Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Resumo: Este trabalho procura compreender a socialização, no que tango às relações étnicas
estabelecidas no espaço da pré-escola e no espaço familiar. A fim de desenvolver a análise
desejada, foi realizada uma pesquisa de campo de maneira a, através da observação sistemática
do cotidiano escolar, aprender como são estabelecidas as relações interpessoais entre professores
e alunos. Além disso, foram realizadas entrevistas com o corpo docente, com as crianças e seus
familiares, buscando compreender como percebem, entendem e elaboram a formação multi-
étnica da sociedade brasileira. Verificou-se a predominância do silêncio nas situações que
envolvem racismo, preconceito e discriminação étnicos , o que permite supor quc a criança
negra, desde a educação infantil, está sendo socializada para a submissão.
* Este trabalho consiste em uma síntese de alguns aspectos da minha dissertação de mestrado, intitulada: “Do silêncio do lar ao
silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil”, defendida na FE/USP, em 1998, sob a orientação
da Profa. Dra. Jerusa Vieira Gomes.
1 Pedagoga, Mestre e Doutoranda em Educação pela FE/USP. End.: R. Augusta, 1.044 - apto. 21 - Cerqueira César - 01304-001
São Paulo - SP. E-mail: afrobras@usp.br
2 Optamos pela grafia “negro” em razão de sua utilização histórica. As denominações utilizadas pelo instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) - preto, pardo, branco e amarelo - não contemplam a perspectiva de análise desta pesquisa.
Consideramos “negros” os “pretos e pardos”, segundo as definições do IBGE.
3 A partir de dados extraídos das PNAD, ROSEMBERG (1987) constatou que, no Brasil, o alunado negro, em comparação ao
alunado branco, apresenta um índice maior de exclusão e reprovação escolar. O índice de reprovação na 1ª série do primeiro
grau, por exemplo, é 12% maior entre as crianças negras. Muitos outros trabalhos também evidenciam o fato de o sistema
formal de educação ser desprovido de elementos propíciois à identificação positiva de alunos negros com o sistema escolar.
Outros estudos demonstram a necessidade de uma ação pedagógica de combate ao racismo e aos seus desdobramentos, tais
como preconceito e discriminação étnicos. Para uma melhor compreensão sobre este problema consultar: PINTO, 1987; CUNHA,
1992; OLIVEIRA, 1992 e etc.
– 39 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, 9(2), 33-45, 1999 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, 12(2), 1999
relação interpessoal entre os adultos e adultos/ sua introdução na sociedade. Como afirma GO-
crianças. Esses trabalhos não sinalizam, porém, a MES (1990), haveria uma:
existência de discriminação entre as crianças “(...) imperiosidade de analisar os três ân-
(OLIVEIRA, 1994; GODOY, 1996). gulos da questão: o mundo social imediato a ser
A compreensão da dinâmica das relações interiorizado pela criança; a família que, além de
multi-étnicas no âmbito da educação infantil repre- ser mediadora, tem especificidades que a distin-
senta, um recurso de avanço no combate ao racismo guem de qualquer outra; a criança que, sujeito da
brasileiro, e às desigualdades predominantes na so- aprendizagem soeial, interiorizará o mundo me-
ciedade. O entendimento desta questão no cotidia- diado a partir de suas próprias idiossincrasias e
no da educação é condição sine qua non para se de maneira singular e solitária” (GOMES, 1990,
arquitetar um projeto novo de educação que possi- p. 59).
bilite a inserção social e o desenvolvimento iguali- Não se concebe um desenvolvimento pro-
tário dos indivíduos. Tal falo contribuiria para de- porcionado exclusivamente pela educação formal,
senvolver nas pessoas um pensamento menos como também não se entende esse desenvolvi-
comprometido com a visão dicotômica de inferiori- mento sendo realizado unicamente pelo grupo
dade/superioridade dos grupos étnicos. A possibili- familiar. Afinal, juntas, escola e família são res-
dade de as crianças receberem uma educação igua- ponsáveis pela formação do indivíduo. Não se
litária, desde os primeiros anos escolares, representa pode valorizar a escola em oposição à educação
um dever de toda a sociedade, pois as crianças des- familiar e vice-versa. Em ambos espaços, o con-
sa faixa etária ainda são desprovidas de autonomia tato com outras crianças de mesma idade, com
para aceitar ou negar o aprendizado proporcionado outros adultos não pertencentes ao grupo fami-
pelos mediadores, tornando-se vítimas indefesas dos liar, com outros objetos de conhecimento vai pos-
preconceitos e estereótipos difundidos no dia-a-dia. sibilitar outros modos de leitura do mundo. Toda
essa nova experiência pode ser muito positiva para
o desenvolvimento da criança.
OS CAMINHOS DA SOCIALIZA ÇÃO As instituições de Educação Infantil orga-
nizam e formalizam uma aprendizagem que já se
O processo de socialização é compreendi- iniciou na família e que vai ter continuidade nas
do como fundamental para o desenvolvimento suas experiências com a sociedade. Assim, não só
humano. O conceito é utilizado neste estudo nos a família se torna responsável pela aprendizagem
termos em que o definiram BERGER & da vida social, embora represente, inicialmente, o
LUCKMAN, 1976. A socialização torna possível elo mais forte que liga a criança ao mundo. “Ao
à criança a compreensão do mundo, por meio das final do processo de socialização a criança não só
experiências vividas, ocorrendo paulatinamente domina o mundo social circundante, como já in-
a necessária interiorização das regras afirmadas corporou os papéis sociais básicos – seus e de ou-
pela sociedade. Nesse início de vida a família e a tros, presentes e futuros mas, acima de tudo, já ad-
escola serão os mediadores primordiais, apresen- quiriu as características fundamentais de sua
tando/significando o mundo social. As idiossin- personalidade e identidade” (GOMES, 1990, p. 60).
crasias estarão determinando as diferenças pes- Nurna sociedade como a brasileira, na qual
soais, pois esse processo não é simplesmente predomina uma visão preconceituosa, historica-
ensinado: a criança mostra-se um parceiro ativo, mente construída a respeito do negro e, em con-
podendo procurar novas informações em outros trapartida, a identificação positiva do branco, a
lugares. Deste modo, as atitudes e comportamen- identidade estruturada durante o processo de so-
tos sociais não serão obrigatoriamente cópias fiéis cialização terá por base a precariedade de mode-
das atitudes e comportamentos de seus mediado- los satisfatórios e a abundância de estereótipos
res. Dizer isto não significa, porém, diminuir o negativos sobre negros. Isso leva a supor que uma
papel dos mediadores, nem desconsiderar o fato imagem desvalorativa de negros, bem como a
de as crianças se identificarem com os seus fami- valorativa de indivíduos brancos, possa ser
liares: pais, irmãos mais velhos e outros adultos. inferiorizada, no decorrer da formação dos indi-
Elas podem, inconscienternente, copiar a condu- víduos, por intermédio dos processos socializa-
ta do adulto como elas vêem o adulto atuando à dores. Desse modo, cada indivíduo socializado
sua volta. em nossa sociedade poderá internalizar represen-
Assim, esse processo na primeira infância tações preconceituosas a respeito do grupo sem
implica conhecer as atitudes e os comportamen- se dar conta disso, ou até mesmo se dando conta
tos dos familiares, adultos e jovens, mas também por acreditar ser o mais correto.
ao conjunto de normas, regras e crenças pratica- Diante das idéias expostas, torna-se impor-
dos e valorizados pelo grupo, que possibilitarão a tante o conhecimento sobre a qualidade do pro-
– 40 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, 9(2), 33-45, 1999 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, 12(2), 1999
cesso de socialização vivenciado pelas crianças c) Prática pedagógica das professoras, se positi-
em seu grupo familiar e nas escolas por elas fre- va, negativa ou invisível, no que diz respeito aos
qüentadas, para que se possa responder às seguin- materiais utilizados (cartazes, livros, revistas, de-
tes indagações: Em que medida a socialização, senhos ou outro meio qualquer) em relação à va-
promovida atualmente nas escolas e nos lares, riedade étnica brasileira.
contribui para a construção de uma sociedade Essa observação sistemática, realizada no
democrática, livre de desigualdades tão gritantes período de 8 meses, semanalmente, em três salas
entre negros e brancos? Qual tipo de cidadão está de aula, possibilitou o estudo de: a) alguns proce-
sendo formado nas escolas e nas famílias? dimentos de crianças e adultos diante da diversi-
dade étnica; b) os valores atribuídos pelo profis-
sional de educação à sua clientela; os valores
O CONTEXTO DA PESQUISA atribuidos pelas crianças aos seus pares; c) e, de
ambas as partes, atitudes e práticas que evidencias-
A pesquisa que serviu de base ao presente sem a presença de discriminação e preconceito na
artigo foi projetada tendo em vista o acompanha- pré-escola. Em uma segunda etapa, foram entre-
mento do indivíduo no convívio social, em suas vistados profissionais da escola, alunos e seus fa-
relações multi-étnicas no espaço pré-escolar e no miliares. Nas entrevistas, a preocupação básica foi
espaço familiar. Foram construídas as seguintes levantar os efeitos das relações multi-étnicas, na
hipóteses: a) O educador da pré-escola brasileira sociedade brasileira e na vida dos entrevistados.
apresenta dificuldades para perceber os proble- Assim, os depoimentos possibilitaram compreen-
mas que podem aparecer nas relações entre crian- der um pouco mais a socialização das crianças no
ças pertencentes a diferentes grupos étnicos; que tange ao fator étnico. A união das duas etapas,
b) As crianças em idade pré-escolar já inferiorizam ampliou a compreensão do processo de socializa-
idéias preconceituosas que incluem a cor da pele ção desenvolvido na educação infantil.
como elemento definidor de qualidades pessoais;
c) O silêncio do professor, no que se refere à di-
versidade étnica e as suas diferenças, facilita o CONVIVÊNCIA MlULTI-ÉTNICA NA
desenvolvimento do preconceito e a ocorrência ESCOLA: UMA REALIDADE ESQUECIDA?
de discriminação no espaço escolar.
A partir dessas hipóteses, interessava ob- Um olhar sobre o cotidiano escolar dá
servar adultos e crianças interagindo na situação margem à compreensão de uma relação harmo-
escolar; importava presenciar e assistir à interven- niosa entre adultos e crianças; negros, brancos:
ção das professoras4, caso houvesse alguma, du- todos, aparentemente, usufruindo das mesmas
rante e após os ocorrências conflituosas. Para isso, oportunidades. A escola representaria, assim, um
foi tomada como principal fonte de coleta de da- espaço positivo que respeitaria as crianças, pos-
dos a observação sistemática de elementos parti- sibilitando-lhes um desenvolvimento sádio. Essa
cipantes do pré-escolar cotidiano – corpo docen- mesma percepção tem as profissionais que lá se
te, discente e demais funcionários. O roteiro que encontram. Para todas, o cotidiano da educação
norteou toda a coleta de dados pautava-se princi- infantil é um espaço que proporciona um desen-
palmente na observação da relação professor/alu- volvimento igualitário às crianças.
no, aluno/professor e aluno/aluno. Desses rela- Entretanto, não são encontrados no espa-
cionamentos foram selecionados aspectos ço de circulação das crianças cartazes ou livros
importantes como por exemplo: a) Expressão ver- infantis que expressem a existência de crianças
bal, falas positivamente valorativas (elogiosas) ou não-brancas na sociedade brasileira. Nesse espa-
negativamente valorativas (depreciativas) – explí- ço, também não há falas que apontem para a per-
cita ou implícita – sobre algum indivíduo, sobre cepção da existência da diversidade étnica no es-
sua cultura ou sobre o grupo étnico; b) Prática paço escolar, e nem na sociedade.
não verbal – Atitudes que demonstrassem a acei- Contudo as professoras baseiam-se na cor
tação ou rejeição do contato físico proposto pelas da pele de seus alunos para diferenciá-los: “a
crianças e seus professores – através de abraço, moreninha”, “a branquinha”, “aquela de cor”, “a
beijo, carinho ou olhar e comportamentos que japonesinha”. Essa diferenciação, constantemen-
evidenciassem afeição ou ainda as tentativas de te empregada pelas professoras, não representa-
aproximação ou afastamento entre os indivíduos; ria, a meu ver, um problema se não vigorasse, no
4 No decorrer da análise será utilizada a palavra no feminino, devido ao fato de haver somente mulheres trabalhando na referida
escola.
– 41 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, 9(2), 33-45, 1999 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, 12(2), 1999
país, uma hierarquia étnica. De todo modo, cabe formam a plena aceitação de todos por todos em
considerar que esses comentários feitos na pre- momentos de tensão e conflitos. Mas para as pro-
sença das crianças podem ser por elas fessoras, o que há é criança com problemas fami-
inferiorizados, sem o acompanhamento crítico dos liares, o que interfere na escola, tornando-as, quase
adultos à sua volta, visto que nada é falado sobre sempre, agressivas. Para algumas professoras, as
essa questão. crianças reproduzem na escola o modelo das re-
Mesmo assim, a escola de educação infan- lações predominantes em suas fanílias, assim o
til é idealizada como um espaço neutro: o espaço preconceito é algo que vem de casa.
de convivência ideal e livre de preconceitos. As No que concerne a existência do racismo e
crianças são, para as professoras, indivíduos dis- seus derivados na sociedade, ocorreu uma con-
tantes do preconceito étnico, já que não se perce- tradição. A maioria das professoras pareceu
be nas suas atitudes diárias indícios que denun- percebê-los, porém os efeitos prejudiciais às víti-
ciem a interiorização da discriminação e do mas e a existência desses dentro da escola foram
preconceito étnico. negados enfaticamente.
Entretanto, a resposta de uma menina de Entre esse emaranhado de idéias conflituo-
seis anos à minha pergunta (“As crianças brin- sas sobre o racismo brasileiro e as relações multi-
cam com você?”) contradiz a fala das professoras étnicas estabelecidas no cotidiano da educação
e mostra-nos que, em idade pré-escolar, é possí- infantil, o racismo revelou-se de forma primária e
vel perceber diferenças de tratamento e associá- estereótipada na concepção das professoras. A
las a origem étnica. repulsa ao cheiro dos negros apareceu como uma
“(...) só quando eu trago brinquedo. Por- justificativa para a existência do racismo. Ou seja,
que eu sou preta. A Catarina branca um dia fa- “o mau cheiro” do negro apareceu como o grande
lou: ‘Eu não vou ser tia dela (da própria criança causador do racismo. Assim:
que está narrando) ‘A gente estava brincando d e “(...) o preconceito de raça, se você pensar
mamãe. A Camila que é branca não tem nojo de bem, geralmente é em matéria de cheiro. Uma
mim.” (E as outras crianças têm nojo de você?) pessoa que é negra, a pele, a melanina faz com
“Têm.” que o cheiro fique mais forte. Hoje em dia, esse
O modo das professoras conceberem o co- preconceito de cheiro já melhorou muito com os
tidiano escolar e as relações interpessoais nele produtos modernos das nossas indústrias – os de-
estabelecidas dificulta a percepção dos conflitos sodorantes, as minâncoras da vida (pomadas). Es-
e, inclusive, a realização de um trabalho sistemá- tes tipos de anti-transpirantes fazem com que não
tico que propicie o entendimento da diversidade exista o cheiro. Não havendo o cheiro, não existe
humana. Visto que para as professoras, as crian- o porquê de o branco não conversar com o preto
ças nessa faixa de idade não “percebem” as dife- e vice-versa.”
renças étnicas e, se as “percebem”, não se “im- A professora entrevistada destacou a ques-
portam com elas”. Soma-se a isso a idéia de que tão do cheiro e classificou o indivíduo negro como
tratar desse tema é algo desnecessário e “cansati- possuidor de um cheiro desagradável. Para ela é
vo”, como mostra o exemplo: “natural” o mau cheiro do negro, associando-o à
“Eu sempre falo da história do negro. Mas sujeira. O cheiro assume, no discurso, a totalida-
só em relação à data comemorativa. (...) A gente de do individuo, o que representa uma caracterís-
aproveita para lidar com as datas comemorati- tica do estereótipo que se torna uma verdade ab-
vas, por exemplo, Dia da Abolição. Ao invés de soluta, inquestionável.
trabalhar, necessariamente, o negro, a lei Áurea, Torna-se, então, impossível não se ques-
aquela coisa toda, a gente vai no dia das raças tionar em qual categoria estariam inseridas as
(...) Senão, fica uma coisa muito cansativa.” (pro- crianças negras com as quais a professora se rela-
fessora branca) ciona no seu dia-a-dia? Qual o tipo de relação que
Nesse caminhar, pouco valor é atribuído à ela estabelece com essas crianças? E diante dis-
presença da criança negra na escola, fator que so, o que podem as crianças negras e brancas com-
pode levá-la a se reconhecer como participante preender sobre si próprias e sobre as outras?
de um grupo inferior e a entender, posteriormen- Contraditoriamente, as professoras ao re-
te, que o pertencimento a este grupo lhe é desfa- latarem os conflitos do dia-a-dia, destacaram si-
vorável. Tal situação também pode levar a crian- tuações que sinalizam a existência do problema
ça branca a se reconhecer participante de um grupo étnico: segundo as professoras, é comum e cons-
racial superior, de forma equivocada. tante uma criança referir-se a outra por meio de
Diante desse ambiente que ignora a pre- rótulos, tais como: “negrinho feio”, “negrinho
sença da criança negra, a harmonia sai de cena, nojento”, “pretinha suja”. Diante destes estereó-
cedendo espaço para acontecimentos que trans- tipos, as crianças negras são recusadas para for-
– 42 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, 9(2), 33-45, 1999 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, 12(2), 1999
marem par nas filas, nas brincadeiras, nas festas forma trágica e desumana. Algumas situações per-
juninas. mitem concluir que é demasiado preocupante o
No que diz respeito ao comportamento do modo como as crianças negras são mencionadas
professor em relação a esses conflitos, o depoi- no cotidiano da escola. O episódio abaixo parece
mento de uma menina negra é bastante elucidati- exemplar:
vo. Segundo ela, as crianças a xingam: No parque, duas turmas (Fase I e III) brin-
“(...) de preta que não toma banho. Só por- cavam juntas. A professora da fase I encontrou
que eu sou preta elas falam que eu não tomo ba- uma trança de “canecalon”. Ela se dirigiu à outra
nho. Ficam me xingando de preta cor de carvão. professora que tem em sua turma duas alunas que
Elas me xingaram de preta fedida. Eu contei para usam cabelos desse estilo, e lhe disse: “As suas
a professora e ela não fez nada.” alunas estão perdendo os cabelos! Ou será que
A ausência de atitude por parte da profes- tem alguém arrancando? Já pensou, deve doer
sora sinalizou para a menina que ela não poderia bastante porque é grudado no cabelo delas. Guar-
contar com a cooperação de sua professora, visto da para as mães colocarem no lugar.” A professo-
que ela nada fez. ra pegou a trança e ambas riram da situação. As
Entre os espaços existentes na escola, o par- crianças à sua volta presenciaram toda a cena.
que representou o espaço no qual foi possível pre- Entendo que esse tipo de situação pode
senciar situações concretas de preconceito e dis- decorrer do modo desagradável com o qual algu-
criminação entre as crianças. O parque é o local na mas professoras se referem livremente aos seus
escola onde as crianças têm a liberdade de esco- alunos negros. Essa forma de agir, até mesmo na
lher seus parceiros e decidir quanto tempo perma- presença das crianças, pode levá-las a entender
necerão brincando com eles. Distantes da profes- que também podem reproduzir tais atitudes, visto
sora, elas podem dizer o que bem entendem. que suas professoras o fazem.
Situações conflituosas ocorreram nesse Também no parque observei diversas situa-
espaço nos momentos em que algo era disputado: ções de tratamento irônico em relação às crianças
poder, espaço físico ou companhia. Tais conflitos negras. Certa feita estava muito próxima das duas
demonstram que o preconceito e a discriminação professoras e de diversas crianças. Perguntei para
ocorrem naturalmente nos momentos em que uma uma professora sobre dois irmãos gêmeos. “Os
criança deseja vencer uma outra que faz parte do meninos gêmeos são seus alunos?” A professora
grupo. Assim, nos momentos de disputa, o pre- respondeu: “Ah, os filhotes de São Benedito?”
conceito e a discriminação apareceram como uma Perguntei-lhe: “Por que filhotes de São Benedito?”.
poderosa arma capaz de paralisar sua vítima. Nes- Ela respondeu: “Dois negrinhos, assim desse ta-
sas situações constatou-se que as crianças expres- manho?.” Depois de ter falado desse modo, ela
savam com bastante tranqüilidade comentários de- procurou disfarçar o seu comentário e terminou
preciativos a respeito das crianças negras. E, falando mal do comportamento dos gêmeos.
diante do preconceito e da discriminação, as crian- Mas em sua entrevista, a professora fez
ças negras permaneceram caladas, optando por uma referência semelhante. Ela disse que chama-
se dirigir a outro grupo, ou brincar sozinhas em va dois de seus alunos negros de: “(...) filhote de
seu canto, como se nada tivesse acontecido. Se- São Benedito, porque eles eram o cão em forma
gundo penso, a inação por parte da criança negra de gente. Eles atormentaram o ano inteiro.”
revela um misto de medo, dor, impotência que a A ideologia, ao promover o estereótipo,
impede de se defender. leva o sujeito estereotipado a internalizar sua ima-
O silêncio permanente das professoras a gem negativa, idealizada com o objetivo de
respeito das diferenças étnicas no espaço escolar, inferiorizá-lo e oprimí-lo (SILVA, 1995).
somado ao silêncio das crianças negras sobre a Porém, para a professora, o seu modo de
ocorrência de conflitos, parece conferir às crian- adjetivar pejorativamente as crianças representa
ças brancas o direito de repetir seus comporta- um tratamento normal. Em momento algum ela
mentos, pois elas não são criticadas ou denuncia- parece compreender que pode estar ferindo a
das, podendo utilizar essa estratégia como trunfo criança e determinando a sua identidade. Simples-
em qualquer situação de conflito. mente ela não questiona o significado que suas
“metáforas” podem ter para as crianças que as
ouvem.
NATURALlZANDO AS DESIGUALDADES Quando, durante a entrevista, eu perguntei
DE TRATAMENTO NA ESCOLA o que ela achava que sentiam as crianças que a
ouviam, ela respondeu:
Embora a escola esteja cheia de ironias, “Nada, não, porque eu os chamo de ‘filho-
em muitos momentos essa ironia apresenta-se de tes de São Benedito’, eu falo: ‘Ah seu filho da
– 43 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, 9(2), 33-45, 1999 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, 12(2), 1999
puta, safado, porque você aprontou. Não me en- eu disse para ela (à professora) que eu não queria
cha o saco! ‘ Nessa hora eles sabem que eu estou ser preta, eu queria ser como a Angélica5. Ela é
muito furiosa, se eu pudesse eu dava um tapa na bonita!”.
bunda. Então, o que eu falar não tem outra cono- Assim, foi possível reconhecer um desejo
tação, exceto a de que eu estou muito “pê...” (...) de mudança do próprio corpo, um sentimento de
Outra coisa é outra coisa. Mas, naquela hora, ela recusa ao seu grupo étnico e o desejo de perten-
entende profundamente o que eu estou falando.” cer ao grupo branco, indicando um sentimento de
Porém, isso não garante dizer que as crian- vergonha de ser do jeito que se é – negro.
ças não recebam seus comentários de forma negati-
va. Esses comentários são prejudiciais à formação
da identidade de qualquer criança. Dissimulações, PRECONCEITO:
piadas, ironias encobrem um preconceito latente e UM PROBLEMA LATENTE
favorecem a cristalização de idéias preconceituosas.
O depoimento acima, também, revela o modo per- A familiaridade com a dinâmica da escola
verso pelo qual as crianças podem ser tratadas no permitiu perceber a existência de um tratamento
espaço escolar por seus professores. diferenciado e mais afetivo dirigido às crianças
Há ainda, outros fatos que chamaram a mi- brancas. Isso foi bastante perceptível quando ana-
nha atenção, levando-me a conceber o professor lisado o comportamento não-verbal que ocorreu
como aquele que, de forma constante, difunde a nas interações professor/aluno branco, caracteri-
desvalorização das características estéticas das zadas pelo natural contato físico acompanhado de
crianças negras. Diversas vezes presenciei comen- beijos, de abraços e de toques.
tários das professoras que, peso, repercutiram Isso foi bastante visível no horário da saí-
negativamente na auto-estima das crianças, ex- da, quando os pais começavam a chegar para pe-
pondo-as à humilhação. gar seus filhos. Observando o término de um dia
Constantemente, é comum observarmos no de aula, foi possível contabilizar um número três
cotidiano escolar, que as professoras procuram vezes maior de crianças brancas sendo beijadas
manter preso os cabelos de suas alunas. Para isso, pelas professoras em comparação às crianças ne-
as professoras se dirigem às suas alunas, assim: gras: dez crianças brancas para três negras6.
“Você precisa falar para a sua mãe prender o seu Também durante as atividades, foi possí-
cabelo. Olha só que coisa armada “ Ou ainda: vel constatar a existência de um tratamento mais
“Quem mandou você soltar esse cabelo? Não pode afetivo em prol da criança branca. Desse modo,
deixar solto desse jeito. Por que soltou? Ele é mui- na relação com o aluno branco as professoras acei-
to grande e muito armado! Precisa ficar preso!” taram o contato físico através de abraço, beijo ou
Ao presenciar essas situações, nas quais a olhar, evidenciando um maior grau de afeto.
obrigação de manter preso o cabelo crespo foi im- O contato físico demostrou ser mais escas-
posta às meninas negras, imaginei como essa idéia so na relação professor/aluno negro. As professo-
estaria sendo assimilada pelas crianças. Entendo ras ao se aproximarem das crianças negras manti-
que, de alguma maneira, essas experiências pode- nham, geralmente, uma distância que inviabilizava
riam contribuir para a cristalização de uma forma o contato físico. É visível a discrepância de trata-
de pensar as características estéticas da criança mento que a professora dispensa à criança negra,
negra. Tal hipótese se confirmou dias depois. Que- quando a comparamos com a criança branca.
ria saber o nome de uma menina e perguntei a uma Situações como essas induzem a pensar que
criança negra, que disse: “Qual? Aquela com as crianças brancas, as professoras manifes-
descabelada?” Aproveitando-me dessa fala, pergun- tam maior afetividade, são mais atenciosas e aca-
tei a ela quem mais eram as meninas descabeladas, bam até mesmo por incentivá-las mais do que às
e ela apontou quatro meninas negras. negras. Assim, podemos supor que, na relação pro-
Esses acontecimentos representam apenas fessor/aluno, as crianças brancas recebem mais
um detalhe do cotidiano pré-escolar, porém são oportunidades de se sentirem aceitas e queridas
reveladores de uma prática que pode prejudicar do que as demais.
severamente crianças negras. Também repetia-se muito o convite das
Assim, o modelo de beleza branca poderia professoras às suas alunas brancas: “Ai, que me-
estar se tornando desejável, passando, então, às nina mais linda, quer ser minha filha? Daí você ia
crianças não brancas a admirar e desejar para si morar na minha casa.”
esta estética. A menina Denise (negra) fala-me Nota-se estar implícita, nesses comentários
sobre o fato de não mais querer ser “preta”: “E, das professoras, não a necessidade de as crianças
5 A menina se refere à apresentadora da Rede Globo.
– 44 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, 9(2), 33-45, 1999 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, 12(2), 1999
brancas receberem um novo lar, mas sim a possi- 2° grupo - Elogio à tarefa:
bilidade de o receberem, ou de pelo menos, no a) “Está bonita a sua lição!”.
campo afetivo, já o terem. Faz-se necessário mos- b) “Isso. Está certo!”;
trar que a atenção, o carinho e o afeto são distri- c) “Deixe-me ver a sua lição! Está bonita!”.
buídos de maneira desigual, e a categoria étnica
regula o critério de distribuição. Situações como essas sinalizam diferentes
Assim, nessa distribuição desigual de formas de avaliar as crianças em suas atividades,
afetos, o professor convidava para morar em tudo realizado de modo muito sutil. Porém, a aná-
sua casa sempre o mesmo tipo de criança, como lise dos dados mostra que a criança negra vive
que seguindo um modelo estético de aceitação. uma incessante busca de “vir a ser “ elogiada de
Portanto, reproduz a valorização étnica predo- forma mais profunda, ou seja, deseja receber elo-
minante na vida social. E o faz sem se importar gios para si, deseja ouvir que ela, é maravilhosa,
com as crianças à sua volta. Pode-se, então, inteligente, sábia, tanto quanto foi dito às outras
imaginar o sofrimento de uma criança branca crianças. Assim, o objeto do elogio não seria a
ao não ser convidada, ela própria, para morar lição ou qualquer outra atividade e sim ela pró-
com a professora. Pode-se, também, pensar no pria, o que constitui um dado significativo para
sofrimento de uma criança negra, não somente sua auto-estima. Compreendo ser diferente um
por não receber ela própria o convite, mas tam- elogio que valorize a pessoa, de um que valorize
bém por nunca assistir a essa mesma cena sen- apenas a atividade por ela realizada.
do protagonizada por criança negra. Essas ati- Julgando a ação das professoras diante das
tudes das professoras podem diminuir a crianças, tem-se a evidência de que os tratamen-
possibilidade de as crianças negras se sentirem tos são diferenciados e que estas diferenciações
queridas por elas. são percebidas pelas próprias crianças. Nesse sen-
Constata-se, porém, que o toque físico é tido, pode-se afirmar que as crianças brancas são
bastante freqüente na relação aluno/aluno, como privilegiadas na relação professor/aluno, pois con-
também são mais freqüentes as propostas de con- seguem, com mais freqüência, identificar-se po-
tato físico entre crianças negras e brancas e vice- sitivamente com as professoras. Por outro lado,
versa. esse processo pode resultar na falta de identifica-
Esse fato leva à compreensão de que não ção por parte das demais crianças presentes na
há uma rigidez de atitudes por parte das crianças, sala de aula.
mesmo considerando que elas já interiorizaram
um sentimento preconceituoso. Este fato não as
impede de propor e permitir o contato físico entre FAMÍLIA, SOCIEDADE E RELAÇÕES
si, resultando, como os exemplos demonstraram, ÉTNICAS
em uma troca de carinho e em momentos de con-
vivência pacífica. Os depoimentos dos familiares revelaram
muito sobre a percepção das desigualdades na
sociedade brasileira. Os depoimentos dos indiví-
duos negros, ao mesmo tempo em que revelam a
UMA SUTIL DIFERENÇA ENTRE O “SER visão de mundo, os conceitos e a forma predomi-
BOM” E O “ESTAR BOM” nante de relações sociais de cada um deles, reve-
lam, também, que essas experiências são criva-
Por trás da premissa “todos somos iguais”, das pelo fator étnico. Em contrapartida, os
largamente propagada pelas professoras, detecta- depoimentos dos indivíduos brancos pouco reve-
se uma tênue diferença nos elogios recebidos pe- lam acerca da percepção e incidência do precon-
las crianças, quando eram avaliadas suas ativida- ceito e da discriminação em suas vidas.
des. Os elogios tecidos pelas professoras podem Observa-se, então, que existe uma diferen-
ser divididos em dois grupos, a saber: ça bastante acentuada entre os depoimentos dos
integrantes do grupo negro e os depoimentos dos
1° grupo - Elogio à criança: integrantes do grupo branco. Para os negros o re-
a) “Você é maravilhosa. Parabéns!”. conhecimento do preconceito se dá de modo con-
b) “Você é muito inteligente!”. creto, e os prejuízos podem ser contabilizados,
c) “Está bonito, menino sabido!”. como demonstrou uma mulher negra:
6 Observação realizada em Junho de 1997. Havia na sala 22 crianças, sendo 10 negras e 12 brancas.
– 45 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, 9(2), 33-45, 1999 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, 12(2), 1999
“Nós éramos todas amigas da mesma ida- faixa etária, já possuem conhecimentos que re-
de. Às vezes elas estavam conversando, só entre metem à situação da discriminação.
elas brancas, eu chegava, elas falavam: ‘Eu não Assim, partindo dessa premissa, os familia-
chamei você, preta, só tem branca na rodinha. res demonstraram perceber a necessidade de se
Não tem preta!” conversar sobre o preconceito e sobre as diferen-
Assim, os indivíduos negros vão relem- ças étnicas com as crianças. A maioria desses fa-
brando suas experiências e os prejuízos com o miliares acredita que uma preparação para a con-
preconceito na sociedade brasileira. Os episódios vivência com a diversidade étnica seja favorável.
cotidianos mostraram-se permeados de situações Nas famílias negras tal conhecimento apareceu
conflituosas que marcam profundamente cada um. como uma forma de a criança receber referências
Os negros percebem claramente a desigualdade positivas e fortalecer sua autoestima. Para a maio-
de direitos e as diferenças derivadas da condição ria deles, a família deveria preparar a criança, con-
étnica quando se candidatam a um emprego. Para versando efetivamente sobre a questão étnica, des-
esses, a experiência escolar também parece repleta de pequena, ao redor dos seis anos de idade.
de acontecimentos prejudiciais, o que dificulta a Quanto a quem cabe conversar sobre pre-
aquisição de uma identidade positiva, ao mesmo conceito com a criança, não houve uma única in-
tempo que lhes confere o lugar daquele que não é dicação. Assim, ora a família aparecia como aque-
bem vindo e aceito no grupo. Como narrou uma la que deve desempenhar esse papel, ora esse
mãe negra ao afirmar que: papel era transferido para a escola.
“O professor mandou a prova para a minha Talvez a transferência da responsabilidade
amiga, em casa. E para mim não. Porque eu era para a escola possa resultar da compreensão que
negra. E ele me detestava. Ele me reprovou. Eu co- os pais têm do papel desta instituição como edu-
mecei a me prejudicar, porque eu sabia que tinha cadora formal de cidadãos, além da dificuldade e
acontecido isso por causa do racismo. (...) eu co- do incômodo em se falar sobre esse assunto. É
mecei a ficar retraida, com vergonha de ser negra.” interessante notar o modo como os integrantes do
Desse modo, percebe-se que são inúmeras grupo familiar vêem a escola de seus filhos. Para
as dificuldades derivadas da cor da pele. O pre- eles, a escola possui mais aspectos positivos, o
conceito cria impedimentos para o exercício da que lhes dá a certeza de a criança estar sendo bem
cidadania. Diante da sua existência, cada um vai acolhida pelos profissionais que nela trabalham.
vivendo da melhor forma que é possível viver. Para as famílias negras, já não há um con-
Uma entrevistada negra apontou a existên- senso sobre a escola. Há quem se sinta acolhido.
cia de um tratamento diferenciado para as mães Se, por um lado, ela pode ser vista com bons olhos
brancas na escola de sua irmã. Ela atribui à cor de e transmitir um sentimento de acolhimento, por
sua pele o mal atendimento dispensado a ela pela outro, dá margem para que Ihe teçam críticas quan-
professora de sua irmã. to ao seu modo de atender e avaliar as crianças.
Entretanto, bem diferente é a percepção que Ainda no que se refere ao cotidiano esco-
as famílias brancas têm do problema étnico no lar, quer as famílias negras quer as famílias bran-
Brasil. O branco apenas vê o preconceito e não cas não percebem a existência de tratamentos di-
sofre, diretamente, as conseqüências dele. ferenciados. Todos sentem que suas crianças são
Os depoimentos deixaram transparecer a tratadas de forma igual por parte das profissio-
dificuldade das entrevistadas em classificar as nais da escola.
crianças amigas de seus filhos como negras. Sem No ambiente familiar as diferenças étnicas
dúvida, as entrevistadas, apontaram para a exis- ganham diversas explicações dos adultos, que, dian-
tência do preconceito na sociedade atual. Entre- te da percepção das crianças tentam, na medida do
tanto, percebe-se que a temática étnica é camu- possível, responder às suas interrogações. Porém,
flada até mesmo no cotidiano familiar. Dessa muitas vezes, as informações são passadas junta-
maneira, a criança não é educada para respeitar e mente com os preconceitos e estereótipos adquiri-
conviver com as diferenças, sobretudo com as dos pelos adultos em sua trajetória de vida:
diferenças étnicas. As falas expressam uma certa Apesar da visão limitada que os pais têm
insegurança e até mesmo uma falta de questiona- sobre a responsabilidade da escola na discussão
mento anterior sobre preconceito e discriminação. da diversidade étnica, Sueli demonstrou grande
Assim, os informantes demonstraram que percepção das possibilidades de o espaço escolar
a socialização das crianças é realizada levando ser um centro de debate e valorização da cidada-
pouco em conta a questão multi-étnica existente nia dos negros. A base do raciocínio desenvolvi-
na sociedade brasileira e as implicações dela de- do por ela aponta a disseminação de informações
correntes. É marcante o fato de os integrantes das sobre o negro como a melhor estratégia para se
famílias compreenderem que as crianças, nessa combater o preconceito.
– 46 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, 9(2), 33-45, 1999 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, 12(2), 1999
Nas falas das entrevistados, temos a revela- des, como as citadas ao longo do trabalho, ma-
ção do silêncio da criança negra posteriormente à goam e marcam, provavelmente, a criança pela
situação de preconceito. Constata-se, assim, que vida afora.
algumas das crianças negras que passaram por con- A linguagem não-verbal, realizada também
flitos étnicos no cotidiano escolar não levaram o no espaço escolar, expressa por meio de compor-
problema para o lar, para os seus familiares. tamentos sociais, atitudes e disposições, transmi-
O fato de as crianças não comentarem com te valores marcadamente preconceituosos e dis-
seus familiares sobre os conflitos na escola pode criminatórios, desfavorecendo o conhecimento a
estar ligado à costumeira ausência desse assunto respeito do grupo negro. Essa linguagem não-ver-
no meio familiar. O que pode dar às crianças a bal só pode ser captada no seu cotidiano. Ou seja,
idéia de que esse assunto deve ser trancafiado, há na escola uma linguagem que fala pelo silên-
escondido. cio, pelo gesto, pelo comportamento, pelas atitu-
des, pelo tom de voz, pelo tipo de tratamento, o
papel e o lugar guardados ao negro na sociedade
(GONÇALVES, 1985).
CONCLUSÃO: A CONSTRUÇÃO DA Pode-se afirmar que as experiências vivi-
SUBMISSÃO NO PROCESSO DE das na escola – marcada por humilhações contri-
SOCIALIZAÇÃO buem para condicionar os negros ao fracasso, à
submissão e ao medo. Nesse contexto, para a
Ao final, este trabalho revela-nos que, no criança negra torna-se difícil a construção de uma
que tange ao espaço escolar, as crianças estão ten- identidade positiva. A rejeição demonstrada pe-
do infinitas possibilidades para a interiorização las professoras faz eclodir um sentimento que pode
de comportamentos e atitudes preconceituosas e conduzir ao desenvolvimento de uma baixa auto-
discriminatórias contra os negros. Encontramos estima e de um autoconceito negativo.
na escola educadoras que se dizem (e se sentem) Simultaneamente, a criança branca é leva-
compromissadas com o seu fazer profissional, mas da a cristalizar um sentimento de superioridade,
que se mostram desatentas para as suas ações, visto que, diariamente, recebe provas fartas dessa
principalmente, quando questionadas sobre as premissa. A escola, assim, atua na difusão do pre-
relações interpessoais estabelecidas no cotidiano conceito e da discriminação. Tais práticas, embo-
escolar. Paralelamente, nas famílias, encontramos ra nao se iniciem na escola, contam com o seu
adultos e jovens preparando seus membros para a reforço, a partir das relações diárias, na difusão
vida social desconsiderando o caráter multi-étni- de valores, crenças, comportamentos e atitudes
co da população, o pertencimento a um grupo de hostilidade em relação ao grupo negro.
específico e, mais ainda, desconsiderando o ra- Podemos considerar o fato de que na esco-
cismo secular que ainda impera na sociedade bra- la, as professoras reproduzem o padrão tradicional
sileira. da sociedade. Como sujeito, é compreensível, em-
O silêncio que atravessa os conflitos étni- bora não seja aceitável, mas não como profissio-
cos na sociedade é o mesmo silêncio que sustenta nais da educação. A escola tem oferecido uma quan-
o preconceito e a discriminação no interior da es- tidade íntima de ações que levem a entender a
cola. Nela, de modo silencioso ocorrem situações aceitação positiva e valorizada das crianças negras
que podem influenciar a socialização das crianças, no seu cotidiano, o que ameaça a convivência de
mostrando-lhes, infelizmente, diferentes lugares crianças em pleno processo de socialização.
sociais para pessoas brancas e negras. A escola ofe- No lar, diante das pessoas próximas à fa-
rece aos alunos, brancos e negros, oportunidades mília, a criança é respeitada nas suas característi-
diferentes para se sentirem aceitos, respeitados e cas étnicas; seu comportamento não é recrimina-
positivamente participantes da vida escolar e da do nem ela é vítima de humilhações constantes.
sociedade brasileira. A origem étnica condiciona No lar, o silêncio quer acalentar, proteger do so-
um tratamento diferenciado na escola. frimento que, sabemos, virá ao seu encontro. As-
Não há como negar que o preconceito e a sim, a família protela, por um tempo maior, o con-
discriminação constituem um problema que afeta tato com o racismo da sociedade e com as dores e
em maior grau a criança negra, visto que ela sofre perdas dele decorrentes.
direta e cotidianamente humilhações, maus tra- O silêncio escolar grita inferioridade, des-
tos, agressões e injustiças que afetam a sua infân- respeito e desprezo. No lar o silêncio “silencia”
cia e comprometem todo o seu desenvolvimento um`sentimento de impotência frente ao racismo da
futuro. Mesmo considerando os atos das profes- sociedade que se mostra hostil e forte. No lar o
soras como inconscientes em relação às crianças silêncio “silencia” a dificuldade que se tem em se
negras, não podemos perder de vista que atitu- falar de sentimentos que remetem ao sofrimento.
– 47 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, 9(2), 33-45, 1999 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, 12(2), 1999
No lar o silêncio “silencia” o despreparo do grupo dade, que possibilite a elevação cultural e cientí-
para o enfrentamento do problema, visto que essa fica das camadas populares (LIBANEO, 1986).
geração também aprende e apreendeu o silêncio e Da forma como se tem dado o processo de
foi a ele condicionadana sua socialização. socialização da nova geração constitui um obstá-
Não se pode deixar por conta de um silên- culo à mudança do quadro de racismo na socie-
cio criminoso crianças sofrendo diariamente si- dade brasileira.
tuações que as empurram e as mantêm em perma- Muito há para ser feito a fim de que os ne-
nente estado de exclusão da vida social e, pior gros tenham uma participação mais justa na edu-
ainda, em permanente sentimento de culpa pelos cação, na política e na economia, para desfruta-
tratamentos a elas destinados. Isso porque, atri- rem da plena cidadania, negada a esse segmento
buindo a si mesma a causa do seu sofrimento, a social.
criança precocemente expropriada do direito de Uma forma mais carreta de preparar a nova
reagir, de indignar-se, dificilmente conseguirá geração para a vida social seria informar sobre os
(re)significar os acontecimentos. atuais problemas sociais predominantes nos diver-
Silenciar diante dessa realidade não apaga sos países e, sobretudo, na sociedade em que vivem.
magicamente as diferenças. Porém, permite que Para reverter a situação de sofrimento a que
cada um construa, a seu modo e imaginação, um parcela significativa de crianças negras vem sendo
entendimento a respeito do outro que lhe é dife- submetida, faz-se necessária e urgente a elabora-
rente. Este entendimento, pautado nas experiências ção de alternativas pedagógicas que concorram,
vividas como as que foram mostradas, conforma a efetivamente, para incluí-las positivamente no sis-
divisão étnica e o papel a ser executado pelo indi- tema formal de ensino, garantindo o direito consti-
víduo. Não se possibilitam, desse modo, alternati- tucional à Educação plena, pública e de qualidade.
vas exequíveis de transformação da realidade. O racismo cultivado durante décadas re-
O silêncio da escola sobre a questão étnica quer programas de incentivo junto às escolas, os
tem permitido que seja ensinada a todas as crian- quais visem a combater o preconceito e a corrigir
ças uma falsa superioridade branca -– em beleza, as desigualdades cansadas por práticas discrími-
cultura, inteligência e poder. Para as crianças ne- natórias seculares.
gras, a escola tem-se mostrado omissa quanto ao Diante do emaranhado de problemas sub-
dever de reconhecê-las positivamente no cotidia- jacentes às relações étnicas, cabe a nós,
no escolar, o que conduz para o seu afastamento formuladores de opinião – professores, educado-
do quadro educacional. Esse afastamento res e pesquisadores críticos –, pensar e lutar por
inviabiliza a construção de uma escola democrá- práticas que objetivem a inclusão positiva de
tica, que amplie as oportunidades educacionais, crianças e de jovens negros na estrutura educa-
que re-elabore uma visão crítica acerca da socie- cional e de emprego.
Abstract: This work trios to understand socialization, mainly the ethnic relationships established
in pre-school and in family spaces. To develop lhe analysis, a field research was carried out with
the purpose of learning, by means of the systematic observation of the school’s daily life, how
the interpersonal relationships between teachers and students are established. Besides, interviews
were carried out with the teaching staff, with the children and their relatives, in order to understand
how they perceive, understand and elaborate the multi-ethnic formation of the Brazilian society.
The predominance of silence was verified in the situations involving racism, prejudice and ethnic
discrimination, which allows us to conclude that the black child is being socialized for submission
since infantile education.
– 48 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, 9(2), 33-45, 1999 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, 12(2), 1999
– 49 –