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Atividade 1 - Questão 2

Turma: Política I - D Nome: Ricardo Leonam Borges Cartão: 00218297

Maquiavel escreve O Príncipe (1532) em um contexto de transformação


profunda no continente europeu, onde as grandes explorações marítimas e
consequente necessidade de financiamento desses empreendimentos (dentre
outros processos que extrapolam nosso escopo) transferiram o protagonismo da
igreja católica para os principados e aceleraram processos de unificação nacional.
Ao apresentar um manual sobre a conquista e manutenção do poder do príncipe, por
meio de aconselhamentos baseados em uma reconstrução histórica dos
principados, o livro se tornou uma referência para a teoria política moderna e
contemporânea. Atualmente, Maquiavel foi absorvido pela cultura popular como
sinônimo de crueldade.

Logo no início do capítulo XV d’O Príncipe, com base em uma premissa de


que a natureza humana é, via de regra, volúvel, Maquiavel aponta que uma tentativa
de prescrição do exercício do poder com base integralmente na bondade estaria
fadada à derrota “em meio a tantos que não são bons” (p. 60)1. Entretanto, uma
leitura da obra pode apontar uma abordagem baseada em uma lógica que busca
estabilidade, um equilíbrio de forças. Quando trata, por exemplo, da liberdade, esta
assumida como sinônimo de irresponsabilidade fiscal, Maquiavel aponta que o
príncipe deve ser parcimonioso e, mesmo que passe uma imagem de “miserável” em
um primeiro momento, estaria evitando ter de depositar sobre seus súditos uma
carga tributária impopular para reparar as irresponsabilidades anteriores. Por outro
lado, no capítulo XVII, ao tratar da crueldade e da piedade, o autor resgata a ideia
da natureza humana ingrata e volúvel e aponta que é melhor para o príncipe ser
temido que amado, pois:

[...] os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça


amar do que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por um
vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em cada
oportunidade que a eles convenha; mas o temor é mantido pelo receio de
castigo que jamais se abandona (p. 65).

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Numeração de páginas conforme arquivo disponibilizado em PDF no Moodle.
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Vale ressaltar que, de fato, a melhor opção é apresentada como sendo a
junção das duas coisas, ou seja, ser amado e temido, leitura que pode questionar a
suposta crueldade maquiavélica, ainda que Maquiavel mesmo aponte essa como
uma tarefa difícil de ser alcançada. Nessa linha, outra observação importante é que,
diferente da junção entre a temência e o amor, a coexistência entre a temência e a
fuga do ódio é possível, ou seja, o príncipe deve ser temido, mas não odiado. Existe
um limite estabelecido no “fazer-se temer”, sendo esse limite estabelecido, por
exemplo, pelos bens e mulheres de seus súditos que não devem ser violados.

Diante destes exemplos (dentre outros), quais sejam, a rigidez fiscal e a


busca pela temência de seus súditos destituída de ódio, podemos observar as
noções de virtú e fortuna para Maquiavel. A fortuna, que não deve ser confundida
com riqueza, mas sim, concebida como sorte, diz respeito às adversidades (ou
mesmo às situações favoráveis) que fogem em parte do controle dos homens. A
fortuna é como o rio que sobe na cheia, devastando as comunidades que habitam à
sua margem. Dotados de virtú, são os que se anteciparam construindo diques e
canais. A virtú, que não deve ser confundida com bondade ou benevolência, seria
justamente o atributo do príncipe que é capaz de se adaptar às circunstâncias,
sabendo ser impetuoso ou cauteloso conforme necessário. Vale lembrar, entretanto,
que, para Maquiavel, apesar de ambos (o que age por ímpeto e o que age por
cautela) poderem alcançar felicidade em suas ações, é mais prudente ser impetuoso
que cauteloso, pois às vezes é possível e necessário “dobrar” a fortuna, que é
“amiga” dos jovens, mais audaciosos por essência (p.100).

Como observado, uma leitura atenta d’O Príncipe deve assumir sua premissa
de que os homens têm uma natureza volúvel e que o governante não deve
simplesmente agir de maneira cruel, mas saber se adaptar às circunstâncias.
Entretanto, o fato de Maquiavel ter como pretensão escrever sobre governos que
existem e não que deveriam existir, por si só, não atesta uma “não crueldade”. Isso
se dá, acredito, porque a contraposição entre “cruel” e “realista” se apresenta como
uma contraposição ora popular, ora falsa. A caracterização dessa contraposição
como popular, entretanto, não deve ser assumida como uma crítica ao conhecimento
formulado pelas classes populares. O popular utilizado aqui, carrega uma crítica ao
empreendimento bem sucedido do sistema capitalista (hoje materializado pelos
interesses econômicos de grandes corporações internacionais) que consiste em
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sublimar a autopercepção dos indivíduos como pertencentes a uma estrutura social,
desligados das dinâmicas políticas, o que ocorre a partir da própria invenção do
indivíduo como concebemos hoje (dotado de liberdade e responsável por sua
própria fortuna). Neste mundo supostamente livre e atomizado, existe margem para
tomadas de ação tanto cruéis, quanto realistas, a depender da boa índole dos
indivíduos.

Quando localizada em um contexto de centralidade do poder (ou mesmo


quando partimos de uma perspectiva teórica acadêmica), essa contraposição entre
crueldade e realismo se apresenta como falsa. Isso não significa simplesmente dizer
que a realidade é, por essência, cruel (o que não soaria absurdo), mas sim, assumir
uma perspectiva histórica crítica diante do sistema social sob o qual vivemos hoje.
Mesmo que hoje vivamos em um sistema cujo patamar de cooperação internacional
seja altamente complexo, o capitalismo carrega, em sua fundação, mecanismos
estruturalmente cruéis, como a expropriação de terras na Europa e a devastação
colonialista, ambas descritas na crítica da acumulação primitiva de Marx n’O Capital.
Para não ficarmos apenas na abstração das origens do capitalismo, podemos tomar
o exemplo contemporâneo emblemático do “império” norte-americano, que, apesar
de empreendimentos bélicos devastadores como as ocupações do Vietnã e, mais
recentemente, a ocupação do Afeganistão, pôde gozar de um lugar central na
culturalidade mundial.

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