Rússia e Fátima
Versão corrigida do texto publicado em Carlos Moreira Azevedo e Luciano Crsitino (org.), Enciclopédia
de Fátima, Estoril: Principia, 2007, pp. 500-503.
guerra fria, começando, porém, a importância dessa referência a declinar a partir dos
anos 60.
Rússia foram comunicados oralmente ao seu confessor por volta de 1930, vivendo então
espanhola e da Guerra Civil, nos anos 30. As referências da vidente à Rússia tinham, em
1929-30, como cenário a fase mais aguda das perseguições religiosas desencadeadas na
Em 1927 fora iniciada na União Soviética uma guerra sem quartel à religião,
mundo rural, mas implacável agora também para com a pequena minoria católica,
fazendo com que Pio XI tomasse já em finais desse ano a decisão de abandonar os
contactos e negociações que a Santa Sé mantinha desde 1921 com os representantes
abertamente ateia constituíra desde Bento XV uma tentativa, finalmente sem êxito, de
romana, desejada havia séculos. Apelos universais à oração pela conversão da Rússia,
comuns no século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, foram
intensificados por Pio XI no final dos anos 20, quando as prisões de padres e bispos
solenemente uma cruzada de oração à escala mundial pelos cristãos russos perseguidos
ela fixada em escritos passados à posse do seu confessor, o jesuíta José Bernardo
pelo dito confessor e publicados na década de 70 pelo padre António Maria Martins, SJ
Naqueles que parecem ser os mais antigos relatos galegos de Lúcia com alusões
Maria.
Na década seguinte surgem assinaláveis variantes na temática russa. Numa carta
posterior à invasão alemã da Polónia, início do conflito europeu a vidente relatou pela
primeira vez uma visão, ocorrida em Tuy, em que a entidade divina, neste caso “Nosso
terminada, e a europeia, então em curso. Data ainda de 1940 o mais antigo escrito
com a menção desta como causadora das guerras: é a carta a Pio XII, enviada em
Dezembro desse ano (após uma primeira versão, não enviada, em Outubro). A carta ao
conteúdo idêntico às das visões galegas de 1929-30, excepto na atribuição da causa das
guerras à Rússia são apresentadas por Lúcia como fazendo parte do “segredo”
Alemanha nazi e semanas depois da partida para a frente russa da Divisão Azul
escreveu, por ordem do bispo de Leiria, a chamada “terceira memória”, em que revela
Outubro de 1940 e, até certo ponto, idênticas às alusões à Rússia das visões galegas de
1929-30. Nessa parte do "segredo" de 1917, a Virgem teria avisado que, "se não
deixarem de ofender a Deus”, uma guerra pior que a primeira começaria no “reinado de
Pio XI”. Deus iria, assim, punir o mundo pelos seus crimes, “por meio da guerra, da
pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo,
terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o Meu Imaculado
Conhecida do papa desde a carta de Lúcia de 1940, esta profecia seria divulgada
só em 1942, com a invasão da Rússia pela Alemanha já adiantada, mas ainda antes da
pela eclosão da guerra, esta versão censurada do segredo de Fátima não lhe assacava tão
portugueses, em Outubro de 1942, por altura do 25.º aniversário de Fátima, Pio XII
evocou a ancestral devoção mariana dos russos e pediu à Virgem paz para o povo russo
e a sua recondução “ao único redil de Cristo, sob o único e verdadeiro Pastor”
território russo, terão achado ambíguas, chegando alguns a denunciá-las como uma
das palavras de Pio XII, explorando, ora segundo o ponto de vista do Eixo, ora dos
Aliados, o seu teor algo ambivalente: para alguns bispos alemães, espanhóis ou
italianos, como o citado Cardeal Schuster, arcebispo de Milão, uma cruzada de fé estaria
possibilidade da sua conversão, um apoio implícito à luta dos russos perante o invasor.
Do lado dos católicos aliadófilos, todavia, já em 1944 surgiu a primeira crítica católica
das alusões à Rússia contidas no “segredo”. O jesuíta belga Edouard Dhanis, sem pôr
Lúcia que iam contra “a verdade histórica”: fora a Alemanha a causadora do conflito
santuário de Fátima ganhou, então, uma faceta de centro espiritual internacional do anti-
cerimónia da sagração da sua basílica, a “miraculosa Anti-Rússia”. A partir dos anos 60,
com o início do degelo das relações Este-Oeste, com a nova Ostpolitik do Vaticano e a
Ortodoxia como erro ou heresia, para passar a considerá-la mais sob o ângulo da
Rússia” foi sendo adoptada como palavra de ordem dos sectores católicos
XXIII e Paulo VI. A obsessão anti-comunista desses sectores não diminuiria com a
queda do regime soviético, passando então a tentar conotar a Igreja Ortodoxa com o
regime derrubado.
reunificação cristã, causa que o papa polaco abraçou com fervor. Contudo, renascida
penosamente das cinzas, a Igreja Ortodoxa, bastião da identidade nacional russa, se bem
URSS, herdeira das fronteiras do antigo Império Russo, no qual o catolicismo, ao invés
declarou que o catolicismo romano sempre foi e continuará a ser na Rússia “a Igreja de
da Igreja Ortodoxa russa mantêm-se, exigindo da Igreja Católica uma prática coerente
exposto na capela bizantina de Fátima ao Patriarca Alexy II, que sempre se opôs
Roma numa nova era de relacionamento entre cristãos latinos e orientais. No seio da
Bibliografia
GRAHAM, Robert A., S.J. The Vatican and Communism During World War II. What
Really Happened?, San Francisco: Ignatius Press, 1996.
MARTINS, António Maria, S.J. Cartas da Irmã Lúcia, Porto: Liv. Apostolado da
Imprensa, 1979.