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1 de Outubro de 2021

(I)legalidade da prisão do Atirador, Colecionador ou


Caçador (CAC)

Imperioso analisar a legislação vigente a fim de não se incorrer em


ilegalidades. O desconhecimento da lei e a inobservância dos
princípios comezinhos do Direito Penal podem acarretar violações
odiosas.

As discussões acerca da possibilidade de o cidadão que é Atirador,


Colecionador ou Caçador (CAC) transportar sua arma de fogo tem
gerado enormes controvérsias.

O Governo Federal, através de decretos presidenciais, regulamentou a


questão e complementou a Lei 10.826/2003.

Antes de adentrar no mérito da discussão principal, imperioso analisar


o tipo penal do art. 14 da Lei 10.826/03. O bem jurídico tutelado é a
segurança e a incolumidade pública. A doutrina e a jurisprudência
entendem que se trata de um crime de perigo abstrato, ou seja, o
legislador presume que a conduta é perigosa.

Veja-se o que diz o tipo penal:

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito,


transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter,
empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou
munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com
determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime em tela, ou seja, não
existe nenhuma especificidade ou característica especial do agente. Já o
sujeito passivo é a coletividade, por conseguinte, a doutrina o classifica
como crime vago.

No âmbito do Direito Penal, vige o princípio da legalidade,


mormente quando se está diante de tipos penais incriminadores. Trata-
se de uma função protetora do cidadão contra os poderes constituídos,
defendendo os direitos individuais e a autonomia de vontade das
pessoas que integram o Estado.

Dentro do Código Penal vigente, referido princípio está definido no


artigo 1º, que estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina
e não há pena sem prévia cominação legal. Na Constituição brasileira,
sua descrição está no artigo 5º, inciso II, e prevê que ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
e, ainda, no inciso XXXIX, do mesmo artigo, que estabelece: não há
crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal.

Nessa mesma esteira, “o princípio da taxatividadeou da


determinação é dirigido mais diretamente à pessoa do legislador,
exigindo dos tipos penais clareza, não devendo deixar margem a
dúvidas, de modo a permitir à população em geral o pleno
entendimento do tipo criado”. (CUNHA, 2015, p. 85)

Em datas pretéritas, quando os decretosque complementavam a Lei


10.826/03 eram outros, os Tribunais Superiores já foram instados a se
manifestarem acerca da hipótese específica em que o CAC foi abordado
pela polícia transportando seu armamento. Veja-se um desses
exemplos:
DIREITO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PORTE DE
ARMA DE USO PERMITIDO. 1. PRÁTICA ESPORTIVA DE TIRO.
ATIRADOR DE QUE, MUNIDO DE REGISTRO DA ARMA E DE GUIA
DE TRÁFEGO, TRANSPORTAVA-A MUNICIADA. DESRESPEITO AOS
TERMOS DA AUTORIZAÇÃO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
INVIABILIDADE. RECURSO DESPROVIDO.

1. A prática esportiva de tiro é atividade que conta com disciplina legal.


Para o transporte da arma, nesse contexto, além do registro, é
necessária a expedição de "guia de tráfego" (que não se confunde com
"porte de arma"). Atendidos esses requisitos, e, respeitados os termos
da autorização fornecida pelo Exército, é plenamente possível o traslado
da arma para a realização de treinos e competições.

2. Na espécie, havendo notícia de que o recorrente


transportaria a arma, registrada, ao arrepio dos termos de
sua guia de tráfego, porquanto municiada, não há falar em
trancamento da ação penal por atipicidade.3. Recurso
desprovido.(RHC 34.579/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE
ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 24/04/2014, DJe
06/05/2014) (grifou-se)

Observem que a jurisprudência acima citada é de 2014. Ocorre que a


legislação sofreu mudanças e evoluiu no assunto. Em 2017, uma
portaria do exército autorizou o CAC a transportar uma arma
municiada, ou seja, pronta para uso e defesa do atirador. A
fundamentação e justificativa para tal mudança é simples: o CAC
deveria proteger seu armamento de eventuais tentativas de subtração,
haja vista que esse material é muito visado pelos marginais.

A Portaria nº 28-COLOG, de 14/03/17, estabeleceu, no artigo 135, que


os atiradores desportivos poderão eleger uma de suas armas de porte do
acervo de tiro para ser transportada municiada entre o seu local de
guarda e o local de treinamento ou competição e viceeversa.

Mais recentemente o Decreto 9.846/2019, o qual foi alterado pelo


Decreto 10.629/2021, estabeleceu um novo e claro regramento. In
verbis:

Art. 5º Os clubes e as escolas de tiro e os colecionadores, os atiradores e


os caçadores serão registrados no Comando do Exército.

§ 2º Fica garantido , no território nacional, o direito de transporte


desmuniciado das armas dos clubes e das escolas de tiro e de
seus integrantes e dos colecionadores, dos atiradores e dos
caçadores, por meio da apresentação do Certificado de
Registro de Colecionador, Atirador e Caçador ou do
Certificado de Registro de Arma de Fogo válido, desde que a
munição transportada seja acondicionada em recipiente
próprio, separado das armas. (Redação dada pelo Decreto nº
10.629, de 2021)

§ 3º Os colecionadores, os atiradores e os caçadores poderão portar


uma arma de fogo de porte municiada, alimentada e
carregada, pertencente a seu acervo cadastrado no Sigma, no
trajeto entre o local de guarda autorizado e os de
treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição,
caça ou abate, por meio da apresentação do Certificado de
Registro de Arma de Fogo e da Guia de Tráfego válida,
expedida pelo Comando do Exército. (Redação dada pelo Decreto
nº 10.629, de 2021)

§ 6º Para fins do disposto no § 3º, considera-se trajeto qualquer


itinerário realizado entre o local de guarda autorizado e os de
treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição,
caça ou abate, independentemente do horário, assegurado o
direito de retorno ao local de guarda do acervo. (Incluído pelo
Decreto nº 10.629, de 2021) (grifou-se)

A legislação acima transcrita é de uma clareza solar. Uma lei clara é


aquela cujo sentido é expresso pela letra do texto. Para saber se isso
acontece, é necessário que ela seja interpretada. Convém destacar,
ainda, que tal norma deve ser interpretada de forma sistémica, ou seja,
considerada que ela (norma) não pode ser vista de forma isolada, pois o
direito existe como sistema, ou seja de forma ordenada e com certa
sincronia e lógica com as demais.

Como lecionava Ruy Barbosa, "fora da lei não há salvação". Os decretos


acima mencionados são legais, legítimos e obedecem aos limites dos
poderes do órgão do qual emanou. Por conseguinte, não há falar em
qualquer motivo para a sua não aplicação.

Da análise da legislação vigente, infere-se que os Caçadores, Atiradores


e Colecionadores (CACs) poderão transportar e portar uma arma
de fogo(pronta para emprego) obedecendo as seguintes regras:

1) que o armamento pertença a seu acervo cadastrado no Sigma;

2) esteja no trajeto entre o local de guarda autorizado e os de


treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou
abate;

3) apresentação do Certificado de Registro de Arma de Fogo;

4) apresentação da Guia de Tráfego válida, expedida pelo Comando do


Exército.
Para não deixar nenhuma dúvida quanto à questão do “trajeto”que
essa arma pode ser transportada, o decreto foi expresso em anunciar
que pode ser realizado em qualquer horário e em qualquer
itinerárioentre o local de guarda autorizado e os de
treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição,
caça ou abate. A priori, nãocaberia questionamento ao CAC acerca do
trajeto que ele estivesse realizando, uma vez que o decreto foi amplo
quanto a essa possibilidade.

A legislação ainda acrescentou expressamente que deve ser assegurado


o direito de retorno ao local de guarda do acervo. Nesse ponto específico
não foi feito menção ao trajeto, nem ao horário “permitido”. Portanto,
deve se considerar que a informação prestada pelo CAC – a princípio – é
verdadeira e, eventual dúvida, não pode ser interpretada em seu
desfavor.

Observem que em nenhum momento a legislação exigiu que o “trajeto”


seja “o menor possível” e/ou que o CAC não possa interromper esse
deslocamento por algum período ao longo do deslocamento. Por
conseguinte, não seria razoável (sob o um aspecto subjetivo) nem legal
(sob um aspecto formal) que o aplicador do direito (seja o policial que
está fazendo a fiscalização ou seja o Magistrado que está diante de
eventual processo criminal) faça essa interpretação restritiva, a qual irá
ter como consequência a violação de um direito do atirador desportivo.

A título de exemplo, poder-se-ia pensar numa situação que o possuidor


da arma está voltando de um treinamento ocorrido há dois dias em
outra cidade. Caso ele seja abordado pelos agentes das forças de
segurança, a sua conduta está perfeitamente amparada pela legislação,
portanto, sob o manto da legislação vigente não haveria margem para
questionamentos acerca do tempo que ele levou para retornar para o
local de guarda do armamento.
Para que seja possível questionar esse deslocamento (ou trajeto)
realizado pelo CAC, dever-se-ia estar diante de uma situação
absolutamente esdrúxula e teratológica. Fora esses casos, haveria
excesso de rigorismo na aplicação da lei e dos decretos em vigor.

Da necessidade de os agentes de segurança e os aplicadores


do direito de conhecerem a legislação vigente.

Observa-se no dia a dia que há um desconhecimento da maior parte da


população do regramento que envolve a matéria. No entanto, os
policiais e os operadores do direito que atuam na área criminal (juízes,
promotores de justiça e advogados) devem ter pleno conhecimento do
assunto, sob pena de haver uma violação frontal dos direitos e garantias
dos cidadãos, mormente, o direito à liberdade.

Tem-se presenciado nas mídias que cidadãos que são Caçadores,


Atiradores e Colecionadores (CACs) estão sendo autuados em flagrante
e/ou respondendo a processos criminais de forma absolutamente ilegal.

Da atuação da Autoridade Policial nos casos apresentados


para sua análise técnico-jurídica.

Sabe-se que o delegado de polícia é um dos primeiros garantidores dos


direitos dos cidadãos que têm suas liberdades cerceados em casos de
situações flagranciais.

A Constituição da Republica de 1988 e a legislação infraconstitucional


elencam as atribuições das Autoridades Policiais, dentre as quais podem
ser citadas:

5) presidir a investigação criminal de acordo com seu livre


convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade;
6) decidir sobre o indiciamento, desde que seja realizado por ato
fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá
indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias;

7) requisitar a realização de exames periciais, informações, cadastros,


documentos e dados, bem como colher provas e praticar os demais atos
necessários à adequada apuração de infração penal e do ato infracional,
observados os limites legais;

8) decidir sobre a lavratura do auto de prisão em flagrante;

9) representar à autoridade judiciária para a decretação de medidas


cautelares reais e pessoais;

10) presidir inquéritos policiais, a lavratura de autos de prisão em


flagrante delito, de termos circunstanciados de ocorrência, de
interrogatórios, de oitivas e demais atos e procedimentos de natureza
investigativa, penal ou administrativa;

No caso da lavratura de uma prisão em flagrante ou instauração de um


inquérito policial, é preciso reconhecer que o Delegado de Polícia detém
“poder discricionário de decisões processuais”, à qual necessariamente
cabe analisar em cada caso concreto se ocorreu ou não crime.

Essa análise não é jamais reduzida à mera tipicidade formal, mas deve
ser ampliada até a ilicitude e a culpabilidade. Não havendo violação da
lei, mas sim norma permissiva da conduta (como é o caso do transporte
de arma pelos CACs) não há crime e muito menos flagrante.

Ao Delegado de Polícia não cabe uma análise parcial do fato a si


submetido, mas uma análise do “fato por inteiro”, com aplicação da
legislação específica sobre o assunto. Os decretos vigentes acerca do
transporte e porte de arma de fogo pelos CACs devem ser aplicados e
interpretados pelo operador do direito, observando – inclusive – qual é
a intenção do legislador quando da modificação desse regramento
(mens legis).

Se o Direito permite a conduta, não há delito, há conduta permitida pela


ordem jurídica em seu conjunto. Não há espaço para a redução da
atividade de uma autoridade, mormente quando em jogo o direito à
liberdade do cidadão, à mera interpretação formal de tipos penais.

Para que a conduta seja considerada criminosa deve haver um


“desvalor” presente. Se a ação é permitida pela lei, não há desvalor, não
há desaprovação e, portanto, não há crime. Sem crime não pode jamais
haver prisão (“nulla custodia sine crimen”).

Nesse contexto, se a dúvida surgida na interpretação do fato


apresentado ao delegado de polícia e suas nuances (após exaurimento
de todos os recursos informativos disponíveis) tem o condão de impedir
a autuação em flagrante (com a imediata devolução da efêmera privação
de liberdade gerada pela captura) oulavrar a peça coercitiva,
submetendo-o ao posterior crivo judicial?

No Estado Democrático de Direito não há dúvidas que a resposta para o


questionamento acima deve ser a imediata restituição da liberdade
do cidadão. No caso específico dos CACs que estejam observando os
decretos regulamentadores da Lei 10.826/03, qualquer restrição da
liberdade seria absolutamente ilegal, nem sequer a instauração de
inquérito policial, haja vista que a conduta é expressamente permitida
pela legislação.

O Supremo Tribunal Federal, sobre a pauta no Recurso em Sentido


Estrito nº 81.305-4, já decidiu no sentido de exigir elementos concretos
na formação da “fundada suspeita” quando da análise pela Autoridade
Policial. In verbis:
EMENTA: HABEAS CORPUS. TERMO CIRCUNSTANCIADO DE
OCORRÊNCIA LAVRADO CONTRA O PACIENTE. RECUSA A SER
SUBMETIDO A BUSCA PESSOAL. JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO
PENAL RECONHECIDA POR TURMA RECURSAL DE JUIZADO
ESPECIAL. Competência do STF para o feito já reconhecida por esta
Turma no HC n.º 78.317. Termo que, sob pena de excesso de
formalismo, não se pode ter por nulo por não registrar as declarações do
paciente, nem conter sua assinatura, requisitos não exigidos em lei. A
"fundada suspeita", prevista no art. 244 do CPP, não pode
fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo
elementos concretos que indiquem a necessidade da revista,
em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de
elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na
alegação de que trajava, o paciente, um "blusão" suscetível de esconder
uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a
direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder.
Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo.
(grifou-se)

Nesse contexto, no momento de uma eventual abordagem de um CAC


pelos agentes de segurança e/ou posterior análise pela Autoridade
Policial, pelo Promotor de Justiça e pelo Magistrado, quando da
apresentação da documentação exigida pela legislação e versão
verossímil pelo cidadão, não há falar em conduta criminosae nem
lavratura de auto de prisão em flagrante ou processo criminal.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de


1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constituição.htm>
. Acesso em 25 set. 2021.
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.826.htm>.
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CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 24ª edição, Saraiva, 2017.

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DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULYM Jorge Assaf, Curso de


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FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. 16.


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Disponível em: https://diegodcsb.jusbrasil.com.br/artigos/1291111558/i-legalidade-da-
prisao-do-atirador-colecionador-ou-cacador-cac

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