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José Barreto

Rússia e Fátima

Versão corrigida do texto publicado em Carlos Moreira Azevedo e Luciano Crsitino (org.), Enciclopédia
de Fátima, Estoril: Principia, 2007, pp. 500-503.

A temática da Rússia, ausente dos relatos originais das aparições de Fátima de

1917, incorporou-se na mensagem oficial de Fátima a partir da publicação das duas

primeiras partes do chamado “segredo”, em 1942, no mais aceso da guerra europeia. As

alusões à Rússia, ao seu papel na hecatombe mundial e à sua “conversão” contribuíram

notavelmente para a internacionalização do culto de Fátima durante os anos tensos da

guerra fria, começando, porém, a importância dessa referência a declinar a partir dos

anos 60.

Os primeiros relatos da Irmã Lúcia de mensagens do céu contendo alusões à

Rússia foram comunicados oralmente ao seu confessor por volta de 1930, vivendo então

a vidente em clausura no Instituto das Doroteias, em Tuy. Lúcia residiu em conventos

da Galiza de 1925 a 1946, incluindo o período conturbado da Segunda República

espanhola e da Guerra Civil, nos anos 30. As referências da vidente à Rússia tinham, em

1929-30, como cenário a fase mais aguda das perseguições religiosas desencadeadas na

União Soviética por Staline, após o início da sangrenta colectivização da agricultura.

Em 1927 fora iniciada na União Soviética uma guerra sem quartel à religião,

maioritariamente ortodoxa, de cuja influência Staline queria definitivamente cortar o

mundo rural, mas implacável agora também para com a pequena minoria católica,

fazendo com que Pio XI tomasse já em finais desse ano a decisão de abandonar os
contactos e negociações que a Santa Sé mantinha desde 1921 com os representantes

soviéticos. Essa pioneira “abertura a Leste” do Vaticano com a primeira potência

abertamente ateia constituíra desde Bento XV uma tentativa, finalmente sem êxito, de

aproveitamento da oportunidade histórica do fim do czarismo e da queda em desgraça

da sua principal aliada, a Igreja Ortodoxa, para conseguir a “abertura da Rússia” à

missionação e à conversão com vista à “reintegração” dos cristãos russos na obediência

romana, desejada havia séculos. Apelos universais à oração pela conversão da Rússia,

comuns no século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, foram

intensificados por Pio XI no final dos anos 20, quando as prisões de padres e bispos

católicos se sucediam na União Soviética. Em Fevereiro de 1930, Pio XI proclamou

solenemente uma cruzada de oração à escala mundial pelos cristãos russos perseguidos

e pela salvação da Rússia.

A matéria dos primeiros relatos de Lúcia alusivos à Rússia, com origem

declarada em visões e “comunicações íntimas” ocorridas em Tuy em 1929-30, seria por

ela fixada em escritos passados à posse do seu confessor, o jesuíta José Bernardo

Gonçalves. Por esses documentos  transcritos ou resumidos no início da década de 40

pelo dito confessor e publicados na década de 70 pelo padre António Maria Martins, SJ

 se pode seguir o processo de acreção dos aspectos relativos à Rússia na génese da

mensagem profética de Fátima tal como ela se sedimentou para a posteridade.

Naqueles que parecem ser os mais antigos relatos galegos de Lúcia com alusões

à Rússia, datáveis de 1929-30, fala-se de “perseguições” à religião sob o regime

comunista e da promessa divina de “terminar” essas perseguições, na condição de serem

previamente cumpridos rituais de oração e reparação, como a comunhão dos cinco

primeiros sábados e o pedido de consagração da Rússia ao Imaculado Coração de

Maria.
Na década seguinte surgem assinaláveis variantes na temática russa. Numa carta

de 1940 ao padre Gonçalves  posterior à Guerra Civil espanhola e cinco meses

posterior à invasão alemã da Polónia, início do conflito europeu  a vidente relatou pela

primeira vez uma visão, ocorrida em Tuy, em que a entidade divina, neste caso “Nosso

Senhor”, designa a Rússia como promotora de ambas as guerras, a espanhola, já

terminada, e a europeia, então em curso. Data ainda de 1940 o mais antigo escrito

conhecido da vidente em que ocorre a conjugação do tema da “conversão da Rússia”

com a menção desta como causadora das guerras: é a carta a Pio XII, enviada em

Dezembro desse ano (após uma primeira versão, não enviada, em Outubro). A carta ao

Papa é também o primeiro documento conhecido em que as referências à Rússia  de

conteúdo idêntico às das visões galegas de 1929-30, excepto na atribuição da causa das

guerras à Rússia  são apresentadas por Lúcia como fazendo parte do “segredo”

alegadamente guardado desde a aparição de Fátima de 13 Julho de 1917.

Em 31 de Agosto de 1941  meses depois do início da invasão da Rússia pela

Alemanha nazi e semanas depois da partida para a frente russa da Divisão Azul

espanhola, integrando cerca de centena e meia de voluntários portugueses  Lúcia

escreveu, por ordem do bispo de Leiria, a chamada “terceira memória”, em que revela

parte do “segredo” alegadamente guardado pela vidente desde 1917. O “segredo”

continha referências à Rússia literalmente coincidentes com as da carta ao Papa de

Outubro de 1940 e, até certo ponto, idênticas às alusões à Rússia das visões galegas de

1929-30. Nessa parte do "segredo" de 1917, a Virgem teria avisado que, "se não

deixarem de ofender a Deus”, uma guerra pior que a primeira começaria no “reinado de

Pio XI”. Deus iria, assim, punir o mundo pelos seus crimes, “por meio da guerra, da

fome e de punições à Igreja e ao Santo Padre”. E a mensagem atribuída à Virgem

prossegue: “Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia ao Meu Imaculado


Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a Meus

pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo,

promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre

terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o Meu Imaculado

Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será

concedido ao mundo algum tempo de paz.”

Conhecida do papa desde a carta de Lúcia de 1940, esta profecia seria divulgada

só em 1942, com a invasão da Rússia pela Alemanha já adiantada, mas ainda antes da

viragem da guerra desfavorável ao Eixo. As duas primeiras partes do “segredo” de

Fátima foram tornadas públicas no segundo trimestre de 1942  em Milão, pelo

arcebispo Schuster e, em Roma, em edições do Vaticano , numa versão amputada de

duas alusões à Rússia. Sem deixar de responsabilizar implicitamente a Rússia comunista

pela eclosão da guerra, esta versão censurada do segredo de Fátima não lhe assacava tão

explicitamente as causas da hecatombe, visivelmente para não melindrar o campo dos

Aliados, a que a Rússia agora pertencia. Na mensagem radiodifundida aos católicos

portugueses, em Outubro de 1942, por altura do 25.º aniversário de Fátima, Pio XII

evocou a ancestral devoção mariana dos russos e pediu à Virgem paz para o povo russo

e a sua recondução “ao único redil de Cristo, sob o único e verdadeiro Pastor” 

palavras que os nazis, alegadamente empenhados numa “cruzada anti-bolchevista” em

território russo, terão achado ambíguas, chegando alguns a denunciá-las como uma

“oração pelo bolchevismo”. Diversas foram as interpretações da profecia de Fátima e

das palavras de Pio XII, explorando, ora segundo o ponto de vista do Eixo, ora dos

Aliados, o seu teor algo ambivalente: para alguns bispos alemães, espanhóis ou

italianos, como o citado Cardeal Schuster, arcebispo de Milão, uma cruzada de fé estaria

implicitamente em curso em território russo, independentemente do facto bélico em si,


sobre o qual Pio XII queria manter rigorosa posição neutral. Pelo contrário, para certos

bispos americanos e europeus de países beligerantes ou ocupados pelos nazis, como o

Cardeal Hinsley, arcebispo de Westminster, as alusões à Rússia da mensagem de Fátima

e de Pio XII reflectiriam, através da menção à devoção mariana do povo e à

possibilidade da sua conversão, um apoio implícito à luta dos russos perante o invasor.

Do lado dos católicos aliadófilos, todavia, já em 1944 surgiu a primeira crítica católica

das alusões à Rússia contidas no “segredo”. O jesuíta belga Edouard Dhanis, sem pôr

em causa a boa fé da vidente, questionava certas premissas básicas do “segredo” de

Lúcia que iam contra “a verdade histórica”: fora a Alemanha a causadora do conflito

europeu e a invasora da Rússia, não o contrário.

No pós-guerra  apesar de Staline, a partir de 1942-43, ter inflectido

substancialmente, no interesse da luta contra o invasor, a sua política anti-religiosa  as

alusões da mensagem de Fátima à Rússia e à sua conversão tiveram uma ampla

utilização na luta religiosa e ideológica contra o comunismo à escala mundial. O

santuário de Fátima ganhou, então, uma faceta de centro espiritual internacional do anti-

comunismo, levando a que em 1953 o Cardeal Cerejeira chamasse a Fátima, na

cerimónia da sagração da sua basílica, a “miraculosa Anti-Rússia”. A partir dos anos 60,

com o início do degelo das relações Este-Oeste, com a nova Ostpolitik do Vaticano e a

decisão conciliar sobre ecumenismo, que abandonou a antiga posição condenadora da

Ortodoxia como erro ou heresia, para passar a considerá-la mais sob o ângulo da

fraternidade e da complementaridade cristãs, a referência profética à “conversão da

Rússia” foi sendo adoptada como palavra de ordem dos sectores católicos

tradicionalistas e anti-ecumenistas, que já se tinham oposto à abertura a Leste de João

XXIII e Paulo VI. A obsessão anti-comunista desses sectores não diminuiria com a
queda do regime soviético, passando então a tentar conotar a Igreja Ortodoxa com o

regime derrubado.

Sob o pontificado de João Paulo II, no período pós-comunista, novamente

pareceu abrir-se ao catolicismo uma oportunidade histórica, como em 1917, de

reunificação cristã, causa que o papa polaco abraçou com fervor. Contudo, renascida

penosamente das cinzas, a Igreja Ortodoxa, bastião da identidade nacional russa, se bem

que ainda debilmente implantada na sociedade pós-soviética, opor-se-ia por todos os

meios ao proselitismo e missionação de confissões minoritárias e estrangeiras,

nomeadamente a católica, no seu “território canónico”  conceito que opôs à noção

universal de liberdade religiosa. A esta reacção não foi estranha a desagregação da

URSS, herdeira das fronteiras do antigo Império Russo, no qual o catolicismo, ao invés

da Ortodoxia, agiu sempre mais como força centrífuga do que agregadora.

Acusado de proselitismo em solo ortodoxo, o episcopado católico russo do pós-

comunismo sustenta, contudo, que a mensagem fatímica de “conversão da Rússia” não

consiste em tornar a Rússia num país católico romano. O arcebispo de Moscovo,

Tadeusz Kondrusiewicz [desde 2007 arcebispo de Minsk-Mohilev, na Bielorrússia]

declarou que o catolicismo romano sempre foi e continuará a ser na Rússia “a Igreja de

uma minoria”. Apesar destas garantias e da atitude conciliatória de Roma, as reticências

da Igreja Ortodoxa russa mantêm-se, exigindo da Igreja Católica uma prática coerente

com o princípio das “Igrejas irmãs”, estipulado na declaração de Balamand, em 1993. A

decisão de João Paulo II, em 2004, de devolução do ícone de Kazan  em tempos

exposto na capela bizantina de Fátima  ao Patriarca Alexy II, que sempre se opôs

firmemente a uma visita do papa a Moscovo, pretendeu simbolizar o empenhamento de

Roma numa nova era de relacionamento entre cristãos latinos e orientais. No seio da

Igreja Católica há, porém, o receio de que a desadequação do lema pré-conciliar da


“conversão da Rússia”, conotado com uma guerra fria já encerrada, possa prejudicar o

futuro da causa da reunificação cristã.

Bibliografia

BARRETO, José  Religião e Sociedade. Dois Ensaios, Lisboa: ICS, 2003.


– “Edouard Dhanis, Fátima e a II Guerra Mundial” em Brotéria, vol. 156 (1), Janeiro
2003, pp. 13-22.

CEREJEIRA, D. Manuel Gonçalves  “Fátima - Altar do Mundo”, em Obras Pastorais,


IV vol., 1948/1953, Lisboa: União Gráfica, 1954, pp. 279-284.

GRAHAM, Robert A., S.J.  The Vatican and Communism During World War II. What
Really Happened?, San Francisco: Ignatius Press, 1996.

MARTINS, António Maria, S.J.  Cartas da Irmã Lúcia, Porto: Liv. Apostolado da
Imprensa, 1979.

STEHLE, Hansjakob: Eastern Politics of the Vatican 1917-1979, Athens: Ohio


University Press, 1981.

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