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O OLHO DA RUA: AS CRÔNICAS URBANAS

DE WILL EISNER E JOÃO DO RIO

Flavio Mota de Lacerda Pessoa

doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, EBA, UFRJ,


Rio de Janeiro, Brasil.

RESUMO

A partir do final da década de 1970 Will Eisner (1917-2005) passou a se dedicar


exclusivamente a trabalhos autorais, publicando uma série de obras como "Um contrato com
Deus", "O edifício" e "NY, a grande cidade". São romances e crônicas na linguagem da arte
sequencial, mergulhadas no cotidiano acelerado da metrópole. Suas histórias se debruçam sobre
os problemas sociais urbanos, as distinções de classe, a intensificação da desigualdade social, a
miséria e a violência. Já nos primeiros anos do século XX, João do Rio, pseudônimo do jornalista
carioca Paulo Barreto (1821- 1921) assinava as crônicas de "A alma encantadora das ruas", onde
expunha o mundo das sombras da cidade, a miséria dos barracos, cortiços e pensões. Jogava luz
sobre tudo aquilo que o Estado e a sociedade se esforçavam em esconder.
Essas obras motivaram o paralelo estabelecido aqui, elegendo para tal as crônicas de “A
alma encantadora das ruas” de João do Rio e as crônicas gráficas de Will Eisner, em “NY, a grande
cidade”. O estudo tem em vista a análise do professor Antônio Edmilson Rodrigues dedicada à
obra de João do Rio. Para as análises gráficas, encontra-se amparo nas observações do próprio
Eisner, em seus livros “Quadrinhos e Arte Sequencial’ e “Narrativas gráficas”, bem como as
análises semióticas de Umberto Eco sobre histórias em quadrinhos. A partir deste aporte teórico,
procuro traçar relações entre as linguagens verbais e gráficas desses dois ícones da crônica urbana.
Além da temática em comum, o escritor brasileiro e o quadrinista nova-iorquino compartilhavam
um olhar semelhante sobre a urbe. João do Rio e Eisner jogam luz sobre essas realidades sociais,
focalizando as dificuldades da solidão e da miséria urbana

PALAVRAS-CHAVE: Will Eisner, João do Rio, crônicas urbanas

ABSTRACT

From late 1970´s Will Eisner (1917-2005) has devoted his efforts exclusively to original
works, publishing a set of works that included “A contract with God”, “The Building” and “NY, Big
City”. They are novels and chronicles in sequential art language, plunging his pen into the fast beat
of the everyday life of the metropolis. His stories lean on social urban problems, social class
differences, increasing social inequality, misery and violence. In the rise of twentieth century, João
do Rio, pseudonym of carioca journalist Paulo Barreto (1881-1921), wrote chronicles assembled in
the book “The enchanting soul of the streets”, where he exposed the hidden side of the city, the
misery that lurke through its shacks, crumbling buildings and destitute boarding houses. He
through light on things that government and society thought best to hide.

These works provoked the parallel established here, choosing João do Rio´s“The enchanting soul
of the streets” and Eisner´s “NY, the Big City”. It has roots in the analysis of Antônio Edmilson
Rodrigues about João do Rio and the observations of Eisner himself registered in his books “Comics
and sequential art’ and “Graphic Storytelling and Visual Narrative”, plus the semiotics views of de
Umberto Eco and Antônio Pietroforte about comics. From this theoretical contribution, I attempt
to establish relations between verbal and graphic languages of them. Beyond the common subject,
both the brazilian writer and the new yorker comic artist shared a similar view about their cities.
João do Rio and Eisner shed a light on these social realities, laying emphasis on the hardship of
solitude and urban misery.

KEY-WORDS: Will Eisner, João do Rio, urban chronicles

CORPO DO TRABALHO

INTRODUÇÃO
Em 1863 Charles Baudelaire publicou um conhecido ensaio no Le Figaro. Intitulado
“O pintor da vida moderna”, reivindicava uma nova estética à sociedade moderna. Volta
os olhos para o que considerava a mais genuína manifestação artística da vida moderna e
agitada dos grandes centros urbanos. Baudelaire declara toda a sua admiração pela
representação ágil do ritmo acelerado das grandes cidades, pela arte efêmera dos artistas
da imprensa, enaltecendo principalmente ilustradores como Honoré Daumier e Constantin
Guys1. O ensaio do poeta francês viria a 7ser referência canônica para a noção de
modernidade nas artes visuais e na literatura, estabelecendo novos valores estéticos à
modernidade. “Admira a eterna beleza e a admirável harmonia da vida nas capitais (...).
Contempla as paisagens da grande cidade, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou
batidas pelas lufadas de sol.” (DuFILHO, 2010, p.105-139) O artista é um observador, um
flâneur, que registra suas impressões através do olhar poético, que demora-se na

1 Constantin Guys, (-), foi ilustrador, redator e diretor gerente da edição francesa de Illustred London News,
Honoré Daumier (1808-1879), um dos nomes mais conhecidos da ilustração e do desenho de humor francês
no século XIX fez charge política, que o levou à prisão, e humor de costumes, consolidando sua notoriedade
nos semanários Le Charivari e La Caricature.
contemplação, diante da multidão apressada. Observa detalhes que a todos passam
despercebidos.
Baudelaire Considera Daumier ou Guys, artistas-repórter, que retratam a vida
cotidiana, seus costumes, situações ou conflitos típicos de uma época. O próprio
Baudelaire incorpora o flâneur quando publica seus poemas em prosa, registros de
observações dos flagrantes da Paris, que vive as reformas promovidas pelo prefeito
Georges-Eugène Haussmann. Em O Spleen de Paris, o poeta captura o efêmero poético da
cidade-luz.
Nesse sentido, vamos perceber uma perfeita sintonia e continuidade desta visão
de arte na defesa do jornalismo literário por parte do escritor Paulo Barreto, que começa a
publicar suas primeiras crônicas da cidade, sob o pseudônimo artístico João do Rio, desde
os primeiros anos do século XX. Na sua definição do termo “flanar”, na crônica “A rua” que
abre a edição organizada por Raul Antelo (JOÃO DO RIO, 1997) :

O que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e


comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por
aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, [...] Flanar é
a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser
artístico. [...] E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da
inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação. ( JOÃO DO
RIO, 1997, p.50-53)

Tendo em vista a reflexão de João do Rio, vamos esboçar uma análise comparativa
com uma outra manifestação artística, bem distinta, de um conhecido “flanêur”
americano. NY- a vida na grande cidade é uma coletânea de historietas em quadrinhos e
breves crônicas gráficas, resultado do olhar poético do quadrinista nova-iorquino Will
Eisner sobre a cidade de Nova York entre as décadas de 1960 e 80 2. No intuito de
estabelecer alguns eixos comparativos entre as obras, vamos analisar estratégias
narrativas e temáticas semelhantes. Quando João do Rio define o flanêur em sua
ociosidade, que “perambula com inteligência”, que contempla o espetáculo da rua, que
observa atento ao que a todos escapa, narrativas poéticas de Eisner parecem ilustrar essa

2 Eisner não deixa claro nesta obra, o período histórico representado.


ideia perfeitamente. Quando o cronista carioca advoga que as ruas têm alma, quando
compara a “vida” de uma rua à vida humana, suas reflexões nos remetem também às
conhecidas graphic novels de Eisner, “O Edifício” e “Avenida Dropsie”. Mais
especificamente, é ao movimento das pessoas e ao uso desses espaços que cronista
textual e gráfico se dedicam. Ambas são visões românticas, apaixonadas pela rua, em suas
dores e prazeres, em seus encantos e no que elas tem de lúgubre, sujo, perigoso e
opressora.

OS AUTORES E AS OBRAS SELECIONADAS

O escritor João Paulo Alberto Coelho Barreto nasceu à Rua do Hospício 3, no centro
da cidade do Rio de Janeiro, no dia 5 de agosto de 1881, filho do professor do Colégio
Pedro II, o dr. Alfredo Coelho Barreto” e da senhora Florência Cristóvão dos Santos
Barreto. “Já o cronista João do Rio, que não é filho deles mas de Oscar Wilde, nasceu,
entretanto, quando Paulo Barreto tinha 22 anos, a 26 de novembro de 1903, na página 1
da Gazeta de Notícias” (ANTELO, Raul, 1997, p.13), em meio às reformas urbanas de
Pereira Passos.
Filho de um casal de judeus imigrantes do Império Austro-húngaros, William Erwin
Eisner nasceu no Brookling a seis de março de 1917 e seria no período da depressão
americana que Eisner se tornaria ilustrador ao ingressar o quadro da revista WOW What a
Magazine! em 1936 (SCHUMACHER, 2013). Com o fim da revista naquele mesmo ano,

Eisner se tornaria sócio de um estúdio de quadrinhos, a Eisner-Iger 4. Em sua longa


trajetória profissional, Will Eisner promoveria uma revolução na história dos quadrinhos,
reivindicando uma postura mais autoral, artística e menos comercial, que predominava na
indústria e no mercado de histórias em quadrinhos destes anos de depressão.
Selecionamos para este estudo, algumas passagens de duas das obras das mais
relevantes do jornalista brasileiro e do quadrinista americano. Trata-se de “A alma

3 Atual Rua Buenos Aires.


4 Sociedade com o editor do extinto periódico, Jerry Iger (SCHUMACHER, 2013)
encantadora das ruas” e “Nova York, a vida na grande cidade”, ambas edições, as mais
recentes das obras. O primeiro livro, uma coletânea de crônicas e reportagens publicadas
entre 1904 e 1907, na Gazeta de Notícias ou na revista Kosmos, seria editado pelo próprio
em 1908. A presente edição, da Companhia das letras, organizada e prefaciada por Raul
Antelo, é de 1997. Para Antônio Edmilson Rodrigues, João do Rio transforma a cidade em
personagem, “literaliza” o meio urbano. Desse modo, “o poeta investe no conhecimento
profundo da cena urbana” (RODRIGUES, 2000, p.41). Já a obra em quadrinhos de Eisner
teve uma primeira edição brasileira publicada pela Martins Fontes, em 1990. Em 2009, a
Companhia das Letras lançou uma renovada e caprichada edição, incluindo outras
histórias, algumas então inéditas, e outras que já haviam sido publicadas em outros
formatos no Brasil.
De acordo com Carlos Patati e Flavio Braga, Eisner iria estabelecer o termo graphic
novel em nome de uma narrativa que sugerisse mais do que um gibi, termo mais
associado a um produto descartável e palatável. “Na tradição européia dos anos 70,
tratava-se de trabalhar textos e desenhos na direção de uma expressividade mais
assumidamente pessoal.” (PATATI e BRAGA, 2006, p.89). Eisner se lança numa experiência
de narrativa muito diferente do que já se havia produzido. As narrativas são breves
flagrantes, descompromissadas com a necessidade de tramas ou enredos elaborados,
contentam-se em mostrar uma curiosidade banal e cotidiana. São formas narrativas que o
editor e quadrinista Denis Kitchen, bem como o escritor e quadrinista Neil Gailman 5,
definem como vinhetas. Para o primeiro,
[...] os outros componentes deste volume, Nova York, a grande
cidade e caderno de tipos urbanos, não são exatamente graphic novels,
nem mesmo pequenas histórias gráficas. Em vez disso, constituem
sobretudo em vinhetas breves e incisivas, baseadas nas observações de
Eisner sobre a vida real, ou pequenas ficções que ele construiu ao redor
de cenários habituais das ruas da cidade _ hidrantes, degraus, grelhas de
bueiros. Os elementos que se somam em Nova York, a grande cidade
foram originalmente uma série publicada na revista The Spirit Magazine
(editora Kitchen Sink Press). O Caderno de tipos urbanos, que se seguiu,
foi inicialmente baseado no que Eisner chamava de ‘cenas deletadas’ de
‘um acúmulo de rascunhos, notas e pequenas ilustrações produzidas para

5 Neil Gailman assina a introdução na edição de 2009. (EISNER, 2009)


graphic novels [e] parte da pesquisa que [ele] fez para A grande cidade.
(KITCHEN, 2009, p. 13)

A NARRATIVA POÉTICA DE JOÃO DO RIO E WILL EISNER

O jornalismo literário de João do Rio e as reportagens gráficas de Will Eisner


aproximam-se pela poética narrativa. Algumas dessas “vinhetas” não ocupam mais do que
uma ou duas páginas. É um flagrante do efêmero, daquilo que é absolutamente banal para
o olhar incauto e apressado. Retomando uma transcrição acima “ [...] haveis de pasmar da
futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação” ,
veremos que embora relativamente extensas, cada uma de suas crônicas de A alma
encantadora das ruas são formadas por breves registros em torno de um determinado
tema, sejam as religiões, o carnaval, as profissões informais, os músicos de rua ou
estivadores.
Em que pese as óbvias diferenças entre a linguagem verbal e visual, a brevidade e a
poética das duas narrativas as aproxima. Esta brevidade traz em sua essência uma escolha
narrativa com o fim de sugerir uma reflexão. “E de tanto ver o que os outros quase não
podem entrever, o flâneur reflete”. (JOÃO DO RIO, 1997, p.53). Em “NY - a vida na grande
cidade” são inúmeros os flagrantes de momentos simples e banais representados pelo
artista. É através da contemplação da futilidade que o artista convida o leitor à reflexão,
quando ele focaliza, por exemplo, um hidrante (Figura 1), que ora serve de banco para o
descanso da senhora carregada de compras, ora serve de apoio para o cavalheiro amarrar
o cadarço do sapato, mais adiante vai atrair o olfato apurado de um cachorro de rua, ou
serve de ponto marcante para alguma brincadeira de crianças. Trata-se de uma sequência
de imagens independentes e aleatórias, cuja ordem pode ser trocada à vontade, sem que
isso prejudique nossa compreensão do que é narrado. Trata-se de uma percepção, um
flagrante que chama atenção do artista.
A perspectiva é a de quem está de pé, na rua, próximo ao meio-fio, olhando para a
calçada. Em “Quadrinhos e arte sequencial”, espécie de manual para elaboração de
narrativas em quadrinhos, Eisner explica que a “função primordial da perspectiva deve ser
a de manipular a orientação do leitor para um propósito que esteja de acordo com o plano
narrativo do autor”, de modo a produzir nele uma gama de diferentes emoções (EISNER,
1989, p.89). “Parto da teoria de que a reação da pessoa que vê uma determinada cena é
influenciada pela sua posição de espectador” (ibidem).
Figura 1: No meio fio, a sequencia narrativa focaliza um objeto banal
para mostrar as diferentes formas de interação entre os diferentes tipos que constituem a urbe.
EISNER, 2009, p. 87
“CULTURA JANELEIRA”
O modo como jornalista e quadrinista refletem sobre o significado da janela na
civilização urbana é uma metáfora que se apresenta de modo muito explícito nas
narrativas dos dois autores. Na introdução à edição mais recente de A alma…, Raul Antelo
observa que “a cultura urbana e, em especial, a carioca, é portanto, janeleira”. Antelo
lembra que “muito antes de a televisão ser a janela por onde se vê mundo, a janela era a
moldura deste novo e despótico regime visual. De olhar e ser olhado”. (ANTELO, 1997, p.
11) Em passagens destacadas pelo autor, de crônicas que infelizmente não se encontram
nesta edição, João do Rio assim discorre sobre esta “cultura janeileira” peculiar à cidade
do Rio de Janeiro.
O carioca vive à janela. Você tem razão. Não é uma certa classe, são todas
as classes. Já em tempos tive vontade de escrever um livro notável sobre
o
“lugar da janela na civilização carioca”, e então passei a cidade com a
preocupação da janela. É de assustar. Há um bairro elegante, o único em
que há menos gente às janelas. Mesmo assim, em trinta por cento das
casas nas ruas mais caras, mais cheias de Villas em aplos parques, haverá
desde manhã cedo gente às janelas. [...] Passar de bonde pelas ruas da
Cidade Nova desde as sete horas da manhã é ter certeza de ver uma
dupla
galeria de caras estremunhadas, homens em mangas de camisa ou
pijama,
crianças, senhoras. [...] Durante muito tempo, preocupei-me. Qual o
motivo dessa doença tão malvista no e pelo estrangeiro? Que faz tanta
gente debruçada na rua Bomjardim, como na rua General Polydoro ou no
canal do Mangue? Até hoje ignoro a causa secreta. Mas vi ser à janela
que
o Rio vive. (JOÃO DO RIO, 1912 APUD ANTELO, 1997, p.10-11)

Voltando à Nova York de Eisner, encontraremos breves narrativas que nos levam a
perceber que a “cultura janeleira” não se restringiu à cidade de João do Rio. Uma vista
para a Janela (figura 2), por exemplo, que começa com uma senhora de meia idade
empurrando a cadeira de rodas de um senhor idoso e o larga em frente à janela, onde ele
vai passar o dia inteiro entretido com o espetáculo da vida cotidiana. Dali, ele só se afasta
para ir à geladeira apanhar um lanche, que vai saborear novamente em frente à sua
janela. A cada quadrinho, imagens ou onomatopeias sugerem ao leitor tudo aquilo que
chama atenção dos olhos do idoso. Sons de acidente seguido por xingamentos, uma
conversa entre cumadres em outras janelas, um casal que discute e gesticula
agressivamente. Quando um operário trabalhando na fachada de um edifício, alcança a
janela da amante, mas logo é forçado pela chegada do marido a correr de volta à janela, a
cena arranca gargalhadas do velho espectador. Sua “programação” se encerra com uma
vidraça sendo atingida em cheio por uma bola de baseball, no que surge rapidamente o
rosto enfurecido de uma senhora, apontando o estrago. Satisfeito, o senhor faz mais uma
passagem pela geladeira e, já caída a noite, vai assistir à televisão.
Figura 2 e 3: Uma Vista para a vida mostra como o espetáculo da vida real
pode ser um entretenimento mais interessante do que a fantasia.
EISNER, 2009, p.106-107.

Eisner nos mostra a janela bem de frente, à mesma altura dos olhos do velho, mas
do ponto de vista de quem está atrás dele, um pouco mais afastado da janela, mas o
suficiente para poder contemplar as cenas que entretém o idoso. Uma primeira diferença
entre o relato sobre os “janeleiros cariocas” de João do Rio para a narrativa de Eisner está
justamente na perspectiva. João do Rio observa os janeleiros, andando pelas ruas. Aqui,
Eisner “situa” o leitor em uma posição em que ele não seria percebido. A perspectiva
novamente fixa, aproxima-se ou distancia-se da janela e do idoso espectador. No mais,
ambas as narrativas observam a contemplação desocupada e de certo modo fortalecem a
ideia de que o cotidiano da grande cidade nos oferece diariamente o “espetáculo da vida
real”. Em Eisner, o quadrinho final encerra com humor sua crônica sobre a janela,
exaltando o espetáculo da rua, em detrimento da produção dramatúrgica. Ao fundo o céu
escuro e os prédios em silhueta, sugerem a impossibilidade da observação. Só então, que
impossibilitado de curtir o seu entretenimento preferido, o senhor dará uma chance à
televisão. É o espetáculo da “realidade” levando a melhor sobre a fantasia.
Algumas diferenças também são notadas. Enquanto João do Rio faz questão de
descrever e identificar as ruas por onde vai conduzindo o leitor, Eisner preferiu falar das
ruas de forma anônima. A referência à Nova Iorque, no entanto, é inequívoca, bastando
observar os inconfundíveis ícones da cidade, na arquitetura das fachadas, nas portarias,
sótãos e escadas de incêndio, que nos remete imediatamente à grande metrópole
americana.
Mas em todos os casos, são os tipos que passam e interagem com esses elementos
que interessam. A investigação incide mais sobre essa extensa gama de usos e tipos que
constituem os habitantes da grande cidade. Nesse aspecto, as obras voltam a se
aproximar. Na crônica A Rua, João do Rio defende que as ruas tem alma. Recorre não só à
história de cada uma, mas aos transeuntes e tipos que as frequentam.

Vede a Rua do Ouvidor, é a fanfarronada em pessoa, exagerando,


mentindo, tomando parte em tudo, correndo os taipas das montras à
mais leve sombra de perigo. Esse beco, inferno da pose, da vaidade,
da inveja, tem a especialidade da bravata. E, fatalmente oposicionista,
criou o boato, o ‘diz-se…’ aterrador e o ‘fechamento’ prudente. (JOÃO
DO RIO, 1997, p.56)
Salvo uma rara exceção, Eisner não aparece na maioria de suas narrativas, como o
faz costumeiramente João do Rio. Ao se ausentar, parece oferecer ao leitor a
oportunidade de olhar através de seus olhos. Fortalece essa ideia através do recurso de
adotar o mesmo plano fixo focalizando um determinado objeto do meio urbano,
observamos a cada quadro, passagens temporais indeterminadas, observando sempre
diferentes personagens e tipos, passando e interagindo com o objeto em questão, seja um
hidrante, um poste de luz, ou uma lata de lixo. Muitas vezes a narrativa nos leva apenas à
reflexão sobre esta mistura de tipos que habitam o centro nervoso de uma metrópole. Na
breve exceção que mencionamos anteriormente, Cadernos de tipos urbanos, Eisner se
insere nos quadros de uma forma que aproxima o leitor de seu método de observação. Ao
se mostrar desenhando na rua, de certo modo, reforça ao leitor a ideia de ter lido, em
todo o restante da obra, os registros das observações do artista flâneur.
No entanto, Eisner ainda guarda algum mistério sobre sua identidade, ao não se
mostrar de frente ou de perfil em momento algum. Sempre a visão de quem está
ligeiramente atrás do desenhista, quase observando sobre seu ombro. Esta percepção nos
conduz à análise semiótica De Umberto Eco a partir da análise das histórias em quadrinhos
de Steave Canyon, de Milton Caniff, que conheceu um estrondoso sucesso nos Estados
unidos do pós-guerra. No caso, Eco levanta questões estéticas verificando o quanto estão
a serviço da narrativa, que por sua vez, emite uma série de transmissões de valores
ancorados por uma clara visão ideológica, dentro de uma lógica de mercado que não
permite ou põe em circulação um produto que questione os padrões estabelecidos e os
valores normativos de uma sociedade capitalista.
Mas esses mesmos códigos visuais apontados por Eco também pode servir para
refletirmos sobre uma produção que circula numa lógica de mercado muito diferente dos
tempos da guerra fria. Se na primeira página da série Steve Canyon, o personagem só é
revelado nos quadrinhos finais, de modo a ganhar a atenção do leitor, instigando sua
curiosidade com informações homeopáticas, quadro a quadro, Eisner evita mostrar-se de
frente, dando uma brecha para a imaginação do leitor. A evidente diferença é que na
linguagem mais poética, não há algo a ser revelado. O cartunista permite-se apenas deixar
ao leitor o incômodo da curiosidade. O incômodo que leva à reflexão. Recordamos aqui, a
já mencionada postura profissional de Eisner em defesa de um quadrinho autoral, que
pudesse libertar-se das amarras do mercado.
De certo modo, Eisner já estava trabalhando intensamente em novas histórias de
Spirit, seu mais famoso personagem, quando Steave Canyon começava a ser publicado. A
diferença é que Eisner estava cada vez mais sofisticando as histórias do personagem, a
ponto de muitas vezes torná-lo um mero figurante, em histórias sobre questões menos
fantasiosas e mais humanas e palpáveis. Nota-se que a breve passagem narrativa é
permeada por comentários que pouco se referem ao que é mostrado, o que podemos
compreender uma dupla narrativa nessas páginas. A textual nos conduz a reflexões do
artista sobre o tipo urbano, de modo geral, e a experiência de se viver numa grande
metrópole. Nas imagens, um dos tipos registrados vai ao encontro do artista e interage
com ele. Enquanto o recurso metalinguístico narra a experiência do artista desenhando na
rua e interagindo, Eisner complementa a descrição dessa experiência com suas
observações e devaneios pessoais sobre esta vida urbana.
Nesta breve crônica sobre os tipos urbanos, Eisner na verdade, discorre sobre o
tipo urbano de modo geral, não o específico. Não esmiúça os variados tipos como faz
frequentemente João do Rio e como promete o título da crônica em quadrinhos. No texto,
compara a vida na grande cidade com a sobrevivência numa selva e sublinha a
necessidade de se adquirir “a astúcia das ruas” para conseguir sobreviver nos centros
urbanos.
Figura 4: Caderno de tipos urbanos, ao se representar nos desenhos, Eisner aproxima o leitor de seu método e
aumenta a credibilidade de suas narrativas enquanto flagrantes urbanos. Primeira página.
EISNER, 2009, p. 238-239
Figura 5: Caderno de tipos urbanos, ao se representar nos desenhos, Eisner aproxima o leitor de seu método e aumenta
a credibilidade de suas narrativas enquanto flagrantes urbanos. Segunda página.
EISNER, 2009, p. 238-239
Figura 6: Caderno de tipos urbanos, ao se representar nos desenhos, Eisner aproxima o leitor de seu método e
aumenta a credibilidade de suas narrativas enquanto flagrantes urbanos. Terceira página.
EISNER, 2009, p. 238-239
Esta percepção de cidade como selva também é compartilhada pelo jornalista do
Rio. Ao descrever sua conversa com um amigo, num passeio pelo mercado do cais, João do
Rio descreve a aproximação de um cigano que insistia na venda de uma série de produtos
dos quais exagera no elogio da qualidade oferece em troca de um custo supostamente
módico. “Admiras-te aquele negociante ambulante?” indaga o poeta ao outro. “Admirei
um refinado “vigarista”... responde o amigo zombeteiro. Mas para o poeta, “a moral é
uma questão de ponto de vista.” Defende então que o cigano “faz parte de um exército de
infelizes, a que as condições de vida ou do próprio temperamento, a fatalidade, enfim,
arrasta muita gente.”
Na mesma crônica, João do Rio menciona uma série de “profissões” oportunas,
mostrando que a picaretagem de alguns personagens mais fortes e estabelecidos também
pode gerar um exército de picaretas. Vejam os caçadores de gatos de rua. Matavam,
tiravam a pele e vendiam aos restaurantes, que serviam aos fregueses fazendo as vezes de
coelho, ou os “selistas”, que procuravam selos de charutos importados e repassavam às
tabacarias que vendiam uma marca por outra mais cara, de modo que a pilantragem dos
proprietários desses estabelecimentos estimula as demais. A miséria imposta à população
acaba por “atribuir” a estes expedientes, a pecha de “astúcia das ruas”, lembrada pelo
cartunista americano.
Eisner, por sua vez, observa a força da cidade diante do indivíduo de modo mais
explícito. Muitas vezes é a força da multidão que retém o indivíduo atrasado,
espremendo-se no aglomerado de transeuntes à sua frente. Quando flagra os
movimentos dos pedestres no sinal, por exemplo, (figura 3), destaca a fragilidade de duas
crianças tentando atravessar uma rua movimentada. Uma massa de veículos parados tão
ansiosos diante do sinal vermelho, obriga os pequenos a retornar correndo pra calçada no
primeiro piscar da luz verde. Novamente, a narrativa do efêmero nos conduz sobre a
efemeridade de nossa vida, nossos hábitos, bem como sobre nossa insignificância diante
da cidade. É a cidade que engole o indivíduo.
Figura 4: Em Semáforo, Eisner sublinha o contraste entre a fragilidade do indivíduo diante da força das massas
humanas e das massas de veículos e blocos de concreto da cidade grande.

EISNER, 2009, p.95.

Aqui são duas forças contra as duas crianças: o grupo de pedestres que parecem
formar uma massa homogênea no primeiro quadrinho, à frente dos dois; e a massa de
veículos que, em velocidade também parecem se fundir em uma massa sólida e
ameaçadora. Uma narrativa sobre esse contraste de forças, sobre a fragilidade individual
diante de imensos blocos de concreto e a força de multidões, que foram tema de várias
outras crônicas visuais de Eisner. Já em João do Rio, essa força da cidade sobre o
indivíduo, como vimos, é abordada através de uma representação um tanto diversa, mais
próxima, mais particular. O repórter carioca intervém com mais frequência em suas
narrativas. Curioso, ele entrevista seus personagens, quer informações sobre suas
condições de vida, saber quanto tempo trabalham, como se alimentam e qual sua
remuneração.
João do Rio e Eisner compartilham muitas ideias sobre os diversos fenômenos do
cotidiano urbano. Interessante notar tantas proximidades em representações culturais de
natureza tão diferentes, que tratam de duas cidades igualmente distintas, registradas em
recortes históricos consideravelmente distantes. A bem da verdade, as narrativas de
Eisner frequentemente são conduzidas de forma a deixar o período histórico em aberto. Já
na crônica de João do Rio, seu contexto histórico está sempre presente. O que nos
importa, afinal, é que as narrativas de ambos apresentam alguns componentes que
aproxima as duas visões de mundo.

NOTAS CONCLUSIVAS
Cabe aqui, então, retomarmos o ensaio de Baudelaire, que reivindica novos valores
estéticos à vida moderna, para percebermos o quanto este breve estudo procurou
perceber essas manifestações em sua característica mais marcante, de observação poética
sobre suas respectivas cidades. Captar o efêmero, e perceber na futilidade, as mais
diversas dimensões humanas, sociais e culturais. Nota-se desta forma, o quanto o modelo
proposto por Baudelaire estava longe de se esgotar mais de cem anos após o referido
ensaio. João do Rio e Will Eisner, cada um a seu modo, desenvolvem suas trajetórias
artísticas imersos na estética da urbanidade de modo adequado ao reivindicado pelo
poeta francês no Figaro de 1863. Observam o movimento e hábitos dos personagens
urbanos, em seu caráter coletivo e ao mesmo tempo, individual e único. Contemplam
seus desejos e suas fragilidades diante de um paradoxal isolamento em meio à multidão
que se arrasta mecanicamente na engrenagem da vida cotidiana. Ambos demonstram-se
também críticos dessa mesma cidade pela qual declaram tamanha admiração e motivo de
vida.
O breve espaço aqui à disposição não nos permitiu, infelizmente, estendermos a
discussão para analisar tantas outras características das referidas obras, de enorme
relevância em seus respectivas naturezas artísticas. Archie Goodwin e Gil Kane em artigo
para uma edição da revista Graphis, especial sobre a história das histórias em quadrinhos 6,
lembram que a cidade de Nova Iorque já havia inspirado inúmeras narrativas em
quadrinhos com temática sobre a cidade, mas é na obra de Eisner que “há espaço para
sombras e becos envoltos em névoas, por onde transitam personagens furtivos, em fuga
ou perseguição”7. Nesse sentido, João do Rio parece mergulhar até mais fundo no que
podemos identificar por “personagens furtivos” dos becos, ele investiga e entrevista a
condição de vida de inúmeros personagens oriundos das classes mais miseráveis e
subalternas da cidade. Temas recorrentes também os aproximam. Os músicos de rua, os
contrastes sociais, o retrato da miséria, dos menos afortunados, a cidade como opressora.
Resta concluirmos, lembrando o vigor e relevância dessas duas obras. São
representações culturais de grande peso e alcance, que manifestam uma permanência de
valores durante um extenso período histórico, tal como um novelo que nos leva por um
eixo histórico que nos conduz à Baudelaire.

REFERÊNCIAS

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Companhia das Letras, 1997.

ECO, Umberto. Apocaplípticos e integrados. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987.

EISNER, Will. Nova York: a vida na grande cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

6 Graphis, internacional journal of graphic art and applied art, n. 159, vol.28, 1972.
7 Livre tradução para “ [...] but in a Will Eisner it is a place of shadow and mist-shrouded alleyways through
wicht furtive characters slink and stalk, [...]” (GOODWYN e KANE, 1972, p.59)
Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

GOODWIN, Archie e KANE, Gil. Comic Books. In: Graphis, Zurich, nº159, vol. 28,
p.6, 1972.

JOÃO DO RIO, A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das letras, 1997.

PATATI, Carlos e BRAGA, Flavio. Almanaque dos quadrinhos. Rio de Janeiro:


Ediouro, 2006.

PIETROFORTE, Antônio. Análise do texto visual. Rio de Janeiro: Editora


Contexto, 2007.

RODRIGUES, Antônio Edmílson. João do Rio. A cidade e o poeta: o olhar de flâneur na belle
époque tropical. Rio de Janeiro: FGV, 1997.

SCHUMACKER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. Rio de Janeiro: Biblioteca
Azul, 2013.

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