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Cynthia Peiter
As crianças brasileiras, adotadas mais tarde, após terem atingido dois anos de
entregues recém-nascidas e outras se separaram dos pais biológicos mais tarde, podendo
ter convivido com pelo menos a mãe, por algum período de sua vida. Eventualmente
circulam entre familiares, vizinhos ou até conhecidos da família. Algumas crianças são
família se organize de forma a recebê-las de volta. Até que esteja em condições jurídicas
de adotabilidade, a criança pode haver vivido em diferentes lares ou até mesmo, passado
Muitas esperam um longo período até que seus pais sejam declarados,
juridicamente, inaptos para a paternidade, com a destituição do poder familiar, que acaba
por ocorrer quando a criança encontra-se em idade mais difícil para adoção, pois o
Isso traz a tona um problema social de nosso país que se refere à questão do
das formas possíveis de garantir um direito à convivência familiar para estas crianças
Entretanto, a adoção envolve delicadíssimo processo psíquico de filiação, que não pode
ser compreendido unicamente como uma saída para a complexa problemática social do
abandono.
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Enfim, as crianças que são adotadas mais tarde haverão passado períodos
Diferentemente de um bebê adotado logo no início de sua vida, esta situação implicará
reflexão sobre o que se passa com as crianças quando de sua colocação em família
Assim, este estudo tem como objetivos gerais, abordar o tema da adoção de
passagem de vida e, talvez proporcionar maiores recursos a todos os que lidam com este
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de intervenção para psicanalistas interessados em alternativas clínicas viáveis, dentro de
psicanalíticas.
amado demandam tempo e considerável trabalho por parte do ego, no qual há uma lenta
retirada das ligações libidinais, dirigidas ao objeto perdido. Diz ele que o luto profundo,
ou a reação à perda de alguém que se ama, encerra um estado de espírito penoso onde se
observa a perda de interesse pelo mundo externo assim como a perda da capacidade de
hipercatexizadas, e isoladamente irão sendo descatexizadas, até que a libido esteja livre
novamente para novos investimentos. Somente após o percurso deste longo processo, o
por Freud, não poderá ser vivido quando se trata de perda entre crianças muito pequenas,
pois ainda não há uma organização psíquica capaz deste tipo de elaboração. Segundo suas
palavras:
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uma desesperança quanto à redescoberta do objeto, mas uma
desesperança baseada na incapacidade de sair em busca de um
objeto. (WINNICOTT, 1958, p.150-151).
questão, com o conceito do complexo da mãe morta. Assim, segundo suas conclusões, o
conseqüência, um espaço em branco que expressa uma perda a nível narcísico, na forma
alucinação afetiva com a mãe morta, todas as vezes que um novo objeto é escolhido para
ocupar este lugar. De modo que este lugar fica ocupado, impedindo a realização de novos
investimentos afetivos.
Através desta teoria, Green (1972) aponta para a existência de possíveis entraves
nos processos de formação de novos vínculos familiares quando se trata de crianças que
a pensar que a inclusão destas crianças em família adotiva, deva requerer cuidados
especiais, que as ajudem na elaboração destas vivências, e que deva implicar em delicado
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O acompanhamento de crianças voltado aos cuidados psicológicos nesta
passagem, me parece uma prática ainda em construção em nosso país, havendo poucos
expressando angústias e temores que trazem a marca do abandono psíquico já vivido, que
que nesta experiência foi observado sob a ótica winnicottiana, nas funções maternas de
criança tanto aos vínculos passados como aos futuros pais, e evoca dupla expectativa: o
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Sobre preparação de crianças para adoção, remeto o leitor meus outros trabalhos: PEITER (2008) e
MENDES, Cynthia Peiter (2007) e ao de PAIVA ( 2003, 2004).
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temor de reviver vínculos traumáticos e a esperança de um novo ambiente, capaz de
psicoterápico desta criança de 3 anos, que nos procurou buscando preparação para a
adoção. A criança foi trazida à Clínica do Instituto Sedes Sapientiae, em busca dos
uma determinação judicial para seu acompanhamento psicológico. O caso foi recebido
aceitar a colocação em família adotiva. Foram tomados os devidos cuidados éticos com a
como quem foge discretamente de animal muito perigoso. Nos encontros seguintes
mostra-se bastante arredia, e chora muito para entrar na sala. Nestes encontros permanece
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curiosidade e eventualmente deixando cair algumas lágrimas silenciosas. Quando
consegue entrar, traz consigo lencinhos de papel que a acompanhavam em suas vindas.
Tais lencinhos ocuparam um importante papel nas sessões, desde o início. Sempre se
rasgado. Este acabava por ser um dos momentos em que concedia que eu me aproximasse
um pouco, permitindo que eu fizesse, com sua ajuda, um envelope de papel para guardá-
los. Certa vez, fiz um comentário sobre os lenços que saíam da sua casinha e depois não
conseguiam mais voltar para dentro dela, e acrescentei que ela talvez temesse sair de sua
terapeuta, ainda nebuloso, de início parecia sugerir o lugar ocupado pela família adotiva,
sobre a qual a menina pouco conhecia, mas frente a qual demonstrava muitos medos. A
partir da angústia demonstrada, pudemos supor o grau de terror vivido por esta menina
perante a idéia de sua colocação em família adotiva. Presumimos que esta circunstância a
querer fugir daquela situação, em minúsculos passinhos, também sugerem o que Green
( 1972) descreve através da teorização sobre o complexo da mãe morta. Supunha que o
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descrita pelo autor. Como teoriza Green (1972), o objeto materno ausente ocupa um
lugar, mas torna o indivíduo incapaz de novos relacionamentos afetivos, não somente em
envelopes, que evoluiu para bolsinhas, e logo foi se estruturando como um ritual, remetia
seu ritual: pedia a bolsinha, e depois pedia que desenhasse figuras em suas mãos, ou
colasse objetos e etiquetas em sua pele. Desta forma, saia das sessões sempre com
inscrição corporal de marcas – tatuagens, colares, pulseiras, etiquetas, que Joana levava
uma trama psicossomática, vem nos ajudar neste momento. Como um dos importantes
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O brincar com os lencinhos/envelopes/bolsinhas também significavam uma
tentativa de entremear o impacto com aquela realidade ameaçadora, por objetos que lhe
trouxessem segurança.
A bolsinha, com os lenços e outras coisinhas, era levada e trazida a cada sessão,
também não ocorreram na sala de atendimento. Foi preciso que, durante algum tempo, ela
dentro e fora - e mesmo após a entrada na sala, precisávamos ainda contar com a
presença da educadora dentro da sala. Isso denota a importância dos espaços transicionais
para que ela pudesse apropriar-se das novas experiências. De modo que nosso brincar
exercia função equivalente à dos objetos transicionais, conforme teorizado por Winnicott
( 1971).
foram utilizados por este autor para designar esta área intermediária de experiência entre
realidade externa. Estes objetos, cuja função ocupa momento especial na separação entre
o bebê e sua mãe, e que ocupam lugar essencial na aproximação com a realidade
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pessoas de referência do abrigo, permitindo um ir e vir, garantida e segura de um self
ligados à adoção e à chegada da família adotiva. Esta perigosa tarefa foi ocorrendo em
conversas sobre figurinhas que iam surgindo na atividade de folhear e recortar revistas
que ela trazia consigo da sala de espera. Ela limitava-se a ouvir quieta e imóvel, sem
demonstrar reação alguma. As sessões seguiam os mesmos rituais das tatuagens, a bolsa e
Tomando algumas figuras nas mãos, começou a buscar nas revistas o lugar de
onde teriam saído. Buscava o espaço vazio de onde recortara a figura. A partir daí
demonstrou seu interesse no lugar de origem das figuras, evocando um lugar psíquico que
a remetia ao vazio ocupado pela figura materna ausente. Enfim surgia sua curiosidade
sobre as próprias origens e seus destinos – de onde eu vim e para onde vou então?
período de choro. Falar explicitamente da adoção, de suas dores, dando voz a seus medos,
agora a deixava insegura sobre seu destino e sobre o vínculo comigo, trazendo a tona
futuro. Goldstein (1997) afirma que em toda análise, em algum momento o trabalho irá
o momento do corte vivido com toda a intensidade. Mas esta autora compreende que a
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possibilidade de elaboração desta vivência. Assim, entende a autora, haverá lugar para
Após algum tempo com o vínculo estremecido, Joana começa uma transformação.
passado, passou a explorar coisas que nunca havia ousado tocar, como os animais da
destinos, através do brincar que lhe abrira possibilidade de estabelecer outra vinculação
com as mudanças de sua vida. O contexto da adoção foi colocado sob seu domínio, de
forma que ela foi capaz de apropriar-se desta realidade externa e com ela interagir, sem
que isso lhe parecesse uma invasão ambiental, ou algo ao qual teria que submeter-se. O
tema da adoção encontrou uma área intermediária, e, tal qual um objeto transicional,
encontrava-se não mais sob controle mágico, como um objeto interno assustador,
tampouco fora de seu controle, como a realidade externa. Convidada a brincar sobre este
suas angústias. Tudo isso permeado de um brincar bem humorado e prazeroso, nos fala
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processo terapêutico vivido pela menina lhe trouxe recursos para realizar despedidas dos
Espero que esta exposição possa contribuir para que o processo de adoção venha a
espaços para o processamento psíquico destas mudanças, mas, acima de tudo, respeitando
Por um lado esta experiência aponta para a necessidade de intervenções que visem
o bem-estar das crianças em vias de serem adotadas, mas por outro, também abre
país, pois seu afastamento corre o risco de promover ou continuar reproduzindo outros
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PEITER, Cynthia. Sobre preparação de crianças para adoção. In: GOMES, I (coord).
Família: Diagnóstico e abordagens terapêuticas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,
2008.
MENDES, Cynthia L. Peiter C. Vínculos e Rupturas na Adoção: do abrigo para a
família adotiva. São Paulo, 2007. Dissertação de Mestrado. USP.
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