas. Na
Comédia (Inferno, I, 60; V, 28), temos: "d´ogni luce muto" e "dove il sol tace" para significar lugares
escuros; no Samson Agonistes (86-89):
1 Carlyle (Early Kings of Norway, XI) desbarata, com uma infeliz adição, essa economia. Aos sete
palmos de terra acrescenta for a grave ("para sepultura").
NOVA REFUTAÇÃO DO TEMPO
Vor mir war keine Zeit, nach mir wird keine seyn.
Mit mir gebiert sie sich, mit mir geht sie auch ein.1
NOTA PRELIMINAR
1
"Antes de mim não existia o tempo, depois de mim não existirá. / Comigo ele veio ao mundo, também
comigo perecerá." (N. da T.)
2
Não há exposição do budismo que deixe de mencionar o Milinda Pañha, obra apologética do século II,
que relata um debate cujos interlocutores são o rei da Bactriana, Menandro, e o monge Nagasena. Este
argumenta que, assim como a carruagem do rei não é as rodas, nem a caixa, nem o eixo, nem a lança, nem
o jugo, tampouco o homem é a matéria, a forma, as impressões, as idéias, os instintos ou a consciência.
Não é a combinação dessas partes nem existe fora delas... Ao término de uma controvérsia de muitos
dias, Menandro (Milinda) converte-se à fé de Buda.
O Milinda Pañha foi vertido para o inglês por Rhys Davids (Oxford, 1890-1894).
fundi os dois em um só, por entender que a leitura de dois textos análogos
pode facilitar a compreensão de uma matéria indócil.
Uma palavra sobre o título. Não me escapa que este é um exemplo do
monstro que os lógicos denominaram contradictio in adjecto, pois dizer que é
nova (ou antiga) uma refutação do tempo é atribuir-lhe um predicado de
índole temporal, que instaura a noção que o sujeito pretende destruir. Ainda
assim, prefiro mantê-lo, para que seu ligeiríssimo escárnio prove que não
exagero a importância desses jogos verbais. De mais a mais, tão saturada e
animada de tempo está nossa linguagem que é bem provável que não haja
nestas páginas uma sentença que de certo modo não o exija ou invoque.
Dedico estes exercícios a meu antepassado Juan Crisóstomo Lafinur
(1797-1824), que legou às letras argentinas algum decassílabo memorável e
que tentou reformar o ensino da filosofia, purificando-o de sombras teológicas
e expondo na cátedra os princípios de Locke e de Condillac. Morreu no
desterro; couberam-lhe, como a todos os homens, maus tempos para viver.
J. L. B.
1
Para facilidade do leitor, escolhi um instante entre dois sonhos, um instante literário, não histórico. Se
alguém suspeitar de uma falácia, poderá intercalar outro exemplo; de sua própria vida, se quiser.
Nego, em um elevado número de casos, a sucessividade; nego, em um
elevado número de casos, também a simultaneidade. Engana-se o amante que
pensa "enquanto eu estava feliz da vida, pensando na fidelidade de meu amor,
ela me enganava": se cada estado que vivemos é absoluto, essa felicidade não
foi contemporânea dessa traição; a descoberta da traição é mais um estado,
incapaz de modificar os "anteriores", embora não sua lembrança. A desventura
de hoje não é mais real que a ventura pretérita. Busco um exemplo mais
concreto. No início de agosto de 1824, o capitão Isidoro Suárez, à frente de um
esquadrão de hussardos do Peru, decidiu a vitória de Junín; no início de agosto
de 1824, De Quincey publicou uma diatribe contra Wilhelm Meisters
Lehrjahre; tais fatos não foram contemporâneos (agora o são), porque os dois
homens morreram, aquele na cidade de Montevidéu, este em Edimburgo, sem
nada saber um do outro... Cada instante é autônomo. Nem a vingança, nem o
perdão, nem as prisões, nem sequer o esquecimento podem modificar o
invulnerável passado. Não menos vãos parecem-me a esperança e o medo, que
sempre se referem a fatos futuros; ou seja, a fatos que não ocorrerão conosco,
que somos o minucioso presente. Dizem-me que o presente, o specious present
dos psicólogos, dura entre alguns segundos e uma ínfima fração de segundo;
isso dura a história do universo. Ou melhor, não existe tal história, como não
existe a vida de um homem, nem sequer uma de suas noites; existe cada
momento que vivemos, não seu imaginário conjunto. O universo, a soma de
todos os fatos, é uma coleção não menos ideal que a de todos os cavalos
sonhada por Shakespeare – um, muitos, nenhum? – entre 1592 e 1594.
Acrescento: se o tempo é um processo mental, como podem compartilhá-lo
milhares de homens, ou mesmo dois homens distintos?
O argumento dos parágrafos acima, interrompido e como que entorpecido
de exemplos, pode parecer intrincado. Tentarei um método mais direto.
Tomemos uma vida ao longo da qual amiúdam as repetições: a minha, Verbi
gratia. Não passo diante de La Recoleta sem lembrar que aí estão sepultados
meu pai, meus avós e bisavós, assim como eu estarei; em seguida, lembro já ter
lembrado o mesmo, inúmeras vezes; não posso caminhar pelos subúrbios na
solidão da noite sem pensar que esta nos agrada porque suprime os detalhes
ociosos, como a lembrança; não posso lamentar a perda de um amor ou de uma
amizade sem meditar que só se perde aquilo que não se teve realmente; cada
vez que atravesso uma das esquinas do sul da cidade, penso em você, Helena;
cada vez que a brisa traz um cheiro de eucaliptos, penso em Adrogué, em
minha infância; cada vez que recordo o fragmento 91 de Heráclito, "Nunca
entrarás duas vezes no mesmo rio", admiro sua destreza dialética, pois a
facilidade com que aceitamos o primeiro sentido ("O rio é outro") impõe-nos
clandestinamente o outro ("Eu sou outro"), concedendo-nos a ilusão de tê-lo
inventado; cada vez que ouço um germanófilo vituperar o Yiddish, penso que o
Yiddish é, antes de mais nada, um dialeto alemão, pouco maculado pelo idioma
do Espírito Santo. Essas tautologias (e outras que calo) são minha vida inteira.
Naturalmente, elas se repetem sem precisão; há diferenças de ênfase, de
temperatura, de luz, de estado fisiológico geral. Suspeito, porém, que o número
de variações circunstanciais não é infinito: podemos postular, na mente de um
indivíduo (ou de dois indivíduos que se ignoram, mas nos quais se dá o mesmo
processo), dois momentos iguais. Postulada essa igualdade, cabe perguntar:
esses idênticos momentos não são o mesmo? Não basta um único termo
repetido para desbaratar e confundir a série do tempo? Os fervorosos que se
entregam a uma linha de Shakespeare não são, literalmente, Shakespeare?
Ignoro, ainda, a ética do sistema que acabo de esboçar. Não sei se existe.
O quinto parágrafo do quarto capítulo do tratado Sanhedrin da Mishnah declara
que, para a justiça de Deus, aquele que mata um único homem destrói o
mundo; se não há pluralidade, quem aniquilasse todos os homens não seria
mais culpado que o primitivo e solitário Caim, o que é ortodoxo, nem mais
universal na destruição, o que pode ser mágico. Eu entendo que é assim. As
ruidosas catástrofes gerais – incêndios, guerras, epidemias – são uma só dor,
ilusoriamente multiplicada em muitos espelhos. Assim o entende Bernard
Shaw (Guide to Socialism, 86): "O que você pode padecer é o máximo que se
pode padecer na terra. Se você morrer de inanição, sofrerá toda a inanição
havida e por haver. Se dez mil pessoas morrerem com você, a participação
delas em sua sorte não o fará ter dez mil vezes mais fome nem multiplicará por
dez mil o tempo de sua agonia. Não se deixe angustiar pela horrenda soma de
padecimentos humanos; tal soma não existe. Nem a pobreza nem a dor são
acumuláveis". (Cf. também The Problem of Pain, VII, de C. S. Lewis.)
Lucrécio (De Rerum Natura, I, 830) atribui a Anaxágoras a doutrina de
que o ouro consta de partículas de ouro; o fogo, de fagulhas; o osso, de
ossinhos imperceptíveis. Josiah Royce, talvez influenciado por Santo
Agostinho, entende que o tempo é feito de tempo e que "todo presente em que
algo ocorre é também uma sucessão" (The World and the Individual, II, 139).
Tal proposição é compatível com a deste trabalho.
II
2
Antes, por Newton, que afirmou: "Cada partícula de espaço é eterna, cada indivisível momento de
duração está em toda a parte" (Principia, III, 42).
Meinong, em sua teoria da apreensão, admite a dos objetos imaginários: a
quarta dimensão, digamos, ou a estátua sensível de Condillac, ou o animal
hipotético de Lotze, ou a raiz quadrada de -I. Se as razões que apontei forem
válidas, a este orbe nebuloso também pertencerão a matéria, o eu, o mundo
externo, a história universal, nossas vidas.
De resto, a frase negação do tempo é ambígua. Pode significar a
eternidade de Platão ou de Boécio e também os dilemas de Sexto Empírico.
Este (Adversus Mathematicos, XI, 197) nega o passado, que já foi, e o futuro,
que ainda não é, e contesta que o presente seja divisível ou indivisível. Não é
indivisível, porque nesse caso ele não teria princípio que o vinculasse ao
passado nem fim que o vinculasse ao futuro, nem sequer meio, pois não há
meio naquilo que carece de princípio e de fim; tampouco é divisível, porque
nesse caso constaria de uma parte que foi e de outra que não é. Ergo, não
existe, mas, como tampouco existem o passado e o porvir, o tempo não existe.
F. H. Bradley redescobre e melhora essa perplexidade. Observa (Appearance
and Reality, IV) que, se o agora for divisível em outros agoras, não será menos
complicado que o tempo, e, se for indivisível, o tempo será mera relação entre
coisas intemporais. Tais raciocínios, como se vê, negam as partes para depois
negar o todo; eu rejeito o todo para exaltar cada uma das partes. Pela dialética
de Berkeley e de Hume, cheguei à sentença de Schopenhauer: "A forma da
aparição da vontade é só o presente, não o passado nem o porvir; estes existem
apenas para o conceito e pelo encadeamento da consciência, submetida ao
princípio da razão. Ninguém viveu no passado, ninguém viverá no futuro: o
presente é a forma de toda a vida, é uma possessão que nenhum mal pode
arrebatar... O tempo é como um círculo a girar indefinidamente: o arco que
desce é o passado, o que sobe é o porvir; no topo, há um ponto indivisível que
toca a tangente e é o agora. Imóvel como a tangente, esse inextenso ponto
marca o contato do objeto, cuja forma é o tempo, com o sujeito, que carece de
forma, porque não pertence ao conhecível e é prévia condição do
conhecimento" (Welt als Wille und Vorstellung, I, 54). Um tratado budista do
século V, o Visuddhimagga (Caminho da Pureza), ilustra a mesma doutrina
com a mesma figura: "A rigor, a vida de um ser dura o que dura uma idéia.
Como uma roda de carruagem, ao rodar, toca a terra em um único ponto, dura a
vida o que dura uma única idéia" (Radhakrishman: Indian Philosophy, I, 373).
Outros textos budistas dizem que o mundo se aniquila e ressurge seis bilhões e
quinhentos milhões de vezes por dia e que todo homem é uma ilusão,
vertiginosamente construída por uma série de homens momentâneos e
solitários. "O homem de um momento pretérito – adverte-nos o Caminho da
Pureza – viveu, mas não vive nem viverá; o homem de um momento futuro
viverá, mas não viveu nem vive; o homem do momento presente vive, mas não
viveu nem viverá" (obra citada, I, 407), sentença que podemos comparar com
esta de Plutarco (De E apud Delphos, 18): "O homem de ontem morreu no de
hoje, o de hoje morre no de amanhã".
And yet, and yet... Negar a sucessão temporal, negar o eu, negar o
universo astronômico são desesperos aparentes e consolos secretos. Nosso
destino (ao contrário do inferno de Swedenborg e do inferno da mitologia
tibetana) não é terrível por ser irreal; é terrível porque é irreversível e férreo. O
tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas
eu sou o rio; é um tigre que me despedaça, mas eu sou o tigre; é um fogo que
me consome, mas eu sou o fogo. O mundo, infelizmente, é real; eu,
infelizmente, sou Borges.
3
"Basta, amigo. Se queres ler mais, vai e faze de ti mesmo a escrita e de ti mesmo o ser." (N. da T.)
SOBRE OS CLÁSSICOS
1
Esta versão do ensaio foi publicada na revista Sur, de janeiro-abril de 1966, e incorporada às Obras
Completas de 1974. (N. do Coord.)
EPÍLOGO
J. L. B.
1
"O mundo criado é como um livro em que se lê a Trindade." (N. da T.)
OUTRAS INQUISIÇÕES (1952)
A muralha e os livros
A esfera de Pascal
A flor de Coleridge
O sonho de Coleridge
O tempo e J. W. Dunne
A Criação e P H. Gosse
Os alarmes do doutor Américo Castro
Nosso pobre individualismo
Quevedo
Magias parciais do Quixote
Nathaniel Hawthorne
Valéry como símbolo
O enigma de Edward FitzGerald
Sobre Oscar Wilde
Sobre Chesterton
O primeiro Wells
O Biathanatos
Pascal
O idioma analítico de John Wilkins
Kafka e seus precursores
Do culto aos livros
O rouxinol de Keats
O espelho dos enigmas
Dois livros
Anotação ao 23 de agosto de 1944
Sobre o Vathek de William Beckford
Sobre The Purple Land
De alguém a ninguém
Formas de uma lenda
Das alegorias aos romances
Nota sobre (para) Bernard Shaw
História dos ecos de um nome
O pudor da história
Nova refutação do tempo
Sobre os clássicos
Epílogo
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