Você está na página 1de 20

Fundamentos da Pesquisa V.

A la investigación hay que


dedicarse al cien, por cien.
Esto es una pasión o no es nada.
La suerte existe, pero hay que
estar ahi cumplinendo horas
Margarita Salas

O estado da questão: aportes


teórico-metodológicos e relatos de
sua produção em trabalhos científicos
Silvia Maria Nóbrega-Therrien
Jacques Therrien

1 O estado da questão: colocando os pontos nos “is”


Quando pensamos em publicar uma coleção de textos sobre pes-
quisa para alunos iniciantes dos cursos de graduação e pós-graduação,
uma das preocupações que também surgiu entre nós, autores desta coletâ-
nea, professores há tempo de disciplinas articuladas ao ensino da pesqui-
sa e com pesquisa, foi a de também buscar textos com enfoques de interes-
se já publicados por nós ou por outros colegas da academia, e que pudes-
sem ser atualizados e reconduzidos com a linguagem de sala de aula. Este
escrito sobre trabalhos científicos e o estado da questão-EQ12 foi um deles.
Após a publicação, no ano de 2004, do primeiro ensaio sobre essa
temática, passamos a aprofundar essa compreensão de construção e de-
senvolvimento do EQ em trabalhos científicos com alunos nos contextos
de sala de aula. Entre diversas experiências, tivemos a oportunidade de
oferecer um seminário de 40 horas aulas sobre essa temática com alunos
do curso de doutorado em Innovacion Pedagógica y Curricular, na Universidad
Pedagogica Nacional, cidade de Morelia, Estado de Michoacán, no Méxi-
co, em janeiro de 2008. A avaliação final dos alunos confirmou uma im-
portante ajuda na condução dos seus objetos de investigação e
consequentemente no desenvolvimento de suas teses. Da mesma forma,
outras experiências foram e estão sendo vivenciadas nessa construção do

12
Texto originalmente publicado pela Fundação Carlos Chagas, na revista Avaliação Educacional, no seu
volume de n.15, n.30, jul/dez, de 2004, com o titulo de: Os trabalhos científicos e o estado da questão:
reflexões teórico-metodológicas, p.5-16.

33
Pesquisa científica para iniciantes: caminhando no labirinto

EQ por nós e pelos alunos, tanto no curso de doutorado em educação, na


UFC, como no curso de mestrado em educação na UECE.
A avaliação dessa abordagem em disciplina de pesquisa é sem-
pre bastante positiva o que nos levou a exigir dos alunos que orientáva-
mos e orientamos atualmente, que inserissem em suas dissertações e
teses o estado da questão referente ao seu objeto de investigação. Desta-
camos o fato de que nós professores também colhemos os frutos deste
trabalho e novamente replantamos estas sementes cada vez mais
selecionadas pela prática da vivência.
Contextualização realizada, o que é o Estado da Questão-EQ? Que
resultados podemos obter com a sua elaboração? Que diferenças existem
entre o que denominamos estado da questão, estado da arte e revisão de
literatura com relação aos seus objetivos, procedimentos, fontes de consulta
e resultados? O que se necessita para seu desenvolvimento e construção?
Este escrito pretende responder a estas perguntas numa lingua-
gem para pesquisadores iniciantes, bem como trazer um pouco da experi-
ência de elaboração do EQ por alunos/mestrandos e pesquisadores da
academia, que de certa forma conduziram seu texto nesse sentido e, por-
tanto compreendem a necessidade de sua elaboração, embora não a iden-
tifiquem no seu trabalho ou em parte dele, com o nome de o EQ.
Assim, se justifica nossa pretensão não de estabelecermos somen-
te definições, mas passos para o seu entendimento e, consequentemente,
para instrumentalizar com maior clareza o estudante/pesquisador quando
da construção do seu tema de dissertação ou de tese.

2 O que é o estado da questão-EQ?


Podemos começar dizendo que trabalhar o estado da questão é
uma maneira que o estudante/pesquisador pode utilizar para entender e
conduzir o processo de elaboração de sua monografia, dissertação ou tese,
ou seja, de produção cientifica com relação ao desenvolvimento de seu
tema, objeto de sua investigação. É um modo particular de entender, arti-
cular e apresentar determinadas questões mais diretamente ligadas ao
tema ora em investigação.
A finalidade do EQ é a de levar o pesquisador a registrar, com
suporte em um rigoroso levantamento bibliográfico, como se encontra o
tema ou o objeto de sua investigação no estado atual da ciência ao seu
alcance. Sua finalidade também é a de contribuir para o rigor científico e
a criticidade no mergulho bibliográfico realizado pelo estudante/pes-
quisador, de modo a evitar vieses na construção das categorias teóricas
e empíricas que vão ser trabalhadas por ele na revisão de literatura.
Em outros termos, o EQ transborda, de certo modo, os limites de

34
Fundamentos da Pesquisa V.1

uma revisão de literatura centrada mais exclusivamente na explicitação


de teorias, conceitos e categorias. A concepção proposta por nós de EQ
requer uma compreensão ampla da problemática em foco fundada nos
registros dos achados científicos e nas suas bases teórico-metodológicas
acerca da temática. Desse mergulho decorre igualmente a contribuição
do próprio estudante/pesquisador, cuja argumentação, lógica, sensibili-
dade, criatividade e intuição delimitam as dimensões da nova investiga-
ção. É precisamente esse processo e o material/texto produzido nesta
fase pelo pesquisador que fornecem os elementos para identificar e defi-
nir os referenciais e as categorias (a chamada base teórica) imprescindí-
veis à análise dos dados no enfoque pretendido.
É importante mencionar o fato de que geralmente nos trabalhos
científicos onde encontramos o EQ, este se estrutura didaticamente em
um texto apresentado em um item especifico, seja capitulo ou subcapitulo.
O EQ, no entanto, não se encontra limitado a este espaço, pois ele subsi-
dia e perpassa todo o estudo, uma vez que ajuda a redefinir os objetivos
e, nesse sentido, ajuda no planejamento do campo teórico-metodológico;
contribui na identificação das categorias teóricas que constroem o argu-
mento expresso nas discussões e análises dos dados e. finalmente, mos-
tra na conclusão da pesquisa, de forma explicita ou implicitamente, a sua
contribuição para a construção do conhecimento.
A elaboração de um capítulo ou subcapítulo em trabalhos cientí-
ficos dedicado ao EQ não é uma prática recorrente, particularmente no
Brasil, sendo mais frequente em estudos desenvolvidos no Continente
Europeu. Observamos que os trabalhos científicos, principalmente aque-
les produzidos na academia, apresentam compreensões diversas do EQ.
Explicitar essas compreensões e seus significados se faz necessário para
ajudar a nossa maneira de entendê-lo.

3 O estado da questão, a revisão de literatura e o estado da arte: qual a


inter-relação?
Após definir o que chamamos de EQ, podemos então assinalar
que ele transborda de certo modo os limites de uma revisão de literatura
centrada mais exclusivamente na explicitação de teorias, conceitos e ca-
tegorias. Ele visa na sua elaboração a certa ‘especificidade’, que é a de
contribuir com a construção do tema de pesquisa. Essa contribuição
especifica sucede quando o levantamento realizado pelo pesquisador
demonstra o que existe na ciência atual sobre o tema a ser pesquisado,
destacando assim a contribuição original de seu atual estudo para o
conhecimento na área.
No caso da elaboração de uma revisão de literatura, tem-se
constatado que esta, geralmente encontrada nos trabalhos científico/

35
Pesquisa científica para iniciantes: caminhando no labirinto

acadêmicos, procede de modo diverso de um estudo do EQ. Essa dife-


rença não afeta a sua importância e imperativo em qualquer estudo
que se diga científico. Geralmente a revisão da literatura se apresenta
como um encadeamento de categorias teóricas do trabalho, didatica-
mente organizadas e sintetizando autores de referência. Narrada em
um capítulo, a revisão da literatura constitui um texto que traz a base
teórica de sustentação para a análise dos dados, fornecendo ao estu-
dante/pesquisador importantes referenciais para interpretar e explo-
rar o seu tema de investigação.
Na nossa compreensão, essa última interpretação da revisão da
literatura constitui uma parte apenas do EQ. Entendemos que um texto
abordando o EQ se inicia por uma busca na literatura dos resultados de
pesquisas ou estudos acerca do problema sob investigação, o que envolve
necessariamente uma ‘revisão de literatura’. O texto ou a narrativa resul-
tando dessa busca, contudo, deve relatar por onde passam e em que pon-
to se encontram as descobertas científicas até o momento. Dessa forma,
ele constitui referencial que permite chegar com maior clareza à delimita-
ção do novo objeto de investigação, a sua especificidade e contribuição e,
posteriormente, à elaboração das categorias de análises necessárias para
a interpretação dos dados, constituindo, assim, a fundamentação teórica
do estudo. Estas categorias teóricas são geralmente trabalhadas em capi-
tulo que recebe frequentemente o nome de revisão de literatura ou de
base teórica.
Sintetizando a discussão, na elaboração do EQ, procede-se a uma
revisão de literatura, porque esta permite levantamentos e mapeamentos,
mas com um objetivo especifico que conduz a identificar o que existe na
ciência sobre o tema e, a partir daí, delimitar e definir que contribuição a
realização do estudo pode trazer para a área cientifica. Procedendo as-
sim, resta claro que a elaboração do EQ traz contribuições que subsidiam
todas as partes que compõem a investigação cientifica, como um todo.
Quando falamos do ‘estado da arte’ nos processos de produção
cientifica, esta referência também pode ser contraposta ao EQ. No caso
do ‘estado da questão’, a busca seletiva e crítica de informação da produ-
ção cientifica restringe-se aos estudos e parâmetros próximos às
especificidades do interesse do pesquisador, o que requer a consulta a
documentos substanciais. A literatura referente ao ‘estado da arte’, por
sua vez, estabelece que este tem por objetivo “mapear e discutir uma
certa produção acadêmica em determinado campo do conhecimento
(FERREIRA, 2002, p. 258), utilizando predominantemente fontes de con-
sulta disponíveis na forma de resumos ou catálogo de fontes. Nesta com-
preensão, a autora associa o estado da arte a “uma metodologia de
caráter inventariante e descritivo da produção acadêmica e cientifica
sobre o tema que busca investigar”.

36
Fundamentos da Pesquisa V.1

No caso do estado da arte, este tipo de estudo, que inclui tam-


bém revisão de literatura, tem como finalidade especifica mapear os es-
tudos publicados e suas temáticas, por quem foram produzidos, com que
objetivos e que conteúdos abordam em relação a determinados temas ou
área do conhecimento. Este enfoque apresenta como resultado um qua-
dro diagnóstico, inventariante e descritivo sobre como se encontra a pes-
quisa nessa área. É evidente que há ‘estudos e estudos’ sobre o estado da
arte, embora sua proposta de resultados não seja diferente. O rigor cien-
tífico, a abrangência, a qualidade das descrições e, algumas vezes, até das
análises, são elementos que evidenciam as diferenças.
O estudo sobre o ‘Estado da arte da formação de professores no
Brasil’, realizado por André, Simões, Carvalho e Brzezinski (1999), por exem-
plo, reúne com maestria esta síntese interpretativa sobre o tema. A inves-
tigação foi desenvolvida com base em análises das dissertações e teses
defendidas nos programas de pós-graduação em Educação do País, de
1990 a 1996, dos artigos publicados em dez periódicos da área, no perío-
do de 1990-1997, e das pesquisas apresentadas no Grupo de Trabalho
Formação de Professores da ANPED, no período de 1992-1998. No EQ, o
estudante/pesquisador se apropria dessa contribuição do estado da arte
para articular estes achados com a especificidade do seu tema e definir
com clareza onde ele se insere na produção identificada e que contribui-
ções ele promete trazer, inclusive para a área de trabalho.
Para delimitar esta discussão, é apresentado na próxima página
um quadro que sistematiza as principais características do estado da ques-
tão, do estado da arte e da revisão de literatura nos processos de produ-
ção científica, quanto aos objetivos, procedimentos, fontes de consulta e
resultados de cada enfoque.
Não pretendemos esgotar a discussão neste capítulo, pois en-
tendemos que a posição deste mergulho que o estudante/pesquisador
realiza na bibliografia durante a elaboração do EQ requer um cuidado e
um rigor que não está desvinculado dos distintos métodos de investiga-
ção e de suas bases teóricas e filosóficas. A criticidade quanto aos traba-
lhos produzidos, como também o rigor científico, constituem recursos
necessários para a elaboração de um corpus de conhecimento acerca
do tema e da posição do pesquisador diante do seu objeto de estudo.
Este procedimento contribuirá para evitar que um possível ajustamento
dos conceitos ao objeto de estudo conduza o pesquisador a ser dirigi-
do por concepções, categorias ou até por assertivas duvidosas. A ela-
boração do EQ, neste sentido, deve ser criticamente examinada em seu
conteúdo, nas medidas utilizadas e nas conclusões, de modo a corrigir
possíveis vieses em que a pesquisa possa ter incorrido (HEK et al. 1997;
MORSE; FIELD, 1998).
O EQ configura, então, o esclarecimento da posição do pesqui-
sador e de seu objeto de estudo na elaboração de um texto narrativo, a

37
Pesquisa científica para iniciantes: caminhando no labirinto

Fonte: Elaboração dos autores.

concepção de ciência e a contribuição epistêmica deste no campo do


conhecimento.

4 O estado da questão: do que se necessita para sua construção?


Poderíamos referir que na elaboração do EQ pelo estudante pes-
quisador deveriam estar presentes os sete indicadores para avaliação de
um trabalho científico proposto por Bell (1985), que os relaciona com
tipos diferentes de domínios que o estudante/pesquisador, deve alcançar.
Destacamos, entretanto, dois destes domínios considerados imprescindí-
veis para a elaboração do EQ, os domínios conceptual e da literatura.
Para Bell (1985), o estudante alcança o domínio da literatura quan-
do é capaz de referenciar uma relevante e extensiva literatura e, ao mes-
mo tempo, utilizá-la no desenvolvimento de análise e discussão de ideias,

38
Fundamentos da Pesquisa V.1

incluindo o desenvolvimento crítico articulado a esta mesma literatura.


Com relação ao domínio conceptual, ainda para o mesmo autor,
o estudante deve ser capaz de organizar com coerência, ideias, perspec-
tivas ou teorias relevantes para interpretar e explorar seu tema de estu-
do e acrescentar a este a análise critica, avaliando ainda as ideias,
perspectivas ou teorias encontradas, demonstrando habilidades para
síntese no processo de desenvolver o argumento.
A lógica de elaboração do capítulo onde se insere o EQ vai além
dos dois domínios propostos, embora nestes encontre as bases de referên-
cia ou de apoio de elaboração do texto. Isto é, deve-se levar em considera-
ção a necessidade de desvelar o fato de que, por trás do palco e da cena
identificada como problema de pesquisa, existe na trajetória de vida do
estudante/pesquisador um sem-número de ensaios, erros e acertos, de
encontros e perdas, que envolvem diretamente sua subjetividade/objetivi-
dade. Procurar os elementos constitutivos da problemática em foco envol-
ve inteligência, sensibilidade, criatividade, planejamento e buscas concre-
tas. Encontrar os caminhos por onde e como chegar a estas descobertas
implica uma atividade que exige boa dose destes atributos, acrescentando
a eles uma parcela significativa de dedicação por parte do orientador.
São esses atributos imbricados ao domínio conceitual e da litera-
tura que propelem a elaboração da argumentação que moldará o desen-
volvimento do EQ. Referida argumentação obedece a uma arqueologia
subjetiva, própria do estudante/pesquisador quando escolhe ou define
por onde, como e principalmente, com que começar. De posse de todas
as informações, estudos e documentação, o estudante se angustia na busca
do caminho a seguir. O que vem primeiro? O que significa começar por
um determinado argumento em vez de outro? Deve-se obedecer a uma
lógica, a uma seqüência cronológica dos achados?
Na elaboração do EQ, a organização dos achados exige, portanto,
competência e habilidade de elaboração de texto, para que não resulte
num amontoado de informações que se assemelhem mais a uma colcha
de retalhos denunciando a falta de uma autoria própria do texto e, muitas
vezes, a não-existência de elaboração deste. Neste caso, o argumento di-
ficilmente se constrói uma vez que não encontra a âncora, ou o famoso
gancho, para a partir daí decolar.
Importa lembrar que no EQ os achados têm de estar necessaria
ou diretamente articulados ao tema: devem referenciar especificamente
o que existe em publicações ou estudos com relação a este, na área de
investigação do estudante/pesquisador, na sua profissão, seja no con-
texto local, nacional ou internacional, não obedecendo necessariamen-
te a esta ordem. Se o estudo aborda, por exemplo, ‘as relações de domi-
nação e resistência no trabalho da enfermeira’ (NÓBREGA-THERRIEN, 2000,
2007), é necessário verificar o que existe a respeito do tema no ‘Centro

39
Pesquisa científica para iniciantes: caminhando no labirinto

de Estudos e Pesquisas em Enfermagem’, em artigos de revistas indexadas


com Qualis A e B, preferencialmente, estudos produzidos e socializados
por pesquisadores ou grupos de pesquisa da categoria ou ainda de profis-
sionais de áreas afins.
As buscas devem ser, nesse sentido, transversais e
interdisciplinares uma vez que os conceitos de dominação, submissão e
resistência são apropriados aos estudos realizados em outras áreas disci-
plinares do conhecimento. A busca em outras áreas aprimora as habilida-
des do estudante/pesquisador na articulação destes achados com a
especificidade de sua temática.
É nessa perspectiva, portanto, que o texto, feito capítulo específi-
co do projeto, vai se produzindo, trazendo na sua síntese uma contribui-
ção original a respeito do tema pesquisado. Essa contribuição tem apoio
em estudos, posições, discussões teóricas, além das evidências empíricas
dos fatos, do todo organizado e apresentado na argumentação própria do
estudante/pesquisador.
O capitulo sobre o EQ, portanto, tem a finalidade de deixar clara
a contribuição pretendida pela pesquisa ao tema investigado e ao estudo
como um todo. Partindo da apresentação dos caminhos, dos referenciais
e das conclusões encontradas na documentação consultada referente aos
estudos e pesquisas dos autores escolhidos ou até de trabalhos de sua
autoria (quando se tratar de um tema já investigado por ele, por exemplo,
em um trabalho anterior de dissertação de mestrado) o pesquisador, no
seu modo próprio de argumentação e de apresentação, formula sua per-
cepção original da questão ou da problemática em foco, desvelando o
horizonte que pretende atingir. Dessa forma, se encerra o texto, deixando
a abertura para o que vem a ser o novo, ou seja, a contribuição do seu
trabalho sobre o tema investigado.

5 A construção do estado da questão: a narrativa sempre é uma recriação


Depois da busca inicial, e muitas vezes concomitantemente a ela, o
estudante/pesquisador começa a etapa propriamente dita da feitura do EQ.
Observa-se a parada em frente ao computador, o lápis diante do papel, a
pausa para reflexão, a interrogação sobre qual o ponto de partida e qual
o de chegada, como parte desse panorama de criação.
É de posse dos dados que a narrativa se desenha, formando-se
uma ordem que obedece ao narrador, no caso, ao estudante/pesquisador.
Esses mesmos indicadores entregues nas mãos de outro pesquisador, pos-
sivelmente, teriam outra forma de organização, com narrativa diferente.
Parafraseando Gatti (2002), a habilidade e a experiência do pesquisador
na condução e análise dos dados estabelecem o modo diferente quanto à
obtenção de resultados qualitativamente bons.

40
Fundamentos da Pesquisa V.1

No desenvolvimento desse processo de criação cabe a citação de


Margarita Salas (1999) referida no inicio deste capitulo, “hay que estar
ahi cumplinendo horas”. A pesquisa exige tempo, dedicação, além de com-
petências e habilidades para sua realização. Por isso deve fazer parte do
Projeto de Investigação do estudante/pesquisador um plano de trabalho
ou especificamente um cronograma de atividades no qual constem as
fases de desenvolvimento da pesquisa, com determinação de períodos/
datas de execução, enfim, um planejamento prévio que contribuirá para
cumprimento dos prazos com êxito.
Há diversas possibilidades de se construir o texto. Por um lado,
este será mais fácil de ser elaborado por aqueles possuidores das habilida-
des que envolvem a linguagem escrita, ou seja, aqueles que têm facilidade
para escrever. Por outro lado, só esta habilidade não é tudo, pois se precisa
contar com os achados, dispor de um bom material devidamente fichado,
com todas as referências que serão exigidas para as citações, seja no corpo
do texto, seja para notas de rodapé ou até para os apêndices. Daí fica evi-
dente que a fase de composição do argumento que dá consistência ao EQ
depende principalmente da documentação coletada, e, também, da capa-
cidade do estudante/pesquisador de articular esta documentação com sen-
tido, coerência, idéias, conceitos ou teorias, avaliando-as e acrescentando
analise critica, sem menosprezar a intuição, a sensibilidade e a criatividade
que os resultados finais da investigação deverão referendar ou não.
Essa capacidade é igualmente referida por Gatti (2002, p. 53), quan-
do aborda a questão do método e a relação entre o problema focalizado, os
conteúdos da ciência, as especificidades do campo de investigação, os pro-
cedimentos e os instrumentos de coleta de dados. Diz a autora que “um
bom martelo, uma boa pá são absolutamente necessários para um traba-
lho de qualidade mas, também, necessita-se de um artesão habilidoso e
experiente em seu uso para a obtenção de resultados qualitativamente bons.
Apenas uma boa pá nas mãos de quem não desenvolveu condições e não
tem uma perspectiva para seu uso não garante um bom resultado”.
Nessa hora, é igualmente importante o que lembra Eco (1988, p.
44) quando nos fala que não existe a priori uma hierarquia de obras úteis e
importantes, complementando: “para os objetivos de nossa pesquisa, uma
idéia contida quase por engano na página de um livro de outra forma
inútil (e considerado irrelevante por quase todos) pode revelar-se decisi-
va; tal página precisa ser descoberta por nós, com empenho e um pouco de
sorte, sem esperar que alguém venha nos oferecer em uma bandeja de
prata”. Lembrar, no caso, dos domínios e, sobretudo, da intuição e sensibi-
lidade necessárias ao pesquisador para estes descobertas.
Não se pode esquecer de que, além de tempo, dedicação, capaci-
dade e habilidades, o estudante/pesquisador precisa de um local apropri-
ado para trabalhar. Se ele dispõe em sua casa ou na universidade, além de

41
Pesquisa científica para iniciantes: caminhando no labirinto

computador, de um cantinho com mesa, de pastas para organização e


distribuição da documentação coletada e de seus fichamentos, todo o
trabalho da pesquisa será mais bem desenvolvido.
Os achados podem ser separados, obedecendo a uma cronologia
no tempo (os mais antigos e os mais recentes), a uma cronologia geográfica
(local, nacional, internacional) e a uma ordem de conteúdo, ou seja, os mais
diretamente ligados ao tema. A título de exemplo, utilizamos mais uma vez
o tema “dominação e resistência no trabalho da enfermeira (NÓBREGA-
THERRIEN, 2000)”. Neste, encontramos estudos:
• relacionados com a profissão, que enfocam estas categorias em
parte ou no todo;
• da área de Enfermagem, que abordam categorias que possam
estar associadas a ‘dominação e resistência’, como conflitos, insa-
tisfação no trabalho da enfermeira, submissão, poder, greves;
• de outras profissões que abordam as mesmas categorias ou cate-
gorias similares; e
• de outras disciplinas do conhecimento, principalmente nas ciên-
cias sociais, como a Sociologia, a História, a Antropologia.
São estudos que tenham um valor de analises para o tema em ques-
tão uma vez que, por exemplo, a luta e a resistência estão neles submergi-
dos e que aportam elementos úteis e essenciais, onde se evidencia uma
preocupação em mostrar a complexidade da reprodução e dominação ide-
ológica e cultural na sociedade, suas contradições e conflitos. No caso do
tema citado, são estudos que oferecem um contexto teórico no qual se
possam identificar vínculos entre relações de força e vínculos de sentido.
Com um pouco mais de clareza sobre o caminho a ser percorrido
e, de posse do material coletado, no todo ou em grande parte, o estudan-
te/pesquisador deve escolher o que pode ser utilizado na elaboração do
EQ e o que provavelmente servirá para ser mais bem explorado e utiliza-
do nas discussões e analises teóricas que serão realizadas nos capítulos
posteriores que farão parte do trabalho de investigação, principalmente
em sua fundamentação teórica.
É bom lembrar que os capítulos do estudo deveriam ser elabora-
dos depois do texto que explicita o EQ, o que facilitaria a composição do
que vem a seguir. Sabe-se, no entanto, que muitas vezes essa ordem está
relacionada mais diretamente ao estudante/pesquisador, dependendo seja
da sequência do seu acesso aos achados resultantes da coleta e do
fichamento dos dados, seja da sua facilidade pessoal de discorrer a
respeito de determinada questão por motivos que lhe são inerentes. Es-
tes e outros critérios, que são subjetivos, definem por onde ele vai come-
çar. Essa opção implica outras pequenas escolhas/definições especifi-
cas à própria elaboração do texto e que fazem o estudante/pesquisador

42
Fundamentos da Pesquisa V.1

pensar e decidir se primeiro deve falar diretamente sobre o tema e de-


pois introduzir alguns achados, ou se poderia fazer o inverso.
É de grande importância que o texto seja apresentado de forma
coerente e clara, demonstrando o que foi estudado ou encontrado. O es-
tudante/pesquisador deve estar atento para a coerência interna e o enca-
deamento lógico das ideias, não cometendo os erros de ida e vinda que
dificultam não só a apreensão do texto como o próprio processo de de-
senvolvimento do argumento. Sua lógica de organização deve estar clara
em todo o texto elaborado e em suas subdivisões se houver. Parafrasean-
do o dizer de um vaqueiro ao responder como chega ao pasto com a boi-
ada uma vez que o caminho se encontra em péssimo estado, ele respon-
de: “a gente vai tangendo, tangendo e aí... chega lá sem atropelo”, no
caso do estudante/pesquisador ele vai escrevendo, escrevendo, encade-
ando as ideias e de repente, o texto aparece.
A tarefa não parece fácil, mas, de posse de todas as demais qua-
lidades já referidas, o estudante/pesquisador pode elaborar o texto, dar
forma e escrever o EQ. Todo o tema escolhido para investigação exige
sentido e sensibilidade. Tal afirmação indica uma posição que confirma o
enunciado do subtítulo desse texto, a narrativa é também uma recriação.

6 A elaboração do estado da questão: relatos sobre sua produção13


Pensamos neste subitem apresentar ao estudante/pesquisador dois
relatos de elaboração do EQ. O primeiro traz um relato mais simples do EQ,
considerando o próprio tema/objeto a ser pesquisado pelo aluno, e tam-
bém por se tratar de uma dissertação e não de uma tese de doutorado,
diante das exigências e do tempo de elaboração entre um trabalho e outro;
e o segundo relato, já traz um texto do EQ mais amplo e mais denso, uma
vez que o próprio objeto de investigação em sua complexidade faz essa
exigência aos investigadores.
O EQ que escolhemos para o relato inicial foi um dos primeiros
textos sobre a temática, desenvolvido por uma de nossas orientandas,
formada em Odontologia e aluna do curso de Mestrado Acadêmico em
Saúde Publica, da Universidade Estadual do Ceará, que tinha como objeto
de sua investigação a ‘prevalência de gengivite em escolares’. O objetivo
central de sua dissertação consistia em analisar a presença da doença
gengivite e das condições de higiene bucal, em escolares, da rede pública
municipal da cidade de Fortaleza-CE. A faixa etária de seis a 12 anos dos
escolares a serem investigados só ficou clara e delimitada em sua pesqui-
sa quando do mapeamento realizado pela aluna sobre os estudos existen-
tes e publicados sobre a gengivite em crianças brasileiras.

No final deste capítulo, em um subitem das referencias, serão citados estudos que elaboraram o EQ.
13

43
Pesquisa científica para iniciantes: caminhando no labirinto

O mapeamento permitiu à aluna observar, entre outros fatores,


aqueles relacionados às idades das crianças e adolescentes escolhidas
como amostra nos estudos inventariados, o emprego de diferentes índices
pelos autores encontrados para determinação da gengivite ou alteração
periodontal em crianças e jovens, como o Índice de Sangramento Gengival
(ISG), o Índice Periodontal Comunitário (CPI), conhecido também pela sigla
CPITN, e ainda o Índice PMA, que, mesmo sendo bem antigo, descoberto
em 1946, tinha sido utilizado em um dos trabalhos. Este último índice mede
as condições gengivais, uma vez que examina as áreas da gengiva papilar,
marginal e inserida em torno de cada dente, mas que para isso requer mai-
or precisão de diagnóstico, um dos motivos de sua pouca utilização.
Foi observada também pela aluna a natureza dos estudos
pesquisados, aqueles que estabelecem ou não a correlação de fatores
socioeconômicos da amostra com a prevalência da gengivite; estudos com
exames clínicos diferenciados, estudos por região e por estado; por zona
urbana e rural; com amostras de escolares de escolas públicas e privada;
por dentição decídua e mista.
Foi possível identificar também estudos de autores que coletaram
dados também oriundos da America do Norte e do Sul, da Europa, da Ásia
e da África, mostrando as divergências significativas na prevalência de
periodontite da população jovem do mundo, mais prevalente entre os afri-
canos, seguida dos hispânicos e asiáticos; e, no caso, relacionados à higiene
oral deficiente.
São elementos e fatos que no decorrer da busca e elaboração do
texto do EQ permitiram a aluna identificar a abrangência de sua pesquisa
em relação às encontradas no mapeamento realizado, possibilitando a
ela visualizar que o estudo proposto para sua dissertação de mestrado
configurava-se como mais amplo, uma vez que não se limitava apenas a
determinar a prevalência da gengivite, mas também a calcular o índice de
Higiene Oral-Simplificado (IHO-S); determinar a frequência de escovação
diária; e, também, correlacionar estas variáveis com o nível de escolarida-
de da mãe da criança. Permitiram ainda o EQ redefinir sua amostra, bem
como subsidiar as análises dos resultados obtidos junto aos escolares a
serem pesquisados. Ainda tornaram possível identificar a fundamenta-
ção teórica utilizada por estes autores que já pesquisaram sobre o seu
tema objeto de investigação, enriquecendo suas fontes e sua argumenta-
ção teórica a partir de olhares plurais.
O texto encontra-se relativamente claro, demonstrando uma or-
ganização simples dos achados, com apresentação de quatro quadros
que apóiam as analise dos estudos encontrados, o caminho de busca dos
dados, o rigor em sua condução, bem como suas limitações (LOPES, 2005;
LOPES; NÓBREGA-THERRIEN, 2008).
O segundo estudo que escolhemos para relatar sobre o EQ, embo-

44
Fundamentos da Pesquisa V.1

ra o autor intitule o capitulo de ‘A trajetória historiográfica’, caracteriza-


se por um texto denso e interessante, uma vez que trabalha um tema/
objeto de investigação bem mais complexo, que é a ‘Morte’. Com efeito,
apresenta um campo de estudo e pesquisas de caráter transversal e
interdisciplinar, pois nele se aglutinam conjuntos de disciplinas
humanísticas, que vão desde a Antropologia, a Filosofia, a Arqueologia, a
História da Arte, da Religião, a Iconologia e a Teologia.
Trata-se de uma pesquisa14 realizada por dois professores/inves-
tigadores, da Universidade de Navarra, Espanha15. Seu objeto de estudo é
a ‘Percepção da morte’ por parte da sociedade medieval, mais precisa-
mente da Baixa Idade Média, tendo os testamentos como a principal fonte
de busca de suas respostas aos quais acrescentam uma infinidade de
outros documentos escritos, a partir da elaboração do EQ.
Os autores iniciam a pesquisa fazendo um inventário
historiográfico sobre a Morte, no campo europeu, mais precisamente fran-
cês e peninsular, para chegarem à Espanha e a Navarra, locus de sua inves-
tigação. A Idade Média é escolhida como o período da investigação pelos
autores, uma vez que se descobriu e se recuperou o testamento como fonte
idônea para a Historia Medieval.
Iniciam o texto com a Escola Francesa, precisamente com os
Annales, dentro da corrente da chamada historia das mentalidades 16, e
seguem em um novo campo da historia cultural até finais do século XX.
Identificam o surgimento desse tema de estudo de modo mais concreto
na terceira geração de Annales, em França. Percorrem o caminho da
temática até nossa época, quando apresentam a última obra publicada
sobre a Morte à época da pesquisa no dia 26 abril de 2003 na Sorbonne
em Paris, e em livro17 em 2005.
Fazem essa aproximação ampla e densa aos estudiosos da Mor-
te e as obras publicadas sobre ela. A leitura atenta das obras mapeadas
revela a reflexão detalhada destes pesquisadores que identificam as

14
Fruto de um Projeto de Investigação intitulado “A morte em Navarra medieval”; financiado pela Uni-
versidade de Navarra, Ministério de Ciências e Tecnologia, do Governo de Navarra (Resolução 96/2000
de 15 de dezembro). Projeto que foi finalizado com a Tese de doutorado de Julia Baldó Alcoz, um dos
membro do grupo de pesquisa, com o titulo de ‘Requiem aeternam. Ritos, atitudes e espaços em torno
da morte para Navarra na baixa idade média’. Considerada pela equipe, uma investigação interdisciplinar.
15
Professores Julia Pavón Benito e Ângeles García de La Borbolla, que publicaram o resultado de sua
investigação, parte de um grande projeto de pesquisa já referido, em um livro intitulado: Morir em la
idad media: la muerte em La Navarra medieval. PUV-Universitat de Valencia-España, 2007.
16
A chamada historia das mentalidades, produzida pela escola francesa com os Annales, segue em um
novo campo da historia cultural. É quando ou onde a análise da história cultural foi parte do novo hori-
zonte do sujeito histórico. Os Annales, consagra o testamento como instrumento e também como um
paradigma para conhecer a Morte e as atitudes do homem frente a ela.
17
DOUDET, Estelle. La mort écrite: rites et rhétoriques du trépas au Moyen Âge. Paris, 2005.

45
Pesquisa científica para iniciantes: caminhando no labirinto

teses abordadas em cada uma destas investigações, seus encaminha-


mentos metodológicos e instrumentos utilizados na coleta dos achados,
para evidenciarem posteriormente como o estudo que desenvolveram e
publicaram se diferencia dos anteriores, por se utilizar de outros ele-
mentos para a coleta dos dados e, portanto, contribuir acrescentando
mais informações ao rico campo de conhecimento já estabelecido.
Identificam a importância de resgate do período Medieval e os te-
mas nucleares como as imagens da Morte, a influência e o surgimento da
arte gótica, a solidariedade entre vivos e mortos, a proliferação de sufrági-
os, o nascimento do purgatório, onde espaço e tempo passam a ser coorde-
nadas de preocupação do homem histórico, onde as atividades financeiras
e mercantis de uma sociedade como a medieval têm uma leitura simbólica
e uma relação de economia e salvação; como a sociedade assimilava a
Morte, como esta exigia a organização de um ritual da liturgia religiosa e
outros temas interessantes. São trabalhos que integram a ordem literária,
jurídica, religiosa e histórica vinculado a construção intelectual e popular
das representações e imagens da Morte no imaginário medieval.
Introduzem como este campo de estudo ‘Morte na Idade Média’
chegou a Espanha e, mais especificamente, na região/cidade de Navarra
(locus da investigação) com o Simpósio “A Morte na Idade Média”, em
fevereiro de 2000. De suas reflexões sobre o rico material inventariado,
sintetizam referindo como na raiz de todos estes estudos os instrumentos
metodológicos utilizados, com abordagens quantitativas ou qualitativas
permitiram tirar proveito do testamento como documento-chave para
explorar o mundo mental e as atitudes do homem diante da morte. Em
outras palavras, demonstram que são numerosos os estudos que têm no
testamento a fonte primeira ou única para apresentar certas conclusões
sobre a espiritualidade ou a religiosidade em um tempo concreto.
O levantamento de recopilação bibliográfico permitiu aos pes-
quisadores identificar, entre outros fatores:
• que o estudo sobre o tema Morte deve ter em conta a sua trans-
versalidade e interdisciplinaridade;
• que a Escola de Annales, onde a análise da história cultural foi
parte do novo horizonte do sujeito histórico, iniciou o campo de
estudos sobre a Morte tendo principalmente Philippe Aries e Mi-
chel Vovelle como os pioneiros na temática;
• que a Escola Francesa foi exportadora de metodologias e práti-
cas investigatórias para a historia da Morte, registrando o cuida-
do dos estudos com as singularidades e, portanto, necessidades
de cada pesquisador;
• que os testamentos têm sido fonte de uso quase exclusivo nos
estudos peninsulares pela conservação dos arquivos de protoco-
los notariais;

46
Fundamentos da Pesquisa V.1

• que há diferença dos testamentos na Baixa Idade Media e nos


séculos XIV e XV; e
• que a historia da Morte passou a fazer parte de estudos do mun-
do acadêmico e universitário como trabalhos de teses.
Quanto ao material inventariado, não deixam de retratar as li-
mitações metodológicas e de interpretação e, portanto, a necessidade de
emprego, não só dos testamentos, bem como de indicadores e instru-
mentos escritos, artísticos e arqueológicos para contextualização e arti-
culação de tempos, lugares, ritos, utilizados em alguns dos estudos en-
contrados. E é com respeito a esta constatação que posteriormente
elencam em seu estudo as diversas fontes que consultaram: além dos tes-
tamentos e seus prefácios18, os arquivos Geral da Cidade de Navarra, His-
tórico Nacional da catedral de Tudela, de Pamplona, arquivos municipais
de Barcelona, de Pamplona, de Tudela, entre outros arquivos municipais,
arquivos paroquiais, estatutos de confrarias, legislação canônica, coleções
e catálogos documentais, crônicas e outros manuscritos, além de livros e
autores mapeados. Assim, articulam essas informações com o seu objeto
de investigação a ‘Percepção da morte’ por parte da sociedade medieval
no intuito de evidenciar dados não somente para comparações, como para
mostrar as diferenças ou semelhanças com relação a esta percepção, de-
pendendo da classe econômica, religião e tipo de sociedade e região.
Acreditam os investigadores que o testamento é uma fonte primaria
importante na investigação sobre a Morte, mas que existem outras; no en-
tanto, admitem que as pesquisas realizadas tendo o testamento como sua
fonte principal ou única tenham permitido aos estudiosos demonstrar que a
Morte pode ser relacionada, por exemplo, com o poder, com a especificidade
da cerimônia fúnebre, no caso da monarquia, o lugar do sepultamento, as
instituições eclesiásticas envolvidas, o que leva a concepções históricas e
artisticamente relacionadas à historia da arte dos conjuntos funerários de
distintos monarcas em território Navarro. Evidenciam, por exemplo, que a
Morte do rei, dependendo da época, tem um projeto arquitetônico distinto,
ilustrações fotográficas e trajetórias distintas. Os emblemas ou brasões
têm sua historia da arte, no Período Medieval.
A partir de então, dão continuidade a sua investigação após a
elaboração do EQ, onde o testamento passa a ser o documento que vai
transmitir notícias diretas sobre a piedade ou religiosidade do homem e

18
Cada testamento era registrado por um ou no máximo dois notários ou testamenteiros da referida
cidade ou região de Navarra. No texto do registro do testamento, era comum se fazer um prefácio, umas
considerações espirituais que encabeçavam o documento, sem ser parte essencial do instrumento jurí-
dico. Estas considerações traziam um pouco da religiosidade daqueles homens que se consideravam
criaturas de Deus. Isso acontecia principalmente nos texto de 400 e 500. Esta riqueza de texto também
foi levada em conta pelos pesquisadores.

47
Pesquisa científica para iniciantes: caminhando no labirinto

suas atitudes e aspirações diante da Morte, enquanto nos prefácios


testamentais identificam a categoria das consciências que para os pes-
quisadores vai alem dos efeitos jurídicos, estabelecendo vinculo entre o
mundo dos vivos e dos mortos. Outros documentos já citados servem
também para completar as fontes da investigação.
Os professores/pesquisadores da Universidade de Navarra, após
o levantamento realizado, constatam que uma mirada retrospectiva so-
bre o tema Morte pode constituir pivô de uma investigação integradora
de reconstrução do complexo mundo de crenças, ritos e manifestações
religiosas, o que para eles não é um tarefa simples. Consideramos que
esta constatação foi fruto do desenvolvimento do EQ pelos professores/
pesquisadores.
É fruto do mapeamento a evidência de que não se esgotaram os
aportes científicos nem se exauriram objetos de investigação para os refe-
ridos pesquisadores. Estes permanecem abertos na temática Morte ante
a possibilidade de relacioná-la com a historia política da dinastia, a historia
da espiritualidade ou a historia da liturgia ou da arte. Para eles, a frase de
Jacques Le Goff ‘ La mort est à la mode’ no prefácio da publicação da tese
de doutorado de Jacques Chiffoleau, em 198119, segue vigente, pois en-
tendem que ainda a Morte segue na moda.
A investigação que realizam, como obra publicada em livro já ci-
tado, se organiza em três grandes partes com oito capítulos, fora as consi-
derações finais, as fontes e bibliografias. Seu conteúdo é extremamente
interessante e vai dos testemunhos históricos e historiográficos ao trata-
mento dado à documentação pesquisada, às temáticas que descrevem e
analisam a hora da Morte com os ritos, às práticas, à assistência e cuida-
dos aos enfermos, aos sacramentos, aos velórios e vigílias, aos cortejos e
enterros. Trazem as imagens da Morte, a relação da Morte e a monar-
quia, os intercessores celestiais, a encomendação da alma, os lugares de
enterro, e finalmente os testamentos para subsidiar as analises do obje-
to de investigação e a percepção da Morte na sociedade medieval.
Consideramos nos dois relatos de investigação que, sem a ela-
boração do EQ pelos seus pesquisadores, os caminhos e,
consequentemente, as contribuições de cada estudo à produção do co-
nhecimento científico não seriam os mesmos, ou não apresentariam tão
bons resultados.

7 Considerações finais
O mergulho na literatura disponível em torno da temática em
foco propicia ao estudante/pesquisador uma oportunidade única de
19
Um dos estudiosos franceses de referência a partir dos anos de 1980, como Philippe Ariès e Michel
Vovelle, sobre o tema da Morte.

48
Fundamentos da Pesquisa V.1

confronto crítico dos autores consultados. Olhares plurais acerca de ele-


mentos ou questões aparentemente idênticas do real podem ser identifica-
dos, nem sempre fundados em referenciais convergentes e até apresentan-
do compreensões epistemológicas divergentes. O mundo contemporâneo,
caracterizado por uma complexidade crescente revelada pela sociedade
da informação, desafia cada vez mais o pesquisador nas suas tentativas
de desvendar o significado das múltiplas racionalidades e lógicas que
nele convivem, inclusive indo buscá-las também no mundo da Idade Mé-
dia, por exemplo. À ciência também é dada a missão de contribuir social,
política e tecnologicamente para dar sentido aos rumos da vida.
O processo de construção do EQ produz igualmente, pela essên-
cia de sua dinâmica, momentos de complexidade e incertezas ante a
pluralidade explicativa e compreensiva encontrada neste percurso do
diálogo com os mais diversos autores/pesquisadores encontrados no
caminho, em particular no campo das Ciências Humanas. A literatura
consultada poderá oferecer importantes contribuições científicas fun-
dadas em metanarrativas distintas.
Uma vez que a elaboração desse momento de pesquisa deve con-
duzir à definição do ângulo próprio ao olhar do estudante/pesquisador
sobre o seu tema e sua postura teórico-metodológica, a opção do enfoque
específico de sua investigação envolve necessariamente uma aborda-
gem definidora da parcialidade sobre a qual a totalidade estudada será
apreendida. Trata-se, portanto, de importante momento de mergulho
epistemológico e científico do qual o estudante/pesquisador não pode
fugir, nem se refugiando nos limites de metanarrativas estreitas, nem
optando para uma atitude relativista de sua implosão.
Expressamos, neste ínterim, o desafio e a contribuição da
multirreferencialidade como postura que o pesquisador contemporâneo
não pode ignorar na busca de compreensão da complexidade dos uni-
versos em que mergulha. As buscas pelo tema, objeto da investigação,
muitas vezes enveredam por áreas transversais e interdisciplinares nas
ciências, que advogam o tributo da multirreferencialidade. Na expres-
são de Ardoino, citado por Barbosa (1998, p.205), importante expoente
deste debate, “multirreferencialidade é uma pluralidade de olhares diri-
gidos a uma realidade e, em segundo lugar, uma pluralidade de lingua-
gens para traduzir esta mesma realidade e os olhares dirigidos a ela. O
que sublinha a necessidade de linguagem correspondente para dar con-
ta das especificidades desses olhares”.
Estas últimas considerações reforçam a compreensão de que
para superar a crescente fragmentação da ciência, oriunda de aborda-
gens cada vez mais especializadas nos contextos de acesso aos múlti-
plos saberes e conhecimentos produzidos na sociedade contemporânea,
resta aos pesquisadores o desafio da disposição de se exporem a leitu-
ras e indagações diferenciadas do cotidiano, tanto sob os ângulos diver-

49
Pesquisa científica para iniciantes: caminhando no labirinto

sos dos teóricos e dos práticos, quanto pela via de olhares


pluridisciplinares ou referenciais distintos. Permanece, com efeito, a
perspectiva de avanço da ciência por meio de novos paradigmas de com-
preensão do real.
Sintetizando as considerações expostas, podemos expressar que
a elaboração do EQ permite ao estudante pesquisador:
• confronto crítico dos pesquisadores consultados;
• constatação de olhares plurais e compreensões epistemológicas
divergentes;
• compreensão da complexidade do mundo contemporâneo (ou
no caso medieval) que é um convite para desvelar as múltiplas
racionalidades que nele convivem; e
• a contribuição dos debates sobre a multirreferencialidade.
O estado da questão pode e deve revelar essa pluralidade
explicativa e compreensiva da ciência, cabendo ao estudante/pesquisa-
dor estabelecer os limites de sua própria contribuição. As experiências
aqui relatadas assim o comprovam.

Referências
ANDRÉ, Marli.; SIMÕES, Regina H. S.; CARVALHO, Janete, M.; BRZEZINSKI, Iria.
Estado da arte da formação de professores no Brasil. Revista Educação e Socieda-
de. n. 68. p. 301-309, dez., 1999.
BARBOSA, J.G. (Org.) Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos:
EdUFSCar, 1998.
BELL, J. Doing your research. A guide for frist-time researchers in education and
social science. Milton Keynes: Open University, 1985.
BENITO, Julia Pavón; BORBOLLA, Ángeles García de la. Morir en la edad media: la
muerte en la Navarra medieval. Valencia: PUV-Publicaciones de la Universitat de
Valéncia, 2007.
ECO, Humberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1988.
FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. As pesquisas denominadas ‘esta-
do da arte’. Educação e Sociedade, Campinas, n.79, p. 257-272, ago. 2002.
GATTI, Bernardete A. A construção da pesquisa em educação no Brasil. Brasília:
Plano Editora, 2002.
HEK, Gill; JUDD, Maggie and MOULE, Pam. Making sense of research – an
introduction for nurses. London: Cassel, 1997.
LOPES, Isabel Rodrigues. Prevalência de gengivite em escolares do Município
de Fortaleza-CE. Fortaleza, 2005. 127f. Dissertação (Mestrado Acadêmico
em Saúde Pública). Mestrado Acadêmico em Saúde Pública, Universida-
de Estadual do Ceará, Fortaleza-CE, 2005.

50
Fundamentos da Pesquisa V.1

LOPES, Isabel Rodrigues; NÓBREGA-THERRIEN, Silvia Maria. Prevalência


de gengivite em crianças brasileiras: estudos acerca do tema. Revista da
Associação Brasileira de Odontologia. ABO, v.16, n 1, p. 34-38. Fev/mar, 2008.
MORSE, Janice M.; FIELD, Peggy Anne. Nursing research – the application of
qualitative approaches. 2 ed. Cheltenham: Stanley Thornes. 1998.
SALAS, Margarita. Sobre pesquisas. El País, Madrid, n. 201, p. 57-59, dez. 1995.
NÓBREGA-THERRIEN, Silvia Maria. e THERRIEN, Jacques. Os trabalhos científicos
e o estado da questão: reflexões teórico-metodológicas. Estudos em Avaliação
Educacional. Fundação Carlos Chagas . v. 15. n, 30. p.5-16, jul/dez. 2004.
NÓBREGA-THERRIEN, Silvia Maria; ALMEIDA, Maria Irismar de. Enfermeira, sabe-
res e prática. Fortaleza, EdUECE, 2007.
NÓBREGA-THERRIEN, Silvia Maria. Enfermera, trabajo y resistência: el significado
de La esperanza. El caso del Ceará, Brasil. Salamanca, 2000. 382 f. Tese (Doutora-
do em Sociología) Programa de Pós-graduación en Sociología, Universidad de
Salamanca, España, 2000.

Trabalhos que desenvolveram o EQ


CASTRO, Verônica, Said de. Residência de medicina de família e comunidade: ava-
liação da formação. Fortaleza, 2007. 116 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em
Saúde Pública). Mestrado Acadêmico em Saúde Pública, Universidade Estadual
do Ceará, Fortaleza-CE, 2007.
GARCIA, Tânia Cristina Meira. Trabalho docente, formação e profissionalização: o que
nos revela o trabalho do professor. Fortaleza, 2005. 390 f. (Doutorado em Educação).
Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Ceará. 2005.
MILITÃO, Cibele Fernandes. A voz como instrumento de trabalho: uma análise das
disfonias em professores universitários. Fortaleza, 2006. 116 f. Dissertação
(Mestrado Acadêmico em Saúde Pública). Mestrado Acadêmico em Saúde Públi-
ca, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza-CE, 2006.
PINHEIRO, Filomena Maria da Costa. A formação do cirurgião dentista e a
promoção de saúde bucal no PSF. Fortaleza, 2006. 132 f. Dissertação (Mestrado
Acadêmico em Saúde Pública). Mestrado Acadêmico em Saúde Pública,
Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza-CE, 2006.
PINHEIRO, Filomena Maria da Costa; NÓBREGA-THERRIEN, Silvia Maria;
ALMEIDA, Maria Eneide Leitão; ALMEIDA, Maria Irismar de. Formação do
cirurgião-dentista no Brasil: contribuições de estudos para prática da pro-
fissão. Revista Gaúcha de Odontologia –RGO, v. 57, n 1, p. 99-106. Jan/mar. 2009.
SOUZA, Alessandra Maria Alves.; NÓBREGA-THERRIEN, Silvia Maria.
Hanseníase em estudos de Enfermagem no Brasil. Revista Nursing, v. 98,
n.8, p. 918-924. Jul., 2006.

51

Você também pode gostar