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CIÊNCIA

Refúgios abalados
Análise de polens e de movimentos
tectônicos questiona teoria
sobre isolamento de plantas e animais

o auge da última glaciação lo menos três décadas a visão mais aceita da


vivida pelo planeta, entre 18 porção sul do continente americano, incluin-
mil e 14 mil anos atrás, os do o Brasil, em tempos gelados mais recentes.
cerrados, as savanas e as caa- O consenso, no entanto, faz parte do passado.
tingas, vegetações mais aber- Sustentados pela análise do pólen de plantas
tas e típicas de clima seco, que existiram nos últimos 20 mil anos, hoje
dominaram a América do
Sul. Graças às adversidades de nascimento dos rios e das bacias hidro-
naturais, as imponentes flo- gráficas do país, estudos brasileiros e inter-
restas tropicais e suas árvo- nacionais criticam duramente - e até mesmo
res gigantescas recuaram e negam - a idéia dos refúgios.
viram-se obrigadas a ocupar "Não é possível defender uma versão cli-
áreas extremamente reduzidas. Chamados de mática monolítica para uma época tão instá-
refúgios, esses espaços limitados representa- vel e complexa globalmente, ainda mais em
ram uma alternativa de sobrevivência para um país com o tamanho do Brasil", afirma
plantas e animais acostumados ao tempo Paulo Eduardo de Oliveira, engenheiro agrô-
úmido, que aproveitaram essa proteção e se nomo com doutorado em botânica e ecologia
reproduziram mais intensamente. Quando a e professor da Universidade Guarulhos. Ain-
Terra voltou a esquentar, as florestas nova- da não há outras teorias para explicar a diver-
mente se expandiram e espécies de diferen- sidade de animais e plantas no Brasil da últi-
tes refúgios acabaram se encontrando. A ri- ma glaciação, apenas descobertas que não se
queza biológica da Amazônia seria uma das encaixam no antigo modelo. "Temos registros
conseqüências dessa mistura. daquela época glacial que revelam diversas re-
Proposto inicialmente pelo zoólogo Pau- giões de clima úmido e frio e florestas bem
lo Vanzolini, mas formulado conceitualmen- maiores do que as que corresponderiam aos
te pelo alemão Jürgen Haffer em 1969 e apli- refúgios." Oliveira e o norte-americano Mark
cado à realidade brasileira pelo geógrafo Aziz Bush, do Instituto de Tecnologia da Flórida,
Ab'Sáber, esse cenário - conhecido como Te- publicaram na edição de janeiro a abril de
oria dos Refúgios - representou durante pe- 2006 da revista Biota Neotropica um artigo

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Ninfa de uma
cigarrinha da família
Cicadellidae:
9b exemplo de espécie
peculiar da Amazônia
que examina uma série de trabalhos que últimos 40 mil anos. Anos depois, em litorâneos independentes da região entre
testam a validade da hipótese dos refú- 2003, Peter Wilf, da Universidade Esta- Santos e Ubatuba. "Antigas falhas geo-
gios. As pesquisas sugerem, por exemplo, dual da Pensilvânia, Estados Unidos, lógicas, reativadas entre 60 e 10 mil anos
a existência de densas florestas no pé da com base na análise de folhas fossilizadas atrás no alto da serra do Mar, captura-
cordilheira dos Andes, onde a tempera- de 102 diferentes espécies de plantas da ram o rio, que desviou de sua trajetória
tura teria resfriado cinco graus Celsius Patagônia argentina com pelo menos 52 rumo ao Tietê", comenta.
durante a última glaciação. Na mesma milhões de anos, confirmou que
época, vegetação semelhante seria en- antes da última glaciação já ha- arregadas por essas mudanças
contrada na porção oriental da Amazô- via uma enorme variedade de de rotas, as espécies de peixes se
nia brasileira, enquanto na região ama- espécies de plantas e de animais. espalham ou se isolam e popu-
zônica central o clima de fato deve ter si- De acordo com a Teoria dos Re- lações de uma mesma espécie
do um pouco mais seco, mas não o su- fúgios, essa biodiversidade teria podem ser encontradas em rios
ficiente para eliminar as formações flo- surgido no final da glaciação, de bacias hidrográficas distintas.
restais. "Sempre havia quem se apressasse quando as poucas áreas verdes "A arquitetura geral de grandes
em dizer que havíamos justamente en- teriam voltado a se expandir. A bacias hidrográficas brasileiras,
contrado uma área de refúgio quando bióloga Fátima Praxedes Leite, como a do Paraná, São Francis-
apontávamos a existência de florestas re- depois de analisar sedimentos co e Uruguai, já devia estar for-
lacionadas à umidade e ao frio", conta amazônicos com idade entre 23 mada há pouco mais de 100 mi-
Oliveira. Nessas situações, o pólen pode milhões e 6 milhões de anos, já lhões de anos, quando o Brasil se
carregar informações valiosas: como re- havia detectado em 1997 essa diversida- separava da África", lembra Ribeiro. De-
presenta o órgão reprodutivo de plantas de, revelando o que Oliveira classifica de pois vieram os ajustes finos, impulsio-
com flores, pode ser pensado como uma "uma grande estabilidade ecológica". nados por processos tectônicos mais re-
estrutura de identificação das espécies. A centes - bacias hidrográficas e conse-
análise morfológica de sua estrutura in- Tectonismo - Além do pólen e dos se- qüentemente sua fauna de peixes não
dica a que família a planta pertence. dimentos, a formação das bacias hidro- respeitam os limites de qualquer refúgio
A saída para o impasse foi concebi- gráficas brasileiras e a origem dos rios e invadem cerrados, caatingas e flores-
da pelo australiano Simon Haberle, da oferecem outros argumentos para a con- tas. No entanto, essa dispersão depende
Universidade Nacional da Austrália, em testação da Teoria dos Refúgios. O bió- também da capacidade de adaptação de
1997. Haberle coletou sedimentos depo- logo Alexandre Cunha Ribeiro, atual- cada espécie às condições naturais de ca-
sitados no delta do rio Amazonas, uma mente na Universidade de São Paulo da ambiente. A Piabina argentea, por
área estratégica, justamente por reunir (USP) de Ribeirão Preto, mostra na edi- exemplo, um lambari de até 5 centíme-
pólen originário de distintas áreas da ba- ção de abril a junho de 2006 da Neotro- tros de comprimento, pode ser encon-
cia hidrográfica. Ele aproveitou esse po- pical Ichthyology que a história evoluti- trada em águas turvas, limpas e pedre-
tencial do pólen de informações sobre va e a distribuição geográfica de uma ele- gosas, em afluentes das bacias do Para-
plantas, que já havia sido demonstrado vada diversidade de espécies de peixes ná, São Francisco, Paraíba do Sul e al-
em 1979 pela botânica brasileira Maria que habitam os rios do país estão dire- guns outros rios costeiros do Sudeste
Lúcia Absy em seu doutorado na Univer- tamente associadas aos movimentos tec- brasileiro, embora estudos comparati-
sidade de Amsterdã, na Holanda, e con- tônicos e ao deslocamento de blocos de vos sugiram que o ancestral comum a
firmou: em grande parte, eram as flores- rochas superficiais. No caso do Brasil, ex- essas populações tenha se originado na
tas, e não as savanas, que definiam os tensas zonas de fraturas das rochas que bacia do rio Paraná.
contornos da paisagem amazônica du- constituem o embasamento continen- Já o lambari Glandulocauda melano-
rante a glaciação mais recente. Haberle tal - mais suscetíveis a rupturas - coin- genys, também de poucos centímetros, é
analisou dados relativos a uma área gi- cidem com os limites de separação en- um peixe endêmico de águas frias e lim-
gantesca e, segundo Oliveira, seria uma tre as bacias. Quando os movimentos pas, encontrado somente nos afluentes
contradição sustentar que se tratava de continentais se intensificam, reabrem-se do alto curso do rio Tietê, além do alto
mais um refúgio. antigas fraturas, fazendo movimenta- curso do rio Guaratuba, que era afluen-
Oliveira, Bush e Paul Colinvaux, do rem-se os blocos de rocha, que podem te do Tietê antes dos movimentos tec-
Woods Hole Marine Biological Labora- subir ou descer. O resultado final dessas tônicos que levaram à sua captura. "Es-
tory, de Massachusetts, Estados Unidos, movimentações são mudanças leves ou pécies diferentes reagem de forma distin-
foram os primeiros a contestar a idéia bruscas nos cursos dos rios, literalmen- ta aos mesmos movimentos tectônicos",
dos refúgios em um estudo publicado te lançados em outras direções, diferen- diz Ribeiro. "O fato de uma determina-
em 1996 na revista Science. Por meio da tes de suas trajetórias originais. Em ou- da espécie de peixe possuir ampla dis-
análise de grãos de pólen coletados em tro trabalho, publicado em junho na tribuição ou estar restrita a uma peque-
lagos da região do alto rio Negro, no Ichthyological Exploration ofFreshwaters, na área de uma bacia depende de suas ca-
Parque Nacional do Pico da Neblina, re- Flávio Lima, Cláudio Riccomini, Naér- racterísticas biológicas. Espécies com bai-
chaçaram a possibilidade, levantada pela cio Menezes e Ribeiro demonstram co- xa capacidade de deslocamento ou mui-
Teoria dos Refúgios, de existência de sa- mo o alto curso do rio Guaratuba, anti- to exigentes do ponto de vista ambiental
vana ou de qualquer outro tipo de ve- go afluente do Tietê, conquistou vida podem ser restritas a uma pequena área
getação de clima seco naquela área, nos própria e se transformou em um dos rios onde existam tais condições. Portanto,

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Aos pés do Aconcágua,
no Chile: Andes já abrigaram
apesar das bacias hidrográficas repeti- vastas florestas ter provocado uma redução no núme-
damente misturarem suas faunas por ro de espécies", avalia.
processos de capturas de rios e riachos Outro problema não resolvido pelos
pela atividade tectônica, nem todas as es- refúgios diz respeito às temperaturas.
pécies terão distribuição geográfica equi- "A ciência é feita de acertos e de er- Caatingas e savanas são ambientes de cli-
valente. Como a mistura de fauna pelo ros e é importante que paradigmas pas- ma quente; seriam incompatíveis com a
processo tectônico é contínua no tempo, sem por avaliações críticas, especial- era da glaciação, ainda que o Brasil só te-
o resultado é uma história muito com- mente quando surgem novas tecnolo- nha sofrido indiretamente os efeitos do
plexa envolvendo populações ancestrais gias", diz Oliveira. Para ele, à época em resfriamento global, mais intenso no he-
e seus descendentes nas grandes bacias que foi concebida, e diante das limita- misfério Norte. "A teoria levou em consi-
hidrográficas sul-americanas." ções técnicas, a Teoria dos Refúgios ba- deração apenas umidade e chuvas", diz
Registros fósseis de peixes também seou-se no que chama de evidências indi- Oliveira. "Ou a idéia dos redutos se refor-
indicam que a diversidade de espécies retas - associações entre paisagens geo- mula, ou será abandonada", afirma. Van-
com características da fauna moderna gráficas semelhantes e analogias entre zolini rebate as críticas e lembra que na
já era grande no período Terciário, há rochas parecidas, além da análise de Amazônia a fauna não é uniforme. "Os
cerca de 50 milhões de anos, momento plantas, anfíbios e borboletas de espé- refúgios continuam valendo como expli-
bem anterior ao que seria contemplado cies próximas encontrados em locais cação consistente para essa diversidade
pelos refúgios. distantes. Atualmente, além da análise animal. Até agora, ninguém conseguiu
São do Terciário os fósseis do peixe do pólen, é possível trabalhar com so- apresentar outra proposta sustentada
Corydoras revelatus, do mesmo gênero fisticados testes de DNA e com datações para substituir essa teoria." Ab'Sáber tam-
que inclui o limpa-fundo ou tamboatá, de urânio, carbono e isótopos de outros bém rechaça as dúvidas. Para ele, as infor-
atualmente comum em todo o Brasil. A elementos químicos. Atento às contra- mações que levaram os críticos a pensar
fauna fóssil da bacia de Taubaté, com 23 dições da teoria, Oliveira também ques- que a teoria não funciona estão relaciona-
milhões a 35 milhões de anos, conta com tiona como as plantas e os animais po- das a acontecimentos mais recentes, que
gêneros ainda hoje encontrados em rios deriam ter se diversificado se ficaram não correspondem à época da glaciação:
e riachos brasileiros, como o grande ba- confinados a ambientes restritos e ex- "Os fundamentos da teoria dos redutos
gre Steindachneridion, a piraputanga tremamente competitivos. "Não faz continuam absolutamente intocados". •
Brycon, o curimbatazinho Cyphocharax sentido. Na verdade, por conta da luta
e o lambari Lignobrycon. pela sobrevivência, os refúgios deveriam FRANCISCO BICUDO

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