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Racionalidade no Estudo do Esoterismo e Hermetismo Ocidental

Francisco Silva

O Esoterismo do mundo Ocidental é uma área particularmente interessante no que diz


respeito às diferentes perspectivas que são utilizadas no seu estudo, porque muito
embora possa parecer uma área do conhecimento com uma relevância mais histórica
do que actual, a verdade é que é uma área ainda muito sensível para muitos
estudiosos. Por Esoterismo, tomamos uma área de estudo que inclui não só a filosofia
hermética desde o período helénico até aos dias de hoje, mas também práticas de
carácter ocultista1, como sejam a alquimia, astrologia ou magia cerimonial, entre
outras. Por Hermetismo entende-se uma sub-divisão do Esoterismo que está
particularmente ligada à ideias Helénicas relacionadas com a figura de Hermes
Trismegistus, bem como o redescobrimento destas ideias no período renascentista,
redescobrimento este que veio a influenciar toda a área até aos dias de hoje. Esta é
ainda uma área sensível visto o desenvolvimento do Esoterismo no período pós-
Iluminismo, como reacção ao forte ênfase posto no racionalismo materialista neste
período, levou a um número de fenómenos religiosos ou quasi-religiosos que têm
ainda um número elevado de crentes e simpatizantes com toda a carga emocional que
daí advém. O sufixo “ocidental” que é acrescido ao conceito de Esoterismo neste
artigo tornou-se convencional de forma a distinguir uma tradição que tem as suas
origens na antiguidade mediterrânica com o Hermetismo e Neoplatonismo de forma a
distingui-lo de outros fenómenos análogos como o Tantra asiático, fala-se portanto de
uma tradição delineada geograficamente por aquilo que é considerado o “ocidente”
num sentido lato. O que se procura neste artigo é examinar as diferentes formas de
olhar para estes fenómenos com que o investigador, estudante ou curioso se pode
defrontar no seu processo de investigação, bem como as vantagens e desvantagens
que advêm de cada uma destas modalidades metodológicas para o leitor inserido num
contexto académico. Este artigo está dividido em três partes inter-relacionadas: em
primeiro lugar, procura-se fazer uma análise do panorama geral da metodologia
utilizada no estudo académico do Esoterismo e Hermetismo; em segundo lugar, passa-

1
Ocultismo é uma palavra aqui usada como derivando da obra
de Cornellius Agrippa De Occulta Philosophia Libri Tres, na qual são descritas
práticas como alquimia, adivinhação, astrologia, rituais cabalísticos e de magia
cerimonial bem como procedimentos medicinais que derivam o seu sustentamento
teórico de pensadores herméticos e neoplatónicos
se ao campo mais específico da Historiografia do Esoterismo e Hermetismo e, em
terceiro, analisa-se um exemplo específico nesta área, que respeita a obras sobre um
texto mágico do séc. XIV-XV, a Clavicula Salomonis, e o seu tradutor para a língua
inglesa, o ocultista Samuel Mathers. Esta estrutura – quase hermética em si –
passando do macrocosmo para o microcosmo, permite ao leitor um entendimento de
como as diferentes ideias de racionalidade, e de como esta deve ser usada no estudo
de uma área em particular, acabam por afectar o estudo de qualquer assunto em
particular sobe o qual o investigador se deseje debruçar. Esta é uma área de estudo
que tem também impacto não só no estudo do pensamento religioso mas também no
estudo das ciências, particularmente na primeira modernidade, naquilo que podemos
considerar o início da ciência moderna, onde a “filosofia natural”, tanto nas suas
vertentes do estudo da natureza como do universo físico, inclusivamente no estudo da
medicina, é frequentemente estudada por autores com um cariz esotérico ou hermético
(como por exemplo Paracelsus ou Van Helmont).

Metodologia no Estudo do Esoterismo e Hermetismo Ocidental

Para qualquer investigador interessado na metodologia utilizada no estudo do


Esoterismo Ocidental através de uma perspectiva de Religionswissenschaft (ou
ciência da religião, uma escola de estudo que se opõe aos estudos Teológicos,
propondo um estudo da religião como se de qualquer outra ciência social se tratasse)
existem, infelizmente, poucos autores cruciais. Os mais importantes de entre estes são
Antoine Faivre e Wouter J. Hanegraaff2, que editaram uma colecção de artigos sob o
título Western Esotericism and the Science of Religion (1998). Esta colecção de
artigos inclui três ensaios3 sobre a metodologia a ser utilizada no estudo do
Esoterismo Ocidental que são preciosos numa área onde tais obras não são comuns.
Deve-se também referir que a introdução a este volume por Hanegraaff é também
uma das melhores e mais sucintas discussões sobre o lugar do estudo do Esoterismo
Ocidental no contexto académico actual. Numa introdução de onze páginas,

2
Existe também um trabalho de Riffard sobre a dicotomia das perspectivas de
insider/outsider (1998). Outros autores também tiveram algo a dizer sobre
metodologia, particularmente sobre a definição dos conceitos de Esoterismo, Gnosis e
Misticismo, proeminentes entre estes são Dan Merkur, Eric Voeglin, a escola
perenialista e Gershom Scholem.
3
Por Faivre, Hanegraaff e Riffard.
Hanegraaff assinala os problemas que confrontam o estudo do Esoterismo Ocidental,
apresentando também soluções bem ponderadas para esses mesmos problemas. O
restante desta colecção de artigos procura apresentar ensaios que fariam parte da
solução apresentada por Hanegraff, ou seja, que o estudo do Esoterismo atingirá a
maturidade quando:

[...] já não represente algo que se assemelhe a uma “contracultura”


académica mas sim se tenha tornado uma parte da corrente académica
principal .4

Os doze artigos neste volume representam uma variedade de perspectivas sobre a área
de estudo num contexto académico, partindo de diferentes pontos do espectro
insider/outsider, mas são geralmente de grande qualidade. Antoine Faivre também
contribui um artigo para este volume, no qual repete a sua demarcação do conceito de
esoterismo baseado em seis características particulares, quatro intrínsecas e duas
extrínsecas. Esta demarcação do esoterismo é desenvolvida de forma mais extensa
noutra obra importante para o estudante do Esoterismo Ocidental, o Access to Western
Esotericism (1994) de Faivre. A primeira parte deste volume é dedicada à
metodologia e definição de conceitos no estudo do Esoterismo Ocidental. No entanto,
ao contrário da obra de Hanegraaff, Faivre, por muita qualidade que a sua produção
académica tenha, parece um escritor de certa forma mais solipsista. Enquanto
Hanegraaff inclui o estudo do esoterismo claramente no contexto mais vasto do
estudo das religiões, debatendo, por exemplo, abordagens émicas e éticas5 à área,
Faivre é um escritor mais introvertido. Faivre situa-se firmemente no campo do
Esoterismo Ocidental, raramente ligando os assuntos da sua área aos problemas mais
gerais do Estudo das Religiões. Esta forma de isolação académica que se sente quando
se lê Faivre é um dos problemas que confrontam o estudante do Esoterismo Ocidental.
A falta de notas de rodapé ou referências a quaisquer fontes secundárias fora do seu
4
Hanegraaff, W. 1998 “Introduction” in Faivre, A. & Hanegraaff, W. 1998,
Western Esotericism and the Science of Religion Leuven: Peeters, p.XV
5
Émico e ético são conceitos originalmente desenvolvidos na área da
linguística para distinguir quem conhece uma língua por dentro (falantes nativos ou
bilingues) e quem estuda uma língua pelo exterior (o linguista, por exemplo). Por
analogia estes mesmos princípios são utilizados no estudo da religião para distinguir o
crente que acolhe e exalta a sua subjectividade do estudioso que tenta manter uma
perspectiva neutra sobre o fenómeno religioso (mesmo que o estudioso seja crente)
campo específico é imediatamente aparente no Access to Western Esotericism, e
imediatamente aparente é também o estilo de escrita desnecessariamente críptico de
Faivre:

Entendida assim, a imaginação (imaginação está relacionada com íman


[magnet], magia, imago) é um instrumento para o conhecimento do eu,
mundo, Mito. O olho de fogo atravessa a casca das aparências para invocar
significações, “rapport”, tornar o invisível visível, o “mundus imaginalis” ao
qual o olho da carne por si só não pode dar acesso, e para obter lá um
tesouro que contribui para um alargar da nossa visão prosaica.6

Faivre discute aqui a imaginação através do prisma do Hermetismo; esta falta de


clareza na escrita é comum a muitos escritores sobre o Esoterismo Ocidental,
particularmente de uma abordagem émica, o ofuscar da doutrina sendo parte da
doutrina em si. O estilo críptico e algo denso de Faivre aparenta algumas semelhanças
aos textos esotéricos que ele examina no seu trabalho, criando uma infiltração do
discurso esotérico no mundo académico.

É importante por último mencionar a Introdução de Goodrick-Clarke ao seu volume


intitulado The Western Esoteric Traditions (2008) no qual mais do que apresentar
uma metodologia própria para o estudo do Esoterismo Ocidental, faz um
levantamento das várias perspectivas metodológicas, fazendo um traçado que vai
desde D.P. Walker, passando por Frances Yates, François Secret, Henry Corbin,
Antoine Faivre, Hanegraaff e Versluis até Kocku von Stuckrad, apresentando uma
linha coerente e inter-relacionada no que diz respeito às metodologias utilizadas nas
ultimas décadas para o estudo deste fenómeno. Goodrick Clarke apresenta a sua
própria perspectiva, considerando que estudos que se restringem à dimensão
sociocultural do Esoterismo Ocidental são reducionistas do próprio fenómeno,
ignorando o seu conteúdo filosófico e espiritual e faltando-lhes uma interpretação
hermenêutica do espírito e da espiritualidade como uma realidade ontológica

6
Faivre, A. 1994, Access to Western Esotericism Nova Iorque: SUNY, p. 13
independente7. Goodrick–Clarke apresenta então uma espécie de “caminho do meio”
entre a perspectiva metodológica um pouco solipsista de Faivre e a perspectiva
sociológica de Von Stuckrad, vendo-as como complementares em vez de adversárias.

A Historiografia do Esoterismo Ocidental

Perspectivas sobre a história do Esoterismo Ocidental podem facilmente ser


categorizadas em três grupos: leituras pró-esotéricas, leituras anti-esotéricas e leituras
histórico-empíricas. Do lado das leituras pró-esotéricas podemos encontrar trabalhos
de escritores émicos com uma motivação proselitista para o seu trabalho. Alguns
exemplos importantes de leituras pró-esotéricas deste género podem ser encontrados
nas obras de H.P. Blavatsky como A Doutrina Secreta (1999 [1888]) e Eliphas Lévi
como a História da Magia (2001 [1860]). Estas duas obras são essencialmente
esforços proselitistas que tentam “converter” o leitor a um determinado ponto de vista
religioso com poucas provas factuais para suportar as suas ideias. No entanto, isto não
faz destas obras irrelevantes ou inúteis. Através delas é possível aceder à mente do
crente, e, a partir daí, compreender motivações e crenças que são o motor de muito do
trabalho feito por outros esoteristas. Obras pró-esoteristas são particularmente úteis
quando o estudante tenta compreender como o crente percepciona o seu objecto. No
entanto, nem todas as obras pró-esotéricas têm um objectivo proselitista, um bom
exemplo de outro tipo de leitura histórica pró-esotérica pode ser encontrado na obra
de Frances Yates, cujos trabalhos sobre Giordano Bruno (2002 [1964]) ou os
Rosacrucianos (1972) são, ainda hoje, duas das mais importantes e influentes obras
sobre a história do Esoterismo Ocidental. Yates é pró-esotérica de uma forma
diferente; revelando o esoterismo como um terceiro poder na história – ao lado da
ciência e da religião – que ela considera como tendo sido marginalizado Um exemplo
disto pode ser visto no seu livro sobre o “Iluminismo Rosicruciano” onde sumariza o
seu argumento dizendo:

Uma forma de ver as explorações deste livro é vê-las como tendo descoberto
um período perdido da história Europeia. Como arqueólogos escavando

7
Goodrick-Clarke, N. 2008 The Western Esoteric Traditions Oxford: Oxford
University Press, p.12
através de camadas de terra descobrimos sob a história superficial do século
XVII, no período imediatamente anterior à guerra dos trinta anos, uma
cultura completa, uma civilização completa, desconhecida, e não menos
importante devido à sua curta duração. Podemos chamar-lhe uma cultura
Rosicruciana.8

Sem essa intenção, a abordagem de Yates levou muitos estudantes do esoterismo a


assumir a posição de opositores ao racionalismo frio da modernidade, olhando em
alternativa para seu “eu interior” como fonte de inspiração. Como Hanegraaff escreve,
isto criou alguns problemas para o estudo do Esoterismo Ocidental:

Como resultado, pode-se reparar hoje que até alguns dos melhores (e
ocasionalmente os óptimos) especialistas das tradições herméticas e
relacionadas têm os seus momentos em que o estudo das tradições esotéricas
ocidentais cede a, ou mistura-se com, defesas de perspectivas esotéricas como
o “caminho para a salvação do Homem moderno”.9

Argumentos anti-esotéricos têm também os seus proponentes. Anti-esoterismo pode


ser dividido em duas categorias principais: escritores que se opõem a crenças
esotéricas, vendo-as como supersticiosas ou obscurantistas, e escritores que defendem
que o esoterismo é uma perspectiva perniciosa que deve ser combatida. No primeiro
grupo podemos incluir a maior parte dos escritores académicos sobre esoterismo até à
década de 1960. Um dos escritores que assumiu esta posição é Lynn Thorndyke, que
produziu uma obra substancial intitulada A History of Magic and Experimental
Science (1923-58) em oito volumes e que descreve, por exemplo, os textos mágicos
atribuídos ao Rei Salomão como:

8
Yates, F. 1972 The Rosicrucian Enlightenment, Nova Iorque: Routledge,
p.290
9
Hanegraaf, Idem. p.xiii
[...] no todo […] passiveis de passar a impressão ao leitor moderno de
confusões sem sentido compostas de diagramas e palavras mágicas.
(Thorndike, 1923-58, Vol. II, p. 282)10

Ou:
O texto está repleto de nomes de espíritos, orações em palavras estranhas,
supostamente derivadas do Hebreu ou Caldeu, e outras asneiras. (Thorndike,
1923-58, Vol. II, p. 286)11

Outra escritora com esta posição é E.M. Butler, que escreveu um dos estudos mais
completos sobre magia cerimonial (1949). De novo, falha não só por uma atitude
sobranceira em relação aos textos mágicos e os seus praticantes e crentes, mas
também pelo facto de que o livro atinge a conclusão final de que a magia ritual “afinal
não é assim tão satânica”, o que demonstra uma falta de compreensão do material
sobre o qual incidia o seu estudo. Alguns anti-esotéricos são mais agressivos nas suas
posições; por vezes, estes escritores têm motivações ulteriores na sua oposição ao
esotérico e oculto, quer originando na sua filosofia política (como a posição de Eric
Voegelin em relação aos Gnósticos, por exemplo)12 ou devido a uma oposição com
motivações religiosas ao que alguns consideram ideias e rituais satânicos.13 Entre
estes dois pólos de pró e anti-esoterismo está a posição do historiador representada
por autores como Ronald Hutton, Gershom Scholem, Hanegraaff, Goodrick-Clarke e
até mesmo Frances Yates que mesmo enfatizando, (talvez demais), a importância do
esotérico toma uma perspectiva mais ética da história do esoterismo e do oculto do
que a maior parte dos escritores. O livro de Hutton Triumph of the Moon (2001) é
uma obra central para o entendimento do desenvolvimento do movimento Wiccan e

10
Thorndike, L. 1923-58 A History of Magic and Experimental Science Nova
Iorque: Columbia University Press, p. 282
11
Thorndike, L., Idem. p. 286
12
Hanegraaff, W. 1998b “On The Construction of Esoteric Traditions” in Faivre,
A. & Hanegraaff, W. 1998, Western Esotericism and the Science of Religion Leuven:
Peeters, pp. 29-36
13
Taylor, P, 2005 The Occult – What Does The Bible Say About It, Disponível
em: http://www.christiananswers.net/q-eden/edn-occult.html [Acedido em 29/12/09] ,
s.p.
Neo-Pagão no século XX, enquanto a obra de Scholem Major Trends in Jewish
Mysticism de 1941 toma uma perspectiva histórica e analítica do desenvolvimento do
pensamento Cabalístico. A obra de Goodrick-Clarke, mencionada acima, toma uma
perspectiva cronológica do desenvolvimento do pensamento esotérico desde o antigo
Egipto e o nascimento do Hermetismo até ao século XXI, mostrando como estes
movimentos se inter-relacionam, sendo neste momento o mais próximo a uma
introdução isenta a todo o campo de estudo disponível ao estudante, bem como o
primeiro volume que serviria idealmente como livro de estudo para uma cadeira
generalista sobre as tradições esotéricas ocidentais a um nível universitário.
Hanegraaff, que foi também mencionado acima, produziu uma obra intitulada New
Age Religion and Western Culture: Esotericism in the Mirror of Secular Thought
(1998), que é uma análise ponderada e bem documentada das diversas facetas do
movimento “Nova Era” ou “New Age”. Este livro analisa uma variedade de
fenómenos dentro daquilo a que se chama “Nova Era”, analisando assuntos desde
medicinas alternativas e mediunidade, até a hermetismo e correntes mágicas. A obra
de Hanegraaff, que se espalha por mais de quinhentas páginas, baseia-se em
metodologia sólida explicada na introdução à obra:

Os resultados finais de investigação académica devem ser expressos em


linguagem ética, e formulados de forma a permitir criticismo e falsificação14
tanto por referência a material émico como em relação à sua coerência e
consistência no contexto do discurso ético em geral.15

Estas são considerações relacionadas com o campo mais vasto do Estudo das
Religiões que raramente são discutidas no estudo do Esoterismo Ocidental mas que
são indispensáveis para o desenvolvimento da disciplina. Esta ultima categoria de
obras que não é claramente nem pró nem anti-esotérica é, infelizmente, a categoria
onde menos obras abundam. Os exemplos acima, mesmo que não exaustivos, são
representativos do campo de estudo. Bom trabalho académico nesta disciplina é raro
enquanto obras populares são abundantes.

14
Nos princípios da Falseabilidade expressos por Karl Popper.
15
Hanegraaff, W. 1998 New Age Religion and Western Culture: Esotericism in
the Mirror of Secular Thought Nova Iorque: SUNY, pp.6-7
Exemplo: Obras que cobrem especificamente Mathers, a Golden Dawn e a
Clavicula Salomonis

Como exemplo daquilo que defronta o estudante do Esoterismo Ocidental,


examinamos agora um caso específico de forma a analisar como a literatura existente
tem impacto na investigação académica. Neste caso particular referindo-nos a um
ocultista do século XIX, a ordem esotérica fundada por ele (Golden Dawn) e à fonte
para a sua maior obra, a tradução da Clavicula Salomonis, um manual mágico do
século XIV.

Se a investigação existente sobre o estudo do Esoterismo Ocidental cobriu de forma


competente e de certo modo extensa o período entre o renascimento e a primeira
16
modernidade, o mesmo não pode ser dito sobre o período pós-iluminismo,
particularmente no contexto Anglo-Saxónico. Algum trabalho de qualidade tem sido
feito em particular sobre o movimento “Nova Era”17 e os movimentos Neo-Pagãos e
Wiccan18. No entanto, uma falta de trabalho académico é particularmente flagrante no
que diz respeito a estudos sobre a Golden Dawn19, Mathers e até mesmo Aleister
Crowley. Um investigador interessado nos desenvolvimentos em ordens ocultistas a
partir de 1880 é quase completamente forçado a servir-se de abordagens émicas ao
assunto, frequentemente produzidas por organizações ocultistas relacionadas, directa
ou indirectamente, com a Golden Dawn. Algumas destas fontes são, no entanto, úteis,
não só porque mostram a perspectiva émica em relação ao assunto em questão, mas
também porque em muitos casos têm uma abordagem pragmática em relação à sua
própria história, não escamoteando alguns dos episódios mais infelizes no
desenvolvimento da Golden Dawn ou da vida de Mathers. Dentro deste género
existem duas obras recentes, The Essential Golden Dawn (2003) por Chic e Sandra T.
Cicero e Revelations of the Golden Dawn (1997) por R.A. Gilbert. O primeiro livro é
escrito por autores com um interesse investido na Golden Dawn fazendo parte da

16
Ver a obra de Frances Yates, Antoine Faivre, B.J. Gibbons et al.
17
Hanegraaf, W. 1998, Idem.
18
Para além da obra de Ronald Hutton, um obra sociológica de algum valor é
Drawing Down The Moon (2006) de Margot Adler.
19
The Hermetic Order of the Golden Dawn, por vezes traduzida para Português
como “Aurora Dourada”, uma das organizações mais influentes no desenvolvimento
do Esoterismo na segunda metade do Séc. XIX e durante todo o séc. XX:
mesma como Adeptos e como fundador de uma das novas ordens revivalistas
baseadas na Golden Dawn no caso de Chic Cicero. Isto não os previne, por exemplo,
de tomarem em conta o facto de que a correspondência original entre Westcott e Frau
Sprengel que deu origem à ordem foi provavelmente forjada, ou de descreverem em
detalhe os problemas e desavenças que levaram à dissolução da ordem. Já a obra de
Gilbert tem uma perspectiva diferente; a perspectiva de um Maçon que em geral tem
pouca simpatia pela ordem. A sua atitude para com os membros da Golden Dawn é
representada na sua introdução:

Se parece que me concentrei nas suas tolices e delitos, isto é porque a história
da ordem é maioritariamente uma história de tolices e delitos. 20

Gilbert consegue juntar, no entanto, uma impressionante colecção de documentos


sobre a ordem da Golden Dawn. A maior parte desta documentação está também
presente em Magicians of the Golden Dawn: A Documentary History of a Magical
Order, 1887-1923 (1978) de Ellic Howe e em Golden Dawn Sourcebook (1996) de
Darcy Kuntz. O livro de Howe conta a história da Golden Dawni através de notas e
correspondências entre os membros da ordem, enquanto o livro de referência de
Kuntz inclui a maior parte da correspondência conhecida, em ordem cronológica, bem
como ensaios por escritores populares sobre a Golden Dawn. A obra de Kuntz é pois
de grande importância para o estudo da Golden Dawn. Nenhuma destas obras pode,
no entanto, ser considerada académica. Referências são quase inexistentes, nenhuma
metodologia é tida em conta e as origens de muitos dos documentos nunca são
explicadas. As obras de Cicero, Gilbert, Howe e Kuntz são exemplos de trabalho
jornalístico popular sobre a Golden Dawn e não estudos académicos. Por muito úteis
que possam ser para o membro ou estudante da Golden Dawn, são pouco mais do que
colecções de “factos” em relação à história da ordem, incluindo a história de Mathers,
o seu fundador. Literatura relativa à Clavicula Salomonis é ainda mais rara; A.E.
Waite dedica cinco páginas do seu The Book Of Black Magic (1911) à Clavicula,
onde demonstra o seu forte desprezo pelo texto:

20
Gilbert, R. 1997a. Revelations of the Golden Dawn. Slough: Foulsham, p. 4
A “Chave de Salomão” é uma combinação grotesca do pomposo e do
ridículo, é, de facto, a velha história da montanha e do rato, mas o parto é tão
trabalhoso que, neste caso, o rato nasce morto.21

O panorama académico em relação a Mathers, a Golden Dawn ou a Clavicula é


lamentável. Não existem obras únicas dedicadas a nenhum destes assuntos e as obras
que os mencionam são poucas. A obra académica que mais extensamente explora a
Golden Dawn é Western Esotericism and Rituals of Initiation (2007) de Bogdan, que
dedica um capítulo inteiro aos ritos iniciáticos da Golden Dawn. Isto não quer dizer
que a importância de Mathers não seja reconhecida. Uma nota de rodapé interessante
em New Age Religion and Western Culture de Hanegraaff reconhece a influência de
Mathers:

A “Hermetic Order of the Golden Dawn” é uma ordem mágica da viragem do


século. Todos os grupos que praticam magia ritual no século XX estão
dependentes do impressionante sistema de rituais que foi desenvolvido pelo
seu membro mais criativo, Samuel Liddell McGregor Mathers. 22

Este reconhecimento torna ainda mais surpreendente que nenhum trabalho académico
significativo tenha sido feito sobre Mathers.

Conclusão

A existência de diversas perspectivas e abordagens ao estudo do Esoterismo


Ocidental, apesar de tornar o campo mais confuso para aqueles que o experienciam
pela primeira vez, torna esse mesmo campo mais interessante para o investigador e é
uma prova do carácter vivo das tradições esotéricas no ocidente. O investigador tem
então de navegar através de perspectivas pró e anti-esoterismo, bem como as
abordagens histórico-empíricas, aprender a distinguir visões émicas e éticas e a dar os
relativos pesos e importâncias a cada uma destas abordagens. A existência de várias
“racionalidades” no estudo do Esoterismo Ocidental não é necessariamente uma

21
Waite, A. E. 1972 [1911] The Book Of Black Magic Boston: Red
Wheel/Weiser, p. 67
22
Hanegraaf, W. , Ibid, p.87, nota de rodapé.
dificuldade, visto que estas se complementam. Sem as perspectivas émicas, o
investigador ético não teria nada para investigar, e mesmo dentro das abordagens
éticas a existência de várias escolas de pensamento tão concretamente definidas torna
o investigador num ser constantemente consciente da sua posição no campo de
estudo, e também da relevância metodológica das suas afirmações. Sendo também
uma disciplina em franco crescimento, conforme nos vamos apercebendo da
influência histórica de uma corrente de pensamento muitas vezes descurada pela
academia, está ainda em estado embriónico, em constante desenvolvimento e diálogo,
tanto dentro do campo ético como entre os campos éticos e émicos de pensamento. As
vantagens e desvantagens dos vários géneros de “racionalidade” presentes em obras
dentro desta área, são então relativas ao objectivo do estudioso, enquanto o produto
final do estudo académico deve ter uma vertente ética, as fontes émicas são essenciais
como matéria prima para esse trabalho. É no entanto necessário um constante
exercício de análise e de introspecção de forma ao estudioso poder estar sempre ciente
da sua posição metodológica bem como aquela das suas fontes, de forma a poder
então atribuir os pesos e relevâncias relativas às diferentes abordagens.

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