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Entrevista Nick Clegg diogo schelp, de Londres

Thatcherista acidental
O vice-primeiro-ministro inglês diz que prefere trabalhar pela recuperação do país a
salvar-se do constrangimento político de contrariar posições que defendeu no passado

L
íder da legenda vencedora mas
não majoritária nas eleições pas-
sadas na Inglaterra, David Came-
ron, do Partido Conservador, só
conseguiu formar um governo com a
adesão de Nick Clegg, 44 anos, do Par-
tido Liberal-Democrata, a terceira
agremiação mais bem-sucedida nas ur-
nas. Sem o apoio de Clegg e seus libe- ΩSem o anúncio de
rais, não seria possível a Cameron
aprovar os duros ajustes necessários
cortes nos gastos
para cortar gastos e salvar o país da fa-
lência. Cameron e Clegg, seu vice-pri-
públicos, tenho
meiro-ministro, agora estão juntos na
implantação da impopular meta de di- certeza de que as taxas de
minuir o equivalente a 300 bilhões de
reais por ano do déficit público. Nada juros estariam mais altas
de novo para Cameron, que concorreu
às eleições prometendo fazer exata-
mente o que está fazendo. Saia justa
e as perspectivas de
para Clegg, que prometeu abolir as
anuidades dos universitários e, no po-
desemprego, piores√
der, as triplicou. VEJA foi a Londres
ouvir como o liberal Clegg se sente no
papel acidental e híbrido de uma Mar-
garet Thatcher.

Exatamente como ocorreu com as refor-


mas de Margaret Thatcher nos anos 80,
o plano de vocês não parece muito po-
pular nesta fase inicial, certo? O plano
nem é tão radical se comparado às
reais dimensões do problema. Tam-
pouco é muito diferente de outros pro-
gramas de redução de déficit fiscal
adotados por países com rombo nas fi-
nanças do estado. Nesse sentido, não
são medidas que também podem ter
sua receita exportada. Cada país deve
encontrar fórmulas próprias para lidar
com seus problemas. O nosso é bas-
tante particular. Temos um dos déficits
mais altos do G-20 (grupo que reúne
as principais economias desenvolvidas
e emergentes). Aliás, durante um certo
emiliano capozoli

período, foi o maior déficit da União


Europeia. Repito: o maior. Quando
um país se destaca dessa maneira, co-
mo uma exceção negativa, tem de
≤| 16 de fevereiro, 2011 | 17
Entrevista Nick clegg

ΩOs ingleses ΩEu acreditava que


adotar medidas excepcionais. É o que entendem que os Por que é praticamente impossível en- tempo inteiro, com projetos-surpresa, uma política monetária em uma era de poder mundial mais
estamos fazendo. Quem não tem
os mesmos problemas fiscais não trabalhistas deixaram contrar um inglês satisfeito com as re-
formas do governo? Dada a dimensão
planos de última hora e anúncios
dispersos. Nós, não. Deixamos claro única forçaria os disperso e multipolar. Como nação,
temos de nos mover nessa direção.
precisa tomar os mesmos remédios do que estamos fazendo, todo mundo desde o princípio que esta é uma crise
amargos. Para nós, não há escolha. um legado terrível. é afetado em maior ou menor grau. realmente grave. Apresentamos o pla- países da zona do euro Nesse novo contexto internacional,
Não se trata de uma decisão Ao mesmo tempo, as pessoas estão no e anunciamos a intenção de adotá- quais os riscos que a Europa corre? 
ideológica, mas de uma necessidade. É muito mais fácil sob pressão porque os preços do com-
bustível e da comida estão subindo.
lo em sua totalidade. Houve muita
controvérsia, e a população ficou preo-
a encontrar outras Há uma enorme lista de reformas em
educação, pensões, legislação traba-
Não haveria uma saída menos dolorosa?
O fato de a Inglaterra ter uma economia
chegar ao governo Com o custo de vida aumentando, é
claro que as mudanças nos gastos pú-
cupada. São medidas muito difíceis,
não nego isso, mas, se nos ativermos
formas de se tornarem lhista, redução de custos para os ne-
gócios, eliminação de freios regulató-
muito aberta nos traz vantagens eviden-
tes, mas também nos torna mais vulne-
e manter todo mundo blicos e nos impostos se tornam con-
troversas. A maioria dos ingleses,
a elas e mantivermos a fleuma, estou
convencido de que levarão a um país
competitivos que não rios para as empresas, investimento
em pesquisas de ponta e novas tecno-
ráveis aos humores do mercado. Se não
tivéssemos anunciado os cortes, tenho feliz, atirando dinheiro contudo, entende que os trabalhistas
deixaram um legado terrível, uma ba-
mais próspero e justo.
fosse a manipulação logias verdes que precisamos adotar
para que sejamos não apenas o Velho
certeza de que neste exato momento as gunça que teremos de desfazer. Quem Como justificar sua radical mudança de Continente, mas uma região prepara-
taxas de juro estariam mais altas, as sobre cada problema. dera fosse o contrário. É muito mais posição em relação às anuidades esco- cambial. Agora, da para os desafios do futuro. Não va-
perspectivas de desemprego seriam pio- fácil chegar ao governo e manter todo lares?  Nós, os liberais-democratas, mos competir com os preços das eco-
res, haveria um senso de insegurança e
instabilidade ainda maior e os merca-
Não podemos nos dar mundo feliz, atirando dinheiro sobre
cada problema. Não podemos nos dar
não vencemos as eleições. Se os cida-
dãos queriam nossas políticas, deve-
já não tenho nomias emergentes. Mas podemos
continuar concorrendo em know-how,
dos internacionais estariam levantando
dúvidas muito sérias sobre a saúde ge-
a esse luxo√ a esse luxo. A pergunta, portanto, não
é “temos mesmo de adotar essas me-
riam ter eleito um governo liberal-
democrata. Não foi o que aconteceu.
tanta certeza√ inovação, serviços e excelência em
exportação.
ral da economia britânica. O país estava didas?” — porque a resposta inequí- Tampouco o Partido Conservador ga-
à beira do abismo de uma crise fiscal e voca é “sim” —, mas “como fazê- nhou maioria absoluta, o que impediu Quando o senhor vê países da zona do
nós o puxamos de volta no último ins- capacitação profissional, criando um lo?”. Eu passo o tempo inteiro expli- David Cameron de realizar muitos que a situação geral melhorou, a po- euro tendo de ser salvos do colapso fi-
tante. O plano de redução do déficit, em marco regulatório mais seguro para cando que nossas decisões são guia- pontos de seu programa, com os quais pulação vai reconhecer que fizemos a nanceiro por seus pares, comemora o
si, não vai trazer crescimento econômi- os bancos, promovendo a indústria e das pelo objetivo de realizar essas re- não concordamos. Ou se aceita que coisa certa para o país. Como políti- fato de a Inglaterra não ter aderido à
co. Mas, sem ele, a recuperação não vi- incentivando as exportações. formas da maneira mais justa possí- temos um governo baseado em acor- co, é tudo o que posso almejar. Com moeda única? Eu sempre defendi a
ria nunca. Os cortes são o primeiro pas- vel. Para o setor público, por exem- dos, ou se faz como os trabalhistas, o tempo, até mesmo os estudantes ideia de que a Inglaterra deveria ade-
so na jornada do crescimento, não um A reforma dos gastos públicos é uma plo, explico que quem ganha 21 000 descrevendo o compromisso com a perceberão que foi vantajoso para rir. Acreditava que uma política mone-
fim em si mesmos. oportunidade para repensar o papel libras (equivalentes a 56 000 reais) governabilidade como uma traição. eles ter acesso a empréstimos em tária única forçaria os países na zona
do estado? Devemos nos perguntar por ano ou menos receberá um au- Essa é uma postura infantil. Quanto à boas condições para pagar as anuida- do euro a encontrar outras formas de
O que mais ainda vai ser feito?  Além constantemente se o estado está mento, mas que os salários superiores questão do aumento das anuidades, des da universidade. se tornarem competitivos que não fos-
de reduzir o déficit fiscal, precisamos fazendo as coisas que deve fazer, serão congelados. Decisões difíceis, eu estava completamente isolado. se a manipulação cambial. Dessa ma-
lidar com o fato de o governo anterior ou se está extrapolando suas atribui- como o corte do auxílio dado às famí- Mesmo se tivéssemos feito uma coa- Qual é o papel dos mercados emergen- neira, seriam obrigados a ser eficien-
nos ter colocado numa situação de ções. O governo deste país tornou-se lias para cada filho, permitirão ao go- lizão com os trabalhistas, as anuida- tes para a recuperação econômica da tes dentro das regras liberais do mer-
grande endividamento. Isso ocorreu grotescamente centralizado nos últi- verno aumentar a faixa da população des aumentariam, porque eles tam- Inglaterra?  Imenso. A Inglaterra pre- cado. Agora, já não tenho tanta certe-
tanto no setor público como no priva- mos treze anos, sob a gestão trabalhis- isenta de impostos. No fim das con- bém defendiam essa medida. Agora, cisa atrair mais investimentos exter- za, por dois motivos. Primeiro, porque
do, em parte por causa da má admi- ta. Por isso, mesmo depois do atual tas, o peso das mudanças recairá mais em chocante hipocrisia, eles a criti- nos e criar um crescimento baseado os países-membros não cumpriram to-
nistração do mercado imobiliário, que programa de recuperação fiscal, ainda sobre os 10% mais ricos do país. cam. Para ser honesto, a única opção na exportação de produtos industriali- das as regras, principalmente as fis-
foi gerido como um cassino pelo Par- gastaremos, em 2015, o equivalente para a elevação da matrícula zados, menos dependente dos servi- cais, com as consequências desastro-
tido Trabalhista. Precisamos reorgani- a 41% do PIB em serviços públicos. David Cameron é o primeiro-ministro, das universidades seria reduzir drasti- ços financeiros. Para isso, teremos de sas que conhecemos. Segundo, por-
zar tudo isso e, em seguida, teremos Isso é quase 5% a mais do que quando mas quem recebe as críticas mais duras camente o número de jovens com exportar para os mercados em expan- que, com a fartura de dinheiro no sis-
de reequilibrar a economia. Isso sig- Tony Blair (ex-primeiro-ministro pelo programa de cortes do governo é o acesso ao ensino superior. Moralmen- são como o Brasil, a Índia e a China. tema bancário, muitos países confia-
nifica afastá-la da dependência do se- trabalhista) assumiu, em 1997. senhor, o vice. Valeu a pena fazer parte te, eu não poderia permitir que isso Para um país como o nosso, com lon- ram em booms artificiais e deixaram
tor de serviços financeiros ou bancá- Após os cortes, ainda teremos dessa coalizão?  Cumprimos até agora ocorresse apenas para me salvar do ga tradição em comércio exterior, es- de reformar sua economia. Com as re-
rios, concentrado em Londres, e me- 200 000 funcionários públicos a mais apenas nove meses de um mandato de constrangimento político. Medidas sa é uma oportunidade crucial. No ca- centes crises das dívidas soberanas, a
lhorar sua distribuição geográfica. Te- do que em 1997. Os números derru- cinco anos. David Cameron e eu deci- como essas são para o bem do país, so do Brasil, foram anos em que se zona do euro está fazendo o que deve-
mos uma economia muito desequili- bam os argumentos de quem gosta dimos deliberadamente que devería- a longo prazo. negligenciou uma relação que já foi ria ter feito no começo, ou seja, ater-
brada regionalmente. Alguns lugares, de pensar nos atuais cortes como uma mos ser muito honestos com a popula- muito forte no fim do século XIX e se estritamente às regras fiscais e pro-
como o distrito onde fui eleito, Shef­ destruição radical e ideológica do ção sobre todas as medidas difíceis A queda na popularidade causada pelas início do XX. Queremos mudar isso, mover reformas estruturais. Eu ainda
field Hallam, são quase totalmente estado. Não é nada disso. David que precisamos adotar. A tradição na reações adversas às ações do governo fortalecendo os laços comerciais, as acredito que a zona do euro terá um
dependentes do setor público. Para Cameron e eu estamos apenas conser- política inglesa é os governos ficarem ameaça seu futuro político? O melhor discussões estratégicas sobre questões futuro positivo, superando toda essa
diversificar a economia a longo prazo, tando o estrago deixado pelos últimos inventando factoides de orçamento em termômetro desse governo será a si- globais e a cooperação em temas situação. Isso é de grande interesse
iniciamos uma série de reformas, com governos trabalhistas, porque não orçamento. Gordon Brown (ex-primei- tuação econômica. Se, em 2015, nas específicos, como desenvolvimento, para a Inglaterra. Mas certamente nos-
investimentos em infraestrutura e em havia outra opção. ro-ministro trabalhista) fazia isso o próximas eleições, ficar demonstrado ambiente e energia. Estamos entrando so governo não vai aderir ao euro. ß
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