GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica.
Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1999, 336p.
HEIDEGGER: HERMENÊUTICA COMO
AUTO-ESCLARECIMENTO DA INTERPRETAÇÃO EXISTENCIAL
O que é vivenciado por dentro, não (pode) ser colocado sob
conceitos, os quais foram desenvolvidos no mundo exterior, dado nos sentidos. W.DiIthey (GSV, 196)
No século 19, a hermenêutica, sob determinado ângulo, principalmente o
filosófico, manteve o caráter de uma reflexão mais ou menos subliminar. Apesar das intuições básicas amplamente estabelecidas, os clássicos da hermenêutica, representativos para esse século, como Bóckh, Schleiermacher, Droysen e Dilthey, não chegaram a desenvolver uma concepção unitária da hermenêutica, para, ao mesmo tempo, levá-la à publicidade de forma sistemática. É significativa, para isso, a circunstância de que suas investigações hermenêuticas só foram publicadas pelos discípu10s, a partir de seus manuscritos, em geral na forma de compêndios, ou parceladamente. Com Heidegger (1889-1976), em quem é possível comprovar desde cedo uma recepção de Schleiermacher, Droysen e Dilthey, a coisa muda lentamente. Com seu pensamento, a hermenêutica avança de forma duradoura para o centro da reflexão filosófica. No entanto, vale também para Heidegger, que sua hermenêutica, apesar da obra 'Ser e Tempo', permaneceu longo tempo escondida. O seu novo princípio hermenêutico, ele o de senvolveu 157 na primeira metade dos anos vinte, ao longo de suas preleções sobre 'Hermenêutica da facticidade', sem, no entanto, publicar suas correspondentes pesquisas. O pensamento mais importante, como hoje o podemos constatar claramente, foi, sem dúvida, introduzido em 'Ser e Tempo', porém certamente sob pressão de questões mais recentes, as quais ultrapassam o âmbito da problemática e que, eventualmente, tornaram irreconhecível o horizonte do empreendimento. Como foi observado mais acima, a localização sistemática da hermenêutica não requereu mais do que meia página no 'Opus' de 1927, que de fato reservou mais espaço à questão ontológica sobre o sentido originário e as principais articulações do ser. A obra posterior deu, para fora, a impressão de andar de mãos dadas com uma marcada despedida da problemática hermenêutica. Já no significativo curso do semestre de verão de 1927, sobre os problemas básicos da fenomenologia (GA 24), que pode valer como continuação e ligeira correção de 'Ser e Tempo', o conceito 'hermenêutica' não aparece uma única vez. Posteriormente, as referências à hermenêutica, em geral retrospectivas na obra tardia, podem quase ser contadas nos dedos de uma só mão. Muitos dados depõem, pois, a favor da ideia de que a hermenêutica específica de Heidegger deva ser buscada nas primeiras preleções. Pois delas brotaram notáveis impulsos para o desenvolvimento da hermenêutica posterior, sobretudo da gadameriana. A situação atual é mais favorável, uma vez que algumas preleções e até manuscritos acabados3 dessa época foram há pouco publicados. Eles formam há anos o núcleo da mais recente pesquisa sobre Heidegger, já que eles lançam bastante luz sobre aspectos antes desconhecidos ou apenas supostos. Uma investigação detalhada, a ser ainda realizada, sobre a hermenêutica da facticidade neles desenvolvida, infelizmente não pode ser desenvolvida no âmbito restrito da presente introdução. 158 Nosso objetivo só pode ser o de tornar frutífera sua contribuição filosófica para uma adequada compreensão da problemática hermenêutica em 'Ser e Tempo' e da história da sua eficácia. 159
O diligente antecipar-se da compreensão
[...] Sua transparência na interpretação [...]
A ideia de uma hermenêutica filosófica da facticidade
A hermenêutica de Heidegger, como indicativo filosófico programático,
entende-se como radicalização da tendência à interpretação que inabita a compreensão. A hermenêutica, observa Heidegger, é aí tomada "no significado originário da palavra, segundo o qual ela designa o negócio da interpretação". Este entendimento volta-se contra a concepção, vigente desde Schleiermacher e Dilthey, segundo a qual a hermenêutica deveria fornecer uma doutrina metódica artificiosa da compreensão, em vista de uma fundamentação metodológica das ciências do espírito. Não a teoria da interpretação, porém a própria interpretação é o negócio da hermenêutica elevada ao nível da filosofia, e isso em vista de uma autotransparência do ser-aí, a ser conquistada, e na qual o trabalho filosófico de clarificação simplesmente leve a termo a interpretação, que o entendedor ser-aí já realiza sempre. Desta forma, a hermenêutica filosófica visa a uma auto-interpretação da facticidade, ou seja, a uma interpretação da interpretação, para que o ser-aí possa tornar-se transparente para si mesmo. Pois nela devem "ser manifestadas" ao ser-aí "as estruturas básicas de seu ser". Oriunda da autopreocupação do Dasein, a filosofia, concebida como "a genuína realização explícita da tendência à interpretação das mobilidades básicas da vida", assume a autoesclarecedora função da interpretação sobre o próprio ser-aí. Este propósito filosófico aparece com plena nitidez no curso do semestre de verão de 1923, sobre 'Hermenêutica da facticidade". 167 A hermenêutica mostra aí "a forma unitária do engajamento, da inserção, do acesso, do questionamento e da explicação da facticidade" que se apresenta como "indicativo do possível estar vigilante". Embora concebida em vista da possível autotransparência do se-aí, a hermenêutica não deve, no entanto, seguir ela própria um caminho para este estar vigilante ou recomendá-lo para edificação. Deve ser deixado a cada ser-aí, abrir o seu próprio caminho para a autotransparência. A hermenêutica filosófica contenta-se com a tarefa de lembrar ao Dasein este caminho, pré-delineado no existencial da interpretação. Mais precisamente: "A hermenêutica tem a tarefa de tornar acessível cada específico ser-aí, em seu caráter de ser, a este mesmo ser-aí, compartilhá-lo, ocuparse com a auto-alienação, pela qual o ser-aí é atingido. Na hermenêutica forma-se, para o ser-aí, uma possibilidade, a de tornar-se e de ser entendedor para si mesmo. Energicamente se manifesta, nas preleções da primeira fase, o anúncio da luta contra a "auto-alienação", o que lhes empresta um cunho ligado, de certa forma, ao jovem Hegel, e até mesmo à crítica da ideologia? Aquilo contra que se ergue a hermenêutica, é o auto-equívoco, o falhar em si mesmo do ser-aí, a que 'Ser e Tempo' dá o nome de decadência e os primeiros textos o de ruína. Acontece que o seraí é atingido pelo pendor de passar ao largo de si mesmo, de não dar-se conta das suas mais pessoais possibilidades de transparência, a serem pessoalmente configuradas. Isso transparece sobretudo no fato de que o ser humano desabrocha inconscientemente em seu mundo e assim se perde para si próprio. Em vez de assumir uma interpretação pessoal de si mesmo, ele aceita a convencional, que o livra do encargo do auto-esclarecimento. A finalidade de uma hermenêutica crítica da facticidade, que chama cada ser-aí de volta a si próprio e a sua possível liberdade, será pois, a 168 de desmanchar ou destruir essas explicações transmitidas e não mais questionadas do ser-aí. "A hermenêutica executa sua tarefa unicamente na via da destruição. "4 Destruição significa aqui uma desconstrução da tradição, enquanto e somente enquanto ela oculta a existência para si própria e a livra da necessidade de um auto- apossamento. Realizada com intenção positiva, ela quer descerrar novamente às experiências originárias do Dasein, as quais espreitam por detrás das categorias transmitidas, e entrementes mal reassumidas, da tradição ontológica. A fim de tornar novamente acessíveis essas experiências básicas, a hermenêutica filosófica realmente não pode deixar de elaborar uma conceituação própria. Heidegger é muito cauteloso neste ponto. Para obviar ao perigo de uma nova escolastização, ele introduz os seus conceitos como meros "indicadores formais". O conceito do indicador formal, básico para o Heidegger da primeira fase, quer insinuar que locuções sobre o ser-aí requerem, por parte de quem compreende, uma ação pessoal de apropriação. Elas não podem ser concebidas como sentenças que descrevem teoricamente uma realidade presente, porém como desafios à auto-apropriação no terreno de cada ser-aí. O seu "sentido predicativo primário" não é, pois, a "indicação de algo presente", porém um "permitir a compreensão de um ser-aí que desperta uma ação de interpretação específica para o Dasein. Sentenças filosóficas têm o caráter de indicativos, só entendidos, enquanto se procura efetivá-los concretamente por empenho pessoal — cada um à sua maneira e com responsabilidade pessoal. Como locuções sobre uma situação presente, elas seriam mal entendidas a partir de sua base: "Elas apenas indicam o ser-aí, embora, como sentenças pronunciadas, elas signifiquem, de início, algo presente (...). Elas indicam a possível compreensão e a possível compreensibilidade das estruturas do ser-aí, acessíveis em 169 tal compreensão. (Como tais sentenças, indicadoras de um ermhneuein, elas têm o caráter da indicação hermenêutica.)" A renovada referência ao hermènêuein, só pode, aqui, ser considerada oportuna. Ela aponta, de maneira esclarecedora, para a indispensabilidade de uma apropriação, a ser realizada por todo ser-aí na ação de compreensão. Hermeneuticamente, o Dasein deve pessoalmente introduzir-se no início da compreensão. Uma vez que, em filosofia, só se pode tratar sempre da autopreocupação do ser-aí, deve ser visto, nesta particularidade formalmente indicativa, um significado metódico fundamental de todos os conceitos filosóficos. Para este fim, Heidegger requer precisamente "conceitos hermenêuticos', expressões portanto, que não pretenderiam simplesmente reproduzir uma realidade presente neutra, mas que são "acessíveis apenas na renovação da interpretação que sempre reinicia". Hermenêutica é, pois, a sentença que estimula a uma ação pessoal de reflexão ou interpretação e, assim, à auto-aplicação. Para isso é preciso penetrar além da fachada do conceito universal, para reconquistar as experiências específicas que nele se manifestam. 170
Status derivado do enunciado?
[...]
A Hermenêutica da Virada
Apenas aparentemente, a concepção linguística hermenêutica de 'Ser e
Tempo' foi submetida, na obra tardia, a uma revisão fundamental. Por certo a linguagem se fez valer, agora, como a "morada do ser", como se ela tivesse assumido, a partir de agora, a precedente e insuperável revelação do ser. Não obstante, não se reduziu em nada a suspeita de Heidegger ante o enunciado. Apesar de ele próprio realmente não escrever pouco, Heidegger admoestava, tanto antes como depois e até mais decididamente do que antes, sobre o risco de enxergar, em sentenças locucionais, a plena expressão da verdade filosófica. Os 'Beiträge zur Philosophie' (Contribuições à Filosofia), de 1936-38, recentemente publicados, que talvez sejam o mais pormenorizado testemunho do pensamento afirmando-se em novos acentos, já o repetem nas primeiras páginas: "Na Filosofia nunca se pode comprovar sentenças (...), porque aqui 'sentenças' simplesmente não são a verdade." Essa advertência manteve a validade até a data da conferência 'Zeit und Sein' (Tempo e Ser: 1962), que com razão é considerada a estação 173 final da caminhada filosófica heideggeriana. Suas últimas linhas dizem: "Trata-se de superar incessantemente os obstáculos, que tornam facilmente insuficiente um tal dizer (do acontecimento). Um obstáculo dessa natureza o é também, dizer o acontecimento na forma de uma palestra. Ela só falou em sentenças locucionais." É muito fácil pintar na parede a aporética de um tal dizer, que já não pode confiar tanto em sentenças locucionais, a ponto de refugiar-se eventualmente numa 'sigética', ou numa filosofia do silêncio. Mas, a aporia cessa, logo que, nessa luta com a linguagem, se puder escutar o esforço de se saber preservado o caráter hermenêutico da linguagem. Uma filosofia, à qual a recusa ou negação se abriu como estrutura básica do ser, já não pode crer ingenuamente, que o sofrimento da finitude poderia ser expresso em sentenças locucionais auto-suficientes. Por isso se explica a resistência sisifista de Heidegger contra a cibernética universal e a funcionalização da linguagem, oferecida pela técnica planetária como meio de informação, no qual tudo pode ser expresso e calculado. Estes traços da obra tardia ultrapassam, evidentemente, o estreito âmbito da presente investigação. Se a compreensão hermenêutica da linguagem não desapareceu do pensamento da virada, vale o mesmo para a tarefa crítica do aclaramento, a ser realizada pela interpretação da própria situação hermenêutica. Frequentemente ridicularizada como despedida incompreensível do Esclarecimento, a abordagem da história do ser, feita por Heidegger, não é, afinal, outra coisa do que o prosseguimento da destruição da tradição, exigida por 'Ser e Tempo', no sentido da reflexiva apropriação de nossa situação histórica de compreensão. A interpretabilidade, portadora da pré-estrutura de nossa compreensão, deve, de agora em diante, com base na história do ser, ser consequentemente elevada à transparência, isto é, à interpretação. O Heidegger tardio é tão consciente 174 do caráter de projeção da compreensão humana, que o seu pensamento quase só se desenrola na interpretação e contestação da tradição ontológica que nos determina. Quem haveria de negar, que a passagem destrutivo-exploradora através da história sucede posteriormente, embora sem o dizer, em vista de um estado de vigilância, a ser conquistado e concretizado por qualquer ser-aí? É claro que esta autopenetrabilidade não deve ser pensada como autotransparência, porém ser entendida — da mesma forma como o délfico "conhece-te a ti mesmo" — como percepção dos próprios limites da nossa inamovível projeção, e mesmo como consciência da nossa finitude em face da história do ser. A filosofia da virada desenvolveu-se, por último, de um pensar até o fim o 'ser lançado' (a "Geworfenheit"), elaborado pela hermenêutica da facticidade. O ser-aí não vale mais, como parecia em 1927, como o autor potencial de seus esboços de compreensão; ele os recebe, antes, de uma história do ser geralmente subliminar, cujo aclaramento deve tornar-se a primeiríssima tarefa da interpretação hermenêutica. O pensamento de Heidegger, na obra tardia, a partir de sua práxis da interpretação, permaneceu, portanto, inteiramente hermenêutico e concretizou-se como tal. Mas, o fato de o título hermenêutica — como quase todas as palavras- chave de 'Ser e Tempo' — não ter sido mantido, está relacionado, segundo todas as aparências, com o destronamento da subjetividade humana, que deve arrastar consigo a radicalização do 'ser-lançado' e, com isso, da finitude. Pode ser que Heidegger tenha sucumbido, nessa questão, a um certo auto-equívoco, quando acreditou que devia atribuir precisamente o pensamento hermenêutico ao fluxo subjetivo-transcendental da modernidade. Pois seu próprio pensamento hermenêutico, em 'Ser e Tempo', fora concebido como contraponto à modernidade alucinada pelo sujeito, razão pela qual fora justamente conjurada uma destruição da tradição ontológica. 175 Os escassos acenos à hermenêutica na obra posterior, encontram-se quase todos em 'Unterwegs zur Sprache' (A caminho da linguagem: 1959), e isso em sua parte de conversação. Perguntado pelo significado da hermenêutica, Heidegger cita, praticamente sem comentários, a determinação de hermenêutica feita por Scheiermacher (emprestada de uma preleção do mesmo, que ele no momento tinha "à mão"), como "a arte de entender corretamente o discurso de outra pessoa, sobretudo o escrito". Concordando, é agora assumida a determinação schleiermacheriana da função da hermenêutica, da qual o curso do semestre de verão de 1923, sobre hermenêutica da facticidade, se dispensara explicitamente, como 'Ser e Tempo' o fizera implicitamente. De que modo a sua obra básica concebe mais exatamente a hermenêutica, ele o explica, misteriosamente e de forma quase tautológica, como tentativa "de determinar primeiramente a essência da interpretação a partir do hermenêutico. Qual é aí o significado de "hermenêutico"? Não se pode esperar demais, contesta Heidegger, "porque a coisa é enigmática, e talvez nem sequer se trate de uma coisa. " Novamente nos defrontamos com a desconfiança hermenêutica ante o que é objetivo e disponível, com um aceno para o indizível ou enigmático, para cuja compreensão ser requer uma hermenêutica. Não obstante, Heidegger — de improviso — umas vinte páginas mais adiante, dá uma resposta à questão sobre o que seria propriamente o hermenêutico. Ele deveria ser entendido pelo verbo grego EPUIIVEUEIV. EPUIIVEUEIV seria "aquele expor que traz notícia, enquanto ele capacita a ouvir uma mensagem." Antes de cada interpretação se manifesta o hermenêutico, como "a trazida de mensagem e notícia. Esses informes, como a maior parte deles na obra tardia, devem ser encarados em sua singeleza. Nas palavras mais simples, o hermenêutico expressa a trazida de uma 176 mensagem que desperta um escutar. Em parte alguma de sua obra esteve Heidegger tão próximo da tradição hermenêutica, como aqui. Essa trazida de uma mensagem só é possível através da linguagem, e até se comprova como o fazer mais elementar da própria linguagem. É a linguagem, prossegue Heidegger, que carrega "a relação hermenêutica". No final, a pergunta pelo hermenêutico funde-se, consequentemente, com a pergunta sobre a linguagem. Pois, que outra coisa é linguagem, senão a comunicação de uma mensagem, que deve ser acolhida por uma escuta entendedora? "Se eu, pois, pergunto a você", constata um japonês na conversação "sobre o hermenêutico, e se você me pergunta pelo termo que nós usamos para aquilo que, para vocês, significa linguagem, então ambos perguntamos pela mesma coisa." — "É evidente", soa a resposta conclusiva de Heidegger. Para o Heidegger tardio, o hermenêutico tornou-se, portanto, uma outra palavra para linguagem, bem entendida como oferta de uma notícia, em vista de um correspondente escutar-entendendo. Se isso é correto, devemos certamente admitir que a caminhada filosófica (e não apenas a tardia) de Heidegger, que se sabia a caminho da linguagem, também deve ser refeita como um 'a caminho' da hermenêutica. 177