PUC-SP
Corpo e cidade:
as narrativas urbanas como produção do lugar
SÃO PAULO
2008
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Corpo e cidade:
as narrativas urbanas como produção do lugar
SÃO PAULO
2008
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BANCA EXAMINADORA
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Aos que alguma vez já desconfiaram que essa vida morna e tola que nos
é oferecida e alardeada como a única possível, desejável e saudável
esconde outras tantas. Cuja beleza e reinvenção cabe reinventar.
(Pelbart, 1993:13)
5
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE
ABSTRACT
This research is part of the following question: what is the communicative relationship
established between body and environment? The aim is to study how the resident of the city,
specifically the city of Sao Paulo, perceives the environment in which he lives and stablishing a
communicative relationship with it. Thus, understanding the environmental perception as a
condition for the city arouse new information, the research concluded a work camp involving
residents of the city to demostrate that, through photographs, their perceptions of the context in
which tey live and/or frequent. By the way of example and test of the hipotesis made initially
were selected photographs of Cristiano Mascaro, considered by the photographer of Sao Paulo,
which portray parts of the city, which served as the comparison with photographs of the residents.
By being configured as urban narratives, such records were read an interpreted taking into
consideration that are not verbal narratives that allow recognize that way the body is cognitively
ownership of the area and to what extent will transform is establishing ties with him
communicative.
The analyses of the images resulted in the revision of two concepts used by Walter Benjamin for
the study of the city: the narrative and the fable. Also important was the study of the Jacques
Derrida’s concept of desconstruction, and the thought of Vilém Flusser about the photograph. In
addition, essential were the work of Milton Santos, Lucrécia Ferrara, Jane Jacobs and Kevin
Lynch to undestand concepts such as space, spatial, place, visuality, visibility, image,
imagination and its application to Communication Science.
KEY-WORDS
SUMÁRIO
Introdução............................................................................................................................09
Referências bibliográficas..................................................................................................85
9
Introdução
possibilidades de fabulação que a cidade é capaz de suscitar ou que a partir dela se pode inferir.
Dentre os 8 participantes da pesquisa, encontram-se pessoas que nasceram em São Paulo e
sempre residiram na capital e moradores vindos de outras cidades do país que responderam à
seguinte questão: “O que é São Paulo para você?”. No ato da pergunta não foram dadas muitas
explicações sobre a pesquisa para que não houvesse influência sobre o olhar do fotógrafo; apenas
foi ressaltada a necessidade das imagens refletirem o modo como vêem a cidade.
A fabulação e a narrativa passaram a ser, portanto, entendidas como formas de
representação da cidade e, portanto, como formas de percebê-la, que sempre existiram e que
dependem em certa medida da capacidade do corpo em organizar as informações no trânsito com
o ambiente. Sendo assim, a organização do trabalho procura evidenciá-las trazendo, já no
primeiro capítulo, a cultura popular da Idade Média e do Renascimento como uma forma de
superação do tom rígido vivido no sistema feudal, além da figura do homem da multidão e do
flâneur e suas múltiplas facetas ao desvendar a cidade na medida em que caminham por ela.
Ainda neste capítulo, nos aproximamos da América Latina e, em particular do Brasil, através da
personagem Macunaíma, de Mário de Andrade, e sua pitoresca visão sobre as cidades brasileiras
e, em particular, sobre a capital paulista. Lançamos nosso olhar sobre as fotografias de Cristiano
Mascaro para, no segundo capítulo compara-las às imagens captadas pelos moradores.
O terceiro capítulo se detém sobre a análise do ato fotográfico como um processo
comunicativo e, sobretudo, sobre uma proposta epistemológica em que a cidade se apresenta
como ambiente comunicativo e agenciador de conhecimento.
Foram de especial importância para esta pesquisa os estudos de Charles Sanders Peirce
sobre a teoria dos signos não como passiva aplicação ao objeto de estudo, mas como instrumento
de leitura do espaço urbano como uma manifestação semiótica que permite produzir percepção,
leitura e interpretação de seu contexto.
Importante também foi o entendimento do espaço como entorno, cuja fundamentação
encontra-se no conceito de umwelt desenvolvido por Jakob von Uexkull que apresenta uma
explicação para o processo perceptivo como forma de apreensão das informações ambientais e do
sistema motor como responsável pelas conseqüentes ações. Esta compreensão foi necessária para
o estabelecimento de um contraponto: o ambiente como troca entre sujeito e objeto que passa
pela linguagem e por relações de tradução e comunicação. Para a ampliação do entendimento
dessas relações tendo como foco o fazer cotidiano inseridos na cultura, autores como Mikhail
11
Bakhtin e Iuri Lotman foram de importante contribuição. Além disso, o uso de conceitos como
montagem, desconstrução e transcriação esteve amparado nos estudos de autores como Sergei
Einsensteirn, Jacques Derrida e Haroldo de Campos.
Os trabalhos de Walter Benjamin e Georg Simmel serviram de base para o estudo sobre
as transformações da cidade e autores como Milton Santos, Lucrécia Ferrara, Jane Jacobs, Vilém
Flusser foram imprescindíveis para a compreensão de conceitos como espaço, espacialidade,
lugar, visualidade, visibilidade, imagem, imaginário e sua aplicação ao campo da Comunicação.
12
“Compreendi que devia me liberar das imagens que até ali haviam anunciado
as coisas que procurava: só então seria capaz de entender a linguagem de Ipásia”
(Calvino, Ítalo. As cidades invisíveis, 1990:48)
Para este estudo, partimos de uma proposta de pensar as narrativas urbanas como uma
possibilidade de produção de espacialidades na cidade, ou seja, de como esta cidade se faz
representar. Pretende-se analisar de que forma o sujeito citadino percebe o ambiente e com ele
estabelece uma relação de comunicação que promove a criação de novas informações e
transforma espaços em lugares. Nesta relação, tais narrativas passam a ser um caminho de mão
dupla, já que elas próprias constituem-se como uma possível leitura do corpo e da cidade ao
mesmo tempo em que os constrói, ou seja, é uma representação que tem como matéria-prima a
cidade e a corporeidade que a anima, servindo também ao corpo para uma construção imagética
da cidade bem como para sua apreensão cognitiva. De um lado, a cidade e o corpo se deixam
observar empiricamente e de outro se constituem como representações “através dos signos que
concretizam sua imagem e identificam sua existência social” (FERRARA, 2002:12). A cidade
apresenta-se, neste sentido, como território físico, percebido, narrado e comunicado.
Entendendo a narrativa urbana como um possível ato de comunicação entre corpo e
cidade, esta última pode ser vista não mais como um cenário, mas como um ambiente que supõe
uma organização prenhe de significado e cujo processo do fazer cria espacialidades, ou seja, um
desenho no espaço-tempo urbano. A narrativa passa a ir além do campo do texto escrito ou
falado, caracterizando-se como um processo construtivo de outras linguagens, um texto da
cultura. Cabe esclarecer que o corpo ao qual nos referimos não diz respeito a um corpo
físico/biológico apartado de uma instância cultural, mas a uma corporeidade que supõe o contato
com o ambiente, através do qual se dá a apropriação da cidade; um corpo em ação no ambiente.
Ao selecionar a relação entre corpo e cidade como objeto de estudo não estamos propondo
um retorno ao dualismo cartesiano, mas admitindo justamente o contrário: há uma relação entre
corpo e ambiente e tal relação é uma forma de conhecimento cujas representações são sempre
possíveis e sujeitas a um continuum, onde um interpretante gera outro interpretante e assim
sucessivamente.
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Entendemos que a cidade deve ser considerada como algo que está para além do entorno,
apresentando-se como ambiente semiótico que engloba as relações de troca e comunicação que se
dão, não apenas no espaço, mas também no tempo; não apenas no espaço e no tempo, mas
também no corpo.
Parte-se da hipótese de que a relação entre corpo e ambiente ocorre através de processos
de tensão que vão da mediação à mediatização suscitando, por sua vez, processos de tradução e
comunicação onde as narrativas urbanas, como elementos culturais, se apresentam como uma
forma de leitura possível da cidade e do corpo. Como mediação entendemos o processo de
criação de representações suscitadas a partir de um embate direto com a cidade; e como
mediatização as representações decorrentes das características do meio técnico/tecnológico
envolvido na relação mediática.
Como elemento cultural, a narrativa atravessa e se dá no tempo, no espaço e no próprio
corpo através da experiência e faz parte, de acordo com a denominação de Ivan Bystrina citada
por Norval Baitello Júnior, de uma “segunda realidade”.
Segundo Walter Benjamin1, um dos principais autores a tratar das transformações urbanas
ocorridas a partir da modernidade, a narrativa pode ser entendida como uma forma artesanal de
comunicação, dada sua ligação com a vida cotidiana de quem narra e também com o sistema de
produção vigente, ou ainda, com a técnica. Para o autor, entretanto, a arte de narrar já no século
XIX inicia um processo de desaparecimento motivado, principalmente, por dois fatores: o
surgimento do romance como gênero literário e a consolidação da informação como forma de
comunicação.
Em linhas gerais, o primeiro fator está ligado diretamente ao surgimento da imprensa
(prensa móvel) que provocou a vinculação da história narrada ao livro, descaracterizando um dos
principais atributos do narrador: retirar de sua própria experiência aquilo de que fala. Desta
forma, a imprensa e a comunicação escrita apresentam-se como obstáculo ao caráter oral da
1
Benjamin, W. O narrador in: Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política.
14
narrativa que se praticava, em especial, no meio artesão, onde também se teciam histórias. O
segundo fator relaciona-se, como o primeiro, à imprensa, mas agora como veículo de
comunicação de massa responsável pela difusão da informação, trazendo como conseqüência um
interesse cada vez maior por acontecimentos mais próximos espacialmente e temporalmente, em
detrimento de um saber que vinha de longe – de terras estranhas ou contido na tradição.
Mas esses dois fatores não aparecem de forma isolada; inserem-se em contextos mais
gerais e abrangentes que dizem respeito às transformações urbanas e sociais daquele período e
que trazem a burguesia como classe social emergente e o romance como seu retrato.
Para Benjamin, a narrativa supõe uma troca de experiências passadas de pessoa a pessoa,
o que confere à sua mensagem um caráter de transmissibilidade, ou seja, tais experiências que a
priori seriam singulares e vividas apenas no momento em que acontecem, no aqui e agora, são
organizadas de tal maneira que possam ser coletivizadas e passadas adiante, como afirma Régis
Debray:
A transmissão está ligada à idéia de herança, de cultura, a uma tentativa de não deixar que
valores, idéias, experiências venham a morrer, assumindo assim um caráter político ao tentar
garantir a sobrevivência de um grupo. Afirma Benjamin em seu texto Experiência e pobreza:
“sabia-se muito bem o que era experiência: as pessoas mais velhas sempre a passavam aos mais
jovens (...) Mas para onde foi tudo isso? (...) Por acaso os moribundos de hoje ainda dizem
palavras tão duráveis que possam ser transmitidas de geração em geração como se fossem um
anel?” (BENJAMIN, 1986:195).
Para Debray a comunicação como mensagem se aproxima da informação e ao seu caráter
efêmero permitindo que tudo possa ser comunicável, o que não acontece com a transmissão que
mantém aproximação com o conhecimento, com o rito, e com o prolongamento no tempo
sugerindo que apenas o essencial consegue essa travessia temporal. Essa duração se dá através da
materialização e da coletivização que, segundo o autor, produz o memorável (matéria morta que
conserva vestígios) e o memorando (coletividade que reanima o sentido dos vestígios), ordens
15
culturais que podem ser entendidas como matéria organizada (M.O.) e organização
materializada (O.M.), respectivamente. Debray explica a matéria organizada como sendo o
instrumental, a técnica, necessários à construção de uma mensagem, aqui entendida como tudo o
que é passível de representação; e a organização materializada como sendo uma espécie de corpo
institucional que têm como função possibilitar a transmissão dessa mensagem (DEBRAY,
2000:24).
No caso deste estudo, podemos pensar o espaço urbano e o conteúdo da narrativa como
matéria organizada; já a construção de espacialidades, o lugar e o modo de narrar se configuram
como organização materializada, ou seja, correspondem à forma que organiza o inorgânico sobre
o qual recai nosso interesse na medida em que é o estar no mundo como tensão. Portanto, a
mediatização está diretamente ligada ao narrar.
Por serem aqui consideradas como um processo de organização, as narrativas configuram-
se como metáforas ou imagens que possibilitam ler a cidade através de fragmentos, pois “como o
excesso de originalidade prejudica a recepção, importa saber utilizar signos inúteis ou já
conhecidos do meio circundante para que a transmissão seja compreensível” (DEBRAY,
2000:27).
A noção de metáfora, de acordo com o pensamento de Lakoff e Johnson, diz respeito à
compreensão de uma experiência em termos de outra, uma representação, como acontece com
tudo o que experimentamos, atuando através de imagens verbais ou não-verbais sempre numa
perspectiva de ampliação das significações. Para os autores, esse é um novo paradigma que trata
a metáfora não mais como uma figura de linguagem, mas como um recurso completamente
infiltrado na vida cotidiana capaz de produzir conceitos que dêem sentido à cognição humana. A
metáfora é “um recurso do pensamento (logo, um aparato cognitivo) que nos faz falar, ver e agir
sobre determinados fenômenos de uma maneira e não de outra” (LAKOFF, 2002:29). Para os
autores, a metáfora está intrinsecamente ligada à corporeidade – à experiência física e cultural.
Assim, as narrativas urbanas cumprem um papel de metáforas da cidade agenciando uma
mediação entre a linguagem urbana, a do corpo e aquela que resulta da interação de ambas.
Segundo Lucrécia Ferrara as metáforas podem ser referenciais fazendo alusão direta ao
objeto - no nosso caso a cidade - ou conceituais exigindo a compreensão dos sentidos subjacentes
a ela (FERRARA, 2002:76). Essas manifestações da metáfora como representação, como objeto
dado à percepção, podem relacionar-se às categorias perceptivas propostas por Charles Sanders
16
Peirce, em que a metáfora referencial apresenta-se como percepto, como imagem arbitrária. O
percepto permite uma constatação que não chega a afetar os sentidos exigindo-lhes reação.
Enquanto texto não-verbal procede-se, através do percepto, a uma leiturabilidade da cidade. Já a
metáfora conceitual exige um juízo perceptivo, na medida em que são “idéias que se aproximam
por força de alguma semelhança ou analogia” (FERRARA, 1993:172). Dessa forma, passa-se da
visualidade, da simples constatação, à visibilidade como impacto que demanda reação, que
solicita uma elaboração perceptiva e que permite a legibilidade espacial. Quando isso acontece,
tais representações se estabelecem como vínculo comunicativo, fazendo parte da construção da
imagem e imaginário urbanos, ou seja, de um sistema sígnico que atua na produção de sentido e
que permite que o sujeito participe dessa construção de modo a compor a imagem da cidade
como um todo a ele compreensível.
Portanto, ao apontar para um processo de desaparecimento da arte de narrar, Benjamin
estava tratando da relação com a aceleração do tempo que não permite a dilatação temporal das
narrativas, ou seja, sua transmissão e possível permanência, mas também de uma outra
experiência levada ao extremo, como o caso da guerra de trincheiras citada pelo autor, cuja
intensidade não cabe no relato. Em seu texto Experiência e pobreza, fala também do fim da
narrativa a partir de uma pobreza de experiência que conduz a uma “barbárie positiva”, ou seja, a
uma necessidade de “começar do começo, a começar de novo; a saber se virar com pouco; a
saber construir com pouco” (BENJAMIN, 1986:196). Essa construção que emerge de uma
tentativa de superação do pensamento em vigor a partir de uma espécie de tábula rasa, possui
características que estão para além da narrativa linear organizando-se de forma inovadora a partir
da qual poderia resultar “algo decente”, no dizer do próprio autor. A essa maneira de trabalhar
construtivamente, podemos chamar de fabulação, “e exatamente esse começar de novo tinham os
artistas em mente, quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo” (ibid,
1986:196).
Cabe pensar, então, numa distinção entre o narrar e o fabular. A narrativa se processa num
tempo linear que pode acarretar a perda da possibilidade de visualizar a memória da cultura, é
temporal e espacializada porque dominada pelo ponto de vista do narrador. Ao passo que, ao se
revelar num tempo circular, o fabular permite um diálogo entre tempos diferentes cujos múltiplos
sentidos se constroem por montagem. Isso quer dizer que há diferentes modos de narrar, dentre os
quais o fabular se constitui como um modo específico, uma densidade espacial e temporal que
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permite superar linearidades temporais ou simetrias espaciais para revelar-se como tensão
metalinguística do narrar. Ou seja, nem todo ato de narrar é um ato de fabular, mas toda
fabulação é uma narrativa.
O conceito de montagem é aqui entendido como montagem ideogramática e tomado a
partir do cinema, em especial dos filmes de Sergei Eisenstein, para o qual a composição fílmica
não era apenas uma junção de pedaços (ou fotogramas) como queria Pudovkin, mas uma colisão
da qual deriva uma representação que tem como base um princípio dialético. Para Eisenstein o
princípio da montagem obriga o espectador a criar uma imagem do todo a partir dos elementos
justapostos (EISENSTEIN, 1990:30), o que acontece não apenas no cinema.
As narrativas sempre estiveram presentes na vida do homem como uma forma de contar
sua própria história e construir um imaginário que representasse os aspectos culturais de cada
época. Deste ponto de vista, é importante considerá-las não como um gênero específico (literário,
fílmico, etc.), mas como um relato que procura dar sentido às mensagens e acontecimentos.
Entretanto, o fabular possui importância especial para a constituição do próprio sujeito ao
possibilitar um ilimitado processo de semiose decorrente das relações que estabelece entre os
textos da cultura e que não são, necessariamente, um fluxo contínuo, mas se compõem de cacos,
fragmentos pinçados ao longo de toda sua experiência.
Essas fabulações, porém, não refletem e, por vezes, opõem-se à cultura oficial a fim de
que, sem um compromisso com o discurso dominante, possam construir a história cotidiana, do
fazer diário, e não apenas a história dos vencedores, como explica Jeanne Marie Gagnebin, a
história como uma “prática de coleta de informações e de exposição dos elementos” e não “no
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com o ambiente e contribuía para dele formar imagens, ao mesmo tempo em que era decorrente
delas. Segundo Bakhtin, o grotesco não considera o corpo como um todo acabado e delimitado.
Ao contrário, é um corpo em movimento que se faz e refaz, “absorve o mundo e é absorvido por
ele” (BAKHTIN, 1987:277). Tal conceito teve grande importância também no Renascimento que
via o corpo humano como a reunião da “imensa diversidade do universo” (BAKHTIN,
1987:320).
Portanto, a festa carnavalesca rompia com a ordem estabelecida promovendo uma
organização que não tensionava o corpo; ao contrário, permitia a ele uma liberdade não apenas
individual, mas coletiva, além de possibilitar outras inversões: a inversão de papéis, de sexo, etc.
Além disso, a festa eliminava diferenças entre o público e o privado, o sagrado e o profano, o
popular e o erudito, transformando a praça num espaço de todos, lugar para exposição corporal.
Numa sociedade onde quase inexistia a mobilidade social, o carnaval apresentava-se como um
contraponto à imagem da rigidez, criando uma imagem baseada no riso e na descontração.
Entretanto, e apesar dessa possibilidade de escapar, mesmo que temporariamente, à
rigidez da hierarquia e do trabalho, a narrativa que a Idade Média inaugura teve forte presença no
projeto moderno que a sucedeu, tendo em vista a necessidade de ordenar o espaço urbano
adequando-o às conseqüências da Revolução Industrial. Tal narrativa foi incorporada a um
programa racional e funcionalista que interferiu decisivamente no significado e na percepção do
espaço social moderno.
A partir do século XIX grandes transformações se dão tanto no plano espacial da cidade
como na exacerbação de um pensamento calcado na razão que tinha como meta a construção de
um imaginário iluminista que balizou todo o comportamento social. Há uma completa
transformação do espaço citadino propiciada, entre outros fatores, pelo surgimento da luz elétrica,
das galerias, dos bondes, trens e, da incorporação do ferro e do vidro às construções. Esses
elementos, mais do que meros constituintes da construção, estão carregados de significados
próprios da modernidade: o ferro, segundo Walter Benjamin, como material artificial e o vidro
com a sua indefinição do fora-dentro, ou seja, do público e do privado.
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Todo o ambiente de descobertas tecnológicas estava assentado sob uma grande e única
visão – uma metanarrativa, um telos que orientava toda a ação humana. Isso quer dizer que se
objetivava chegar a uma sociedade ideal através do constante desenvolvimento da técnica e da
ciência sempre pautados pela razão. Essa perseguição de “um pote de ouro no fim do arco-íris”,
de um futuro grandioso para a humanidade é que constituiu grande parte do projeto Moderno.
Essa narrativa compreendia a sociedade como um todo, algo homogêneo orientado para
um único fim, ou seja, considerava um espaço, um tempo e um modo de ser universais
entendidos como meta. Tal compreensão teve como mola propulsora o pensamento cristão da
Idade Média que, a partir da idéia do nascimento de Cristo e a conseqüente espera por um juízo-
final, rompe com o tempo cíclico natural e institui o tempo histórico humanizado e linear
(KUMAR, 1997:80).
As passagens parisienses podem ser entendidas também como uma narrativa, na medida
em que criaram uma espacialidade própria formando um imaginário de sonho e desejo,
proporcionado principalmente pela mercadoria. Serviram de abrigo, de espaço de encontro e,
segundo Benjamin, eram consideradas templos do comércio cuja arquitetura assemelhava-se à
igreja barroca: espaço largo e cobertura onde prevalece a tendência “para o alto” (BENJAMIN,
2006:197).
Os materiais e a proporção dessas galerias ambientalizavam o espaço criando uma
imagem de suntuosidade e poder. Mas não apenas a construção criava espacialidades, o corpo,
numa relação de empatia, tornava-se também mercadoria, vitrina de valores e adereços; “a
entrada das galerias é rigorosamente proibida a todo indivíduo sujo ou portador de um grande
fardo; é igualmente proibido fumar e escarrar” (MOILIN apud BENJAMIN, 2006:94).
Em contrapartida, este cenário, movido pela grande narrativa do projeto moderno, trazia
em suas vielas o fabular da multidão. Neste caso “O homem da multidão”, de Edgar Allan Poe,
nos traz um retrato do sujeito citadino em meio às perturbações causadas pela cidade e pelo
número elevado de pessoas convivendo no mesmo espaço. Essa multidão é diferente daquela do
24
carnaval apontada por Bakhtin, cuja motivação para o contato era a festa, o rito. A multidão de
Poe se vê obrigada ao convívio, que não é mais temporário, mas se prolonga e é decorrente de
uma reorganização e crescimento urbanos.
Neste conto, o narrador descreve cada tipo urbano que observa num cenário formado
pelas ruas como artérias da cidade, por onde circulava um “mar tumultuoso de cabeças humanas”
e tendo como observatório um Café, típico ponto de encontro urbano. A descrição minuciosa é
decorrente da própria experiência do narrador que, ao longo da história, passa de observador
passivo a agente da própria trama.
Entretanto, o conto não traz um panorama, uma descrição geral da cidade; ao contrário, a
própria personagem que conta a história enfatiza que se interessa pelos detalhes, pelo banal:
A Uma Passante
(tradução Guilherme de Almeida)
É possível perceber no poema uma imagem de desejo que não se concretiza; é fugaz;
apenas um romance em potencial que, no breve espaço de um olhar, se eterniza. A vida em meio
à multidão permitia a este flâneur ler ou criar histórias possíveis acerca de cada transeunte com
os quais se encontrava e estabelecia relações efêmeras, de passagem.
Na verdade, o flâneur está presente em outras obras literárias da época como
caracterização de um estado de espírito que estava vivendo as transformações urbanas. O próprio
“homem da multidão” de Poe pode ser considerado um tipo flâneur, distinguindo-se deste por sua
relação com o espaço urbano: o homem da multidão percebe a cidade como uma atmosfera de
ameaça e opressão e o flâneur tem a rua como sua própria casa.
Neste sentido, por ser uma representação dessa classe econômica, o flâneur encarna
outros tipos urbanos como o colecionador e o jogador, que constituem outras possibilidades
representativas que atuam como desdobramentos. O colecionador, ao trazer para o interior de sua
casa pequenos souvenirs, contemplava o mundo como imagem, em sua imobilidade; e o Jogador,
representava o ócio e a falta de preocupação com o risco. Essa multiplicação da personagem
ocorre por montagem, em que um não anula o outro, mas ambos se sobrepõem.
Além de ser objeto do fabular, o flâneur traçava sua própria fabulação da cidade, porque
ao caminhar passava a estabelecer com ela sua própria experiência e história. O espaço público é
seu lugar e, nas passagens parisienses, vivia a comunicação face-a-face, proporcionada, em
especial, pelo comércio em que há negociação e esta se dá sem intermediários. Percebe-se, desta
forma, que além de criar imagens da cidade, o ato de andar pelas ruas molda também o corpo
num processo de tradução sígnica e construção simbólica. O conceito de tradução em Walter
Benjamin, segundo Jeane Marie Gagnebin, normalmente voltado para o estudo da linguagem no
sentido de uma língua original, pode ser trazido para a análise da relação que o flâneur construía
ao caminhar pela cidade. Neste sentido, a tradução se faz a partir dos signos da cidade, uma
linguagem não-verbal, transformando-os em elementos apreensíveis cognitivamente, ou seja, o
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corpo estabelece conexões com o ambiente num movimento ininterrupto de fluxos e trocas que
envolvem a percepção e a capacidade do sujeito de dialogar com esses signos.
Numa abordagem mais abrangente, corpo e ambiente constroem e inserem-se num
universo semiótico – a semiosfera – considerado como um mecanismo único, um organismo que
compreende diversos textos e linguagens (LOTMAN, 1979:23). Neste contexto, o próprio corpo
pode ser considerado também como um universo semiótico ou individualidade semiótica com
todas as suas características; uma delas é apresentar-se como fronteira. É importante ressaltar que
fronteira não é sinônimo de limite, mas antes se estabelece como seu contrário; na primeira é
possível estabelecer um filtro, enquanto o segundo se apresenta como um elemento contra-
comunicativo.
O corpo como elemento receptor e produtor de informação desempenha, em sua relação
com o ambiente, um papel de tradutor sígnico bilíngüe no qual o texto da cidade se traduz na
linguagem corporal e vice-versa.
No caso de São Paulo, cada elemento encontra na cidade não necessariamente uma
oportunidade, mas uma possibilidade de conseguir fazer parte desse universo. São Paulo se
revela, neste sentido, como a cidade do desejo. Em parte porque, como uma das mais importantes
cidades do país em diversos setores, acaba compondo o imaginário mesmo daqueles que nela
nunca estiveram, tendo em vista que sua imagem ganha destaque especial em veículos midiáticos.
E é essa variedade que faz de São Paulo não uma, mas várias cidades em uma. No domínio
empírico é possível perceber, como exemplo dessa fragmentação, sua divisão em zonas que são
mais do que maneiras de orientação; marcam diferenças de classes sociais, de acesso a serviços,
de oportunidades de negócios, etc.
É somente considerando a cidade de São Paulo a partir do seu caráter fragmentário e
disposto à montagem que podemos traçar um paralelo com outras narrativas e fabulações, como o
carnaval, o homem da multidão e o flâneur, que se inscreveram no texto da cultura como forma
de ler a cidade, de revelar sua fisiognomia, como o fez Walter Benjamin com a cidade de Paris.
Sendo assim, é possível identificar uma São Paulo que veio a reboque do projeto moderno
que balizou o pensamento europeu no século XIX e, guardadas as devidas proporções e
circunstâncias locais, criou sua própria narrativa de progresso possibilitada, sobretudo, pela
cultura cafeeira.
Em 1867 foi inaugurada sua primeira ferrovia, permitindo sua expansão e reestruturação
do espaço como local de circulação, e por volta dos anos de 1900 a cidade passou a atrair um
elevado número de imigrantes que chegavam a constituir um grupo de 150 mil estrangeiros de
uma população de 250 mil habitantes. Naquele momento, São Paulo vivia um intenso
crescimento industrial, em especial das indústrias têxtil e alimentícia, que atraíam um contingente
populacional formado em sua maioria por imigrantes recém chegados que formaram as primeiras
colônias com casas coletivas, pensões e vilas, como nos bairros do Bom Retiro, Lapa, Brás,
Moóca e Ipiranga (ROLNIK, 2003:16).
De vila povoada basicamente por portugueses e índios, São Paulo, em pouco tempo,
passava a ser o maior ponto de atração de capitais e população do país, tendo como conseqüência
uma grande mudança de sua paisagem com a execução de reformas e implantação de projetos
urbanísticos, sobretudo em sua área central destinada às elites e aos negócios como a Praça da
República, Rua Direita e 15 de Novembro, em contraposição a uma formação periférica de lotes
densa e desordenadamente ocupados.
32
Em 1924, o Prefeito Prestes Maia propôs um modelo urbanístico para a cidade que
chegava a 1 milhão de habitantes e exigia uma estrutura de viabilização do fluxo dos bairros
proletários da periferia para o centro e a conseqüente expansão da cidade numa ordenação radial,
lembrando aquele implementado por Haussman na Paris do século XIX. Essa proposta, segundo
Lucrécia Ferrara, baseava-se numa necessidade de sedimentar a idéia de nação que derivava de
um programa internacional de ocidentalização no qual “as jovens nações americanas buscam
33
saber a origem e a formação das respectivas civilizações a fim de ser possível registrar uma
identidade nacional que, não raro, procura imitar a Europa com suas imagens e personagens”
(FERRARA, 2002:75).
Plano de Avenidas
“Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicea – a grande boca de mil dentes”
Nesse texto, algumas frases ou palavras mostram aspectos físicos da cidade que se
transformava e revelam, em alguns momentos, aspectos do fazer cotidiano, como “Nem chegarás
tão cedo à fábrica de tecidos”, “Tantos telégrafos sem fio!”, “automóveis fechados... figuras
imóveis”, “Asfaltos. Vastos, altos repuxos de poeira ... As sujidades implexas do urbanismo”,
“passa galhardo um filho de imigrante, loiramente domando um automóvel!”, “Gingam os
bondes como um fogo de artifício, sapateando nos trilhos”, “Lá pras bandas do Ipiranga as
oficinas tossem...”; ou ainda sugerindo, por aliteração, o som do movimento das ruas: “Os
caminhões rodando, as carroças rodando, rápidas as ruas se desenrolando, rumor surdo e rouco,
estrépitos, estalidos... E o largo coro de ouro das sacas de café!”. Tais frases, por não estarem
dispostas de forma linear e contínua no texto, sugerem a necessidade de seleções e recortes para
que se possa encaixá-las, posteriormente, como um puzzle. De fato, a percepção da cidade, a
partir de seus elementos, se mostra como um jogo em que as regras são feitas ao jogar, como
sugerem os versos da poeta Orides Fontela “Quebrar o brinquedo ainda / é mais brincar”,
35
revelando que destruição e construção são partes do mesmo processo de jogar com a
multiplicidade dos possíveis.
Outras partes do texto mostram ainda a mistura cultual decorrente da imigração de
estrangeiros que se misturam aos costumes locais: “Elegâncias sutis sem escândalos, sem
ciúmes... Perfumes de Paris... Arys! Bofetadas líricas no Trianon...”, “Galicismo a berrar nos
desertos da América!”, “...para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam o
‘Printemps’com as unhas!”; “O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!”, “A preamar
dos brilhos das mansões ... O jazz-band da cor...”. Essa mistura ilustra a idéia da Antropofagia,
movimento artístico que, dentre outras coisas, critica a soberania de uma civilização capitalista
que impunha seus valores às demais culturas.
A Paulicéia Desvairada costura também os retalhos dos sentimentos e costumes daqueles
que eram parte das transformações urbanas do momento e cujo corpo e seus sentidos se
misturavam à paisagem, alinhavando um mapa que ultrapassa os limites do território: “Minha
alma corcunda como a avenida São João”, “Missas ao chegar da tarde... Santa Cecília regorgita
de corpos lavados e sacrilégios picturais...”, “Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora...
Oh larguezas dos meus itinerários!”, “Deus recortou a alma da Paulicea num cor de cinza sem
odor...”, “São Paulo é um palco de bailados russos. Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os
crimes e também as apoteoses da ilusão”, “Trituração ascensional dos meus sentidos! Risco de
aeroplano entre Mogi e Paris!”, Oh! Este orgulho máximo de ser paulistamente!”.
Outra montagem da imagem de São Paulo é composta por Macunaíma (1928), também
personagem de Mário de Andrade. Essa espécie de flâneur brasileiro, oposto da sociedade
moderna cujo pensamento racional tinha em foco o desenvolvimento, percorre o país
estabelecendo diálogos entre as suas diversas regiões, bem como com personagens históricas,
subvertendo a noção de tempo e espaço.
Num resumo apressado (pois não é a totalidade da obra que nos interessa neste momento),
Macunaíma vem do Amazonas para São Paulo com seus irmãos Maanape e Jiguê à procura de
um talismã perdido. Nessa busca, descreve a cidade através de seus moradores e seus costumes
desenhando um retrato da São Paulo que se industrializava e crescia em busca de dinheiro e
progresso. Assim descreve Macunaíma ao chegar em terras paulistanas:
“E foi numa boca-da-noite fria que os manos toparam com a cidade macota de
São Paulo esparramada a beira-rio do igarapé Tietê (...) Porém entrando nas terras
36
do igarapé Tietê adonde o burbom vogava e a moeda tradicional não era mais
cacau, chamava arame contos contecos milréis boros tostão...” (ANDRADE,
2004:41).
E reforça a idéia de uma cidade que não pode parar envolvendo a todos em sua imagem
de movimento incessante que rejeita a permanência daqueles que assim não se adequam,
tornando-se discurso dito em praça pública:
“ – Meus senhores, a vida dum grande centro urbano como São Paulo já obriga a
uma intensidade tal de trabalho que não permite-se mais dentro da magnífica
entrosagem do seu progresso siquer a passagem momentânea de seres inóquos”.
(ANDRADE, 2004:92)
“As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu não era sagüim não,
chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos
aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturos não eram nada disso não,
eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças
pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges
mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de
fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios
faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e
tudo na cidade era só máquina! (...) Macunaíma passou então uma semana sem
comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca
com a Máquina. A Máquina era que matava os homens porém os homens é que
mandavam na máquina... Até que uma noite (...) Macunaíma concluiu:
- Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta.
Há empate” (ANDRADE, 42/43).
cidade de São Paulo – a maior do universo (grifo meu), no dizer de seus prolixos habitantes...”,
“Cidade é belíssima, e grato o seu convívio. Toda cortada de ruas habilmente estreitas tomadas
por estátuas e lampiões graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com astúcia o espaço
de forma tal, que nessas artérias não cabe a população”.
A narrativa de progresso, em torno da qual Mário de Andrade criava espacialidades para
suas personagens, também é mostrada em fotografias de arquivos de acesso público ou em livros
sobre a história da cidade. Tais imagens, a exemplo dos cartões postais da época, são, na sua
maioria, fotografias de grandes planos, mostrando ruas movimentadas em que o comércio tem
sua importância e nas quais a publicidade já marca sua presença.
São imagens feitas para vender a cidade e que, fazendo uso de uma retórica, sugerem
através de elementos como monumentos, edifícios, bondes e automóveis, um ideal de
desenvolvimento da cidade e de seus habitantes. Mas não é apenas nos cartões-postais,
fotografias ou textos que as narrativas reiteram a imagem de progresso e trabalho conferida à São
Paulo e seus habitantes: em algumas músicas essa idéia também fica bastante evidente.
São Paulo
Que amanhece trabalhando
São Paulo, que não sabe adormecer
Porque durante a noite, paulista vai pensando
Nas coisas que de dia vai fazer
São Paulo, todo frio quando amanhece
Correndo no seu tanto o que fazer
Na reza do paulista, trabalho é um Padre-Nosso
É a prece de quem luta e quer vencer
afastamento perceptivo. Essa ordem da cidade está ligada à idéia de contigüidade onde cada
elemento possui seu lugar determinado no espaço, servindo a uma normatização de seu uso
e criando uma espacialidade que demarca de antemão as formas de sua apropriação,
estabelecendo uma hierarquia entre elementos homogêneos. Por outro lado, o corpo
desenha seus próprios espaços estabelecendo novos usos para a cidade e propondo uma
organização espacial que estabelece uma relação entre elementos heterogêneos, uma
relação não entre prováveis, mas entre possíveis que, por isso mesmo, está sempre em
aberto, disponível a uma reorganização, dando à cidade também uma característica de
organismo vivo. Essa outra forma de viver o/no espaço da cidade escapa das formas rígidas
e se produz na tessitura dos afetos, do embate ou encontro com o outro, com a sociabilidade
enfim. É nessa dinâmica que se produz o lugar. Não se trata do lugar antropológico
carregado de memória histórica, mas do lugar como agenciador do diálogo entre signos do
passado e do presente (FERRARA, 2002:18) que permite uma passagem do narrar para o
fabular.
É dentro dessa proposta que seguem, a meu ver, as fotografias de Cristiano
Mascaro, considerado o fotógrafo de São Paulo, cujas imagens revelam um olhar
diferenciado sobre a cidade, captando o que parece invisível ao se esconder sob o hábito. O
próprio fotógrafo explica o seu ato de captar esse tipo de imagem:
vale pelo todo, o detalhe é ressaltado como expressão de um contexto maior. Para Lakoff e
Johnson esse uso da metonímia se aproxima da função da metáfora ao permitir uma
compreensão. Entretanto, a metonímia focaliza mais especificamente algum aspecto do
objeto considerado (LAKOFF, 2002:93). Não se trata de uma escala de valores na qual se
evidencia o que é importante ser captado para representar o todo, mas de um olhar atento
àquilo que qualifica o espaço. Tal relação se evidencia, no trabalho de Mascaro, no diálogo
entre a imagem captada e o título que a nomeia revelando o universo do qual faz parte.
A Avenida 9 de Julho, por exemplo, não aparece num plano aberto no qual estejam
também presentes seus edifícios, suas sinalizações, seus comércios, seu trânsito, mas sim
numa composição geométrica de um viaduto junto a um corpo solitário que lhe dá vida. A
avenida não está localizada geograficamente mantendo relação com suas adjacências ou
marcada por algum aspecto simbólico que lhe confira uma referência no tempo; ela está tão
somente flagrada num instante – um espaço banal. Na verdade, da avenida, como espaço
para circulação de automóveis, quase nada aparece; somente uma única pessoa que parece
contradizer o adjetivo “populosa” conferida à cidade. Essa presença é o punctum da
imagem, sua marca, um lance de dados, o acaso perenizado (BARTHES, 1984:46) que se
torna o referente para o que, ao olhar para a foto, se possa entender como representativo
daquele espaço. A organização do material, o enquadramento, primam pelo rigor
geométrico e pela composição de luz e sombra que conferem certa dramaticidade à
fotografia. Ao mesmo tempo, o corpo e sua sombra estão deslocados do centro (ortogonal)
de leitura da imagem, fazendo com que de uma aderência meramente visual se perceba uma
espacialidade em movimento e profundidade.
43
Avenida 9 de Julho
Ao fotografar a Avenida São João tão famosa por sua boemia, Mascaro lança seu
olhar sobre um homem com o rosto encoberto, cuja imagem suscita a possibilidade de
diálogo com os versos de Caetano Veloso: “quando eu te encarei frente a frente não vi o
meu rosto...”2. Tal fotografia também nada revela sobre a avenida como espaço geográfico
ou simbólico, tão reverenciado em outras inúmeras canções. Mais uma vez um corpo é o
que provoca o olhar do observador da foto questionando-o: qual a relação entre aquele
homem e a avenida?; por que usa um pano para esconder o rosto? A imagem cria um
“campo cego” que remete a uma vida (do homem e da avenida) exterior ao retrato
(BARTHES, 1984:86). Por ser um fluxo, mais um instante flagrado, não há uma relação de
ambos que se estenda no tempo, mas tal fotografia solicita do observador um juízo
perceptivo que una imagem e legenda, permitindo uma legibilidade que está para além
daquilo que ela dá a ver.
Mascaro parece interessar-se pelo modo como o corpo insere-se na cidade e a
constrói, pela maneira como vive o espaço da forma como ele é – com suas paredes
manchadas, riscadas, com a tintura descascando ou com suas alternativas à sobrevivência,
bem como pelas marcas que ficam no corpo e na cidade decorrentes da interação de ambos
na passagem do tempo.
2
Música “Sampa” (Caetano Veloso)
44
Imagem comparativa
Cartão postal – Edifício Copan
Outro espaço fotografado por Mascaro é o viaduto Santa Efigênia, ponto bastante
conhecido em São Paulo por ter se transformado nos últimos anos, junto à rua de mesmo
nome, num dos principais locais para comércio de produtos eletroeletrônicos e de
informática, o que também acabou atraindo um comércio ambulante paralelo. Entretanto,
para o fotógrafo, não é esse o aspecto que qualifica aquele espaço. Os detalhes em ferro
formam desenhos que são sua principal marca. A luz que incide sobre a cena duplica e
amplia essas formas que possibilitam um diálogo com um outro tempo, uma outra época. A
forma, não apenas nesta imagem, como nas demais, revela-se como elemento importante de
46
construção do espaço e da percepção ambiental, visto que carregam significados que podem
se revelar dialéticos quando são confrontados como função e uso, visualidade e
visibilidade.
E o que dizer de uma Praça da Sé na qual seu principal símbolo está oculto? Nesta
imagem o fotógrafo subverte mais um cartão-postal da cidade revelando que o espaço serve
para outros usos que não se consagram como duração temporal, mas refletem uma
apropriação efêmera que dá ao espaço o caráter de lugar. A fotografia revela o inusitado de
um corte de cabelo em meio a uma das praças mais movimentadas de São Paulo, algo
deslocado, mas que constrói uma organicidade própria da produção do lugar.
47
Praça da Sé3
3
Fonte: www.aprenda450anos.com.br
48
- movimento
- lazer
- pluralidade
- negócios
- cartão postal
É importante ressaltar que tal divisão é uma tentativa de facilitar a leitura das
imagens, o que não implica que os registros façam parte de um tema estanque, podendo
estar contidos em outros temas simultaneamente. Esses temas são parte de forças
informativas que participam da representação construída cotidianamente por seus
habitantes, mas que pertencem a um contexto maior de variáveis urbanas geradas por todos
os elementos dispostos no espaço: transporte, cultura, formas de trabalho e lazer, entre
outras (FERRARA, 1993:72). Entretanto, ao entendermos a cidade como ambiente,
50
2.1.1 “Não posso ficar nem mais um minuto com você...”4 - Movimento
4
Música “Trem das onze” (Demônios da Garoa).
51
Nome da foto: atravessando a Paulista sunto: afirmou que devido aos constantes
congestionamentos muitas pessoas que
vivem em São Paulo só conhecem ou
vêem a cidade de dentro do carro ou
ônibus, isto é, a cidade que passa.
Por ser freqüente, a espacialidade
criada pelo excesso de veículos fica
marcada como sendo um dos traços mais
característicos de São Paulo, especial-
Nome da foto: todas as pessoas passando mente quando reiterado pelos meios de
comunicação.
53
5
Música “As Mina de Sampa” (Rita Lee / Roberto de Carvalho)
56
adereços em especial quando seu time é vencedor da partida e não é assunto só para
homens, visto que o registro da imagem do estádio do Morumbi foi feito por uma
paulistana.
Entretanto, a imagem não se refere ao jogo explicitamente, mas à relação narrativa
que insinua, ou seja, refere-se ao fator de socialização comunicativa e pertencimento que
ocorre através do jogo: a própria narrativa urbana refere-se a essa socialização e a esse
pertencimento. Georg Simmel já apontava, no século XIX, a socialização como uma forma
lúdica de interação (SIMMEL, 1993:169) e aqui podemos entender o lúdico não apenas no
sentido da partida de futebol, mas de todos os jogos sociais que acontecem no espaço
urbano, estendendo esse significado também às demais imagens que compõem este tema.
A narrativa da cidade apresentada pelo registro de seus habitantes propõe, antes de
tudo, um convite, visto que não foram registrados em seu uso (com exceção da Prainha
Paulista) e que decorre das infinitas possibilidades que oferece. O espaço da cidade, nessas
imagens, é tomado em seu sentido primeiro (res publica) de possibilitar o desenrolar de
ações comunicativas com o espaço e com o outro.
Neste sentido, o lúdico, que é uma das características do lazer, fica por conta de
cada habitante em aceitar o convite permitindo a exploração criativa desse potencial capaz
de permitir que o lazer ultrapasse o mero consumo de atividades programadas e se
transforme propriamente em uso vinculativo do espaço.
58
6
Música São Paulo, São Paulo (Premeditando o Breque)
59
2.1.4 “Da força da grana que ergue e destrói coisas belas...”7 – Negócios
7
Música “Sampa” (Caetano Veloso)
61
8
Música “São Paulo, Mãe Madrinha” (Germano Mathias)
63
autóctone obter a imagem de sua cidade, são necessárias motivações diferentes, mais
profundas. Motivações de quem, em vez de viajar para longe, viaja para o passado”
(BENJAMIN apud BOLLE, 2000:316). Neste caso, trata-se não de uma memória vista
como algo imutável e estanque, mas de uma “imaginação criativa” capaz de organizar,
através da evocação de imagens do passado, uma fisionomia da cidade, seu mapa. Essa
organização se dá por montagem incorporando elementos fragmentários, de tempos
diferentes, ou seja, os palimpsestos da memória ou do próprio corpo em sua experiência
urbana, em que o mapa da cidade se confunde com o mapa da memória (BOLLE,
2000:320), aproximando-se, portanto, da fabulação. Caso contrário, não se pode falar em
memória, mas apenas em lembrança.
No caso das imagens que estamos analisando, o aspecto visual dos espaços ganhou
relevância e permite inferir que os habitantes realizaram uma leitura a partir da visualidade
da cidade, ou seja, aparentemente, procederam ao uso da lembrança que se distingue,
segundo Benjamin do que chamou de “memória topográfica”: “A memória topográfica não
visa a reconstrução dos espaços pelos espaços, mas estes são pontos de referência para
captar experiências espirituais e sociais” (BENJAMIN apud BOLLE, 2000:335). Essa
característica aparece, sobretudo, nas fotos captadas pelos paulistanos cujo hábito pode
interferir no processo cognitivo de transformação de espaços em lugares, ou seja, na
apropriação desses espaços e na superação de uma ordem visual e perceptiva pré-
estabelecida. Observa-se, neste sentido, que um deslocamento do olhar dos moradores
vindos de outras cidades revela-se como uma possibilidade de fabular e, portanto, de
apreender a cidade através de uma legibilidade e visibilidade como nas imagens a seguir.
A feira livre, que é de fato bastante presente em todos os bairros da capital, não foi
registrada por nenhum paulistano, o que nos leva a inferir que, porque habitual, esta
atividade não se torna suscetível de um juízo perceptivo. Também bastante popular entre
paulistas e paulistanos, a pizza virou referência da gastronomia da cidade e um de seus
pratos mais tradicionais - basta verificar o número de pizzarias espalhadas em suas
diferentes regiões: são mais de 5.000.
O prato é tão apreciado que mereceu até uma data comemorativa - o Dia da Pizza -
comemorado desde 1985. Entretanto, entre saborear uma pizza e entendê-la como
representação da cidade requer uma capacidade de relacionar imagens que, num primeiro
momento, não parecem ter uma aproximação, ou seja, segundo Lucrécia Ferrara, requer
uma associação por similaridade:
Como fez Marcovaldo, com tijolos de neve invisíveis construímos nossas cidades
particulares, outra cidade dentro da cidade, que pode ser feita e refeita, e cujo percurso é
desenhado pelos corpos, como um jogo, uma brincadeira. Brincar com as possibilidades é
passar da leiturabilidade do texto urbano a uma legibilidade de seus signos e, efetivamente
percebê-la superando a simples visualidade que cede espaço à visibilidade abrindo a
possibilidade da emergência do novo num ato de fabular.
69
“É preciso sempre dizer aquilo que se vê; sobretudo, o que é mais difícil,
é preciso sempre ver aquilo que se vê”
(Le Corbusier, 1989)
“Gosto de revelar aquilo que parece não existir ou que as pessoas não são capazes de
perceber” (Cristiano Mascaro, 2007)9.
Revelar. Essa palavra tão cara ao processo fotográfico aqui adquire um significado
ainda mais amplo ao assumir a característica não apenas de mostrar o que está oculto, mas,
ao contrário, de dar visibilidade ao que está disponível enquanto informação ambiental,
enquanto conteúdo que não é, necessariamente, apenas latente. Não se vê, não somente
porque algo está escondido, mas por outros inúmeros fatores que limitam a capacidade de
olhar e enxergar o que já está lá, mas que também está para além do que é dado, cuja
sutileza só se deixa apreender por um olhar atento. Ao mesmo tempo, essa palavra sugere a
idéia de reiteração, de estar alerta novamente, de vigiar de novo, de zelar10.
A reiteração do olhar propõe a superação da opacidade provocada pelo hábito;
exige-se através da atenção, re-ver atentamente. Hábito e atenção são características
perceptivas opostas, mas que, ao mesmo tempo, não se anulam, já que alguma taxa de
permanência ou reiteração de informação é necessária para a sobrevivência em qualquer
ambiente.
9
Catálogo do Prêmio Porto Seguro de Fotografia 2007
10
Mini Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. 2ª. Edição. Editora Nova Fronteira.
70
Essa forma previsível de perceber o espaço pode ser verificada nas fotografias que
puderam ser agrupadas em temas (ver Capítulo 2). O próprio fato de serem registros de
autores diferentes e, ainda assim, poderem ser agrupadas, já nos mostra uma narrativa que
abarca signos fortemente marcados. É o que Etienne Samain identificou como sendo o
studium de que falava Roland Barthes; é a imagem que posso compreender a partir de um
reconhecimento de informações, é a “fotografia enquanto ela vem me procurar – eu sujeito
de sua leitura -, informando-me, comunicando-me, oferecendo-me o sentido ‘que apresenta
naturalmente ao espírito’, o sentido óbvio” (SAMAIN, 2005:124).
O reconhecimento de informações está ligado a uma decodificação a partir de um
modelo que atua em mão única determinando valores, crenças, usos e hábitos da cidade. O
fato de serem reconhecíveis nos diz que essas informações soam como familiares e,
portanto, já cristalizadas socialmente.
Neste caso, a narrativa decorrente dessa percepção apresenta-se como um sistema
definido e, por isso, mais seguro quanto às formas de representação - uma verdade unívoca
e unilateral. Não estamos afirmando, no entanto, que não existe, por exemplo, o movimento
(tema apresentado por todos os moradores) na cidade de São Paulo; o movimento existe em
qualquer objeto de investigação e em qualquer ambiente. É a maneira de perceber e, mais
que isso, de registrar o movimento e, portanto, de organizar do material, que caracteriza
uma percepção “do óbvio”.
É preciso lembrar que consideramos, nesta pesquisa, a percepção num nível macro
de descrição, já que entendemos, a partir dos estudos das ciências cognitivas, que existem
outros níveis perceptivos produtores de imagens internas do corpo que dizem respeito a
organizações das representações neuronais decorrentes da interação corpo/ambiente.
Ainda em relação ao movimento, Cristiano Mascaro consegue demonstrá-lo sem
necessariamente fotografar em grandes planos ou captar a movimentação de muitos
elementos, sejam corpos ou automóveis. Sua exibição não é literal, mas se dá através do
deslocamento do corpo no enquadramento da foto, ou mesmo no registro instantâneo (e
quase invisível se colocado em velocidade) do momento em que um pé passa à frente do
outro durante o caminhar. A diferença está na sutileza da imagem que mais sugere do que
narra, inclusive porque as legendas, no caso de suas fotografias, não operam como
codificadores que determinam o sentido da leitura.
73
11
In NASCIMENTO, Evando (org.). Jacques Derrida: pensar a desconstrução.São Paulo: Estação
Liberdade, 2005.
75
moradores de São Paulo (ver Capítulo 2). Nessas fotografias não se trata de um
enquadramento diferenciado ou do uso criativo de determinados recursos; trata-se do
diálogo que estabelece com a pergunta feita – a resposta é que se torna inventiva, supera o
código em questão no intuito de produzir outros códigos.
Se pudéssemos traçar um mapa narrativo a partir das fotografias temáticas dos
moradores, é possível que percebêssemos uma cartografia constituída por territórios bem
marcados e claramente identificados em sua maioria. Já as fotografias atemáticas estão
contidas numa cartografia mental transposta para o bidimensional do fotográfico. Essas
imagens não traduzem de maneira inequívoca a relação que estabelecem com São Paulo;
antes, é preciso recorrer a uma cadeia de outras imagens que perfaçam o caminho de
ligação entre elas e a cidade.
Vale lembrar que essas imagens foram registradas por moradores vindos de outras
localidades, o que já é um deslocamento do olhar que atua como uma forma de
conhecimento de si mesmo através do outro. É o que Etienne Samain entende como o
punctum em Barthes:
passa, antes, por um certo estranhamento que possibilita uma leitura ambiental atenta, pois,
como afirma Lucrécia Ferrara, “não é possível ler o que não conseguimos estranhar”
(FERRARA, 1988:15).
Ao apresentar um mapa, uma placa de ônibus, a feira livre, uma pizza ou uma
escultura de açúcar como imagens de São Paulo, os fotógrafos desfazem o texto urbano a
fim de revelar da cidade outros significados, procurando uma pluralidade de
representações. Essa pluralidade já observada por Boaventura de Souza Santos, é
encontrada também na obra de Derrida. Ambos apontam para a necessidade de legitimar a
existência de outros discursos que não o dominante (no caso o eurocentrismo), o que
permite ver a cidade como uma “entidade política”; no dizer de Argan: “a cidade, como
sistema da informação, não pode limitar-se a transmitir notícias características e
publicitárias. É uma entidade política que deve transmitir o sentido do seu caráter político
[...]” (ARGAN, 2005:250).
Esse pensamento está contido também nas imagens dialéticas de Benjamin, às quais
já nos referimos, como um procedimento de questionamento de modelos institucionalizados
do moderno. A essas imagens Benjamin propõe unir o princípio da montagem e da
desmontagem, ou, talvez, pudéssemos dizer ao contrário, da desmontagem para uma
posterior montagem como método construtivo e de ruptura, como ele mesmo diz: “A
primeira etapa consistirá em transpor o princípio de montagem para a história. Isto é: as
grandes construções serão realizadas com elementos mínimos, confeccionados de modo
agudo e cortante” (BENJAMIN apud BOLLE, 2004:92). Esses elementos mínimos são
constituídos por fragmentos recolhidos da experiência e por materiais que parecem
invisíveis ou que foram colocados (propositalmente?) na invisibilidade.
Ao desconstruir o texto urbano a partir desses fragmentos para, posteriormente,
remontá-los, procede-se a uma tradução no sentido referido por Haroldo de Campos, o da
transcriação:
12
MASCARO in http://photos.uol.com.br/materia
13
DERRIDA, Jacques in Jacques Derrida: leer lo ilegible. Entrevista con Carmen González-Marín, Revista de
Occidente, 62-63, 1986, pp. 160-182 disponível em http://www.jacquesderrida.com.ar/textos
14
DERRIDA, Jacques in Carta a un amigo japonés disponível em http://www.jacquesderrida.com.ar/textos
78
15
FAUSTINO, Silvia. Derrida e a linguagem. Texto publicado na Revista Cult, n°117/2007.
79
saber a dónde llevará”16, como uma escritura que está sempre se fazendo, num “processo
labiríntico” que não tem começo nem fim, e cujo percurso se faz vínculo com o espaço
urbano. Para Derrida, “se vive en la escritura... Escribir es un modo de habitar” (ibdem).
16
DERRIDA, Jacques in Carta a un amigo japonés disponível em http://www.jacquesderrida.com.ar/textos
80
Como conseqüência, não podemos mais nos referir apenas a uma mediação sígnica
que ocorre numa relação direta entre corpo e ambiente; podemos falar sobretudo em
mediatização em que os objetos técnicos e/ou tecnológicos suscitam representações
derivadas de sua interferência no processo cognitivo. É o que ocorre com o uso da máquina
fotográfica para o registro da representação da cidade, cujo resultado depende não apenas
do olho do fotógrafo, mas das “virtualidades” do próprio aparelho (FLUSSER, 2002:27).
Neste sentido, as máquinas fotográficas, como todo aparelho (técnico/tecnológico)
funcionam como caixas pretas “que simulam o pensamento humano [...] caixas pretas que
brincam de pensar” (ibidem).
Esse ambiente aproxima-se do que Milton Santos chamou de meio técnico-
científico-informacional em que há interação entre ciência e técnica sob a égide do mercado
que, por sua vez, torna-se global justamente por essa interação. Além disso, Milton Santos
diz que os objetos técnicos tendem a ser ao mesmo tempo técnicos e informacionais já que
“graças à extrema intencionalidade de sua produção e localização, eles já surgem como
informação” (SANTOS, 2006: 238).
Juntamente com a intencionalidade da produção dos objetos está a intencionalidade
da produção espacial que pré-determina seus usos através da atribuição de valores e de sua
especialização funcional. A cidade vista desta forma comunica, em especial, uma
racionalidade técnica que, no caso de São Paulo, bem como dos grandes centros urbanos,
segue uma lógica ditada pelo mercado, por agentes da economia, da cultura, que solicitam
seu crescimento e adequação espacial aos fluxos monetários, de mercadorias, de pessoas,
de signos. Para tanto, a própria arquitetura da cidade segue uma ordenação na criação de
espaços onde muitas vezes não há mais espaço e que decorre de um plano urbano
determinista e a priori que constrói sua semiótica e tenta aplicá-la à cidade, como se
congelar a vida ali existente fosse possível. E não só o espaço, mas o tempo da cidade
segue um ritmo determinado e compassado que se impõe a todos que nela vivem.
O corpo, por sua vez é submetido a essa ordem na medida em que é a
funcionalidade da cidade que permite a utilização dos serviços por ela oferecidos
(transporte, bancos, hospitais, empregos, etc.) e a inserção desse sujeito no sistema global
que movimenta tais fluxos. Estamos ainda no tratamento da cidade como sistema de
observação linear que se processa através de um modelo que se supõe válido para todos
82
igualmente. Milton Santos diz “a cultura de massa é indiferente à ecologia social. Ela
responde afirmativamente à vontade de uniformização e indiferenciação” (SANTOS,
2006:327).
Desta maneira, é necessário deixarmos de considerar a cidade como espaço de
comunicação unilateral e buscarmos entendê-la em sua dinâmica ambiental mediatizada, ou
seja, como palco e agente de um processo global que se dá através de meios comunicativos
e que se estabelece como uma relação de dupla mão entre emissor e receptor. Nessa
perspectiva o receptor é também emissor e interfere no processo de emissão, ou seja, é
possível identificar uma inter-relação entre os sistemas de emissão e de recepção.
Ao se comportar também como emissor, o sujeito dilui o sentido normativo da
cidade e faz uso da imaginação como importante estratégia de modificação e adaptação ao
ambiente, permitindo a emergência de um comportamento auto-organizativo. Isso quer
dizer que o sistema comunicativo da cidade produz estímulos destinados a um receptor
(morador ou não), cujo sistema receptivo se auto-organiza independentemente como
consequência desses estímulos. Cabe ao corpo transformar tais estímulos em informações
produtoras de conhecimento, ou seja, informações capazes de serem operacionalizadas pelo
sistema receptor a fim de promover mudança de comportamento (FERRARA, 2002:16).
No caso das fotografias temáticas, aparentemente, os fotógrafos agiram dentro de
um sistema de observação que não se contamina com os estímulos ambientais, mas que
previamente buscaram modelos de imagens da cidade. Ao contrário, nas fotos atemáticas o
corpo que vê a cidade ao vivenciá-la, observa a si mesmo ao observar o ambiente e, porque
se observa ao observar, é capaz de transcodificar os signos da cidade. A recepção não é
passiva e pré-estabelecida, mas decorre de processos de associação e auto-organização dos
sistemas, já que o ambiente também não fica indiferente ao feedback dado pelo receptor.
Não se trata mais, portanto, da construção do espaço em suas características físicas, mas de
sua produção a partir da experiência sensível.
Produzir o espaço, significa dotá-lo de características que o individualizam e o
qualificam diante de uma aparente homogeneidade pretendida pela racionalidade técnica e
tecnológica decorrentes do processo de globalização. Qualificar o espaço é uma das
características do sistema de ações proposto por Milton Santos como um processo no qual
“o homem, ao mudar as coisas, modifica a si mesmo” (SANTOS, 2006:78). É esse
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neste sentido mais amplo (ecológico), está ligada à transmissão já que supõe a construção
de espacialidades pelo modo como se organiza o material, isto é, “ao organizar é gerado,
não só o próprio significado do material, mas sobreturdo o modo de construir a
comunicação de um tema, mensagem ou referente, ou seja, comunica-se, através do modo
como se transmite” (FERRARA, 2007:31).
A idéia de transmissão liga-se ao conceito de fabulação na medida em ambos
configuram-se como formas do corpo habitar a cidade e apropriar-se dela de maneira que
esse espaço seja ativador da construção de conhecimento, bem como, sirva como corpus
transmissor desses valores e experiências.
Seguindo este raciocínio, podemos entender que não há a cidade, mas as cidades,
com suas espacialidades e temporalidades próprias e únicas. A fabulação existe, portanto,
como possibilidade de produção do lugar que se encontra nas fissuras entre a imagem e a
imaginação, entre o visível e o invisível, na comunicação como transmissão.
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Revistas
Revista Cult n°117 ano 10/2007
Catálogo Prêmio Porto Seguro de Fotografia 2007
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