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TEMPO
ATO
MEMÓRIA
Editores:
Maria Ângela Bulhões e Sandra Djambolakdjian Torossian
Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Glaucia Escalier Braga,
Maria Ângela Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes,
Sandra Djambolakdjan Torossian, Valéria Machado Rilho.
Editoração:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria linguística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que
tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém
estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições
temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da
venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou
doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
R454
Semestral
ISSN 1516-9162
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de
Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em setembro 2011. Tiragem 500 exemplares.
TEMPO
ATO
MEMÓRIA
SUMÁRIO
Psicanálise e história:
explora-se um litoral ...................... 82
Psychoanalysis and history: exploring a littoral
Eliana Mello
7
EDITORIAL
8
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 9-19, jul./dez. 2010
TEXTOS
O ATO DE LACAN1
Abstract: The present text approaches the rupture among Lacan and the French
Psychoanalytical Society and the International Psychoanalytical Association, in
1963, as an act of Lacan inside the analytical movement, touching the principles
of the psychoanalytical training. The act of Lacan is according to his proposed
concept in the seminar The psychoanalytic act and points to its consequences
on the clinical practice and psychoanalytical theory.
Keywords: psychoanalytical act, transference, psychoanalytical training, history
of the psychoanalytical movement.
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Dizer e fazer em análise, realizadas
em Porto Alegre, novembro de 2010.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). E-mail: liz-
ramos@uol.com.br
9
Liz Nunes Ramos
3
Société Française de Psychanalyse.
4
International Psychoanalitycal Association.
5
Société Psychanalytique de Paris.
6
Sujeito suposto ao saber.
10
O ato de Lacan
Seu ser, quer dizer, seu inconsciente, já que para a psicanálise o ser não
possui nenhuma consistência, ex-siste tão somente na articulação significante.
É com a posição do inconsciente que o psicanalista conta.
11
Liz Nunes Ramos
Parece tão pouco, mas, para tal, é preciso que, sem demandar nada, ele
suporte o circuito infernal da repetição à espera de um momento lógico, a cada
sessão, no qual a palavra subvertida liberte o analisante de sua condição alienada,
dando lugar ao desejo.
Em sua reformulação, é a verdade quem fala, ela advém de um ato de
linguagem que se inscreve num corte temporal e, quando emerge a verdade
sobre o desejo não há saber, ninguém pode estar seguro de saber do que fala.
Aprisionar um sujeito na certeza é tão violento quanto impedi-lo de falar; por
isso, o ato está no ponto em que se suspende todo saber possível e se assegura
o sujeito, o desejo oculto como motor da subjetivação.
Na Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan (2003b, p.258) diz também
que “só temos escolha entre enfrentar a verdade ou ridicularizar nosso saber”.
Qual o saber ridicularizado? Qualquer um que precise ser suspenso para que
apareça a verdade do desejo inconsciente.
Nos interrogatórios, ficou claro que Lacan não alteraria sua prática e
aumentava o número de analisantes, embora jurasse, diante da comissão, e
com ironia, que suas sessões eram de tempo “normal”. Tratava-se de uma ironia
que declarava sua contestação e denunciava o engodo dessa formação que não
formava, apenas treinava, e também revelava certo conflito de Lacan. Ao mesmo
tempo em que contestava, tentou e acreditou poder evitar sua exclusão.
Uma prática dita “normal”, regrada conforme os manuais, não seria
defensiva quanto ao inevitável confronto do sujeito com a impossível normalização
do sexual e do desejo desviando do irredutível desencontro que afeta o desejante,
ao tentar controlar a emergência dessa questão de forma pragmática?
Lembremos que a experiência analítica substitui a procura pelo sujeito, não do
complemento sexual, mas da parte perdida dele mesmo. Após o seminário A
lógica do fantasma ([1966-1967] s/d), o seminário O ato psicanalítico [(1967-
13
Liz Nunes Ramos
uma profissão de fé no S.s.S., mas por ter sido advertido em sua análise de que
esta posição cairá é o “em falso” que caracteriza seu lugar na transferência.
No seminário de 1964 (Lacan, 1985, p.14) pergunta também: “o que é
uma práxis? É o termo mais amplo para designar uma ação realizada pelo
homem, qualquer que seja, que o situe em condições de tratar o real pelo
simbólico”. Quais são as condições que o situariam em tal posição, se não o
exercício da palavra, da qual não abre mão? Tomar a palavra implica que ela
pode ser plena ou não, dizer de um sujeito ou reproduzir um saber estabelecido.
Lacan renuncia ao gozo das satisfações imaginárias, que se aufere ao preço da
renúncia ao ato. Ele toma a palavra da qual somos herdeiros.
O real diante do qual não recuou foi o do desencontro irredutível, da lógica
do fantasma, vivenciado nesse vácuo institucional. Ressentido, acusou a muitos
de traição, mas a nós importa que não tenha traído o próprio desejo. Ato
psicanalítico e desejo do analista, dois conceitos não nomeados entre os quatro
fundamentais, que perpassam o seminário e resultaram da necessidade de se
ressituar na referência a Freud, fora da opressão corporativa, contra a divinização
e reinstalando a castração do “pai”, imprescindível à transmissão. Nesse ato
ele se desprende dessa figura imaginária, demonstrando a força simbólica da
filiação como suporte de todo ato fundador. Com as demarcações acerca das
diferenças na concepção do inconsciente, ele recorta o traço mais valioso de
sua herança simbólica e funda a leitura lacaniana do inconsciente, como não
tendo estatuto ontológico, sem qualquer fundamento acerca da essência, de
substância que empreste materialidade ao ser. O sujeito é nada mais do que
um significante.
Assim, retoma a complexidade da análise didática, quando referira que
“ela não pode servir para outra coisa senão para levar o analisando a esse ponto
que designo em minha álgebra como o desejo do analista” (Lacan, [1964] 1985,
p.17), operador e suporte de todo ato.
Oito meses após a ruptura, em 02/06/1964, é fundada a Escola Francesa
de Psicanálise, que logo se tornaria Escola Freudiana de Paris, fazendo ressurgir
o freudismo. A Escola era uma instituição frágil, com hierarquia definida e dirigida
por um mestre que concedia aos discípulos a igualdade de direitos, mas não
renunciava a grandes parcelas de poder. Embora seus estatutos resgatassem o
sujeito de desejo como objeto da psicanálise e o trabalho a partir da transferência,
havia o problema de que ali o S.s.S. não era suposto, mas encarnado por Lacan,
distante do analista que, como semblante de a, produz decifração e redução de
gozo. Assim, ao mesmo tempo em que reiteradamente, ao longo da década,
desfez as ilusões de um saber totalizante, também reeditou a prática da mestria,
em flagrante conflito com suas convicções, talvez um resto de sua análise
inacabada.
15
Liz Nunes Ramos
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drumond. O Outro. In.: ANDRADE, C.D. Corpo. Rio de Janeiro: Ed.
Record, 1984.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer [1920]. In.: ______. Obras completas
de Freud. Rio de Janeiro: Standard, 1981. p. 13-85.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência [1960-1961]. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1992.
_____ . Ato de Fundação [1964-1971]. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2003. p. 235-247.
_____ . O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
_____.Proposiçãode9deoutubrode1967sobreopsicanalistadaEscola.
In:_____.Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003. p. 248-264b.
_____ . A lógica do fantasma – Seminário [1966-1967]. S/d. (Publicação não
comercial).
_____ . O ato psicanalítico – Seminário [1967-1968]. Escola de Estudos Psicanalíticos.
S/d. (Publicação interna).
PLATÃO. O banquete. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991.
18
O ato de Lacan
Recebido em 16/12/2010
Aceito em 25/01/2011
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
19
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 20-29, jul./dez. 2010
TEXTOS
A LÓGICA DO ATO NA
EXPERIÊNCIA DA ANÁLISE1
Isidoro Vegh2
Abstract: The text deals with the specificity of the analytic act from the beginning
of an analysis, when the silence of the psychoanalyst calls upon the speech of
the alienated in the position of the object of the Other. Sustains the logic that
providing the act is consistent with the castration, but proposes to go further by
passing from the incompleteness of the unconscious to the limit of the real.
Keywords: act, alienated, castration, unconscious.
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Dizer e fazer em análise, realizadas
em Porto Alegre, novembro de 2010.
2
Psicanalista; Membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires; dentre suas publicações: Las
intervenciones del analista (Agalma, 2004); El sujeto borgeano (Agalma, 2005); Lectura dela
Seminário L’etourdit (Escuela Freudiana de Buenos Aires, 2007). E-mail: isidoro@vegh.com.ar
20
A lógica do ato...
não se matarão mais filhos e, em troca, o sujeito Abraão aceita uma perda, que
não se dá em qualquer parte, mas no órgão do gozo, símbolo de uma perda de
gozo. Nós, os psicanalistas, seguindo Freud, a chamamos proibição do incesto.
Todo ato implica um significante.
Agora bem, vamos à especificidade do ato analítico. Primeira condição
para que haja ato analítico: tem que ter havido um psicanalista. Digo-o com um
aforismo: a tarefa é do analisante, o ato é do analista. Temos, nos diz Lacan,
dois paradoxos notáveis para alguém que viesse de outro campo: lhe resultaria
surpreendente que relevamos como ato logrado o ato falho, que o lugar onde
somos especialmente convocados pelo discurso do analisante é o lugar onde
seu dizer consciente balbucia, gagueja, comete lapsos, repetições impensadas.
E, por outro lado, nós que falamos do ato, convidamos nossos analisantes a
que se abstenham de fazer, a que se recostem no divã, que somente falem.
Regra fundamental: diga o que lhe ocorrer. O que nós chamamos ato parece que
tem certa singularidade. Inclusive, como diz Lacan, o ato não é o agieren, o
fazer, e dá o exemplo: quando Júlio César, desobedecendo à ordem que lhe
chega de Roma, cruza o Rubicão, com seu exército vitorioso de retorno das
Gálias. Cruzar esse rio, como fato físico, era insignificante, era mínima sua
largura, teria um metro, dois. O que o converte em ato é que nesse momento faz
uma transgressão, desobedece a uma ordem, manifesta sua decisão para algo
novo, a tomada do poder.
Lacan nos diz que, para entender o que é o ato, nada melhor que acudir
a um grande poeta, Arthur Rimbaud. E menciona um poema
3
Tradução: je ne pense pas (eu não penso); alienation (alienação); sujet (sujeito); ou je ne
pense pas (ou não penso); ou je ne suis pas (ou não sou); transfert (transferência); là où
c’etait (aí onde eu era); vérité (verdade); je ne suis pas (não sou); faux-être (falso ser); n’y
être pas (não ser aí). (N. do E.) 23
Isidoro Vegh
Em seu início, alguém demanda uma análise, supõe-se que o faça com
sua estrutura constituída. Os dois círculos que se interseccionam, acima à
direita, é o que Lacan trabalha no seminário Os quatro conceitos (Lacan [1964]
1988), a intersecção do sujeito e o Outro. Com sua dupla operação: um primeiro
tempo quando o sujeito se aliena no Outro e um segundo tempo de separação.
Partimos da asserção de que um analisante vem com sua estrutura
constituída, funcionando a pulsação do Inconsciente. Se o analista se situa na
posição conveniente, vai definir se isso vai ser psicanálise ou psicoterapia. Se
vai ser psicoterapia ou uma entrevista psiquiátrica, o paciente virá e o psiquiatra
ou o psicoterapeuta lhe dirá: – “Bem, o que lhe sucede?” – “Tenho angústia.” –
“Diga-me desde quando, mais à manhã, mais à tarde? Toma algo?” Um
interrogatório. Se é um analista, com cordialidade o faz passar e, se pode suportá-
lo, nem sequer lhe diz onde tem de sentar-se. Espera para ver o que sucede. E
o analista faz algo, o que faz? Faz silêncio. Não é que fique calado porque a
pulsão de morte o domina, expressamente faz silêncio. Um silêncio que convida
a falar.
Se nessas entrevistas, que costumam se chamar preliminares, se formula
uma demanda de análise, quer dizer que quem toca nossa campainha, quem
acode a nosso consultório, adverte que há algo que escapa ao saber que tem
para dar conta de seu sofrimento. Costumo diferenciar entre dor e sofrimento.
Não se diz me dói um sofrimento, entretanto se diz sofro uma dor: o sofrimento
é uma primeira resposta à dor. Se conseguimos nas entrevistas, ou pelo próprio
sintoma, que o sujeito advirta que desse sofrimento há um saber que ele ignora
e situa a possibilidade desse saber no analista – há intervenções do analista
que permitem propiciá-lo –, o sujeito vai começar a falar. E quando alguém fala
seguindo a regra fundamental, o convidamos a que, como diz Freud, diga o que
lhe ocorrer, sem se preocupar qual é a razão, se é correto, se é importante ou
não, que fale, o instalamos em uma pequena armadilha: no labirinto de suas
palavras, o convidamos a sua alienação, a que advirta que a razão está fora de
seu Eu. Alienação quer dizer fora de si; trabalho alienado, como dizia Marx, é
um trabalho cujo ganho fica fora do trabalhador. Produzir-se-á então um efeito.
Um efeito que nos convida a retrocedermos ao tempo de Freud.
Imaginemos Sigmund Freud sentado em Viena, sua paciente deitada no
divã, e de pronto a paciente diz: – “Sim, Herr Professor, eu não sei por que
chego em minha casa nervosa e me ponho a gritar para as crianças, e depois
não sei por que vou à geladeira e como mais do que teria que comer, eu não sei
por quê”. Então Freud pensa: “Se Eu não sabe, quem sabe?”. Ponhamos um
nome, ponhamos em vez de Eu, Isso. Isso sabe. É o lugar do Es – em alemão
Isso se diz Es. E esse Es quer dizer então: “Eu não penso, Isso pensa”. Alienação.
Alguém que não soubesse como segue, poderia dizer-nos: – “Nunca escutei
24
A lógica do ato...
semelhante maldade, convidar alguém a falar para que descubra que não sabe o
que diz e, ainda por cima, cobrar dele”. Por sorte, a telenovela segue. Segue e
vai se produzir o que Lacan chama a operação verdade, que, por efeito da
transferência, haverá um movimento pelo qual o sujeito vai advertir que isso de
que sofre é de algo que o tem preso, que a razão de seu sintoma é que sofreu,
se é um neurótico, provavelmente uma regressão. Que sofre de uma Fixierung,
de uma fixação. Fixação a quê? A um gozo. O neurótico é aquele que retrocede,
regride seu desejo à demanda do Outro. E é “Eu não penso porque sou”. Eu não
penso porque sou o objeto, estou identificado ao objeto, em algum lugar de
minha estrutura, ao objeto de gozo de um Outro. Escutamo-lo dos modos mais
simples. Por exemplo, uma analisante arquiteta toda sua vida sonhou que quando
se formasse iria à Europa para ver aquelas enormes construções de tantos
séculos. Vem à sessão angustiada. – “O que lhe sucede? – Ai, doutor, tantos
anos sonhei com esta viagem, e veja como estou angustiada, porque pobre da
minha mãe, tão velha, posso deixá-la só tanto tempo?”. Está convencida de que
ela é o objeto que garante a vida e a saúde de sua mãe. Vou lhes contar um
chiste. Uma filha, também muito carinhosa com sua mãe, lhe diz: – “Mamãe,
vamos juntas ao sul da Argentina, a Bariloche; pego dois camarotes no trem e
desfrutamos”. – “Que bom!” – diz-lhe a mãe. Chegam à estação do trem, vão ao
restaurante, a filha a agasalha com o melhor, deitam-se, a filha tira a roupa,
veste a camisola, se despenteia, vê contente como sua mãe se deita, sorri
cheia de felicidade, pela felicidade que dá a sua mãe, apaga a luz e então
escuta: – “Ai, que sede tenho! Ai, que sede tenho!” – “Mas, mamãe, já é de
noite, o restaurante está fechado”. Mas a mãe não parava. A filha se dá conta de
que não há solução, diz a si mesma: – “bem, é uma mulher velha”. Tira a camisola,
volta a se vestir, se arruma um pouco, caminha 1, 2, 3, 10 vagões, bate, explica
ao guarda, “minha mãe velhinha, sim por favor”, ele lhe dá a água, ela volta os 10
vagões, serve a mãe, a mãe toma. Está contente, diz a si mesma, minha mãe,
uma mulher de idade. Volta a tirar a roupa, se despenteia, se deita, apaga a luz
e então escuta: – “Ai, que sede que eu tinha!” Quando a analisante descobre
que a mãe seguirá assim, decide continuar a análise. E continua a análise
graças a que o analista está disposto a suportar na transferência tanto o lugar
da mãe como o lugar do objeto tiranizado. Presença do analista se sustenta no
desejo do analista. Aí se prova se há ou não há desejo do analista. Quando se
chega a esse ponto, e suspeito que no Brasil também, muitos colegas nesse
momento decidem ir ao coro da Igreja, outros se inscrevem em uma oficina de
pintura, algo que os subtraia desse tempo passional. Pois bem, se o analista o
sustenta, se produzirá algo novo. Passar-se-á desse “Eu não penso” ao que
chamamos o Inconsciente como lógica de incompletude. E será então o tempo
do “Eu não sou”. Ali onde Descartes diz penso, logo existo ou penso, logo sou,
25
Isidoro Vegh
nós colocamos “Eu não penso” e “Eu não sou”. Eu não sou, atravessei na
transferência esse ponto, eu não sou mais o objeto de gozo do Outro.
Para isso, terão de se produzir, do lado do analista, dois fenômenos: por
um lado, chegado o final da análise, ele cairá de seu lugar de Sujeito suposto
Saber. Há um des-ser do analista. Foi pensado a partir de outros campos e
desde tempos imemoriais. No século XX foi retomado por essa grande lutadora,
que é Simone Weil, uma personagem estranha que vinha do judaísmo, passou
ao cristianismo, esteve nas lutas obreiras, se ofereceu ao general De Gaulle
para fazer um grupo de enfermeiras na Segunda Guerra. Em um livro que se
chama La pesanteur et la grâce, A gravidade e a graça (Simone Weil, 2004),
explica que, para que o ser humano exista, Deus tem que se descriar, porque se
Deus é, como dizia Descartes, o conjunto dos atributos positivos levado a seu
grau extremo, ocuparia todo o espaço, não haveria lugar para a criação. É um
dom divino retirar-se para que haja criação. Ela não o menciona, mas isso foi
dito muito antes por Lúria, um místico judeu que viveu em Safed, uma cidade
que ainda subsiste em Israel, a cidade dos cabalistas. Lúria colocava que, para
que pudesse haver criação do universo, portanto também do homem, Deus tinha
que se retrair, deixar lugar. Pois bem, eu digo que neste des-ser que Lacan
propõe para o analista, quanto ao Sujeito suposto Saber, é o mesmo. Que o
analista deixe de ser esse Outro que sabe, tempo de idealização, é o que permite
que emerja o sujeito. Como diz Lacan, como manque-à-être. Se tomamos o
chiste que lhes contei, manque-à-être não é um termo filosófico, é psicanalítico:
Falta-em-ser, deixo de ser a filha que está destinada a acalmar a sede de sua
mamãe. Não é filosofia, é psicanálise.
E do outro lado, Lacan põe -ϕ? e o objeto a. Por que o objeto a? Pelo que
lhes disse, o analista a partir do ponto T (ver quadro) teve que sustentar o lugar
desse objeto de gozo. Então, se aceitamos a simplicidade desse quadro, vou
propor como eu penso a fórmula mínima do ato. Lacan aceitava o que é um dos
anelos da ciência moderna, a escrita mínima. Por exemplo, Lacan não usa S1,
S2, S3, S 4, só S1 e S2. S 2 é o conjunto dos significantes, é o saber. Um saber é o
quê? Um conjunto articulado de significantes. E S1, que é o significante que
surge representando o sujeito por retroação. Pois bem, seguindo esse anelo
que Lacan nos propõe e que compartilhamos, eu proponho como fórmula mínima
do ato analítico o que vou escrever agora.
26
A lógica do ato...
Que quer dizer o que escrevi? Quando o neurótico acode com sua demanda
de análise é porque, sem sabê-lo – por isso está sob a barra, é a barra da
repressão –, ele sustenta , identificado a um objeto, a ilusão da completude do
Outro. Propiciar o ato é congruente com a castração. Por que escrevo castração
como escreve Lacan, com -ϕ? Uma questão de lógica. Se aceitamos, com
Lacan, que o Inconsciente – e isso é porque Lacan leu Freud muito bem – só é
constituído por Vorstellungsrepräsentanz, por significantes, não há afetos no
Inconsciente – Freud o disse várias vezes, “quando digo sentimento de culpa é
uma maneira leviana de falar, não há sentimentos no Inconsciente”.
Vorstellungsrepräsentanz é comumente traduzido como representante da
representação ou, em terminologia lacaniana, significante. Pois bem, se o
Inconsciente é um “software” constituído por elementos discretos, responde à
teoria dos conjuntos. E já desde os primórdios do século passado, com os
paradoxos de Russell, se sabe que se o subconjunto vazio não é incluído como
parte de um conjunto, entra-se em contradições de 2+2 é 4 e 2+2 não é 4. O que
quer dizer que o Inconsciente, como um conjunto, tem também um subconjunto
vazio?
funcionar como tampão – é o que víamos no exemplo da filha com a mãe. Pois
bem, dizemos que se uma análise avança, permite passar do mais-de-gozar ao
objeto a como causa de desejo. Então, podemos entender quando Lacan, aqui
abaixo (ver quadro), põe faux-être, falso ser. No final da análise, o analisante
descobre a falsidade desse lugar onde ele se oferecia como sendo o que podia
acalmar eternamente a sede de sua mãe. Do outro lado põe n’y être pas, não ser
mais aí. É o sujeito como falta em ser. Uma das habilitações de uma análise é
poder se reencontrar com o objeto causa de desejo, endereçar o fantasma,
situar um sujeito que sustenta seu desejo graças a que algo lhe falta. Lacan, de
brincadeira, dizia: pobres dos ricos. Por que pobres dos ricos? Quando alguém
crê que tem a completude, tampona o desejo.
Mas disse que íamos fazer dobras do discurso. Isso poderia se nomear,
na tradição lacaniana, como travessia do fantasma. Uma análise que avança
chega ainda mais longe. E esse mais longe tem a ver com esse lugar do Outro
e com passar da incompletude do Inconsciente ao limite do real. Lacan o diz a
seu modo, não há Outro do Outro. Eu digo: avançar em uma análise até seu
extremo é produzir a exaustão do Outro – o esgotamento da ideia de que há
Outro. Digo-o a vocês com um relato muito simpático. Uma vez alguém perguntou
ao filósofo espanhol Miguel de Unamuno: – “Diga-nos, Dom Miguel, que opina
da vida mais além?” Unamuno respondeu: – “Não vou discutir se há ou não há
vida mais além, a única coisa que peço é que me deixem vivê-las uma por vez”.
A exaustão do Outro quer dizer que o sujeito já não espera que venha alguém,
algum Outro, pode ser o Pai nosso que estais nos céus, ou pode ser um líder
autoritário, porque, para que haja um ditador, como dizia Étienne de La Boétie –
o amigo de juventude de Montaigne –, “tem que haver muita gente disposta a se
submeter voluntariamente ao tirano”. E por que tanta gente se submete
voluntariamente ao tirano? É, como dizia Freud, um anelo infantil, – “Quero um
pai que me proteja, quero alguém que responda pela manhã”. Quando as meninas
dizem à mamãe, – “Mamãe, o que eu boto hoje?” A alternativa implica uma ética
que não é tão fácil de sustentar, e é que como nada garante o resultado, somos
cada dia convidados ao ato. E não vão pensar que isso é algo que é solucionado
definitivamente. Nossa estrutura é a do palimpsesto. Digo-o a vocês em termos
atualizados, especialmente para os mais jovens, vão ver que juvenil sou em meu
pensamento, vou tomar o PC – quando era jovem, PC era Partido Comunista,
28
A lógica do ato...
REFERÊNCIAS
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
_____ . O seminário, livro 14: a lógica do fantasma [1966-1967]. Recife: CEF.
Publicação para circulação interna, 2008.
_____ . O ato psicanalítico – Seminário [1967-1968]. Escola de Estudos
Psicanalíticos. S/d. (Publicação interna)
WEIL, Simone. A gravidade e a graça. Lisboa: Relógio d’ Àgua, 2004.
Recebido em 12/01/11
Aceito em 10/02/11
Revisado por Maria Ângela Bulhões
29
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 30-38, jul./dez. 2010
TEXTOS
FAÇA1
Jacques Laberge2
DO IT
Abstract: This article presents the effects of the analitycal act in the course of
an analysis. The analyst, in place of the supposed knowledge, inaugurates his
act from the alienation of the subject, as it focus on significant chain. The analyst,
as he learns “know-how” with the handling of letters, with the “logic of letter”,
might not show resistance to the learning by the pacient of a “know-how” with the
letter of the symptom.
Keywords: super-egoic imperative, alienating identification, psychoanalytic act.
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Dizer e fazer em análise, realizadas
em Porto Alegre, novembro de 2010.
2
Psicanalista; membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil. E-mail: laberge@hotlink.com.br
30
Faça
F
“ aça como seu tio inútil, incapaz”. “Faça como sua tia estúpida”. Estas
duas formulações do imperativo super-egóico, embora ditas em palavras,
revelam a crueldade do real. Aprendi dos analisantes que é comum a identificação
alienante a tios problemáticos. Talvez seja uma das preciosas descobertas de
muitos analisantes em seus fazeres de cavar lembranças. Após anos de
sofrimento e pilhas de documentos revisados em restos mal esquecidos de
recordações, analisantes chegam a este tipo de frases marcadas pelo selo
humilhante da alienação. Os pais deles repetiram com os filhos uma rivalidade
mortífera com os irmãos. Assim, muitos analisantes, quando crianças,
receberam, em edição renovada e muito popular, as mesmas pancadas ou
insultos que os irmãos recebiam daqueles que, depois, se tornaram pai ou
mãe de nossos analisantes. A rivalidade dos pais com seus irmãos perpassa a
relação pais-filhos. Após demorado conflito, uma analisante consegue dizer à
mãe: não sou sua irmã, você deve resolver seu problema com ela. Modo de
colocar um limite ao gozo da mãe.
No Seminário 15, O Ato psicanalítico, Lacan ([1967-68] 1977) diz
que o ato anal ítico começa a partir da alienação. Trabalhos iniciais dele
abordam a alienação do eu especular e seu conhecimento paranóico. E o
eu da fala, questionador do eu narcísico, não deixa de ser alienado em
significantes que o antecedem. E que dizer da alienação do desejo no
desejo do Outro!
No Seminário 11 (Lacan, [1964] 1973), após reconhecer a alienação geral,
comum, em relação à economia, política, cultura, Lacan lembra que a raiz da
alienação nos é apresentada por Hegel no vel, na impossibilidade de escolher,
por exemplo, entre liberdade e morte. Esta impossibilidade nos leva à posição
de “liberdade de morrer” (Ibid., lição de 27.05.64). No Seminário 15 (Lacan
[1967-68] 1977), seria a impossibilidade de escolher entre “eu penso e “eu
sou”, entre “eu não penso” e “eu não sou”. Eis o legado do afirmativo “penso-
sou”, em Descartes, passado por Lacan ao crivo da “paixão do negativo”,
conforme o título do livro de Vladimir Safatle (2005). Negativo logo explicitado
por Lacan: o significante é
[...] recalcado nisso que não implica sujeito, que não é mais o que
representa um sujeito para um outro significante (Lacan, [1967-
68] 1977, p. 90).
Um sujeito definido como efeito de discurso, um tal sujeito cujo
exercício é de algum modo colocar-se à prova de sua própria
31
Jacques Laberge
3
Nota do Editor: as páginas das citações foram tiradas da edição brasileira das obras constantes
nas Referências.
32
Faça
ela abriu uma brecha, em inesperado dia, para eu poder lançar a frase interrogativa:
nome da morta ou de uma mulher que seu pai amou muito?
Lacan entendia os porquês repetidos das crianças como pergunta “Quer
ele me perder? O fantasma de sua morte, do próprio desaparecimento, é o
primeiro objeto que o sujeito tem a colocar em jogo nesta dialética” (Lacan,
[1964] 1973, p. 203) e ali vem a referência à anorexia. A escuta do analista deve
permitir ao analisante especificar a particularidade singular de determinada
identificação alienante, super-egóica, do real mortífero. Por outro lado, os porquês
de todas as crianças encobrindo o fantasma da própria morte apontam para o
universal da alienação no aspecto do real do supereu cruel. Aliás, na parte V de
O eu e o isso, Freud ([1923] 1968) chama o supereu de primeira identificação.
Enfim, eminentemente, o “eu não penso” é alienado porque não quer saber
do desejo. Alienação do não querer saber da castração “enquanto o sujeito não
se realiza a não ser por esta via”. “Ele não tem o órgão do que chamarei o gozo
único, unário, unificante [...] da unificação do ato sexual” (Lacan, [1967-68] 1977,
p. 98). Alienação na crença da unificação sexual.
“O que acontece ao sujeito suposto saber?”. “Ele cai.”. “Esta barra sobre
o S”. Este “des-ser que marca o sujeito suposto saber”. “No lugar do analista”,
35
Jacques Laberge
produz-se o objeto pequeno a” (Lacan, [1967-68] 1977, p. 97). Aliás, “o ato (todo
ato e não somente o ato psicanalítico) não promete àquele que toma esta iniciativa
nada senão este fim que designo no objeto a” (Ibid., p. 115).
Os psicanalistas “são eles-mesmos este lixo, presidindo à operação da
tarefa, eles são o olhar, eles são a voz, é enquanto são o olhar que eles são a
voz; é enquanto são em si o suporte deste objeto a, que toda a operação é
possível” (Ibid., p. 136). “O psicanalista, não é porque ele está ali desde o início,
que no fim, do ponto de vista da tarefa, desta vez psicanalisante, não seja ele
que é produzido” (Ibid., p. 137). E rejeitado pelo analisante.
Das mais importantes interlocuções de Lacan, destacam-se a filosofia e
a literatura. Vou limitar-me a algumas alusões. No fim da última sessão do
Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Kant é dito
“mais verdadeiro” que Spinoza, pois sublinha o além do amor, ou seja, o desejo
e a lei. “Lei moral que, ao examiná-la de perto, é o desejo no estado puro”
(Lacan, [1964] 1973, p. 260). Essa frase explicita algo presente no texto Kant
com Sade de 1962. Para Lacan, além do amor, isto é, do narcisismo, a lei do
pai. E a respeito de Sade, além do prazer, é o gozo, o gozo além do princípio do
prazer freudiano. Encontrando-se no sacrifício do objeto de amor, Kant e Sade
trazem contribuições que têm incidências clínicas no movimento da experiência
da psicanálise: o amor unificante na transferência, o amor ao sujeito suposto
saber é sacrificado. Sofre efeitos da “grandeza negativa”, aludida por Kant; da
“dissolução”, referida por Sade. O sujeito suposto saber acaba reduzido ao objeto
perdido. O analisante, enviscado no melado do amor, acaba se confrontando
com a falta, lugar do desejo.
Da filosofia, vai se diferenciando a lógica que praticamente começou com
Aristóteles. Em textos dele, Lacan reconhece indicações do sujeito escapando
à uma identificação com a “substância” (ousia). Mas a respeito da lógica,
“precisamos fazer melhor” do que a lógica aristotélica “que não teria percebido
que ela fazia gramática” (Lacan, [1967-68] 1977, p. 123).
A lógica aristotélica fazia parte da filosofia. Com o filósofo e matemático
Boole (1815-1864), a lógica se torna uma ciência, uma ciência independente,
mas parte da matemática. Frege, nascido 33 anos depois de Boole, assusta os
matemáticos dizendo que o fundamento mesmo da ciência é a lógica. A lógica
antiga baseada na relação do sujeito ao predicado dá lugar com Frege a uma
lógica de formas proposicionais e de funções e o uso de ideografias.
Interrogando-se da razão de “introduzir um pouco de lógica”, Lacan
responde: porque “a lógica se definiu como este algo que propriamente tem
como fim de desfazer o problema do sujeito suposto saber” (Lacan, [1967-68]
1977, p.161). A lógica, este “campo onde o sujeito suposto saber é nada” (Ibid.,
p. 162).
36
Faça
REFERÊNCIAS
DOLTO, Françoise. L´image inconsciente du corps, Paris, Seuil, 1984. (ed. bras.: A
imagem inconsciente do corpo. 2 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007).
FREUD, Sigmund. O eu e o isso. Gesammelte Werke, Frankfurt am Main, Fisher
Verlag, 1968. (ed. bras.: O eu e o isso (1923) no vol. XIX da Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976).
LACAN, J.O seminário: as psicoses, [1955-1956]. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1988.
_____ . Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, 1964, Paris, Seuil,
1973. (ed. bras.: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1979).
_____ . Kant com Sade in: Écrits, Paris, Seuil, 1966. (ed. bras.: Escritos, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998).
_____ . L´Acte psychanalytique, 1967-68. Publication hors commerce, 1977. (ed.
bras.: O ato psicanalítico – Seminário 1967-1968. Escola de Estudos Psicanalíticos
Publicação para circulação interna e uso dos membros).
_____ . L´envers de la psychanalyse, 1969-70, Paris, Seuil, 1991. (ed.bras.: O avesso
da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992).
SAFATLE, Vladimir. A paixão do negativo. São Paulo, Unesp, 2005.
Recebido em 14/12/2010
Aceito em 20/01/2011
Revisado por Gláucia Escalier Braga
38
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 39-48, jul./dez. 2010
TEXTOS
VIDA PRIVADA E OBJETO
a-ATO: LACAN E TOLSTÓI1
Edson Luiz André de Sousa2
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Dizer e fazer em análise, realizadas
em Porto Alegre, novembro de 2010. Agradeço a Otávio Augusto Winck Nunes a leitura do
texto e as sugestões dadas para esta versão final.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Pós-doutorado pela Université de Paris VII e École des
Hautes Etudes en Sciences Sociales – Paris; Professor do PPG Psicologia Social e PPG
Artes Visuais – UFRGS; Coordena junto com Maria Cristina Poli o LAPPAP/UFRGS – Laboratório
de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política; Pesquisador do CNPQ. Autor, entre outros livros,
de Freud: Ciência, arte e política, em co-autoria com Paulo Endo (L&PM, Porto Alegre, 2009)
e Uma invenção da utopia (Lumme Editora, SP, 2007). E-mail: edsonlasousa@uol.com.br
39
Edson André Luiz de Sousa
S e Ivan Ilitch tivesse escutado Itamar Assumpção, talvez pudesse ter entendido
melhor o sentido de sua dor: “Sofrer vai ser a minha última obra”3 (Assumpção,
1998). Ivan não deixou de reagir heroicamente a ela, buscando falsas crenças
que o aliviassem do isolamento profundo, do abandono, do desamparo de não
ter a quem endereçar sua dor e, dessa forma, entender um pouco sua razão de
ser. Apesar de tudo, vendo a fuligem escura de uma vida que entrava por todos
os seus poros, era capaz de pensamentos que insistiam que sua vida tinha
sido boa. Evidentemente, não durava muito. A dor o abocanhava pelo cangote
e ele dialogava com a morte em desespero e por vezes pensava, com alívio,
que morrer libertaria finalmente os vivos do constrangimento de sua presença
e a si próprio do seu sofrimento. Não pôde escapar de uma vida enclausurada
em projetos vazios, em uma vida privada obscura, sem aberturas possíveis
para o fato de poder ocupar um lugar singular de enunciação na trama
empobrecida de sua tímida vida pública. Era um burocrata cujo trabalho zelava
pela maquinaria do sistema na Corte Suprema, mesmo que, para isso, tivesse
que renunciar ao mais precioso de sua vida: sua liberdade. Diz Tolstói (2007,
p. 23): “Sabia portar-se e separar com inteligência seus compromissos oficiais
de sua vida particular”.
Na verdade, o que podemos perceber na leitura do texto é sua impotência
em romper as amarras do gozo da vida privada. Ilitch não podia seguir a indicação
de Lacan ([1962-1963] s/d), no seminário A angústia onde afirma que uma das
tarefas fundamentais do psicanalista hoje é autorizar o analisando a não gozar –
e se manter desejante. Não podemos esquecer que autorizar o sujeito a não
gozar é muito diferente de proibir o gozo: é trabalhar para que ele possa se
3
Dor Elegante: Um homem com uma dor/É muito mais elegante/Caminha assim de lado/Com se
chegando atrasado/Chegasse mais adiante/Carrega o peso da dor/Como se portasse medalhas/
Uma coroa, um milhão de dólares/Ou coisa que os valha/Ópios, edens, analgésicos/Não me
toquem nesse dor/Ela é tudo o que me sobra/Sofrer vai ser a minha última obra. (Itamar
Assumpção e Paulo Leminski)
40
Vida privada e objeto a-ato...
4
Agradeço a André Costa este precioso comentário.
41
Edson André Luiz de Sousa
Vida privada de hiato. Recupero aqui a origem latina da palavra, que indica
hiato como a “ação de abrir a boca”. Em seu sentido figurado, “fenda, falha,
interrupção”. O silêncio de Ivan Ilitch em seu leito de morte e seu grito de dor.
Por três dias inteiros, durante os quais não existia para ele a
noção de tempo, lutou contra aquele buraco negro para dentro do
qual estava sendo empurrado por um invisível e invencível poder
(Tolstói, 2007, p.97).
5
Ver artigo de Edson Luiz André de Sousa, Luiz Guides: um mar sem margens . Associação
Psicanalítica de Curitiba em Revista, v. 21, 2010.
43
Edson André Luiz de Sousa
Ivan não segue à risca o que anuncia o músico brasileiro Itamar Assumpção:
“Sofrer será minha última obra” (Assunção, 1998). Ouvimos o grito de Ivan como
O grito de Munch6, e que Lacan ([1967-1968]2007) descreve como a boca que
se torce e onde vemos surgir a aniquilação sublime de toda paisagem. Mas a
quem se endereça esse grito? Quem pode escutá-lo? Tudo começa com um ato
falho, uma queda, o destino anunciado da mortalidade de Caio no silogismo que
o acossa mais tarde. Vai arrumar uma cortina no apartamento novo para
impressionar a esposa e se desequilibra. Bate na maçaneta da janela. Esse
“machucadinho de nada” é o inicio de sua doença. Praskovya, sua mulher,
insatisfeita, exigente e ciumenta, desejava por vezes que ele morresse “ainda
que não o quisesse morto porque com ele ir-se-ia também o salário dele” (Tolstói,
6
Titulo original do quadro Skrik. Pintura do artista norueguês Edvard Munch, realizada em 1893,
e atualmente exposto na Galeria Nacional de Oslo.
44
Vida privada e objeto a-ato...
Ilitich diante de uma verdade que se recusa a saber. “Não existirei mais e
então o que virá? Não haverá nada. Onde estarei quando não existir mais? Será
isso morrer? Não. Eu não vou aceitar isso!” (Tolstói, 2007, p. 60) Tudo morre, até
mesmo a esperança. Assim, nos voltamos contra os adágios de sempre, que
nos acalmam com seus rumores reiterados. O importante, contudo é saber
como morre a esperança, pois é desse registro e dessa forma que talvez
possamos encontrar novos sentidos e direções para a história. Paradoxalmente,
é apontando as circunstâncias desse morrer que podemos recuperar uma
vitalidade de invenção. Qual o registro possível da morte da esperança?
Fredric Jameson (1997), em seu livro As sementes do tempo, já aproximou
de forma estrutural os conceitos de utopia e morte. Toda utopia coloca em cena
uma ficção de fim. Um dos fins mais contundentes apontados pelas utopias é a
morte da imaginação. Ora, é por isso que o que nós não somos capazes de
desejar ou sonhar nos interessa. Estaríamos aí diante de um compromisso de
entender nosso fracasso. A vocação da utopia é o fracasso, insiste Jameson:
O seu valor epistemológico está nas paredes que ela nos permite
perceber em torno das nossas mentes, nos limites invisíveis que
nos permite detectar, por mera indução, no atoleiro das nossas
imaginações no modo de produção, a lama da época presente
que se gruda nos sapatos da Utopia (Jameson, 1997, p.85).
são as formas em que o imutável busca alívio para sua falta de formas”.
Começar uma análise produz ruídos. É o fim da vida privada, diz Lacan.
Da vida privada de ato. O analista aciona, por sua presença, os circuitos pulsionais
que colocam em cena o objeto a. Objeto a como utopia, como já tive a oportunidade
de desenvolver em outras reflexões, na medida em que o objeto a, exatamente
como a utopia, resiste à significantização7. Ruídos que surgem sob a forma de
rasuras e que abrem efetivamente um litoral. Litoral como o encontro/desencontro
de heterogêneos. É por isso que Lacan, em seu Lituraterra, vai insistir que é a
rasura que faz do litoral terra. É essa escrita, como rasura, que faz terra (Lacan,
2003). É difícil apontar e sustentar um litoral, litoral como imagem possível do
ato analítico.
Evoco aqui os trabalhos do artista Cy Twombly8, em seus traços/rasuras;
esforço heroico e comovente da arte em resistir à diluição de tudo dentro do
coração das trevas. Ato analítico/ato poético, lembra Lacan ([1967-1968] 2007)
em sua primeira aula desse seminário. A nós, testemunhas possíveis dessas
garatujas de esperança, cabe o desafio de colocar tais mapas imprecisos em
trânsito. Assim, quem sabe, possamos traçar outro horizonte, diferente daquele
que muito bem descreve Conrad em seu romance Juventude (2006b):
7
Ver meu artigo Utopia e objeto a, Revista Polêmica, UERJ, v. 8, nº 3, 2009.
8
Cy Twombly é um artista norte-americano nascido em 1928. Se insere dentro do movimento
do expressionismo abstrato. Pensa a pintura como uma espécie de caligrafia.
47
Edson André Luiz de Sousa
Ivan Ilitch. Não é pouca coisa identificar e ouvir em que ritmo bate esse coração
das trevas. Seria esse o desafio do ato analítico, ao colocar em cena as três
palavras-chave que sublinhei em determinado momento desta reflexão: a ética
psicanalítica nos jogando em direção ao ato e à verdade.
REFERÊNCIAS:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.
ASSUMPÇÃO, Itamar. Dor elegante. In: _____. Pretobrás. São Paulo: SESC, 1998.
BATAILLE, Georges. Dictionnaire critique. Documents. Paris: Gallimard, 1968.
BECKETT, Samuel. Malone morre. São Paulo: Códex, 2004.
BLOCH, Ernst. O principio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora da UERJ,
2005.
CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Porto Alegre: L&PM Editora, 2006.
_____. Juventude. Porto Alegre: L&PM Editora, 2006b.
JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Editora Ática, 1997.
JANKELEVITCH, Vladimir. La mort. Paris: Flammarion, 1977.
LACAN, Jacques. L’angoisse [1962-1963]. Association Freudienne
Internationale.(Documento Interno), s.d.
_____. L’acte psychanalytique [1967-1968]. Association Freudienne Internationale,
Paris, 2007. (Documento Interno).
_____. Lituraterra [1971]. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2003, p. 15-25.
TOLSTÓI, Leon. A morte de Ivan Ilitch [1886]. Porto Alegre: LPM Editores, 2007.
Recebido em 09/01/2011
Aceito em 28/01/2011
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
48
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 49-61., jul./dez. 2010
TEXTOS
A RELÍQUIA:
o ato diz algo1
Abstract: The text aims at disclosing paths which lead to the creation of the act
in psychoanalysis. To meet such end, and by the usage of the novel “The relic”
from Eça de Queiros, one outlines a textual search which takes place even
before Freud, when equivocal merely contradicted the conscious intentions of a
person; we are then led to Freud with his discovery of the unconsciousness
through dream and Freudian slip, until we get to Lacan, who, from then on,
introduces the analytical act and the analyst as cut.
Key-words: lapse, scripture, Freudian slip, cut, analytical act, logic.
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Dizer e fazer em análise, realizadas
em Porto Alegre, novembro de 2010.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Bacharel e
licenciada em Filosofia (PUCRS); Bacharel e licenciada em Letras Clássicas (PUCRS), Psicologia
(PUCRS); Especialista em Psicologia Criminal (PUCRS – IPF). Autora de A metáfora paterna e a
psicose, um posicionamento (1986, inédito); Trabalhos apresentados em coletâneas, entre
eles: Existe outra língua portuguesa? (Lisboa, 1994), Em vias (Punta Del Este, 1988). E-mail:
auxsud@cpovo.net
49
Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack
Antes de Freud
E stamos no ano de 1887. Freud era um médico recém formado (1881) que
iniciava sua prática privada (1886). Estava trabalhando no tratamento de
doenças nervosas mediante a eletroterapia e começava a utilizar a hipnose.
Precisaria de mais 14 anos para que chegasse a publicar a Psicopatologia da
vida cotidiana ([1901] 1976) e, ainda, mais 4 anos para escrever O chiste e suas
relações com o inconsciente ([1905] 1977).
Nesses renomados textos, ao falar de atos descuidados, Freud afirma
que os atos acidentais são na realidade intencionais, obtendo facilmente espaço
na atividade sexual, na qual a linha de fronteira entre essas duas possibilidades,
acidental e intencional, é bastante tênue.
Além disso, comenta sobre um valor especial da literatura, ao ressaltar
que escritores, criativos, não raro escrevem sobre parapraxias cometidas por
seus personagens mostrando um motivo, um significado, bastando por vezes
apenas um momento de desatenção para que apareçam atos sintomáticos,
prenunciadores de inusitados efeitos posteriores.
Pois já em 1887, o escritor português Eça de Queirós (25/11/1845 – 16/8/
1900) havia escrito A relíquia, romance cujo ponto nevrálgico faz-se em torno de
um ato falho, de um lapso, de uma parapraxia.
Eça elabora esse livro inspirado na viagem que fizera ao Egito e à Palestina,
durante os festejos da inauguração do Canal de Suez (17/11/1869), fato de suma
importância para a época e que ensejou a reunião da realeza europeia com
presidentes, representantes de estados e diplomacia dos principais países do
mundo.
Abrira-se, portanto, um novo caminho para as Índias, o mar Mediterrâneo
unia-se ao mar Vermelho pelo canal de Suez, no Egito.
3
Frase que Eça colocou no frontispício, na folha de rosto de A relíquia. Depois de sua morte foi
inscrita no monumento em sua homenagem, em Lisboa.
50
A relíquia: o ato diz algo
A relíquia
4
Ortografia da época.
51
Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack
herança, teria que se esforçar muito mais, dar demonstrações de uma devoção
fervorosa, uma fé obstinada, fazer sacrifícios, inclusive açoites no próprio corpo...
Por sua vez, a tia, influenciada por seus amigos religiosos, resolve enviar
Teodorico para a Terra Santa, pois, diziam eles, quem fosse ou mandasse em
seu nome visitar o Santo Sepulcro numa devota peregrinação e pagando os
rituais emolumentos em dobro, receberia as indulgências plenárias, o que
significava o perdão de todos os seus pecados.
A Titi, de dedo em riste, lhe diz:
E mais,
“Se entendes que mereço alguma coisa pelo que tenho feito por ti
desde que morreu tua mãe, já educando-te, já vestindo-te, já dando-
te égua para passeares, já cuidando da tua alma, então traze-me
desses santos lugares uma santa relíquia, uma relíquia milagrosa
que eu guarde, com que me fique sempre apegando nas minhas
afflições e que cure as minhas doenças” (grifo da autora; Queirós,
[1887] 1915, p. 87-885) .
Ao chegar ao Egito, Raposão conhece Miss Mary, uma inglesa com quem
se arrebata num intenso, apaixonante e sensual relacionamento. Na hora
inconsolável de sua partida para Jerusalém, Mary lhe oferece sua camisola de
dormir, acompanhada de uma carinhosa dedicatória, como lembrança de sua
última e voluptuosa noite de amor.
5
Ortografia da época.
52
A relíquia: o ato diz algo
6
Ortografia da época.
53
Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack
56
A relíquia: o ato diz algo
57
Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack
7
No seminário XIV, A lógica do fantasma e especialmente no sem. XV, O ato psicanalítico,
Lacan explicita o esquema do tetraedro, propondo nele quatro posições subjetivas inscritas
nos círculos de Euler decepados.
58
A relíquia: o ato diz algo
8
... como no seminário 24 - L’insuque sait de l’une bévue s’aile à mourre (O insabido que sabe
de uma equivocação se vai a morra)...ou...L’insuccès de L’Unbewusste c’est l’amour ( O
fracasso do Inconsciente é o amor).
59
Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack
Concluindo...
REFERÊNCIAS
DARMON, Marc. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas,
1994.
DESCARTES, René. Discurso do método [1637]. 4. ed. São Paulo: Livraria Martins
Fontes Editora, 2009.
DISSEZ, Nicolas. Leitura do tetraedro do seminário “O ato psicanalítico”. Tempo
Freudiano, 2005.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos [1900]. In: _____. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. IV.
_____. A psicopatologia da vida cotidiana [1901]. In: _____. _____. 1976. v. VI.
_____. Os chistes e sua relação com o inconsciente . [1905]. In: _____. _____. 1977. v. VIII.
_____. A denegação [1925]. In: _____. _____. 1976. v. XIX.
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2001.
LACAN, Jacques. O ato psicanalítico – Seminário [1967-1968]. Escola de Estudos
Psicanalíticos. (Publicação interna).
_____. O seminário, livro 14: a lógica do fantasma [1966-1967]. Recife: Centro de
Estudos Freudianos de Recife, 2008. (Publicação não comercial).
_____. O seminário, livro 16: de um Outro ao outro [1968-1969]. Recife: Centro de
Estudos Freudianos do Recife, 2004. (Publicação não comercial).
_____. Seminário XXV: El momento de concluir [1977-1978]. Tradução Pablo Kania.
(Publicação não comercial).
_____. Le séminaire, livre XXIV: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre [1976-
77]. Paris: ALI,s.d. (Publicação não comercial).
QUEIROZ Eça de. A relíquia, [1887]. 5. ed. Portugal: Lello & Irmão editores, 1915.
______. De Port-Said a Suez: Carta sobre a inauguração do Canal de Suez [1869].
In: ______. Obras de Eça de Queiroz . Notas contemporâneas. Portugal: Lello &
Irmão Editores,1945.
TEXTOS
TOPOLOGIA E TEMPO
Ligia Gomes Víctora1
Abstract: The text discusses the role of time in psychoanalysis, through the aid
of so-called exact sciences, such as topology and the graph theories, networks,
nodes, etc. With them, in addition to the formalization of psychoanalysis, we
can presentify the concept of space-time inserted in analytic listening, as well
as in the discourse of the patient and in transfer, determining the direction of a
cure.
Keywords: psychoanalysis, topology, time, space.
1
Psicanalista; Membro da APPOA; Responsável pelos Seminários e Oficinas de Topologia da
APPOA. E-mail: ligia@victora.com.br
62
62
Topologia e tempo
Instante de ver
*****
Há muito anos, numa tarde cálida, entro na sala de espera para receber
uma paciente de dezesseis anos, e ela está dormindo no tapete. Acorda-se
com minha entrada: – “Desculpa. Aqui tem uma cor, cheiro, de infância, sei lá,
baunilha, me lembra bolo quente, sesta e verão”. Se fosse Lacan, eu a mandaria
voltar no outro dia. Um retorno à infância, sinestesia, catarse, acting out,
interpretação – uma sessão completa feita à espera da sessão.
À la Proust – que diz que o corpo tem memórias – essa breve viagem no
tempo relatada pela menina, se percebida e considerada pelo analista como um
64
Topologia e tempo
A topologia e o tempo
2
«Qu’on dise reste oublié dernière ce que se dit dans ce que s’entend». (Tradução da autora).
3
Gottlob Frege (1848-1925), matemático e filósofo alemão, fez o mesmo nas matemáticas com
sua obra Fundamentos da aritmética (Frege, 1884).
66
Topologia e tempo
Mesmo assim, até o final de seu ensino, Lacan se esforça por lançar
conceitos sobre o tempo e o espaço do campo psicanalítico, e tenta formalizá-
los através da topologia. No seminário A topologia e o tempo (Lacan, [1978-
1979]), por exemplo, ele faz uma analogia entre a topologia e a prática
psicanalítica, afirmando que essa correspondência consiste no tempo. Parece
enigmático, mas, lendo-se seu texto todo, vê-se que o tempo está para a
psicanálise assim como está para a topologia – o tempo é a dimensão necessária
para a aplicação de qualquer operação – seja ela corte, pontuação ou interpretação
do psicanalista.
67
Ligia Gomes Víctora
Momento de concluir
4
Hermann Minkowski (1864-1909), matemático russo.
5
Ver Monografia sobre as Afasias (1891); e O Inconsciente (1915), Apêndice C: Palavras e
Coisas.
68
Topologia e tempo
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Almir. As duas faces do tempo. São Paulo: USP, 1971.
ARISTÓTELES. Física. Trad. Guillermo R. de Echandía. Madrid: Gredos, 1995.
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Recebido em 05/04/2011
Aceito em 23/04/2011
Revisado por Valéria Rilho
69
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 70-81, jul./dez. 2010
TEXTOS
(DES) ATO1
Resumo: O artigo propõe uma reflexão sobre o ato analítico pela verificação da
condição borromeana do nó. O estudo vem desde a linha temporal significante
de F. de Saussure, passa pelas semi-retas de J.Nicod e chega até a cadeia
borromeana de J.Lacan. A proposta sustenta-se na série significante de S1 gerada
na cadeia de associações livres, todos atravessados na produção de um novo
significante mestre pelo discurso do analista.
Palavras-chave: par ordenado, associação livre, diagnóstico, gozo.
(UN)TIE
Abstract: the article proposes a reflection on the analytical act through verifying
the knot borromean condition. The study comes from the signifier´s time line of
F. de Saussure, passes through the semi-straight lines and reaches the borromean
chain of J. Lacan. The proposal finds support in the signifiers seiries of S1
generated in the free associations chain, all crossed in the production of a new
master signifier by the discourse of the analyst.
Keywords: ordered pair, free association, diagnosis, jouissance.
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Dizer e fazer em análise, realizadas
em Porto Alegre, novembro de 2010.
2
Médico; Psiquiatra; Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Diretor
da Hybris – Clínica de Psicanálise e Psiquiatria. E-mail: allcosta@terra.com.br
70
70
(Des) ato
3
(Nota do Editor: A figuras reproduzidas nas notas de rodapé deste texto
estão presentes no seminário O sintoma ([1975-1976]2007), de Jaques Lacan.
71
Adão Luiz Lopes da Costa
não se trata mais de linha temporal, mas de emaranhado, de teia, de rede7. Tal
como propunha um dos inspiradores de James Joyce, Giambattista Vico, que
viveu no século 17 e que propôs o estudo científico da história, que Lacan ([1975-
1976] 2007) chama de mito Vico, pois, segundo ele, a história é a maior das
fantasias; por trás da história há sempre o mito. O mito enaltece a história.
Mesmo que Lacan tenha partido do estudo de caso como pesquisa
histórica, como disse anteriormente, ele não deixa de criticar a história porque,
diz ele, não reencontramos, encontramos. A única vantagem de um reencontro
é que não poderia haver progresso, ficamos girando em círculos, diz ele. Vejam
que mesmo pensando o emaranhado, não é fácil sair da linha temporal, da linha
histórica ou, como apresento no artigo A psicose, seu tratamento, seus limites
(Costa, 2011), não é fácil quebrar a linha dura.
Com o emaranhado, desde Vico e com Joyce, passa-se, então, para o
estudo do que a ciência chama a teoria do caos, das complexidades e também
do infinito. Refiro-me à distinção entre a linha temporal e o emaranhado das
grandes complexidades. Veja-se Vico e Joyce. Podemos pensar ainda nos
relatos dos analisandos, inicialmente como verdadeiros emaranhados.
A ciência, ao contrário, estuda os fenômenos com tendência à redução
ao mínimo, na busca da menor partícula, visando estabelecer uma
correspondência biunívoca entre causa e efeito. Com o nó borromeano, Lacan
introduz o modelo de lidar com o todo, com o complexo, com o emaranhado,
outra forma que não a linear. Isso só veio acontecer no século XX.
Lacan espera, com o chamado nó borromeano generalizado, encontrar a
boa maneira de poder manter constante a propriedade borromeana, ou seja,
que, ao cortar indiscriminadamente qualquer elo, os restantes soltam-se. Isso
torna-se uma busca intensa por parte de Lacan.
A ênfase passa a ser dada ao nó borromeano. Nó como aparelho do gozo
e como constituição do sujeito.
O sujeito, para Lacan, decorre da relação de um significante para outro
significante: S1 – S2, o que retoma o matema inicial da reta. Seu matema diz:
um significante representa um sujeito para outro significante. Não há, então,
72
(Des) ato
8
S1(S1(S1(S1S2)))
9
73
Adão Luiz Lopes da Costa
apresentado acima. Onde está, então, o S1 que deve representar o sujeito? Não
está no interior do Outro, pois, como já vimos, o Outro é vazio. O Outro não pode
conter a si mesmo, exceto sob a forma de subconjunto.
Lacan ([1969-1970] 1992) ensina, no seminário O avesso da psicanálise,
que tendo surgido S1, primeiro tempo, repete-se junto a S2. Repete-se junto a
S2 sob a forma de subconjunto. De onde surge esse S1? Da livre associação.
Lacan mostra como se serviu de Freud, que, com seu gênio, soube escutar a
histérica. Freud não colocou a histérica em regressão, mas em progressão.
Freud não se serviu do discurso do mestre para, em regressão, bancar o
universitário, mas tratou de tirar o corpo fora, bem ao modelo da histérica,
produzindo seu ato, instaurando a histerização do discurso, escutando a histérica
em progressão. É a associação livre, é o falar sem pensar que a histérica
industriosa faz tão bem com o parceiro, pois a histeria se produz sempre a dois.
Vemos esse movimento no discurso dominante para a sua histerização, que é
dar um quarto de giro no sentido da progressão (sentido horário) no discurso do
mestre. Um quarto de giro regressivo (sentido anti-horário) produz o discurso
universitário.
A associação livre, dizer qualquer coisa, falar sem pensar... como é que
isso poderia levar a algo? Nesse falar sem pensar surge uma produção fervilhante
de S1. Cada fragmento de associação livre é um S1. Assim, a série de
Associações Livres compõe uma série de S1. No final, em algum ponto, se o
analista não perder a corda, essa linha, essa cadeia de S1(S1(S1... desliza10
10
S1(S1(S1(S1(S1(S1 –
74
(Des) ato
até o nó, isto é, até o corte porque é o corte que verifica a qualidade borromeana
do nó.
Lacan ([1968/1969] 2008) propõe, no seminário De um Outro ao outro,
servir-se do par ordenado da matemática, como sendo uma forma de colocar o
S1 no Outro, como maneira de constituição do sujeito. Chama este S1 de um
Outro.
A partir desse um Outro, é possível o corte de um dos elos do nó (o Real),
que libera todos os outros. Isso garante a sua qualidade borrromeana. Aí está a
constituição do sujeito, a queda, o esvaziamento do objeto a e a reprodução do
gozo, único para cada sujeito.
A topologia do gozo é a topologia do sujeito. É o que Lacan ([1958] 1998)
chama em A direção do tratamento e os princípios de seu poder como reprodução
do sintoma: fazer o S1 advir como representante do sujeito. Ele retoma o mentado
em O saber do psicanalista. Ali pergunta na aula de 04/05/197211:
Segue Lacan:
11
Traduzido do espanhol pelo autor.
12
O Seminário que ficou conhecido como O saber do psicanalista trata-se de uma série de
conferências que Lacan proferiu no Hospital Saint´Anne, em Paris, nos anos de 1971-1972,
concomitante ao desenvolvimento do seminário ...ou pior, proferido no mesmo período.
75
Adão Luiz Lopes da Costa
Vejam esse nó. O elo do simbólico passa por cima do real e não por
baixo. O imaginário fica solto.
Nada mais comum imaginar esse erro, essa falha, esse lapso. Porque
não poderia acontecer de um nó não ser borrromeano, dele ratear? Joyce encarna
o ego como corrigindo a relação faltante, o que, no seu caso de que não enoda
borromeanamente o imaginário ao que faz cadeia com o real e o inconsciente:
76
(Des) ato
Deixa um elo livre, o imaginário, que precisa ser amarrado. O ego é o que
corrige o nó.
Vemos aqui que o real está enganchado no simbólico, o que impede a
propriedade borromeana, que é cortar qualquer um e soltar todos. Então, é
obrigatório fazer buraco no real, cortar no real, isto é, tirar um ponto do círculo no
real. Só dessa maneira soltam-se todos os elos. É a retirada de um ponto no
infinito que faz buraco no real.
A questão é a seguinte: será que podemos cortar com o chamado nó
borromeano generalizado ou somente o real faz corte, faz nó, faz bindung, faz
ligação? Se for assim, só podemos cortar no real. Mas, atenção, isso não é agir
na realidade como mimese do real. Repito que o corte só pode fazer buraco no
real (retirar um ponto no infinito no real) para liberar todos os elos. Dizíamos,
anteriormente, que bastava cortar qualquer um dos elos para soltar todos. Agora
é preciso cortar especificamente no real, para que haja a liberação de todos.
Isso Lacan ([1974-1975] 2007) avança com seu estudo de James Joyce.
O que ocorre quando alguma coisa acontece a alguém em consequência
de uma falha?
Essa falha não está condicionada unicamente pelo acaso. Há, por trás
de todo lapso, para chamá-lo por seu nome, uma finalidade significante. Se há
um inconsciente, a falha tende a querer exprimir alguma coisa, que não é somente
o que o sujeito sabe, uma vez que o sujeito reside nessa divisão mesma que é
a relação de um significante com outro significante. O sinthoma produz-se no
lugar exato em que o traçado do nó sai errado. É o jeito com que o falante se
corrige.
Temos o significante como insumo básico da psicanálise e com ele vamos
operar no real. Isso é totalmente diferente do deslizamento polissêmico infinito
do significante. O corte, a queda do objeto implicará que nada mais será como
antes. A queda do objeto é a realização do (des)ser que atinge o sujeito suposto
saber. Como propõe Lacan ([1974-1975] 2007) no seminário O sinthoma não há
sujeito senão como suposto. O sujeito é suposto e depende do significante um
que o represente.
O falante inscrito na linguagem, frequentando o campo do Outro, refaz
sua amarração, agora de outro jeito. Muitos dizem que a soltura dos elos, dos
registros da linguagem, pode causar psicose. E pode mesmo. Lacan explica:
77
Adão Luiz Lopes da Costa
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80
(Des) ato
Recebido em 19/01/2011
Aceito em 03/03/2011
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
81
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 82-89, jul./dez. 2010
TEXTOS
PSICANÁLISE E HISTÓRIA:
explora-se um litoral1
Eliana Mello2
Abstract: The text approches the relationship among psychoanalysis and history,
taking the path of traces in time as a point of interface, and the character of
negativity or positivity of such traits as a distinction that delimits the littoral
between such fields of knowledge.
Keywords: psychoanalysis, history, time, trait, dialectic image.
1
Este texto é parte da tese de Doutorado em Educação, Trauma e sintoma social: resistências
do sujeito entre história individual e história da cultura, defendida na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, em Porto Alegre, 2010.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Psicóloga do Grupo Hospitalar Conceição; Mestre em Psicologia
Social e Institucional (UFRGS); Doutora em Educação (UFRGS). E-mail: elianam@portoweb.com.br
82
82
Psicanálise e história...
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Recebido em 04/05/11
Aceito em 28/05/11
Revisado por Valéria Rilho
89
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 90-102, jul./dez. 2010
TEXTOS
ALGUMAS OBSERVAÇÕES
SOBRE A CLÍNICA DA INFÂNCIA
Roselene Gurski1
1
Psicanalista; Membro da APPOA; Doutora em Educação (UFRGS); Profa. do Departamento de
Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia (UFRGS); Autora e organizadora dos
livros Cenas da infância atual: a família, a escola e a clínica (Unijuí, 2006) e Educação e função
paterna (Editora da UFRGS, 2008). E-mail: roselenegurski@terra.com.br
90
90
Algumas observações...
da sexualidade adulta. Mas foi com a escrita dos Três ensaios sobre a
sexualidade e depois, com a análise do Pequeno Hans, em 1909, que Freud
definitivamente inscreveu a infância em um novo capítulo na história da
humanidade.
Entre os conceitos trazidos pelo pesquisador vienense está o apontamento
de que a sexualidade não inicia na puberdade e o fato de as crianças partilharem
da sexualidade desde cedo, através do que ele denominou de pulsões parciais.
Ou seja, segundo Freud ([1905] 1980), a perversão polimorfa das crianças serviu
para demonstrar que as manifestações da sexualidade estão presentes desde
os primeiros meses de vida.
Mesmo havendo em sua obra considerações valiosas acerca de temas
relativos à infância, sabemos que Freud não se dedicou de modo sistemático à
análise de crianças (Fendrik, 1991). Como então se construíram os pilares desse
saber? Quais as especificidades que a infância introduz no que se refere ao
aparelho psíquico? Quais os dispositivos que a clínica psicanalítica com crianças
dispõe na contemporaneidade? A partir dessas e de outras questões, faremos
uma breve passagem por alguns pontos que consideramos fundamentais para a
intervenção no trabalho clínico com crianças.
2
International Psychoanalytical Association.
93
Roselene Gurski
3
Dentre os sintomas estruturantes, citamos alguns: angústia do 8° mês; pequenas mentiras e
travessuras; a arte como efeito equívoco de criação e simultaneamente de travessura; o desenhar,
o brincar, o fabular e o narrar.
97
Roselene Gurski
4
O infantil em psicanálise não é da ordem da cronologia; refere-se, às marcas e inscrições
inconscientes que acontecem na infância e depois se repetem como experiências infantis em
qualquer época da vida.
98
Algumas observações...
REFERÊNCIAS
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101
Roselene Gurski
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Recebido em 01/12/10
Aceito em 06/01/11
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis
102
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 103-112, jul./dez. 2010
ENTREVISTA
EXPERIÊNCIA E NARRATIVAS
Jeanne Marie Gagnebin
103103
Jeanne Marie Gagnebin
REVISTA: Pela leitura dos seus trabalhos, é possível fazer uma analogia
entre a experiência do Holocausto aos períodos de ditaduras militares na América
Latina. Claro, há particularidades em cada um desses acontecimentos,
principalmente no que tange à elaboração dos lutos coletivos que
esses acontecimentos produziram. A partir de suas formulações como seria
possível pensar nessa elaboração coletiva? O que esses acontecimentos exigem,
em termos políticos e sociais, para tornarem possível uma elaboração?
GAGNEBIN: Podemos primeiramente observar que várias experiências
traumáticas coletivas, guerras, guerras cíveis, genocídios, quando terminaram,
como que suscitaram nos sobreviventes uma primeira reação de silenciamento
– o que não é sinônimo de esquecimento – para poder continuar a viver. Silêncio
bem conhecido nas pesquisas e que filhos ou netos de sobreviventes sempre
criticam nos seus pais como desejo de apagamento e de recalque. Essas
dimensões são certamente presentes, mas também existe a necessidade de
juntar forças para continuar vivendo, isto é, não se deixar tomar e sufocar pela
106
106
106
Experiência e narrativas
avalanche de lembranças. Esse fato é comentado por exemplo por Jorge Semprun
(no livro A escrita ou a vida, título que remete a essa alternativa) ou por Primo
Levi, quando narra que seu livro sobre Auschwitz, É isto um homem?, publicado
em 1945, foi primeiro totalmente ignorado e somente se tornou literatura
obrigatória uns 15-20 anos mais tarde.
Há, portanto, como um período de silêncio e de incubação que pode ser
necessário para recompor suas forças. O problema é quando esse período se
torna, por assim dizer, regra definitiva, quando se faz de conta que é melhor
apagar, esquecer esse passado e não “elaborá-lo”. Pois o silêncio só se justifica
para possibilitar, justamente, uma futura elaboração, muitas vezes empreendida
pela segunda ou até terceira geração. Nesse sentido, o silêncio não deveria
impedir a transmissão, mas permitir que ela se aconteça de forma respeitosa
em relação à dor.
No caso da Shoah/Holocausto, há sem dúvida, ao lado da enormidade
monstruosa da exterminação organizada (e da decorrente culpa dos nazistas e
de todos que compactuaram), um fator cultural muito forte que ajudou a não
esquecer, a não perpetuar o silêncio: o fato de o povo judeu se definir a si
mesmo como o povo da memória e da escrita, seja num contexto religioso, seja
no contexto secular. Essa consciência de uma identidade fortemente ligada à
transmissão do passado é algo que certamente foi decisivo para a importância
da ‘elaboração’ da Shoah até hoje, inclusive.
No caso da América latina, devemos certamente distinguir entre os
diferentes países (Argentina e Brasil têm políticas de memória bem diferentes,
por exemplo). No caso do Brasil, vejo dois fatores essenciais para essa
dificuldade, mais, essa má vontade de lembrar. O primeiro é que o passado
histórico “nacional” é um passado baseado sobre a violência da colonização e
da escravatura. Como se a “identidade” brasileira nascesse dessa dupla fonte
de violência, transfigurada depois nas várias teorias de miscigenação feliz. O
segundo é essa versão brasileira da ideologia do capitalismo atual, de alcance
universal, que faz do presente o único tempo válido, tempo de exploração e de
consumo desenfreados, que não perguntam jamais sobre as conseqüências de
seu crescimento, nem sobre modelos de felicidade ou de “sucesso” que poderiam
diferir do paradigma da acumulação. Nesse sentido, o presente não pode se
lembrar do passado (que oferecia outras modalidades de vida) nem se preocupar
com o futuro.
A versão brasileira desse axioma é incrementada por uma certa fé ainda
no “progresso”, no fato que a imensidão e as riquezas do país oferecem
possibilidades infinitas, que sempre vá se poder portanto melhorar, que o povo
brasileiro é cordial e feliz por natureza (Lula até disse certa vez que também é
feliz porque mora em belas praias!!), que portanto podemos e devemos esquecer
107
Jeanne Marie Gagnebin
do passado, às vezes doloroso, para olhar para frente. Esse ufanismo tem uma
contrapartida paradoxal, mas que reforça o imobilismo e o não lembrar: nunca
vai mudar nada mesmo, o que você quer, aqui é o Brasil, etc. etc. Conclusão:
aproveite agora o que puder. Aqueles que querem se lembrar do passado são
“ressentidos” (parece que os militares brasileiros leram Nietzsche!) e aqueles
que denunciam os perigos do desenvolvimento capitalista para o futuro são
“pessimistas”. Ora, ressentimento e pessimismo vão contra essa ideologia da
índole feliz nacional!
REVISTA: A partir do que você aponta ser uma diferença entre o horror de
acontecimentos reconhecidos e aqueles ignorados ou denegados pela
comunidade política internacional, perguntamos: haveria uma diferença na função
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Experiência e narrativas
REVISTA: Sobre a História, você traz Santo Agostinho para nos dizer:
¨Ainda que narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata,
não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras
concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais ao passarem pelos sentidos,
gravaram no espírito uma espécie de vestígio”. Como pensadora nos parece que
você reconhece a história também como uma construção humana e, portanto,
ficcional. Como o historiador acaba lidando com a realidade psiquica?
GAGNEBIN: Novamente, remeto a Ricoeur e à leitura que ele faz de Santo
Agostinho (no primeiro capítulo de Tempo e Narrativa, volume I). Ele mesmo
insiste (num outro livro, A memória, a história, o esquecimento) que essa ligação
entre memória, imagem e imaginação sempre despertou a desconfiança dos
filósofos e dos historiadores em relação tanto à memória quanto à imagem.
Como os psicanalistas bem sabem, nossas lembranças não correspondem a
pretensos “fatos”, mas a várias maneiras de ter vivido e lembrado algo do qual
nem se pode dizer se “realmente aconteceu”.
Hoje em dia, a reflexão historiográfica, portanto a reflexão teórica sobre a
escrita da história, reconhece plenamente esse caráter de construção imaginativa,
por assim dizer literária da narrativa histórica. O que não implica que se confunda
com ficção: esta assume e reivindica seu caráter de invenção, enquanto a história
busca interpretar rastros, vestígios, documentos etc. Acho que devemos distinguir
entre construção humana ligada à imaginação e à memória – e construção
humana ficcional no sentido estrito da ficção literária que se sabe e se afirma
ficção, senão jogamos tudo no mesmo pote em detrimento de ambas. Também
me parece que devemos distinguir entre “realidade psíquica” e construção humana
em geral. Os historiadores sabem do caráter interpretativo da memória, mas só
me parecem poder abordar a “realidade psíquica” como um entre vários fatores
da memória.
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Jeanne Marie Gagnebin
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 113-123, jul./dez. 2010
RECORDAR,
REPETIR,
ELABORAR VINTE ANOS DEPOIS1
Contardo Calligaris 2
Aniversário e herança
O texto a seguir é a transcrição da conferência de Contardo Calligaris, proferida
nas Jornadas Clínicas da APPOA de 2009, sobre as Estruturas freudianas:
psicoses e neuroses. É também a fala sobre os 20 anos da fundação da APPOA.
Ele anuncia que vem para comemorar o aniversário, mas, mais do que isso,
parece falar desde o lugar do aniversariante. Afinal, a história de Contardo, em
Porto Alegre, e a da APPOA se entrecruzam em vários pontos, o que justifica o
encontro dos lugares. Muitos elementos do discurso de um aniversariante estão
presentes no que Contardo disse nessa ocasião: o relato necessário da história
e o que ela acarretou; a revisão dos acertos e erros dos anos que se passaram;
os arrependimentos e as congratulações; a referência à morte como fantasma
insepulto e que dá as caras na festa para lembrar o implacável do tempo; e,
mais que tudo, as alusões às heranças e dívidas contraídas por aquilo que o
período trouxe consigo e proporcionou.
1
Conferência apresentada nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas freudianas, realizadas
em Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Doutor em Psicologia Clínica; Colunista da Folha de São Paulo.
Livros mais recentes do autor: A mulher de vermelho e branco (Companhia das Letras, 2011);
Conto do amor (Companhia das letras, 2008); Cartas a um jovem terapeuta (Alegro, 2007). E-
mail: ccalligaris@uol.com.br
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Contardo Calligaris
Lúcia A. Mees
***
de me perguntar: como é que seria essa mesma análise se, por hipótese, ela
começasse hoje, porque eu mudei e eles também mudaram. E fiquei totalmente
monopolizado pela pluralidade de tantos encontros em tão pouco tempo.
Isso dito, Vinte anos depois é o título de um romance de Alexandre Dumas,
que é a continuação dos Três mosqueteiros, que, na verdade, eram quatro. Ele
escreveu Vinte anos depois no ano seguinte, não esperou vinte anos. Eu não reli
nessa ocasião, confiei na minha lembrança de infância, mas me lembro de um
romance chato, justamente porque é um romance muito mais histórico, acontece
uma confusão, mas o fundo da questão é que os quatro amigos estão mesmo
divididos aos quatro ventos, em campos políticos opostos, Athos e Aramis estão
com La Fronde, Dartagnan está a serviço do Cardeal, isso é inadmissível, vai à
procura de Porthos, finalmente eles se engajam numa aventura totalmente
estapafúrdia, por ser a aventura de salvar o Rei da Inglaterra da decapitação que
lhe é prometida pela revolução de Cromwell. Claro, eles fracassam miseravelmente.
Então é uma história péssima, eles estão divididos, tentam uma aventura, dá
tudo errado, se dividem novamente.
Mas, enfim, não podia deixar de pensar em Alexandre Dumas, uma vez
dado esse título. Há outro aniversário, anteontem, uma repórter da Zero Hora,
me telefonou, em São Paulo, e quis saber do “aniversário”; eu pensei que ela
falasse do aniversário da APPOA, mas ela sabia que era, também, o aniversário
de 20 anos do meu livro sobre psicose, coisa que eu não lembrava. Na verdade,
só agora sei, foi publicado em 89. Mas esse livro está esgotado em espanhol,
em português e em francês, então vocês podem fotocopiá-lo livremente. Existe,
na sua edição mais recente, em japonês, para quem quiser lê-lo, os grafos são
iguais. Aliás, esses grafos super malfeitos, que copiam exatamente os desenhos
feitos por mim, a mão, aparecendo no meio dessa coisa sublime, que é a escrita
japonesa, parecem de uma grosseria revoltante, mas o livro é muito bonito; se
vocês tentarem lê-lo em japonês, não esqueçam que é da direita para a esquerda.
Então, Patrícia, a repórter, me perguntou se vinte anos depois eu tinha
algo para acrescentar ao que eu tinha dito 20 anos atrás sobre a psicose, aliás,
num seminário que aconteceu aqui em Porto Alegre, e que contou com a
participação de várias pessoas aqui presentes. As perguntas, o diálogo, aparecem
no próprio livro. Eu lhe disse que não, que não tinha nada a acrescentar. Primeiro,
porque eu não me releio, digo não me releio uma vez impresso, então, não reli
recentemente esse livro; e, segundo, porque, na verdade, nesses últimos vinte
anos, eu tive pouquíssimas relações com a psicose, por várias razões. Talvez
porque de fato houve avanços grandes da medicação, talvez porque a reforma
psiquiátrica seja eficiente. Mas a gente poderia pensar o contrário: com a reforma
psiquiátrica, haveria mais psicóticos fora do asilo, atendidos pelos Caps; isso,
ao contrário, deveria levar mais psicóticos ao consultório, a um consultório
115
Contardo Calligaris
3
Ver RIBEIRO, Eduardo Mendes. Borderline: nas bordas de quê?. Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre – Estruturas clínicas, n.38, p.115-125, jan/jul 2010. (N. do E.)
4
Ver JERUSALINSKY, Alfredo. As quatro estruturas fundamentais do sujeito: autismos, psicoses,
neuroses e perversões. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Estruturas
clínicas, n.38, p. 9-19, jan/jul. 2010. (N. do E.)
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Vinte anos depois
é o legítimo herdeiro, bom, e a luta pelo corpo da mãe, o que era o corpo da
mãe? O corpo era a grande massa de analisandos que se tratava de conquistar,
aquele era o corpo materno que se tratava de conquistar.
Quanto à situação aqui, a sensação que a gente tinha, chegando aqui,
ou pelo menos que eu tinha, é de que a luta não era uma luta de discípulos pelo
espólio do mestre, era uma luta de apadrinhados lutando pelo espólio dos
discípulos, os quais lutavam pelo espólio do mestre. Nesse contexto, então, me
estabeleci, comecei a vir regularmente a Porto Alegre, São Paulo também, naquela
época. Eu acho mesmo que servi para alguma coisa, e digo isso sem modéstia,
por várias razões. Primeiro, porque eu mesmo era um francês em termos – os
topólogos sabem, inclusão externa, por ser italiano, então era um francês em
termos. Segundo, porque a minha filiação psicanalítica era completamente
ectópica, o meu analista tinha sido Serge Leclaire, o qual tinha uma posição de
total exterioridade àquela bagunça que estava acontecendo, aliás, considerava
tudo aquilo como um horror e não se metia, senão para dizer que era um horror.
No que ele tinha totalmente razão. Então, graças a essas duas posições, mas
me servindo de fato do que poderíamos chamar a transferência colonial, eu
consegui, em grande parte, aboli-la, fazer com que ela não fosse operante na
constituição do que se constituiu. Eu consegui o que eu considero mesmo um
ato analítico, porque, afinal, acabar com uma neurose de transferência, positiva
ou negativa que seja, é, para mim, a melhor definição do que seja um ato analítico.
A ponto de permitir que os grupos que existiam em Porto Alegre pudessem,
sem se preocupar com apadrinhamentos a diferentes herdeiros, se encontrar,
dialogar, se reconhecer mutuamente e, no fim de 89, se dissolver. Alguns eram
grupos constituídos, como a Maiêutica, como o Centro de Trabalho em
Psicanálise, outros eram grupos informais.
É bom saber a história da psicanálise do lugar onde a gente está, e de
outros lugares também. Eu não pretendo contá-la, mas seria útil contá-la, em
detalhes. Essas pessoas puderam se reunir e criar uma associação, onde o
meu grande prazer, quando fui embora, em 94, foi descobrir que eu não era
necessário, porque eu tinha sido, provavelmente, instrumental para que aquilo
acontecesse, mas, francamente, não era necessário. Isso, vocês não sabem,
que alívio é, porque eu estou sempre com esse problema. Se em relação aos
meus analisandos, eu tenho ou não o direito de morrer, estou sempre preocupado
com isso. Em 94, quando deixei Porto Alegre e fui para Nova Iorque, eu pensei
que era uma possibilidade, mas foi uma possibilidade que nem existiu.
No ato de 89 tem um ponto muito importante, foi a escolha do nome,
Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Muitos de vocês, imagino, acham
isso muito óbvio, porque é uma associação psicanalítica e está em Porto Alegre,
não é assim?
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Vinte anos depois
coisa, salvo a ideia de que a subjetividade é conflito. Esse conflito se projeta nas
relações interpessoais, se projeta nas reflexões que nós temos e nos afligem
sobre fatores existenciais, a brevidade da vida, a perda e a companhia, mas a
base de tudo isso é que, absolutamente, qualquer descrição subjetiva é descrição
de um conflito. Não necessariamente toda a psicologia do eu, porque, por
exemplo, Anna Freud diria exatamente a mesma coisa, mas Hartmann tinha a
ideia de que existe uma esfera do ego livre de conflitos, e aliás, é lá que preciso
chegar.
A posição de Freud é de que o ego é um campo de batalha entre o Id e o
mundo externo, é lá que eventualmente se fazem compromissos. Esse é o
primeiro ponto. O segundo é que o meu acesso ao conflito interno do paciente
se dá pelo processo prático, e não pelos conteúdos que ele me apresenta, ou
seja, se dá porque aquele conflito aparece na relação dele comigo. Aquele conflito,
o conflito interno do paciente, é o conflito do qual se trata na transferência.
Chamar a nossa associação de Associação Psicanalítica de Porto Alegre foi
definir a psicanálise como uma prática, muito antes de ser uma doutrina. Aliás,
acrescento o seguinte, que para mim todas as teorias, lacaniana, freudiana,
relação de objeto, não só são metáforas, mas são metáforas pragmáticas. Eu
aprendi isso numa época, fazendo uma coisa muito diferente, fazendo escola de
sindicalismo, eu também fiz, não só o Lula. Fazendo escola de sindicalismo
numa ilha da antiga Iugoslávia, aprendi uma coisa muito interessante, que era o
seguinte, uma das primeiras coisas que a gente aprendia era por que um sindicato
é diferente de uma corporação? Corporação poderia ser a corporação dos
trabalhadores do livro, isso inclui desde o dono da editora, ou o dono da gráfica,
até o cara que limpa, à noite, o escritório ou a gráfica. É muito interessante,
mas não tem nenhum valor operacional, pois quando é que o dono da editora vai
fazer greve junto com o cara que limpa? Então, sindicato é outra coisa do que
corporação, ele se define justamente pelos termos de conflito. Nós devemos
definir uma classe de maneira que tenha uma potencialidade de conflito. Sem
isso, nossa definição é inoperante. Eu tenho a mesma relação com a teoria
psicanalítica, uma relação pragmática, me interessa na medida em que é
operacional na minha prática.
O outro ponto pelo qual eu definiria uma prática como psicanalítica é uma
antiortopedia radical. No entanto, eu recupero a palavra “terapia”, acredito na
palavra “terapia”, acredito na palavra “terapêutico”, até porque a palavra “terapia”
ou “terapêutica” foi fortemente atacada nos meios lacanianos, e com sarcasmo,
mas ao benefício de algo muito pior, que foi uma idealização dos efeitos da
psicanálise como exercício de alguma forma, intelectual ou mesmo como
experiência, ou seja, o seguinte, você está muito mal, não tem importância,
você vai ter uma experiência analítica. Você vai continuar mal ou pior, mas vai ter
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Vinte anos depois
tido uma experiência analítica. Isso se transformou no seguinte: você vai ter
uma experiência analítica e, se você tiver mesmo uma experiência analítica, vai
ganhar uma bala, você vai se tornar psicanalista. Ou seja, a psicanálise se
tornou uma máquina de reprodução à exclusão do trabalho terapêutico, do fato
de que afinal ela foi concebida para atender pacientes neuróticos, psicóticos ou
simplesmente infelizes. Claro que ninguém pensa que nós somos capazes de
retirar a infelicidade do humano, porque seria mais fácil retirar o humano da
infelicidade, mas não se trata disso, se trata de não retirar o terapêutico da
psicanálise, sobretudo para substituí-lo com uma idealização da experiência
psicanalítica e eventualmente pela ideia de que essa experiência psicanalítica
idealizada daria uma compensação. Você será muito infeliz com esta neurose,
mas vai ser membro da associação.
Existem psicanálises infinitas, intermináveis, isso não me estranha, é
uma coisa que me preocupa, um pouco, quando me pergunto se tenho direito de
morrer, mas tudo bem, me preocupa em termos.
Eu entendo que haja psicanálises intermináveis por uma razão simples:
no fundo, o que a gente pode fazer de melhor em termos terapêuticos, é o meu
ponto de vista, é ajudar alguém a renegociar os seus sintomas de uma maneira,
se for possível, um pouco menos custosa. Nós, em geral, tendemos a criar
compromissos para nossos conflitos que são sempre muito mais caros do que
é preciso, tipo assim: eu não tenho direito a ver pernas, então na minha casa
não há mesas. Não, era só as de mulher; mesa pode ter, é renegociar, diminuir
os custos. A terapia, ou uma psicanálise interminável, pode fazer parte dessa
renegociação, ser incluída nessa renegociação. Alguém dirá que é muito custosa
uma terapia que dura uma vida inteira. Não estou falando nem do custo no
sentido material, mas do custo de continuar uma terapia vinte, trinta anos. Pois
é, às vezes é muito menos custoso do que o paciente pagaria na vida se tivesse
que voltar ao antigo compromisso no qual ele vivia. Agora, então, uma terapia
infinita, uma psicanálise infinita ou até o interesse pela psicanálise, até o se
tornar psicanalista pode fazer, e certamente deve fazer, parte de uma renegociação
do sintoma de todos nós. O que significa que psicanalistas somos todos doentes,
até aí nenhuma novidade, mas que tornar-se psicanalista não é uma cura, vocês
vão achar que é uma trivialidade, até porque vocês já se tornaram psicanalistas
e já descobriram que não é, mas acontece que, na França, do fim dos anos 80,
tornar-se psicanalista era uma cura.
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 124-131, jul./dez. 2010
VARIAÇÕES
CADA UM TEM O
ANALISTA QUE MERECE1
Ricardo Goldenberg2
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Dizer e fazer em análise, realizadas
em Porto Alegre, novembro de 2010.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Mestre em Filosofia/USP; Doutor em Comunicação e Semiótica,
PUC/SP. Publicou, entre outros: Ensaio sobre a moral de Freud (Salvador: Ágalma, 1994); No
círculo cínico ou caro Lacan, por que negar a psicanálise aos canalhas? (Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 2002) e Política e psicanálise (Rio de Janeiro: Zahar, 2006). Organizou a coletânea
Goza! Capitalismo, globalização, psicanálise (Salvador: Ágalma, 1996). E-mail:
124 bergue@uol.com.br
Cada um tem o analista que merece
Essa ideia de pensar a ética do lado analisante não é nada nova para
mim. Há muitos anos argumentei sobre a inadequação da palavra “paciente”
para designar os atarefados em analisarem-se. Lacan sugeriu precisamente
“analisante”, em vez de analisando, para denotar que ali não havia a menor
passividade. Eu teria preferido “analisador” em nossa língua, mas, enfim, é a
tradução que vingou para analysant. Naquela ocasião, sugeri que cabia ao analista
ser paciente, contanto que tivesse a manha de induzir certa impaciência nos
seus analisantes. Paciência para esperar o bom momento de incomodá-los, a
ponto de sacudir a sua inércia sintomática. No fim das contas, saber esperar a
boa ocasião faz o bom político, e o bom analista também.
Antes, ainda, e a propósito do que se tinha convencionado denominar de
“clínica do ato” – inspirada no último Lacan, le tout dernier, que seria o único que
presta, claro, estando todo o anterior ultrapassado e sem efeito: acaso o simbólico
não ganha do imaginário, que perde do real? –, fiz uma intervenção, sugerindo
que não bastava maltratar os pacientes para ser um bom lacaniano.
Era uma época em que os psicanalistas agiam. Praticavam o “ato
analítico”, que podia consistir em enfiar a mão no bolso do cliente, para tomar-
lhe o dinheiro; servir-se dele para pegar as crianças na escola ou reformar a
casa da praia (no caso de o paciente ser arquiteto). Era o corte no real, fazê-lo
vender o carro e as joias para continuar pagando a análise, por exemplo, ou
intimar sua esposa, seu filho ou sua amante (ou os três juntos) a virem deitar no
mesmo divã que ele. Era a retificação subjetiva, controlar a análise do próprio
filho, a ponto de telefonar ao analista do rebento para corrigir-lhe uma interpretação
dada. Acaso Freud não analisou a sua caçula, Anna? Acaso o pai do Pequeno
Hans não analisava o filho, sob instruções do próprio mestre? E vejam que nem
menciono o detalhe de o analista fiscalizado ter sido um ex-paciente de quem
assim o fiscaliza. Era a ruptura do semblant, convocar analisantes de colegas
para trocarem de analista – preciso dizer quem era o novo analista sugerido no
lugar? Um desses mestres de cerimônia se superou a si mesmo, telefonando
para o analisante de uma colega doente para sugerir que, considerando que sua
analista morreria logo, o melhor que o moço poderia fazer era vir deitar no divã...
adivinhem de quem?
O psicanalista como “homem de ação”... É para rir, se lembrarmos que
Jacques Lacan, sim, Jacques Lacan ([1958] 1998), define o psicanalista
precisamente como aquele que retira seu poder da inação. Seu lugar na dupla
seria o de quem não age, e o desejo do psicanalista consistiria exatamente na
enérgica recusa do exercício do poder que a transferência lhe confere. O contrário
da sugestão, que se caracteriza pelo uso do poder sobre o sugestionado. Freud
ironizava sobre a reclamação de um mestre hipnotizador, que gritava para uma
senhora relutante a entrar em transe: “Mais, Madame, vous, vous contre-
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Ricardo Goldenberg
Dora, Lacan ([1951] 1998) nos ensinara que o motivo da desistência da moça
tinha sido a interpretação errada que Freud tentara lhe impingir, e não a dificuldade
dela em reconhecer o recalcado. Entretanto, o que disso foi deduzido – e por
mais de um – foi que, embora o analisante fosse o agente do acting, a sua ação
era concebida como um puro efeito cuja causa estaria na intervenção errada do
seu analista. Com idêntico raciocínio, a passagem ao ato resultaria da falência
completa do analista em seu lugar. Em suma, assim como para Galvão Bueno
o time adversário jamais ganha, é o Brasil que perde; assim, o paciente não tem
vez no ato analítico: fracassado ou bem sucedido, o ato e a ética que lhe seriam
inerentes são sempre do psicanalista.
Mas, que a ética de uma psicanálise dependa do desejo do analista não
implica que, no dispositivo e no tratamento que lhe é dispensado dentro dele, o
analisante não tenha responsabilidade alguma. É precisamente pela sua
implicação que recebe esse nome. Ele não é apenas o que sofre, o que padece,
o apaixonado... enfim, o paciente. Trata-se, ao contrário, de impacientá-lo, de
pô-lo a trabalhar a serviço, se vocês querem, da causa da análise. A dele, em
primeiro lugar, e a da psicanálise mesma, quando ele é ou quer ser um
psicanalista. Nunca se tratou com isso de apelar a qualquer voluntarismo; de
conclamar o eu ao trabalho, mas de criar as condições para que o inconsciente,
que já trabalha, o faça dentro dos quadros do dispositivo analítico, de modo a
poder recolher-lhe os produtos, e com isso mudar a vida da pessoa. Porque,
convenhamos, continua tratando-se disso, de viver um pouco melhor; de parar
de atirar nos próprios pés. Não acredito que se trate apenas de uma linha de
montagem de psicanalistas.
Muitos dos que se reportam à escrita do discurso do psicanalista para
definir o que fazem, na hora da prática, mostram a ação de um deslizamento
que revela uma inversão dos lugares de objeto-agente e de sujeito-outro do ato
analítico. E o resultado é uma montagem que tem, de um lado, um psicanalista
diretor do tratamento, de cuja técnica/ética depende o andamento e o desfecho
da análise do outro. E, do outro lado, um analisando instalado em sua pasmaceira
transferencial, desincumbido da menor responsabilidade pelo estado em que se
encontra e pelas coisas que faz ou que lhe são feitas. Estamos às voltas, portanto,
com um paciente apelidado de “analisante”, mas concebido e tratado como
analisando, isto é, como o objeto da análise do psicanalista-diretor. Por outras
palavras, a pergunta ética não se coloca do seu lado. Mas, a que estou chamando
de “pergunta ética”? Sem demasiada filosofia: de que modo estás detrás do que
fazes?
O mais engraçado é que, uma vez finda a análise conduzida sob tais
premissas, espera-se desse puro produto do ato analítico que deixe de ser
objeto e vire magicamente sujeito. Mais do que isso, espera-se que se transforme
127
Ricardo Goldenberg
tal lugar. Não apenas concordo, como eu mesmo posso dar testemunho disso,
mas, convenhamos, trata-se de um cálculo pra lá de delicado.
Suponho, porém, que tais opiniões consideram o problema ético apenas
do ponto de vista do psicanalista. Como se do lado analisante não existisse a
dimensão da escolha – no mesmo sentido em que Freud fala de Objekwahl, a
escolha de objeto libidinal, e de Nerosenwahl, a escolha de neurose. No mesmo
sentido, também, em que Lacan fala de choix forcé, a escolha forçada, que não
por forçada isenta o sujeito de responsabilidade por ela. E espero não dar a
entender responsabilidade como mandato “superegoico”, porque penso em uma
responsabilidade après-coup, pelas consequências dos próprios atos, que
revelam ao agente as suas determinações inconscientes, mesmo estando aos
cuidados (ou nas mãos) de um psicanalista.
Nada mais longe, portanto, que contestar a ética do psicanalista. Propo-
nho, apenas começar a pensar como as pessoas escolhem os seus analistas,
de um modo que faça jus ao que Lacan ([1966] 1998) mesmo nos diz na primeira
página dos seus escritos: eles estão feitos, escreveu, de tal modo que seja
necessário ao leitor pôr algo de si para poder lê-los. Não sugiro nada diferente:
digo que quando alguém escolhe um analista e com ele se sustenta está sendo
ativo em sua opção, e afirmar que tal opção é feita desde a fantasia inconsciente
não retira nada da sua responsabilidade de sujeito por tal escolha. Com certeza
não faz dele uma vítima.
Pela mesma razão que, para Freud, o inconsciente jamais poderia ser
usado como desculpa para justificar atos inadmissíveis, no sentido de the devil
made me do it, a repetição transferencial não poderia servir de pretexto para o
analisando eximir-se de qualquer responsabilidade com o que é feito com ele;
com o que ele deixa ou até encoraja que seja feito com ele. Não poderíamos
esperar dos pacientes transferenciados que façam como aquela referida por
Freud ([1921] 1989), aquela que resistia à vontade do hipnotizador mediante
uma ação contrária? Não deveriam fazer esses pacientes como Dora com Freud:
depois que seu analista erra o alvo várias vezes, mandar-se? Não seriam essas
mulheres bons exemplos do que estou tentando chamar de analisantes éticos?
Portanto, quando certo chefe de escola adverte um aluno que nunca
receberá encaminhamentos devido ao fato de que o seu analista, freguês de
outra paróquia, pratica a clínica ultrapassada do simbólico, em vez da moderna
clínica do real que ali se exerce, e o aluno em questão decide mudar de analista
para corresponder ao que se espera dele, eu me pergunto se tal decisão deve
ser posta na conta exclusiva da malignidade da serpente sedutora ou da bondosa
impotência do anjo, que não soube segurar seu freguês, ou se se trata de uma
postura canalha do analisante, que opta pela conivência com seu algoz, seduzido
pela promessa fálica que dele recebe. Leiam Drácula, de Bram Stocker (1988),
129
Ricardo Goldenberg
o vampiro jamais vai até as presas; são elas que vão a ele, fascinadas pelo seu
gozo mortífero. Devemos tê-las como inocentes e discutir apenas a falta de
ética do vampiro?
Fui interpelado durante a sessão de um analisante sobre o termo ou não
da minha própria análise, já que a sua estava sendo contestada por uma figura
de nosso meio. A lógica da contestação era a seguinte: eu não teria terminado
e, portanto, jamais poderia levar um analisante até o fim da análise – um pouco
como se diz “levá-lo até o orgasmo”. Fascinado com essa promessa de
consumação, o meu analisante me questiona seriamente sobre a minha
competência ou não para continuar sendo seu analista, e pretende que eu confirme
ou negue a “acusação” de que tinha sido objeto. No início optei por um silêncio
salutar, mas quando achei que essa história estava de bom tamanho, disse que
estava pouco me lixando com a opinião da distinta colega sobre mim, e que se
a sua experiência comigo não era suficiente para ele poder responder sozinho a
sua própria pergunta, tinha mais é que ir embora mesmo. Fim da história, mas
não da análise, que continuou sem mais interferências que as do próprio movimento
transferencial até seu desfecho.
Já uma ex-analisante me mandou um e-mail pedindo para conversar, depois
de ter assistido a uma palestra minha. Vinha me dizer o que não disse dez anos
atrás, quando interrompeu o tratamento comigo. Tinha sido depois de uma
mancada da minha parte, atraso ou esquecimento. Ela não voltou, eu não a
chamei. No dia da palestra, pensou que devia ter me ligado e vindo continuar
com a sua tarefa, depois de me xingar como eu merecia. O que tinha acontecido
fora uma repetição da relação dela com os homens: eles a largavam e, para não
sofrer, imediatamente ela os riscava da agenda, como se nunca tivessem existido.
Devia ter podido perseverar em seu trabalho até poder atravessar o impasse: “eu
não valho para você, então você não tem qualquer valor para mim.” Sabia disso
hoje, e quis vir me dizer. E agora eu sei que devia tê-la chamado e não
simplesmente a abandonado à sua sorte. Mas, o gesto dela, a sua iniciativa de
vir me dizer isso, não testemunha uma posição ética que merece o nome de
ato? E que tipo de ato é esse que uma década depois significa para ambos o
momento de concluir, obrigando-me a assumir a minha própria responsabilidade,
ao mesmo tempo em que ela insiste em manter a sua? Fala-se com razão da
grandeza de Freud ([1905] 1989) ao expor seu erro de cálculo na condução do
tratamento de Dora, mas ter-se dado conta disso, não se deve nem um pouquinho
a ela, que insiste em seu desejo deixando-o cair?
Suponho que essas caricaturas de lacaniano que evoco fazem aos outros
o que foi feito a elas. São, na linha de raciocínio que tento combater, vítimas.
São as vítimas do vampiro, transformadas elas mesmas em vampiros. É assim
que pensamos a transmissão? Faço análise com um canalha e viro um
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Cada um tem o analista que merece
REFERÊNCIAS:
FREUD, Sigmund. Fragmento de análisis de un caso de histeria (1905). In: ______.
Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1989. v. 7.
______. De la historia de una neurosis infantil (1918). In: ______. v. 17.
______. Psicología de las masas y análisis del yo (1921). In: ______. v. 18.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise [1954-55]. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
______. Intervenção sobre a transferência [1951]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998. p. 214-225.
_____. A direção do tratamento e os princípios de seu poder [1958]. In: ______. p.
591-652.
______. Abertura desta coletânea. In: ______. p. 9-11.
______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
______. O ato psicanalítico – seminário [1967-1968]. Escola de Estudos
Psicanalíticos. (Publicação interna)
STOCKER, Bram. Drácula. Lisboa: Publicações Europa-América, 1988.
Recebido em 10/03/2011
Aceito em 7/05/2011
Revisado por Valéria Rilho
131
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 132-138, jul./dez. 2010
VARIAÇÕES
Heloisa Marcon2
1
Este artigo é baseado na Dissertação de Mestrado de minha autoria, intitulada Sobre a justificação
hegeliana dada por Lacan para a função criadora da fala (PPG Filosofia/UFRGS).
2
Psicanalista, Membro da APPOA, Mestre em Filosofia/UFRGS. E-mail:
heloisamarcon@yahoo.com.br
3
Esta aula constitui a lição XIX do Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, intitulado
pelo organizador de seus seminários como “A função criadora da fala“. Devido à importância
dessa aula para o problema de que trata este artigo e pelas discordâncias na tradução para o
português, quando se tratar de tal aula, será usada a publicação do Seminário em francês
(Lacan [1953-54] 1975).
4
[...] à peu près du même ordre qu’un mouvement mécanique.
5
[...] est essentiellement le moyen d’être reconnu. Elle est là avant toute chose qu’il y a
derrière. Et, par là, elle est ambivalente, et absolument insondable. Ce qu’elle dit, est-ce que
c’est vrai? Est-ce que ce n’est pas vrai? C’est un mirage. C’est ce mirage premier qui vous
132 assure que vous êtes dans le domaine de la parole.
A função criadora da fala
6
[...] dès lors qu’il veut faire croire et exige la reconnaissance, la parole existe.
7
La parole n’a jamais un seul sens, le mot un seul emploi. Toute parole a toujours un au-delà,
soutient plusieurs fonctions, enveloppe plusieurs sens. Derrière ce que dit un discours, il y a
ce qu’il veut dire, et derrière ce qu’il veut dire, il y a encore un autre vouloir-dire, et rien n’en
sera jamais épuisé – si ce n’est qu’on arrive à ceci que la parole a fonction créatrice, et qu’elle
fait surgir la chose même, qui n’est rien d’autre que le concept.
8
[...] Le concept, c’est le temps de la chose.
133
Heloisa Marcon
mesma e o conceito. Tal relação é antecipada por Lacan como sendo mediada
pelo tempo.
A aproximação ao pensamento de Hegel leva Lacan a postular a fala
como criadora no sentido de que ela faria surgir a própria coisa na forma do seu
conceito. Deve haver algo no conceito de conceito hegeliano e na sua relação
com a coisa mesma que abra possibilidade de equacionar o problema dos
múltiplos sentidos ou querer-dizer de uma fala, sem chegar à regressão ao
infinito. Essa possibilidade deve, também, ter relação com o que poderia ser
chamado de estatuto da criação em Hegel e, assim, com a função criadora da
fala proposta por Lacan.
Assim que estamos frente ao que podemos entender ser a base da prática
psicanalítica – a fala – e o modo de concebê-la, devido às suas características
numa análise, coloca um problema propriamente filosófico, como já dito, uma
regressão ao infinito. Um problema filosófico que foi, aliás, adequadamente
encaminhado, uma vez que Lacan foi buscar solucioná-lo a partir da filosofia,
especificamente, a partir do sistema filosófico de Hegel.
Trata-se, portanto, de uma aposta na seriedade dessa citação ou referência
a Hegel feita por Lacan, o que quer dizer que este trabalho parte do princípio de
tal aproximação não se tratar de um mero recurso retórico momentâneo usado
por Lacan para, rapidamente, sair do problema dos múltiplos sentidos ou querer-
dizer da fala, ao qual sua própria teoria havia levado.
Tomando como séria e com consequências a aproximação ao sistema
de pensamento hegeliano, o objetivo deste trabalho é apresentar a aproximação
recém referida (à filosofia de Hegel), fazendo aparecer/brilhar a relação, apenas
indicada por Lacan, entre o conceito e a coisa em Hegel e, posteriormente, a
relação entre o conceito de conceito hegeliano e a fala tal como concebida por
Lacan, retirando dessa aproximação algumas consequências.
A obra escolhida como base para apresentar a relação da coisa ao conceito
em Hegel (2002) foi a Fenomenologia do espírito, uma vez que ela permite que
acompanhemos a experiência da consciência sobre si mesma. Nesse percurso
de vir a si mesma, percurso propriamente de figuração, a consciência desdobra
diferentemente a coisa. Acompanhemos, resumidamente, o desdobrar da coisa
no conceito, feito pela consciência.
Na certeza sensível, primeiro momento da experiência da consciência
(CS) na Fenomenologia do espírito (Idem) (FE), a coisa é o isto apontado e o eu
é apenas este que aponta. Mas ao apontar, o eu (este que aponta) faz a
experiência de apontar vários isto em diferentes momentos (agora) e diferentes
locais (aqui), com o que se dá a passagem ao segundo momento, a percepção.
O objeto da percepção é a coisa de muitas propriedades e o eu é o eu
que percebe essa coisa. Mas a percepção não consegue tomar a coisa na sua
134
134134
A função criadora da fala
9
Nous, qui médiatisons, il nous faut nécessairement prendre por nous à titre de premier objet
le savoir qui, comme tel, peut être ainsi su que de soi il ne requiàre justement rien d’autre que
la simple appréhension (Auffassen). [...] Cet immédiat comme objet du savoir qui est, pour
nous qui savons absolument, l’objet immédiat, Hegel l’appelle l’étant. Nous avons donc dans
notre savoir deux objets, ou deux fois un objet – [...] car pour nous, ce qui est objet, c’est
fondamentalement et constamment le savoir qui, lui-même et derechef, conformément à son
essence formelle, a son objet et l’apporte avec lui. Ce rapport, c’est celui que Hegel exprime
avec acuité en dissociant “l’objet pour nous” et “l’objet pour lui”– “pour lui”, c’est-à-dire pour le
savoir qui à chaque fois est objet pour nous. Mas dans la mesure où le savoir qui est notre
objet n’est savoir que parce que quelque chose est su pour lui, à l’objet pour nous appartient
précisément l’objet pour lui.
10
[...] le phénomène n’est pas seulement apparence, mais que dans la disparition quelque
136
136136 chose vient au paraître.
A função criadora da fala
Sobre tais propriedades do significante, ver texto de Lacan: A instância da letra no inconsciente
11
REFERÊNCIAS
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro: Editora
Vozes, 2002.
HEIDEGGER, Martin. La “Phénomenologie de l’esprit” de Hegel. Paris: Éditions
Gallimard, 1984.
LACAN, Jacques. As formações do inconsciente – Seminário, livro 5 [1957-58].
Manuscrito inédito. Traduzido por Paulo Medeiros. Para uso interno do Recorte de
Psicanálise.
________. Le séminaire de Jacques Lacan: les écrits techniques de Freud, livre I,
1953-1954. Paris: Éditions du Seuil, 1975.
________. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud [1957].In:
LACAN. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p.496-533.
Recebido em 02/12/2010
Aceito em 07/01/2011
Revisado por Maria Ângela Bulhões
138
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 139-152, jul./dez. 2010
VARIAÇÕES
TABOU: NOTAS SOBRE UM
SUICÍDIO DOCUMENTADO1
Robson Pereira2
1
Texto baseado no trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Dizer e fazer em
análise, realizadas em Porto Alegre, novembro de 2010.
2
Psicanalista; Membro da APPOA. Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise
(Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).
E-mail: rpereira@portoweb.com.br
139
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Robson Pereira
Outras associações
3
Em maio de 2010, Tabou foi exibido no INPUT – International Public Television, (nesse ano
realizado em Budapeste, Hungria), despertando grande interesse dos críticos e público presente.
O que motivou sua vinda a Porto Alegre em outubro de 2010 para a mostra O melhor do Input,
realizado no Instituto Goethe. O INPUT é uma conferência anual dedicada à televisão de interesse
público. É um evento realizado em um país diferente a cada edição há 28 anos. Tem como
objetivo incentivar o desenvolvimento de uma televisão a serviço da formação da cidadania,
promover uma melhor compreensão entre as diferentes culturas e debater os programas mais
marcantes de todo o mundo. A ideia surgiu a partir de um seminário organizado pela Fundação
Rockefeller em Bellagio, na ltália, em maio de 1977. A coordenação do evento organiza outras
atividades em dezenas de países. Anualmente acontece em Porto Alegre o Mini-Input, a fim de
promover um debate sobre televisão entre produtores, diretores e roteiristas. Organização
voluntária, apoiada por entidades de televisão – públicas e privadas –, instituições e fundações
internacionais, o Mini-Input aconteceu em 2010 pelo nono ano consecutivo em Porto Alegre,
numa parceria entre o Instituto Goethe e Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, trazendo
uma seleção de 16 programas apresentados na última conferência do INPUT, produzidos em 10
diferentes países. Endereço: www.input-tv.org
4
Vide Jacques Lacan ([1967-68] s/d), Seminário O ato psicanalítico.
140
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Tabou: notas sobre um suicídio...
Mais recentemente,
5
1 milhão de trabalhadores. 90 milhões de I-phones. 17 suicídios... Aqui é o lugar onde seus
brinquedinhos são feitos. Você deveria se importar com isto? (Tradução do autor).
141
Robson Pereira
pense que o lugar é um daqueles filmes de terror imaginado por algum inimigo
do capitalismo avançado, ou da tecnologia; onde os trabalhadores vivem em
regime de semi-escravidão, dormindo em catres e alojamentos lúgubres e com
jornadas de 16 horas. Ao contrário, as condições de trabalho são as melhores,
o salário é dos mais altos, o ambiente é limpo, com bares, restaurantes, lugares
para convivência. Há dormitórios coletivos, porém eles se parecem mais aos
campi universitários americanos. Além disso, ninguém é obrigado a dormir nos
alojamentos da fábrica; há transporte regular para as cidades vizinhas, onde os
trabalhadores podem residir com suas famílias. E, mesmo assim, as pessoas
se matam. Na maior parte por defenestração, ou se atirando dos telhados e
vãos livres entre os edifícios; o que fez com que redes de proteção se integrassem
à paisagem cotidiana. Como marcas visíveis da impossibilidade de estancar
uma hemorragia. Curiosamente, os suicídios começaram a ser notados a partir
de 2007 (quase vinte anos depois da primeira planta instalada); até então eram
raros. Porém, entre março e maio de 2010, nove pessoas se atiraram dos telhados
ou de outros lugares e, apesar dos esforços de contenção, vem se repetindo. A
reportagem tenta abordar, ou chamar atenção dos consumidores. Mais uma
vez, a culpa se revela na pergunta: você deveria se importar com isao quando
compra um I-phone novo?
No Brasil, e especialmente no Rio Grande do Sul, há pesquisas sendo
levadas a efeito, tendo por base os municípios onde são registradas as mais
altas incidências de suicídio. Acrescente-se que, internacionalmente, a OMS
concedeu um status preocupante aos índices de suicídio somente a partir da
metade da década passada. A partir dessa tomada de posição, os governos
nacionais passaram a incentivar as pesquisas e grupos de estudo e intervenção,
que já vinham levando seus esforços adiante.
Como vemos, o tema é tão importante que diversas áreas tentam abordá-
lo, seja sob a ótica da ficção ou da pesquisa; desde a filosofia, passando pelas
artes modernas e antigas, a religião, a música popular6 ou mesmo a literatura, o
teatro entre outros. No cinema, uma das primeiras referências é Tabu, de F.
Murnau, 1931 – o tema era a perda da inocência num paraíso idealizado –
mares do sul, Tahiti. Duas partes: paraíso e perda do paraíso – representado
pelo colonialismo. A novidade do colonialismo, junto com a forma de ocupação
das colônias e encontro com uma cultura diferente, era incapaz de responder
6
Entre as muitas músicas, fazemos referência a esta citada na epígrafe: Comprimido, crônica de
um suicídio, lançado no LP Nervos de Aço, de Paulinho da Viola.
142
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Tabou: notas sobre um suicídio...
O filme
7
No site www.oraneburri.com há um extenso histórico do filme e de seu percurso até agora. O
grupo no Facebook pode ser acessado em: Tabou Le film.
143
Robson Pereira
8
Lacan ([1967-68] s/d) diz, no Seminário O ato psicanalítico, que o suicídio é o único ato
realmente logrado. Os outros atos humanos se caracterizam por serem falhos.
9
A este respeito, leia-se o trabalho Inconsciente e suicídios, de Enrique Rattin, apresentado em
Montevidéu, 2009, por ocasião do XXV Congresso Mundial de prevenção ao suicídio.
144
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Tabou: notas sobre um suicídio...
Irmã, Mannon Mendez: “Não consegui ver nada do que estava aconte-
cendo”.
Mãe, Eve Putsch: “Cena inimaginável, voltar de viagem, abrir a porta e
deparar-se com o filho morto”.
Amigo, Pascal: chora quando lembra o momento que recebeu a notícia,
“Thomas meteu três tiros na cabeça”. Ele relembra os filmes que fizeram e, ao
longo do filme, o progressivo distanciamento do amigo.
Thomas: decidiu, em 1999, filmar os últimos seis meses de vida. Em
uma das primeiras cenas, faz panorâmica de seu quarto de trabalho, onde lê,
toca violão e trabalha em suas trilhas sonoras. Uma delas para o filme de Orane,
sua amiga cineasta e a quem ele admira. Vê sua mãe como presente e até
invasiva de sua privacidade; nos depoimentos dela aparecem as qualidades e
potencialidades talentosas do filho. Apenas isto? Veremos mais tarde do que
ela vai se dar conta.
Thomas sonha em ser “filmaker”: escreve roteiros, realizou curtas,
humorísticos, irônicos com a religião, o consumo e a crença das pessoas nas
potencialidades mágicas dos produtos (na linha dos Monthy Pyton). Ironiza o
mote “Red Bull te dá asas” em um de seus esquetes.
Sua irmã é mais crítica: fala sobre seu relacionamento, quando tinha
identidade com o irmão, iam ao cinema, gostavam de discutir filmes, mas ela
percebia que “ele não conseguia encontrar os meios de realizar suas
potencialidades, seus sonhos”.
Thomas faz declaração à câmera: “Não quero apenas sobreviver, não quero
fazer isto por 50 anos, não posso aceitar! Estou nesta situação, a mesma destas
pessoas que não se questionam sobre isto, que aceitam esta vida louca”.
Obs: não há espaço para surpresas. Ele escreveu e finalizou o roteiro de
sua vida. Única possibilidade de controlar tudo, de obter a solução final/inteira
para todas as dúvidas e angústias. Vemos isto ao longo dos meses, quando
parece que até os últimos dias ele não parecia dar-se conta que se tratava de
sua própria morte. O que nos leva a considerar a ideia explicitada por sua irmã
de que Thomas estava obsessionado/pressionado pela ideia de se matar, não
pela morte propriamente dita.
145
Robson Pereira
Os meses documentados
Abril
Aos 22 anos, Thomas não sabe o que é o amor: “Não sei como funciona
a diferença entre o amor romântico, o sexual e o fraterno”.
Sente-se só. Está “apaixonado” por Orane, mas não consegue se
expressar. E ainda recebeu uma resposta negativa às suas pretensões de ir
além da relação de trabalho e coleguismo.
Amigo Valeri-Antoine (Valero, como Thomas o chama) faz boa
interpretação: “Thomas não quer se arriscar aos desígnios do amor. Fecha-se”.
Maio
Continua o relato da desdita amorosa (amor romântico sempre foi
desditado, a bela pertence ao outro). Nesse caso, ela ainda pertence ao Outro;
pois não aparece o ciúme por um rival, não está personalizado.
Filma Orane, mas não consegue declarar seu amor por ela. O que
consegue fazer é apontar a jovem como seu objeto idealizado, em todos os
sentidos: “Com 17 anos, ela já filma e escreve como ele jamais conseguirá
fazer”, diz Thomas a seu respeito. Sente-se ridículo – mas só consegue filmá-la
e filmar seus depoimentos – a câmera é seu interlocutor.
Isto Orane levou quase dez anos para elaborar. Ela é objeto, destinatário
das filmagens. Por isto ela voltou (na viagem de trem) para revisitar os lugares.
A resposta teria que ser dada em termos de linguagem cinematográfica.
Num desses dias de conversa e filmagem, ela perguntou se ele pretendia
se matar: a resposta foi um solene “Não”.
Entretanto sua declaração sobre se conhecer cada vez mais a cada dia,
e que por isto não queria continuar vivendo, é uma contradição. Dá mostra de
seu desconhecimento. Como? A vida não é um conhecimento progressivo; muitas
vezes, ao contrário: a repetição que vivemos mostra apenas uma parte da
experiência e o quanto ignoramos a respeito de nós mesmos.
Junho
Caixa de aniversário: presente para Orane, onde uma profusão de objetos
tenta demonstrar seu amor e carinho. Chega a mencionar sua ideia de namorar,
mas entende a resposta como um desejo de simples amizade da parte dela.
Sua obsessão por Orane é algo que se nota de maneira mais intensa a
cada vez que revemos o filme. Ela fez o trabalho/filme para lidar com este
endereçamento. Fardo pesado demais para carregar sozinha. Cada um lida
pessoalmente, com seus fantasmas, com um ato tão brutal. A questão é: como
articular essa complexidade; pois a simples reunião das histórias não dá conta;
porém, pode fazer um pouco de suporte contra a violência. Por isso, buscar os
146
146146
Tabou: notas sobre um suicídio...
Julho
Sente-se morbidamente atraído pela morte e pelo sofrimento. Um
verdadeiro niilista. Às vezes hesita em dizer a alguém sobre suas intenções
suicidas. Valero foi quem chegou mais perto. Ele chega a supor como poderia
tentar, como iniciaria a conversa.
Entretanto, ficava nervoso-irritado por Valero dirigir-se a ele de maneira
tão paternal, tentando ajudar, por se identificar com sua experiência sofrida.
Valero diz que percebia que Thomas se identificava com ele, como se pudessem
compreender alguma coisa comum. Porém, Valero não estava mais no mesmo
caminho.
Agosto
Valero diz que procura a vida, com ajuda da namorada, atual mulher, e da
religiosidade. Thomas continuou buscando a morte.
A vida não é um valor em si. Encontra-se valor nos detalhes, nas pequenas
coisas. Na maior parte do tempo, socialmente, na oferta dos objetos de consumo.
Isso tenta fazer-nos esquecer que não há justificativa plausível, universal, para a
sustentação da vida. Mario Corso (2008) escreveu que a pergunta sobre as
147
Robson Pereira
razões para valorizar a vida é uma “wrong question”, ou falsa questão; pois
racionalmente a vida não tem sentido. Essa é uma das razões de por que Thomas
encontrou uma racionalização para terminar com sua vida. A outra é a tentativa
de documentar seu fim. Controle ou tentativa de alcançar o outro de quem ele
sentia-se impotente para relacionar-se?
Durante o feriado, em que ele filmou e ainda dizia que havia se reencontrado
com pessoas e antigos amigos, Orane pensou que ele poderia ter se suicidado.
Não, ele respondeu que não iria se matar no verão, quando todas as pessoas
estavam de férias. Queria gente no seu enterro. O suicídio ficava em suspenso
a partir de questões prosaicas como esta e outras, tais como: como iria
acompanhar às aulas e se matar?
A solidão se acentua fortemente. Mãe acha que ele não conseguiu
encontrar saídas para enfrentar a mudança de vida dos amigos – que tinham
namorada, trabalho, etc...
Irmã: “Não conseguiu encontrar mais referências em nada, ficou
completamente solitário”.
Setembro
Encontrou Valero. Não consegue falar de seu sofrimento.
Os depoimentos começam a ficar mais angustiados e intranquilos quando
fala sobre os preparativos, a data e os efeitos que causará nas pessoas e,
principalmente, na mãe. Projeta se matar em 1º de outubro, morto. Ela volta dia
2 (mãe tem uma viagem à China). Apenas na véspera do retorno. Não quer que
ela veja um cadáver apodrecendo. “Será duro para ela”. Imediatamente também
fala da farsa sobre a consideração com os outros. É sua vida, quer dispor dela
como bem entender, pouco importam os outros e seus sentimentos.
Esta é a idealização: ser completamente independente/autônomo. E,
simultaneamente, mostra-se tão dependente!
Valero interpreta essa agressividade contida no ato suicida.
Obs: aqui podemos observar como a edição/montagem foi sendo articulada
com o depoimento de Thomas e as interpretações dos amigos. As imagens
tornam-se mais rápidas e difusas, somando-se à crescente angústia dos
depoimentos de Thomas.
Outubro
Thomas Mendes deixa texto. Carta declaratória. A cronologia passa a ser
contada em horas:
9 horas – sente-se mal.
11 horas – descreve as diversas formas pelas quais pensou em tirar a vida e
nenhuma lhe pareceu ser adequada. Lembra-se da arma com 50 balas de munição.
148
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Tabou: notas sobre um suicídio...
*********************
Irmã: “Thomas tinha uma paixão por se matar, não exatamente pela morte.
Parecia que no final, matar-se era uma imposição. Estava obrigado a fazê-lo,
não podia recuar apesar de sua angústia e hesitação”.
Depoimentos póstumos
(Todos são, mas estes não estão mais entremeados com as filmagens
de Thomas).
Irmã, mãe, amigos
Irmã: “Há pessoas que fazem isto e para as quais não há tratamento.
Estão decididas. A questão é o que fazer? Talvez dizer algo aos jovens e aos
não-jovens. Lembremo-nos dos velhos que se suicidaram. Estes parecem que
já viveram algo e decidiram dar um fim a sua experiência”.
Amigo Valero: “Ele achava que eu entenderia seu ato e que certificaria.
Não entendo e não certifico, não avalizo”.
Ambos (irmã e amigo): “Sempre há possibilidade de superar algo”.
Mãe: “Só agora consigo dizer que é um ato estúpido, uma coisa estúpida
provocar tanto sofrimento, dor no outros e cortar com a possibilidade de aprender
com a vida.
O filme lhes dá a chance disto: superar, aprender algo. Quase
ironicamente, é do gesto desesperado de Thomas que eles podem tirar
consequências. A topologia da vida é feita de corte e costura, perfuração e cesura.
Thomas optou pelo corte final. Uma solução definitiva.
Um filme assim deve ser debatido/exibido. Testemunha uma possibilidade
de elaborar o impacto causado pela morte de Thomas. Talvez possa servir para
dar uma chance a outras pessoas, de não se deixarem tomar pelo desespero de
não encontrar outra saída, por sentirem-se extremamente pressionadas pelos
outros e por sua própria exigência (que poderíamos dizer em outras palavras, ter
que cumprir com o imperativo do superego “Goza!”). Reconhecer a impossibilidade
de cumprir com o ideal de exigência é um passo fundamental para transformar/
realizar algo. Agarrar a chance, mesmo que seja por alguns pequenos/detalhes.
Orane encontrou outra “saída de emergência” daquela mostrada no início
do filme, tornando público o endereçamento, a herança que recebeu, para que
149
Robson Pereira
ela não se transformasse em herança maldita, opressiva, sem luto. É uma forma
de fazer o luto e, como ela mesmo declarou, elaborar a culpa por não conseguir
ver os indícios. Fazer algo com “isso”, com o que ficou emudecido, no seu
“savoir-faire” de fazer filmes encontrou uma saída. Essa pertinência é difícil de
achar.
Coda
E as publicações:
MEKHANN, Charles. Death on request.
KELLEHEN, Michael J; MOTTO, Jerome A. Death on request. Crisis: the
journal of crisis intervention and suicide prevention, v. 16, n. 2, p. 92-95, 1995.
Na Bahia:
- NEPS (Núcleo de Prevenção do Suicídio), coordenado por Soraya Rigo,
ligado ao CIAVE (Centro de Informação Anti-Veneno).
No ano de 2011, de 13 a 17 de setembro, teremos o XXVI Congresso
Mundial de prevenção ao suicídio, em Beijing (antiga Pequim), China.
REFERÊNCIAS
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2008, Documentário, 52 min.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo [1942]. Disponível em:
<filosofocamus.sites.uol.com.br/Camus_sisifo_completol.htm>. Acesso em: 20 jul.
2011.
CORSO, Mario. A pergunta errada. Zero Hora, Porto Alegre, 26 maio 2008.
DURKHEIM, Émile. O suicídio [1897]. São Paulo: Martin Claret, 2008.
FREUD, Sigmund. Tótem y tabú [1912-13]. In: ______. Obras completas. Buenos
Aires: Amorrortu, 1989. v. 13.
______. El malestar en la cultura [1929]. In: ______. ______. v. 21.
GARCIA, Ângela. The pastoral clinic: addiction and dispossession along the Rio
Grande. Berkeley: University of Califórnia Press, 2010.
JOHNSON, Joel. My gadget guilt (this is an I-phone factory in Chine. Seventeen of the
company’s workers have commited suicide. It’s your fault?). Wired, p. 96-103, mar.
2011. Disponível em: <www. wired.com.pt.mk.gd/magazine/2011/02/ff_joelinchina/>.
Acesso em: 20 jul. 2011.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência [1960-61]. Rio de Janeiro:
Zahar, 1992.
______. O ato psicanalítico – seminário [1967-68]. Porto Alegre: Escola de Estudos
Psicanalíticos, s/d. (Publicação interna)
MALLE, Louis. Trinta anos esta noite. Título original: Le feu follet [Filme-vídeo]. Direção
de Louis Malle, roteiro de Louis Malle e Pierre Drieu La Rochelle. França, Itália, 1969.
Drama, P& B, 108 min.
MURNAU, F. W. Tabu. Título original: Tabu – a story of the south seas [Filme-vídeo].
Direção de F. W. Murnau e Robert Flaherty. Estados Unidos da América. Distribuição
Magnus Opus, 1931. Arte, P&B, Mudo, 81 min., Dolby digital 2.0.
NOGUEIRA, Ricardo . Correio do Povo , 31 ago. 2010. Disponível
e m : < w w w . c o r r e i o d o p o v o . c o m . b r / i m p r e s s o /
?ano=115&numero=335&caderno=0¬icia=189954>. Acesso em: 20 jul. 2011.
RATTIN, Enrique. Inconsciente e suicídios. Trabalho apresentado no XXV Congresso
Mundial de prevenção ao suicídio, Montevideu. 2009. Disponível em: <http://
convergencia.aocc.free.fr/texte/rattin-e.htm>. Acesso em: 20 jul. 2011.
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Robson Pereira
Recebido em 5/07/2011
Aceito em 16/07/2011
Revisado por Valéria Rilho
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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
II DIREITOS AUTORAIS
A aprovação dos textos implica a permissão de publicação, sem ônus,
nesta Revista. O autor continuará a deter os direitos autorais para futuras publi-
cações.
IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕES
No corpo do texto, a referência a autores deverá ser feita somente menci-
onando o sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de
autores cujo ano do texto é relevante, colocá-lo antes do ano da edição utiliza-
da.
Ex: Freud ([1914] 1981).
As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas, acresci-
das dos seguintes dados, entre parênteses: autor, ano da edição, página.
V REFERÊNCIAS
Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem
alfabética pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:
OBRA NA TOTALIDADE
BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gra-
mática inconsciente. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente
[1957-1958]. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1999.
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TESE DE DOUTORADO
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VALENTE, Rubens. Governo reforça controle de psicocirurgias. Disponí-
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em: 25 fev. 2003.
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