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Concedo tudo ao demónio de Descartes:


Quem me pode garantir que as rosas são rosas?
Que a noite não é dia, e que o dia não é noite?
Quem, por entre a multidão, me poderá garantir
Que existe de facto uma multidão?
De tudo isso duvidaria primeiro
Do que da tua nudez perfeita,
Que recordo agora
Com espinhos no peito.

Concedo tudo ao demónio,


Tudo,
Menos a tua recordação.
Por entre as fronteiras do sagrado e do profano
Circula o amor que ainda te acende velas
E por entre as milhentas luzes
E a cera derretida
Uma voz que ouço sempre
Como se fosse a primeira
Me responde de volta:
Não, nunca mais.
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Afastar-me?
Como posso eu afastar-me
De algo que não precisa
de me perseguir
Para estar comigo?
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uma idealização morta
pesa
quando toco
onde toco
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Estico o dedo na direcção do céu
E profetizo o fim dos tempos.
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Os sinais não são claros.
O tempo permanece e continua como sempre continuou:
Indiferente,
Intransponivel e imutável,
Rigido e impositivo,
Áspero e duro,
Ausente da vontade profetizante do Homem.
Pego na dúvida
E enterro-a junto à raiz mais profunda
Que irradia força animica
À idealização morta,
E rego o solo na esperança
De ver de novo a Morte
E de dançar alegremente com ela
Na certeza de que não há primavera
Que surja antes do inverno
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A nossa linguagem morreu,
Mas não morreu a linguagem
Que nos evoca.
E assim permanecemos vivos
Sem estarmos vivos,
E permanecemos mortos
Sem estarmos mortos.
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O tempo cria o hábito,
Mas o hábito não espanta demónios.
Apenas os oculta.
Quando o teu tempo passa,
O meu pesa,
Decadente,
Espelho do observador
Que observa o tempo
Com uma relativa certeza
Que o tempo correria
Sem que o observador o observasse.
E contrariamente ao que acontece a Alberto Caeiro
Nada de alegre me sucede a essa constatação:
Os demónios ocultos dançam no terror
Da certeza (não relativa) que um dia morrerei
E que estou certamente a desperdiçar a minha vida
lamentando idealizações mortas,
desaparecido dos outros,
sem ninguém,
desaparecido até de mim mesmo;
e o que poderá de alegre suceder-se
a uma constatação destas?
e o que pode o tempo fazer em relação
a seja o que for?
o tempo permanece e continua indiferente,
Intransponivel e imutável,
Rigido e impositivo,
Áspero e duro,
Ausente da vontade profetizante do Homem.
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Garanto-vos que não estou louco.
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contigo os pensamentos
as palavras
e os gestos
nascem e morrem
no momento certo.
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Arranco um espinho do peito
Arranco outro espinho do peito
E outro, e ainda outro…
A dor é real,
Mas os espinhos não o são.
Significa isto que os espinhos
permanecem no peito
mesmo após serem arrancados.
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não me interessam os teus olhos
ou o que por trás deles se esconde -
- no teu olhar,
não sei definir o que me interessa.
não é nada do mundo fisico, que possa ser descrito;
não é a cor, não é o movimento, não é o brilho ou a textura.
não é nada de oculto e que possa ser revelado,
como um segredo, uma intenção, uma sensação abstracta que sintas e não
possas partilhar;
não. nada disso me interessa nos teus olhos.
perante o teu impiedoso olhar
sou o louco asceta
que auto-profetiza a sua ascensão
(sem ascenção)
que reivindica uma posse imaterial
(sem metafisica)
que se imagina parte
integrante da separação
Não sei o que me interessa.
Interessa que me olhes sem mistério
e sem espinhos
Que me olhes sem o peso de profecias
Sem ascenção ou metafisica
Que separes o olhar do peso de olhar
Para que me olhes sem peso
Oh, esse peso desta hedionda existência…
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rejeitado,
rejeito-me.
não me coloco inteiro
perante nada.
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Quando?
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O que me agarra a ti
Agarra o músico ao som
Agarra o escultor à pedra
Agarra o poeta à palavra
Agarra o dia à noite
Agarra os espinhos ao peito
Agarra-me,
Oh, agarra-me!
e não me deixes sozinho
nesta noite fria!
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Diz-me.
Diz-me o que vês.
Peço-te
com a urgência de um Deus
que procura salvar o seu universo da dissipação:
Diz-me o que vês.
Profere a palavra clara
E quebra as maquinações reflexivas
Que me ligam à própria separação
Estou farto de me sonhar isolado
Peço-te a palavra fecunda
A palavra-mãe
A palavra que gera a palavra
A visão que gera a visão
A palavra que liga a visão à palavra
Oh, diz-me o que vês e não aquilo que eu vejo
Diz-me o que vês e que eu não quero ver
Diz-me se o teu sonho é igual ao meu
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silêncio
com tubos e chão cizento metálico
silêncio
quando as máquinas param
e os operários desumanizados
se libertam do dispositivo
do qual são parte integrante
com sensação perpétua de separação
silêncio
por entre a infinitude que separa a infinitude,
Sim, eu disse e repeti infinitude,
porque também eu defendo que não devemos pensar
Que o planeta terra é a nossa única casa
o nosso limite espacial
o único planeta onde podemos ser miseráveis;
devemos ter sonhos grandes, enormes, libertos!
Defendo que devemos ter o objectivo concreto de humanizar
e deprimir
o Universo inteiro!
Só derramando a nossa subjectividade pelo Cosmos
podemos garantir que as estrelas sentirão sofrimento
e que os cometas se arrastarão no céu por tédio
Oh, que triturada forma de organizar a matéria!
Que saco de carne barulhento que só a custo,
só a muito custo, consegue alguns momentos de
silêncio
Com recurso a tubos e chão cizento metálico
O silêncio sem silêncio
A que nos habituámos.
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Escutar o silêncio
não é necessariamente
escutar a ausência de som.
Por dentro, podemos escutar
o movimento que se direciona
à ausência de movimento.
E, de seguida, escutar
aquilo que se escuta
quando nos calamos no sentido
mais extenso da palavra.
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No Cemitério de Benfica
Ouvi uma senhora exclamar perante o tumulo de um entequerido:
“Nada somos sem a cruz!”;
Disse-o com as duas mãos agarradas
A um pequeno livro,
Com certeza produzido em massa
Numa qualquer fábrica entre muitas
Que produzem muitos destes pequenos livros
Quantas senhoras já exclamaram perante os defuntos:
“Nada somos sem a cruz!”; ?
Quando é que a morte de uma mamifero
Deixou de ser a morte de um mamifero
Para se tornar a totalidade de tantos?
Ah, o tédio da consciência lúcida da repetição…
É este o espinho que não existe e que portanto permanecerá encravado.
Não há nada para arrancar e não há nada para preencher.
Para sacrificar a consciência do espinho
É necessário ter consciência do espinho
Sendo portanto o carrasco uma cópia exacta do executado.
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Demónio!
estou cansado,
cansado de carregar comigo
esta verdade,
esta verdade idealizada,
esta verdade que me separa da vida,
esta verdade que está morta
mas que, ainda assim, vive!
Separa-me da verdade,
Eleva a ilusão e repete-a
até que me pareça tão natural
como o nascer e o pôr do sol
como as correntes e descorrentes dos rios
como a metamorfose da borboleta.
Sim, aberração!
Concedo-te a sua nudez perfeita!
Concedo-te as memórias de tantos dias
que passámos sós
e nos quais o Universo dançava,
Sim, concendo-te esta fonte eterna
que já foi brilhante, bem o sei;
mas que agora é negra e apodrecida;
Leva, leva tudo contigo!
O que faz de uma rosa, uma rosa?
O que faz do vinho, vinho?
O que faz da sua nudez, perfeição?
O que separa o dia da noite?
Separa-me de todas essas coisas
que nos mantém plenamente sãos,
porque para mim o custo da sanidade
é a nostalgia, a fonte de água negra;
Sim, aberração!
Concedo-te, concedo-te não só todas as verdades
como até a fonte da própria verdade
que irradia as memórias nos espinhos!

Sinto que me vai doer quando


os espinhos cessarem de doer!
Porque ai sim, estaremos mortos.
E sinto que a dor perante a nossa morte
nos ressuscitará de novo
para a nossa permanente inexistência.
Desse modo, o fim da dor dos espinhos
Se torna de novo
Na dor eterna dos espinhos.
Aberração,
É por isso
que acima de tudo,
Te peço
que me separes da eterna ressurreição!

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transubstanciei os meus olhos
em lâminas
cortei a realidade habitual
sem cuidados especiais em relação à precisão
e surgiram aparições disformes e assustadoras
que aparentavam mais realidade do que a realidade
entediante
a que me habituei.

transusbstanciei a nova realidade


em certeza de ilusão
(assumir a realidade da nova realidade
seria loucura no pior sentido do termo)
e vi o sangue na certeza do vinho
e vi o corpo na certeza do pão
e por entre a dissonância daquilo que vejo
e daquilo que sei
estiquei o dedo na direcção do céu
e transusbstanciei o universo inteiro.
e assim sendo, sei o que vejo
mas não sei o que sei.

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uma procissão sem nome
sem doutrina, sem santo, sem deus
uma longa procissão nocturna
com velas e cânticos de melodia sem letra
sem palavra, sem direcção, sem disciplina
juntei-me à procissão e cantei sem cantar
ofereci-lhe o meu silêncio sem esperar
nada em retorno
vi uma rapariga de olhos tristes
sem vela.
aproximei-me
e chorei com ela.

16
Hoje, dançarei com a Morte!

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Mas amanhã,
quero dançar
leve e puro ao sol
Juntamente com
os meus irmãos
e as minhas irmãs
de luz.

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