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Monarquia Contra República

A ideologia da terra e o paradigma do


milênio na "guerra santa" do Contestado

Marco Antônio da Silva Mello


Amo Vogel

"Salga a la anchurosa plaza


Del gran teatro dei mundo
Este valor sin segundo. . .H

Caldcrón

de Maria Isaura Pereira de Queiroz,


s acontecimentos do grande sur­ Maurício Vinhas de Queiroz, Duglas
to milenarista do Contestado Teixeira Monteiro e Oswaldo Cabral.
tiveram lugar menos de vinte A panir deles, goslaríamos de contri­
anos após a destruição da "Jeru­ buir para a discussão de um tema que a
salém de taipa" de Antônio Conselheiro. todos tem ocupado e intrigado quando se
Juntamente com os episódios sangrentos trata de compreender esse movimento.
que marcaram a luta em tomo do arraial Pensamos, especificamente, nas questões
de Canudos, esta segunda "guerra santa" relacionadas com o problema da terra e
sertaneja da República ocupou a com o significado desta como motivação
imaginação e instigou o estro socioló­ dos connitos sociais que conturbaram os
gico de muitos pesquisadores brasileiros. sertões de Santa Calarina e Paraná entre
Embora não tenha produzido um clás­ 1912 e 1916.
sico do porte de Os sertões. não faliam As grandes linhas que definem o con­
ao movimento do Contestado extensas fronto das forças sociais cuja exacerba­
etnografias e interpretações mais ou ção foram exaustivamente contempladas
menos ambiciosas e sofisticadas. Basta nas análises sobre o Contestado. Não
lembrar, a propósito, trabalhos como os será, pois, necessário voltar a elas.

Nota: Muitas das idéias desenvolvidas neste ltBbalho come�f1lm a tomar corpo nos seminários dirigidos
pelo professor Renato Queiroz, no Depanamenlo de Antropologia da FFLCH-USP. A ele e aos colegas de
curso, ficam regislrados os agradecimentos pela estimulante discussão.
Nosso especial agradecimento ao professor Robcno Da Maua por suas críticas e generosas sugest.õc.s
para desdobramentos do lema.
Ao professor E. Carneiro Leão, do Depanamento de Filosofia do lFCS-UFRJ, nossos agradecimentos
peJa amabilidade com que acolheu nossas consultas a propósito da mone gloriosa na tradição grega.

Esflldol Jlid�tJ" Rio de J.,n.:iI'o, \001.2, n. <t, 1'89, P. 190 . 213.


MONARQUIA CONTRA R.EPÚBUCA 191

Há um ponto, nessa profusao de ma­ cia e horror, esse rito monuário, estranho
terial emográfico, entretanto, que pode aos trabalhos funerários da sociedade
servir ao refinamento da perspectiva s0- cabocla, nos propOe um desafio: ou nos
ciológica. Trata-se de um dado recorren­ descartam os dele com a explicaçao fun­
te, não só na literatura especializada, cionalista de que servia para infundir
mas também na crônica jomalIstica. nos medo aos adversários; ou aceitamos a
relatórios de campanha e nos depoimen­ hipótese de que nele se encontram todos
lOS. Como fato, pertence antes ao regis­ os elementos necessários à com preensao
tro do bizarro. Do grotesco, até. Costu­ do papel que 8 terra desempenha na COS­
ma, inclusive, ser mencionado para ates­ mologia milenarista dos sertOes do Bra­
tar a selvageria dos jagunços, conftrnlan­ sil meridional.
do teorias da época sobre o caráter dege­
nerativo das populaçoes sertanejas. Do
ponto de vista antropológico, porém, é I. Da monarquia sertaneja

um verdadeiro achado. E para não nos


alongarmos inutilmente, passamos a Os primeiros anos da República trou­
enunciá-lo, citando um trecho de Mes­ xeram consigo um quadro de efervescên­
sianismo e confliw social: cia social e política. Na serra catarlnense
esse q uadro foi agravado pelo estabeleci­
"Quando, após o cambate de Cara­ mento das grandes concessOes madeirei­
guatá, as forças do governo, batendo ras e ferroviárias. A Southern Lumber e
em retirada, abandonaram Perdizes a Brazil Railway levam ao paroxismo a
Grandes, au deixaram enterrados os crise do modo de vida tradicional. Sur­
soldados monos. Ao entrarem os gem como forças desagregadoras novas,
jagunços no arraial, desenterraram acrescentando-se ao já considerável tu­
os cadáveres e jogaram-nos por multo reinante nas relaçOes de poder
cima da cerca do cemitério. Ficaram entre os coronéis, as oligarquias e o
os corpos ao tempo, até que mais governo federal.

tarde voltou outra força legal, que A quebra das lealdades costumeiras,
andou tentando reunir ossos es­ ao rompimento dos pactos do patronato e
parsos. Esse empenho em deixar à dissoluçao das cuentelas rurais vêm
insepultos os inimigos caracterizaria juntar-se os efeitos de um amplo proces·
a ação dos jagunços durante todo o so de deslocamento de massas campone­
decorrer da guerra" (Vinhas de sas, expulsas das terras que ocupavam
Queiroz, 1966: 211). . até então.
Humilhados, preteridos em favor das
Essa prática de exumar os cadáveres "gentes da Oropa", esses senanejos sao
dos inimigos era acrescida, ainda, de lançados, da noite para o dia, na doloro­
algo que poderia parecer um requinte de sa experiência de um desarraigamento
"barbári' e : arrancados d e suas covas. os
"
fundamental.' Separados de suas terras,
cO<pOs eram virados de bruços, e, com o afastados de sua vizinhança original, re­
facão, talhava·se-Ihes, no crânio, um si­ jeitados pela população das' cidades e
nal em forma de crllZ. perseguidos pelas milícias da Lumber e
Registrado nos anais da "guerra san­ da Brazil Railway, não lhes resta senão
ta", para provocar frêmitos de repugnân- perambular indefinidamente pelo sertão,
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em busca do suslento parco e incerto que cheque todo o s islema de lealdades sobre
lhes possa vir da coleta dos frutos das o qual assentavam- as ruerarquias sociais
imbuias e dos pinheiros. vigenleS. Cônscio desse fato, O coronel
Essa existência errante vai encerrar-se Albuquerque respondeu ao desacato for­
subitamente em agosto de 1912, por mulando publicamenle uma denúncilL
ocasiAo das festas do Bom Jesus,' na l0- Em lelegram a ao govelllo estadual, acu­
calidade de Taquaruçu. Desse momento sou José Maria e seus adeptos de inlenta­
em diante OS sertanejos nao mais se dis­ rem a restauraçAo da monarquia.
persam. Passam a viver congregados em A crise gerada a partir daí ampliou-se
tolilO do monge José Maria um lauma­
, rapidamenle, alcançando a presidência
turgo que se inscrevia na linhagem dos da República. A memória de Canudos
"curadores" carismáticos que desde a assombrava ainda a opinião pública da
primeira melade do século XIX vinham capilal. Por isso, é fácil imaginar as re­
surgindo na regUlo. percussoes da notícia no Rio de Janeiro.
Tal ajuntamento de romeiros, à pri­ Retrospectivamente, podemos re­
meira vista inofensivo, vai, no entanto.

conhecer no movimento tático do co­
transformar-se na pedra de toque do dra- ronel Albuquerque um desses enos irre­
ma social cujo resullado trágico foi a paráveis que constituem o rastilho e a
guena do ConleSlado. motivação das tragédias. Talvez por
O episódio que desencadeia a seq!lên­ inadvertência, mais provavelmente por
cia dramática é a recusa de José Maria malIcia, consagrou-se, dessa fOllna, um
em atender ao chamado de um chefe equívoco cuja gravidade e proporções se
poUtico local que o convocara para exer­ reve lariam a seguir.
cer seus poderes de cura em um caso de Dizer que "os fanáticos haviam pro­
doença em pessoa da famrulL Tralava-se, clamado a monarquia nos senões de Ta­
na verdade, de um ardil do grande pro­ quaruçu"' era, na melhor dlL. hipóteses,
prielário. Alannado com o crescimento uma afumaçAo sujeita à conuuvérsia.
do arraial de romeiros e do prestígio do Com efeito, a coroaçAo de reis e im­
monge, o coronel pretendia, por esse peradores no senao do Conlestado eslá
modo, assegurar-se de sua capacidade de fora de dúvidlL Para que O fato adquira,
controle sobre os acontecimentos em no enlanto, o seu verdadeiro significado,
seus domínios. seria necessário acrescentar que isto se
Fiando-se, lalvez, no apoio de um dava no conlexto de determinados fesle­
coronel rival, que passava por aliado dos jos populares proprios da maioria das
"caboclos" e em cujas !erraS vinha ope­ áreas do interior brasileiro e que, se
rando seus prodlgios, José Maria nllo monarcas havia, estes o eram das folias
prestou obediência à convocaçAo. do Divino ou das festas do Bom Jesus.'
Reagindo com inusitada insolência, À luz desse dado, a acusaçAo assume
"o monge respondeu que a distância da menos o aspecto de um quiproquó, reve­
casa do coronel à sua era igual à da sua lando-se, anleS, um dispositivo relÓriC o
casa à do coronel". A partir desse me­ destinado a ampliar o campo social onde
mento estavam rotos os vínculos tradi­ já começava a desenhar-se, embora ain­
cionais do patronato. da de modo tênue, a conflagtaçllo.
A recusa da homenagem devida se­ Tudo indica que nem o próprio coro­
gundo o costume, porém, colocava em nel Albuquerque podia imaginar os des-
MONARQUIA CON11tA IIEPOBUCA 193

do bramentos desse gesto. Suas intençOes garquia estadual em maus lençóis, quan­
limitavam-se, provavelmente, à busca de do se revelassem o alcance e o propósito
um aliado capaz de Cazer pender em seu da possível rebelillO. Sob pena de arris­
Cavor a balança de um possível confron­ car-se à impu.açllO de cumplicidade, o
to. Com isso, pensava obter os recursos governo estadual era, pois, obrigado a
necessári os para enCrentar quer a in­ dar conta dos "Catos" ao governo Cederal.
solblcia sertaneja, quer a crescente in­ O curso dos aconlCCimentos impunha
nuência do seu rival, o corolll!l Henri­ esse tipo de procedim ento. Havia, em
quinho. primeiro lugar, um noticiário da impren­
O acionamento dessa inslância hete­ sa, através do qual a opinião pública
rônoma provocou uma reaçllO em cadeia. lomara conhecimenlo do problema.
Advertido o governo estadual do que se Além disso, no entanto, é preciso consi­
passava na Sena-Acima, sentiu-se obri­ derar que a memória da "Guerra do Fim
gado a alertar o governo Cederal. Essa do Mundo"', travada no sertllo baiano,
providência, no entamo, inicialmente continuava vívida. Era um Cantasma que
nllO lhe Coi ditada pela necessidade de a sociedade republicana nllO linha, ainda,
conseguir recursos adicionais para a ma­ conseguido conjurar.
nutençllo da ordem pública, pois a escala Enquanto isso, nas serranias catari­
do problema, naquele momento, nlio jus­ neoses, o coronel Albuquerque estava
tilicava a suposiçllo de que seria neces­ longe de imaginar que sua acusaçllO ti­
sário mobilizar um aparato repressivo nha desencadeado um paradigma
considerável. radical. Tinha Connulado sua denúncia
As razões que levaram o governo do com base nas inConnaçOes trazidas do
estado a comunicar-se com o executivo arraial de José Maria, por um seu
Cederal slIO, ao mesmo lempo, esuuturais enviado. ESle, o velho Carvalho, que
e conjunturais. A po/(/ica dos governa ­ respondia à alcunha de Juca Ruivo,' era,
dores exigia das oligarquias estaduais além de tabeliao, dono de uma botica e
que apoiassem o governo no âmbito da "curador" em Curitibanos. Nessa
Cederaçllo. Em contrapartida, cabia ao condição, nutria certas malquerências
governo Cederal respaldar seus aliados na com rclaçllO ao monge. Tal rivalidade
esCera estadual. parece ler influenciado o seu relato sobre
Nesse caso, porém, acrescenta-se ao o que se passava em Taquaruçu,
processo nonnal desse arranjo político imprimindo-Ihe um viés de modo algum
uma motivaçllO extraordinária inerente à inocente.
situaçlio social. Falar de sertanejos em Esse detalhe nos pennite compreen­
estado de sublevaçllo é uma coisa; co­ der como o desempenho de um obscuro
municar uma tentativa de restauração ator pode contribuir para o grande drama
monárquica é outra. A suposta vincula­ social a que se iria assistir. Graças a esse
çllO da rebeldia cabocla com um projeto ator, aquilo que talvez nlIO passasse de
de retomo à monarquia dava ao caso uma indignaçllO, com limitados eCeitos
uma gravidade que o executivo estadual em nível local, veio a assumir propor­
não podia nem ignorar. nem minimiz.ar• çOes inusitadas. A intriga desse lago
nem muito menos esconder. caboclo levou o coronel Albuquerque a
Ocultar ou até mesmo subestimar as uma atilude drástica, acordando a mal­
implicaçOes da denúncia colocaria a oli- adormecida dissensão ideológica que
194 ES11JIlOS IIlSTÓRICOS - 1989/4

opunha o jacobinismo republicano ao conselhos, graças aos quais haviam mi­


fanlaSllla de uma monarquia wiviva glado, em busca de sua terra prometida,
A primeira reação de José Maria até o municfpio de Palmas, do lado pa­
diante da conjunção dos poderes conju­ ranaense do Contestado.
rados contra ele não conrlCtlla a arrogân­ No Faxinal dos Fabrícios, já em teni­
cia manifesrada em face da convocat6- tório do Paraná, sua fama de taumatur­
ria do coronel Albuquerque. José Maria go recebe nova e ampla confIrmação.
parece, ao conlrário, intimidado. Como Podemos levantar a hipótese de que este
que se dando conta da extensão do pro­ é o momento que o consagra como
blema, demonstra-se disposto a transigir "Santo Homem". A panir dar, e indepen­
e recuar. Não enfrenta O contingente da dentemente dos seus manifestos intui­
polfcia militar catarinense comandado, tos conciliatórios, já não lhe será
em pessoa, pelo desembargador Sálvio possível abandonar o papel. Seus "ter­
Gonzaga.' chefe de polícia do estado. Ao ços", acompanhados por muitas pessoas,
contrário, bate em retirada. Ao seu pro­ passaram a ser chamados missas. O fato
tetor, o coronel Henrique Rupp, garante de ser um perseguido SÓ servia para
mesmo ter instado junto aos seus com­ acrescentar seu poder de polarização.
panheiros que se dispersassem , retornan­ Seus consulentes não se dispersavam
do às suas casas. Ao mesmo tempo, no mais após a cura, deixando-se ficar
entanto, dá conta do que, aos olhos do pelos arredores.
mais inadvertido observador, surgiria Acionado pelo governo estadual, o
como um fator de inquietação: seus Regimento de Segurança do Paraná, a
adeptos recusavam-se a abandoná-lo, comando do coronel João Gualberto, sai
solidários com ele contra a perseguição contra esse novo arraial de romeiros. A
de que era vítima. gravidade dessa medida fIca evidente se
• A fuga de José Maria reveste-se, por­ dissermos que o próprio chefe de polícia
tanto, desde o início, de uma notável do estado acompanhava a tropa.
ambigüidade. Parece fugir não SÓ da Em várias ocasiOes José Maria tinha
Força Pública, mas também de seus reafInnado sua disposição de não atacar
adeptos. Procura evitar, desse modo, ninguém. por "não ter questões com O
uma magnificação do confronto. Ao Paraná, nem com O governo, nem com
mesmo tempo, faz-se acompanhar nessa estado nenhum. Mostrava-se dessa ma­
retirada por quarenta homens "fOrleS, neÍI1l, propenso a panicipar de uma s0-
valentes, ainda na flor da idade". lução negociada. Até enlAo. portanto,
Esse contingente compreendia os pa­ eram possíveis ainda os mecanismos de
res de França, integrantes de uma guar­ regeneração de um tecido social que
da organ izada pelo monge no arraial de começava a aproximar-se perigosamente
Taquaruçu. Iam fugidos. O rumo toma­ do seu ponto de ruptura.
do, no entanto, não os levaria à obscura Para que esse ponto fosse fInalmente
vida do exnio. De rota batida para os atingido, contribuiu o ânimo exaltado do
Campos do lrani, José Maria vai bu..r...
. comandante da Força Pública. A missão
refúgio entre gentes que sabem quem ele dissuasória que envia ao monge, com
é. Em outros tempos, os posseiros do efeito, é portadora de um uilimlllum que,
leani tinham conhecido os seus poderes, ao invés de abrir as negoci ações,
visto os seus prodígios e ouvido os seus barrava-lhes definitivamente o caminho.
MONARQUIA COI'mtA REPÚBUCA 195

Diz o bilhele: meiro lugar, a perseguição que o monge


"Acampamento do Regimento de alegava sofrer. Ameaçava-o, junto com
Segurança nos Campos do Irani em seus adeptos, com o estigma dos fora­
20 de outubro de I912. Senhor José da-lei, anunciando-Ihes "guerra de exler­
Maria. minio" e "terrível desgraça". Para termi­
Deveis comparecer a eSIe acampa­ nar, apregoava a impossibilidade de
mento com a maior urgência a fim fuga.
de me explicardes o motivo da reu­ Quis Deus vult perdere dementat
nião de genle armada em tomo de prius. O coronel João Gualbeno, es­
vossa pessoa, alarmando os habilan­ quecido desse adágio, tinha confessa­
tes dessa zona e infringindo as leis do, ingenuamente, enquanto esperava o
do ESlado e da República. Caso não regresso dos seus emissários: "Eu an­
atenderdes a essa intimação que me do mesmo a fazer loucuras." Dessa ma­
ditou o cumprimento do dever e o neira se junla ao elevado potencial dra­
sentimento de humanidade, comuni­ mático da conjuntura a cegueira da
co·vos que dar-vos-ei já franco ralAo, contribuindo para pôr em marcha
combate e a todos que foram solidá­ o destino inexorável dos seus per­
rios convosco, em verdadeira sonagens.
guerra de extermínio a fim de vollar Nada mais poderá deter os aconteci­
a essa zona do Eslado o regime da mentos. Nem mesmo as ponderaçOes do
ordem e da lei. Avisai a todos que coronel Domingos Soares, respeitado
vos acompanham que os considera­ chefe político de Palmas. Recusado o ul­
rei criminosos senão concordarem timatum, o ãnimo inOexível de João
com O vosso comparecimenLo ao Gualbcrto concentrou-se em cumprir as
meu acampamento, evitando por ameaças.
essa forma terrível desgraça. Comu­ Convém resumir as linhas de força
nico-vos ainda que além das forças desse processo dramático:
minhas que vos sitiam por várias
estradas, outraS expedições vos per­ a) as normas tradicionais da patrona·
seguem também, tornando-se por gem senaneja foram publicamente
essa forma impossível vossa fuga ou rompidas por José Maria, quando
resistência no lerritório nacional. No se recusou a preslar obediência ao
caso de resistência deveis fazer reti­ chamado do coronel Albuquerque;
rar com urgência as mulheres e as b) a notificação do governo esladual
crianças que aí estiverem. Coronel pelo coronel Albuquerque estende
João Gualbeno. Comandante do Re­ o campo do connito, que passa a
gimento de Segurança do Paraná.'" opor O monge à oligarquia eSladual;
c) a fuga de José Maria para terras do
Diante dessa mensagem, José Maria Paraná amplia ainda mais o
manifesla um último instante de hesila­ problema, na medida em que ativa,
ção - "Que garantias pode oferecer além das discussOes entre os dois
uma Carla escrila à lápis?", pergunla aos eSlados (em virtude do liúgio sobre
porllldores do bilhete. o Contes lado), as forças de re­
O teor deste, no entanto, tinha impli­ pressão do Paraná contra o monge;
cações profundas. Confirmava, em pri- paralelamenle, o comunicado feito
196 ES11JOSO HlsrORICOS - 1989/4

ao governo federal dá à quesll10 A acusação de que os caboclos, lide­


alcance nacional; rados pelo monge, estavam empenhados
d) as negociaçOes conduzidas pelo no retomo à monarquia, desencadeou um
coronel João Gualbcno, com rara modo peculiar de peccepção dos aconte­
falta de diplomacia e nenhuma cimentos. As coisas se colocavam, a
disposição para o diálogo, consa­ panir daí, como se a própria República
gram o rompimento entre o Iíde.­ esô"esse em perigo, e não apenas a
senancjo e as autoridades públicas, vigência da lei, da ordem e dos arranjos
desencadeando, efetivamente, o IJ3dicionais de poder na serra de Santa
connito. Catarina.
Assim, o que efetivamente fez o coro­
Nenhum dos acontecimentos etnográ­ nel Albuquerque foi ressuscitar o grande
ficos que integra essa lrama constiwi no­ paradigma noneador da culwra política
vidade para o leitor atento da biblio­ das elites brasileiras desde os primórdios
grafia sobre o Contestado. A hislÓria p0- da crise das instituições monárquicas.
de ser rastreada, com riqueza ainda Mesmo que seu objetivo fosse somente o
maior de dela lhes, nos livros. de dar ênfase à sua reclamação, assegu­
A idéia de resumi-los sob essa forma rando-lhe a devida atenção por pane da
encadeada segue uma, inspiração de oligarquia estadual, o teor de sua
Victor Turner, que, a partir das elabora­ interprelação dos fatos teve a capacidade
çOes de Gluclcman e outros teóricos da de deflagrar um paradigma radical:'
antropologia social de Manchester, monarquia versus república.
conseguiu dar-lhe sua formulação mais As implicações desse paradigma não
definitiva e famosa, sob a denominação eram de se desprezar, se levarmos em
de drama social. conta as graves crises institucionais. a
Ao evidenciar as linhas mestras do contínua inSlabilidade política e a eclo­
processo que havia de resullar na guerra são localizada da guerra civil que acom­
do Contestado, nossa intenção foi mos­ panharam, no país, a instauração do regi­
trar como os atores desse drama foram me republicano em suas primeiras déca­
assumindo seus respectivos papéis e em das. Menos ainda se contarmos entre
tecmos de que argumentos procwararn suas peripécias o sobressalto que Canu­
pautar suas açOcs, dando-lhes consistên­ dos e o Conselheiro haviam provocado
cia, plausibilidade e força de convicção. nas hostes republicanas'·
Para levar a termo nosso intento, que­ O peso desse paracJigma ressalla ain­
remos chamar atenção para a retórica da de modo mais claro quando se tem
que caracteriza as razOes invocadas indi- em mente que algumas ameaças mais
vidualmente por esses atores. _ sérias à ordem republicana
,
e alguns dos
Fossem quais fossem os motivos mais amargos ressentimentos conlJ3 ela
conscientes do coronel Albuquerque, o eslavam vinculados às lutas políticas tra­
fato decisivo de sua awação não foi O de vadas no Brasil meridional, envolvendo
tecdenunciado o ajuntamento senanejo, dos federalistas de Gumercindo Saraiva
apontando os riscos que dele pudessem aos seus "aliados monarquistas" da
resultar para a manutenção da ordem Revolla da Armada. Tudo isso estava
pública. Decisiva foi a maneira pela qual ainda muito vivo na memória de todos e
formulou sua denúncia. os mal-cicatrizados ferimentos abriam-
MONARQUIA <DNnA RfP()8UCA 197

se, por lanto, com facilidade. Esgrimir profelaS dos serl!!es meridionais. Tinha
uma anna desse pone contra um relati­ ancestrais ilustres. Não se afumava ser
vamenle obscuro laumaturgo sertanejo ele irmão de João Maria?" Possula, além
em, como os falOs posteriores haveriam disso, um rebanho de fiéis; verdadeiros
de revelar, não SÓ uma falia de medida. afilhados que deve não só às afliç!!es
mas um desmando que cobraria elevado quotidianas ou extraordinárias da vida
preço. social no serlllo, mas lambém, e talvez
Para avaliar os possíveis efeilOS dessa sobretudo, aos seus antecessores no
imprudência é suficienle uma compara­ exerclcio da m is�ão profética.
ção. Se o arraial de Canudos, insulado Por isso devemos acaUlelar-nos dianle
nos inóspilOs sertOes baianos, linha de­ da imagem llIo ao goslO das eliles políti­
sassossegado a República, quanlO mais cas do 1ilOtal, que faz de José Maria um
gmve nl!o seria o polencial incendiário IOSCO "messias" de sertanejos supersti­
de um movimenlO desencadeado num ciosos e fanáticos.
conlexlO hislOricamenle marcado pela A realidade é, como sempre, mais
ecloslio das veleidades aulOnomislas, complexa. O calOlicismo rústico, longe
pelo fervilhamenlO renovado do regiona­ de um amontoado de crenças confusas e
lismo gaúcho. pela germinaÇllo conlÍnua rilOs insuumentais de na tureza mágica,
das vocaç!!es caudilhislaS, num espaço possui um quadro de referência solida­
em que a permeabilidade das fronleiras e menle enraiVldo na cosmologia crislll,
a iminência das ques\Oes de limires ele­ particulannenle sensível à vertente esca-
vavam ao máximo a suscetibilidade das 1016gica da revelação.
identidades locais ou nacionais. É precisamenle nessa hermenêutica
Contra a magnitude desse paradigma finaliSIa que José Maria vai encontrar
(monarquia versU.! república) o que p0- todo o poderio de um paradigma radical
deria fazer um pobre mo.ge peregrino, ainda mais lerrível do que aquele mobili­
cercado de desarnU gados que, sob o sig­ Vldo pelo coro.e1 Albuquerque.
no trágico de uma indigência sem par, O paradigma do milê.io com O qual
ansiavam pelo refúgio e conforto de uma vai responder às forças desencadeadas
vida sem males? contra ele é um dos sfrnbolos nodais da
A resposla a essa pergunla eSlava soleriologia do cristianismo vernacular.
contida na própria oposição. Para desco­ Nessa qualidade, remele a uma verdadei­
bri-Ia, baslava desdobrar o significado ra cOllSlelação simbólica da qual fazem
do termo monarquia, atingindo, para pane, além do aparecimenlO do anticris-
além do sentido lécnico de uma forma de 10 (e do reino da confuslio), o advenlO do
governo, a concepção totalizadora de um reino de CrislO sobre a face da Terra,
modo de vida. Nesle sentido, a monar­ mercê de uma guerra sanla do bem con­
quia serlaReja podia surgir como o protó­ tra Omal, em que se pode conquislllr, de
tipo de uma existência plena, tal como um só e definitivo golpe, a salvação
eSIa era represenlada no imaginário cris­ elema e um lugar nas hastes dos bem­
tão do calOlicismo caboclo. aven turados.
A figura de José Maria não deve ser José Maria intui com bastanle segu­
considerada. nesse contexlO, com ligeire­ rança o polencial de mobilização ine­
za. Tralava-se de alguém que nlIo eslava renle a esse dispositivo presenle no dis­
só: fazia parte de uma linhagem de curso dos pregadores do sertlIo, seja pe-
198 ESI1JOOS IUsr6RlCOS - 1989/4

las freqüen\eS alusoes apocalipse e às


ao o segundo alO do drama haveria de

revelações de são JolIo Evangelista, seja conflllDar tudo isso. A \eSta de mais de
pelas interpretações dos exegetaS do trezentos homens. contra as setenta pra­
milênio, perpetuadas no catolicismo ças comandadas por João GualberlO. o
popular desde os Padres da Igreja." monge morre na batalha do Banhado
Nos termos da "ortodoxia" do cato­ Grande. Na mesma ocasiAo morre Iam­
licismo vemacular, esse paradigma tinha bém o comandante do Regimento de
ampla legitimidade. Era uma dessas Segurança do Paraná, em meio a um
idéias das quais Ortega y Gasset diz que, verdadeiro massacre.
ao invés de serem "susten'adas" (objeto A comparação das duas mortes é elu­
de argumentação e disputa racional) cidativa. O corpo de JolIo GualberlO foi
pelas pessoas, são, ao contrário, o feito em pedaços pelos jagunços: "Pi­
sustentáculo dos que nelas crêem." Mais quem este desgraçado. que ele é o único
que lógicas, são sociológicas, na medida culpado"" foram as palavras de um
em que, para além do consenso dos sertanejo. José Maria. ao contrário, foi
intelectos, deitam suas raízes nessa sepultado numa cova funda. Não o co­
"potência subterrânea" do consensus briram senão com algumas tábuas. Di­
gemium à qual se tem dado os nomes de ziam que era para facilitar as coisas
"communitas" e "socialidadc".14 quando de sua ressurreição.
No começo da trajetória que levaria o O destino do corpo de João Gualberto
monge do seu primeiro reduto em Ta­ não é detenoinado, como parece à pri­
quaruçu ao fatídico encontro com as for­ meira vista, por uma explosão irracio­
ças de João Gualberto nos Campos do nal de crueldade. Em que pese a sua
Jrani, José Maria confidenciava, a modo fonoa paroxJstica, essa crueldade não
de profecia, a alguns de seus adeptos: deixa de ter método. Este corresponde.
por sua vez, de fonoa rigorosa. a uma
"Eu vou começar a Guerra de São concepção precisa da morte e dos ritos
Sebastião em lrani, com os meus apropriados ao cumprimento desse
homens que lá me esperam. Mas processo de passagem radical. Dessa
olha, Euzébio, marque bem o dia de mesma concepção deriva também o
hoje. No primeiro combate sei que procedimento adotado com relação ao
morro, mas no dia em que completar corpo de José Maria. Para compreender
um ano me esperem aqui em Taqua­ o significado dessa afirmativa, no
ruçu, que eu venho com o glande entanto. será necessário desenvolver
exército de S. Sebastião" (Docu­ algumas reOexOes sobre a economia do
mento I","os, segundo Vinhas de milênio e O papel que nela desempenha
Queiroz, 1966: 1 19). a ideologia da terra.

E�sas palavras demonstram que no


exato momento em que, intimidado, se 11. A economia do milênio

apressa em fugir em direção ao Paraná,


no instante em que, portanto. parece Os adeptos de José Maria acredita­
mais fraco. José Maria dispara contra vam no cumprimento integral de suas
seus algozes o misterium tremendum da palavras proféticas. Após o combate do
escatologia bíblica !rani, os sobreviventes migravam para
MONARQUIA CONI'RA IlIlJ'OBUCA 199

Santa Catarina. Além dos feridos, leva­ tempo surgia, em tomo de uma tosca
ram consigo sua inquiClaçlIo messiânica, capela de madeira, um novo arraial de
transformada no único alento desse romeiros. Era a cidade sagrada de
povo de párias.16 Taquaruçu, onde o monge haveria de se
Por um breve momento, parecem de­ mostrar, encabeçando o exército encan­
cididos a se faurem esquecer, dispersos, tado. Começa a glande e alegre eSpeill-
ocultos aqui e ali, em brenhados nas O tempo da expectaç.llo se desenrola
matas. Logo, no entanto, começam a sob o signo do milênio. Nas serranias
reaparecer, fazendo-se notar pelo entusi­ começam a surgtr os prunellOs marcos
• • •

asmo que lhes valeria mais tarde o ap0- da topografia legendária do Contesta­
do de "fanáticos". Procuram -se uns aos do." São as vilas santas. Em tomo delas
outrOs, retomando o confono da relaç.llo vai travar-se a luta sem tréguas, com
com os "innaosu. Rccenam a rede. re­ suas expectativas de morte e martúio.
forçada agora pela peripécia comum e Dentro delas, no entanto, fervilha a vida
pela aguda consciência da fé partilhada. dos "irmãos". numa ambiência Que nada
Nesse lnterim, a rivalidade entre o tem de sombrio ou opressivo.
coronel Albuquerque e O coronel Hen­ A vila santa é uma festa. Como se
riquinho se exacerba. Os ânimos fervem dessa maneira retomassem à conjuntura
em Curitibanos. Albuquerque compensa original, em que a vocação messiânica
o declínio do seu prestigio local com a de José Maria havia Oorescido, seus
posiç.llo importante ocupada no Congres­ adeptos levam uma existência de congra­
so estadual. Em Perdius Grandes, entre çamento permanente. Convivem caloro­
os sertanejos, começam a acontecer coi­ samente. Ao som de violas, rabecas e
sas asso mbrosas. Teodora, uma "virgem tambores, extravazam seu júbilo em tor­
santa", tem visões nas quais José Maria neios, ponti lhados de rezas e pregaçOCS,
lhe aparec e. O fato se espalha. Genteche­ numa alternância de cenas heróicas e
ga de lOda a parte. Frei Rogério Neuhaus piedosas. Salvas de foguetes e "vivas"
vem "exorcizar" a vidente. Declara ressoam pelas quebradas, alimentando a
falsas as apariçOcs. Exorta o povo a não animaç.llo dos recintos sagrados. Grandes
lhe dar crédito. Tudo em vlIo. Os romei­ ágapes se sucedem dia após dia. Os
ros continuam afluir de todos os lados. churrascos assumem, na feliz expresão
Em determinado momento, as coisas de Duglas T. Monteiro, a proporção de
se precipitam. Surge Manoel, filho de verdadeiras hecatom bes."
Euzébio, avô de Teodora. Diz ter-se en­ Para os sertanejos, como para os
trevistado com o monge. Traz ordens gnósticos do cristianismo primitivo, o
deste. Euzébio é O incumbido de recrutar reino de Deus sobre a Terra começa com
para o exército encantado de silo Sebas­ a sua fé. Não há, pois, razão para temer
tião os combatentes da "guerra sama". a morte, nem motivo para apegar-se à
Todos devem segui-lo para o Taquaruçu. vida. A aurora do "novo século" baniu de
À frente de sua parentela, o velho suas existências as trevas do meio, var­
Ellzébio, tendo posto em comum todos ridas juntamente com as afliçOCS do coti­
os seus haveres, peregrinou em demanda diano.Todos crêem renascer para uma vi­
do local escolhido. Iam em estado de da plena em todos os sentidos. Se Canu­
profunda exaltaç.llo religiosa, como res­ dos tomou famoso o vaticín io aterrador
100 sertão vai virar mar. o mar vai vi-
saltam testemunhos da é poca Em pouco
-
200 ESTUDOS IDSTÓRICOS - 1989/4

rar sertlIo , o Contestado merece re­


- dou paus de Fran ça" concede aos
cordação por sua radiosa expeclativa, re­ serlanejos mais do que uma opol1Unida­
sumida na fórmula de um de seus adep­ de de entretenimento. Fomece-Ihes um
tos: "Agoraos velhos vão ficar moços."" conjunto de tropas capares de dar senti­
Nesse eremem império da liberdade, do e conferir plausibilidade a um gênero
o trabalho identificado com as rotinas do de vida distinto.
"velho século" não existia As atividades O glande prestígio de uma gesta de
obedeciam à concepção da plenitude do cavalaria nos campos altos e serras cata­
presente. Neste não poderiam ter lugar rinenses não deve ser ronsiderado um fa-
,

os empreendimenlOs cujo fruto era to surpreendente. As pessoas cullaS do


diferido no tempo. Em vez de planlar ou litoral a intensa circulação de uma ver­
criar para colher e usufruir no futuro, são ibérica do ciclo de Carlos Magno p0-
preferia-se a caça, a colela e a pilhagem. deria parecer bizarra No contexto s6cio­
As razOes suposlaS dessa preferência histórico do Brasil meridional, entre­
podem preslar-se a mal-entendidos. Os tanto, esse tipo de literatura épica nada
serlanejos não eram movidos pela impre­ tem de estranho. Quadrava, ao ronlJário,
vidência nem pelo imediatismo imoral muito bem, lanto com a tradição oral dos
da cupidez. Sua escolha adquire todo o relatos heróiros, quanto rom o próprio
seu significado quando nos debruçamos modo de viver do caboclo, acostumado
atenlamente sobre o que era a vida no às lulaS e refregas, admirador das piOe­
qUilliro santo. zas galantes e cultor apaixonado do
O recinto sagrado da vila santa tem entrevero, esse combate singular à arma
sua morfologia própria. No centro, o branca.
quadro santo delimila o grande palco em A partir dessa observação não parece
que se desenrola o espetáculo da vida descabido dizer que a História de Carlos
santa. Maria Isaura Pereira de Queiroz Magno e dos doze pares de França foi
reconhece nele a reificação do que na para a educação moral e sentimental
Fesla do Divino é apenas uma forma ere­ dos senões brasileiros o mesmo que foi
mera dentro de um rito processional."'" para a educação dos gregos os textos de
São os eventos encenados no conlÍ­ Homero. Esses dois filões da épica,
nuo espeláculo das cerimônias que es­ ambos perpassados pelo maravilho­
candem na nova temporal idade dos dias so (pagão num caso, cristão no ou­
e dos trabalhos, conferindo-Ihes, pelo tro), podem ser aproximados, ainda,
carnJer dramático, uma nova qualidade. em virtude do modo recitativo com
A interminável seqüência dos enun­ que difundem a tradição da narrativa
ciados rituais segue uma marcação rigo­ heróica.
rosa. Obedecendo a uma codificação A leitura drain alizada e comentada da
detalhada de entradas e sardas, os grupos História de Carlos Magno já fazia parte
se dispõe no interior do qUilliro santo, do elenco de recursos para a edificação
formados para as orações e prédicas dos fiéis usado por João Maria. Como
quotidianas. seu venerável antecessor, lambém José
O grande texto dramátiro, no qual se Maria em uma espécie de rapsodo da
baseiam esses autos religiosos do sertão gesta carolíngea, recitando-a para um
do ConJeslado, é um romance de cavala­ públiro que o ouvia de joelhos num ver­
ria. A História de Carlos Magno e do, dadeiro êxtase beatífiro.
MONARQUIA COImIA REPúBUCA 201

Esse último ponto merece uma obser­ Esses fiéis, ftrmemente convencidos
vação. Falar em êxtase beatlfico pode do caráter eremero da existência e dos
sugerir que se uatava de uma emoçAo bens terrenos , c\edicaram -se, no entanto,
singular limitada àquele auditório, mer­ à construçllo de alguns dos mais notá­
cê de seu envolvimento com a pregação veis e duradouros monumentos da civili­
milenarista. Talvez fosse prudenle recor­ zaçao européia Para erguer OS mosteiros
dar, a propósito, que a atitude designada e as C31edrais. mobili zaram uma imensa
com essa exp ressa0 por Cri velam Mar­ e complexa rede de recursos. Con­
cial" era menos o resultado de um uaos­ centraram geme; buscaram matérias
porte mlstico peculiar aos ouvinleS de primas; abriram roteiros de comércio e
José Maria do que a poswra (excClO a abastecimento; estimularam atividades;
posição genul1exa) com que a genle do desenvolveram técnicas e desbastaram
interior costumava acompanhar, de florestas.
modo geral, os contadores em suas réci­ À luz de tudo isso, toma-se fácil iden­
tas. Não se uata, portanto, da manifesta­ tificar na elaboração, consolidação e, fi­
ção esponlânea de emoçOes inefáveis, nalmente, no esplendor dessa Europa
mas de uma bem-estabelecida estética da feudal a positividade dos efeitos da I.i
recepção sertaneja. do milênio na comunidade cristA medie­
Assim, podemos não SÓ demonsuar val. Graças a ela configura-se com mais
as ligações que, para a imaginaçllo cristã nitidez aquilo que poderia ser apropria­
medieval, existiam entre o "imperador de damente visto como uma economia do
barba florida", mas, além disso, formu­ milênio. Com essa perspectiva, podemos
lar algumas idéias capazes de abrir uma reconhecer o verdadeiro alcance da ex­
perspectiva para certas implicaçOes que pressão: a economia do milênio é a
o paradigma do milênio leve com rela­ adminisuação da casa do Senhor com
çlIo às morfologias e processos sociais. vistas à sua vinda próxima.
Com efeito, se considerarmos ainda
uma vez o ano 1000, como surge nas
descriçOes e análises da historiografia, 111. A lut., • mor1e e • terra no Conte.lado
vamos descobrir que a expectativa mile­
narista leve um papel mais importanle
A "guerra santa" do Contestado durou
para todo o desenvolvimento da Europa
até 1916. Por quatro anos, mais ou
feudal, na Baixa Idade Média, do que se
menos, o exército de são Sebastião sus­
costuma supor.
tentou uma luta sem trégua. Os conflitos
Instituições fundamentais surgiram
cobriram um território de aproximada­
dentro desse clima de expectação. Num
mente 28.000 Ian', mobili7.ando cerca
esforço para sustar as dissensões internas
de 15.000 combatentes. Destes, mais da
(da ''Casa de Deus"), a Igreja impõe os
metade eram "fanáticos". As tropas ofi­
dispositivos da Trégua de Deus e da paz
ciais, seis mil homens (sem contar os
de Deus. Há um enorme esforço para re­
corpos auxiliares de vaqueanos), repre­
formar os costumes monásticos. A pere­
sentavam em tomo da metade do efetivo
grinação se desenvolve a ponto de dar
do Exército brasileiro.23
origem a um verdadeiro sistema. Com
ela toma-se mais aguda a consciência de A morfologia espacial da área confia­
que o homem t um violor mundi. gtada sofreu alteraçOes ponderáveis. Foi
202 ESTUDOS IDSTOIucos - 1989/4

coberta por uma extensa rede de vilas hierarquias. O sistema de atitudes que
santas, agrupando uma população serta­ congrega essa innandade é descrito com
neja estimada em vinte mil habitantes, base no tenno "igualitarismo comunitá­
em um flagrante contraste com a forma rio". Expresso nos depoimentos, esse
dispersa de seu habitai anterior. Essas vi­ "igualitarismo" refere-se principalmente
las chegaram a constituir conjuntos com­ ao modo de distribuição dos recursos. A
plexos, aniculados por um sistema de regra do dom e da reciprocidade elide as
"redutos", "redutinhos"e "guardas". Tais trOCas comerciais (''Tudo era dado, se
conjuntos definiam verdadeiros "recintos alguém vendia era mono''). Esse fato
sagrados", cujo melhor exemplo é Santa ajuda a compreender o evergetismo pre­
Maria. Santa Maria designa, ao mesmo dominante nas vilas santas, onde a pro­
tempo, o território do vale onde se cons­ digalidade dos ágapes só tinha igual no
tituiu a mais famosa rede de vilas santas espírito de renúncia com que os adeptos
e o seu assentamento mais expressivo: a abandonavam seus bens para juntar-se
cidade sagrada de Santa Maria, espécie aos "innãos",
de capital dessa Nova Jerusalém. Não há, no entanto, anarquia. Em vez
Esse arranjo do espaço junto com a dela, vamos encontrar a monarquia,
morfologia social característica das vilas apoiada na convicçao absoluta que ti­
santas define uma anti-estrutura, nos nham os caboclos da legitimidade dessa
termos consagrados pelas análises de forma de governo. Desejavam o império,
Victor Turner. Anti-estrutura em vários "esse ('h) que estamos esperando e se
sentidos, pois reúne O que estava disper­ Deus quiser havemos de ter nem que
so e dá central idade ao que estava na chova sangue"."
margem, opondo-se aos lugares tradicio­ A monarquia sertaneja tem uma vida
nais da autoridade e do poder constituí­ cerimonial muito rica. Os churrascos
do - as cidades de Lajes, Canoinhas e sDo verdadeiras refeições morais, no sen­
Curitibanos, que os "fanáticos" querem udo durmellluano. Nota-se em tudo um
destruir e reedificar sobre base� sagra­ grande eSlOrço Simbólico, que começa
das. Anti-estrutura também no que tange pelo território do próprio reduto, nuclea­
à ordenação das relações sociais. No in­ do pelO quadro santo e eivado de "cru­
terior dos "redutos" as formas tradicio­ zeiros", "calvários" e outros sacel/a. Os
nais do compadrio e da patronagem adeptos se reúnem em confraria, forman­
mudam. Os papéis sociais determinados do segmentos identificados por insfgnias
por sexo e idade se alteram e, em certos e orações paniculares. Cada irmão é
casos, se invertem. O mesmo acontece rebatizado e renominado, tem O cabelo
com as rotinas relacionadas ao uabalho. cortado à escovinha e a barba raspada.
O tempo se escande de forma diferente. Por isso eram ditos "pelados". Sob
Os "dias santos" se multiplicam. Duglas estandanes e bandeiras brancas, ornadas
Teixeira Monteiro observa que o calen­ por cruzes verdes ou azuis, entregavam­
dário das vilas santas é todo encarnado, se a uma variedade de elaborados ritos
em alusão aos dias marcados das "folhi­ processionais. O intercurso social quo­
nhas" e ao drama sacro que dá substân­ tidiano obedece a inúmeras prescrições,
cia aos personagens do milênio. que dão origem a uma autêntica etiqueta.
O recinto sagrado abriga uma socie­ Além disso, são desenvolvidos dis­
dade organizada de acordo com novas positivos de alocação de rcsponsabili-
MONARQUIA cotmtA REPÚBUCA 203

dade, com os seus correspondentes ritos De modo geral, as análises tendem a


de acusaçllo, julgamento e execuçllo. destacar nessa luta o seu caráter de guer­
A todo esse investimento simbólico rilha, rendendo talvez homenagem a uma
corresponde um esforço praglMtico de forma de combate promovida e ce­
igual intensidade. Era preciso manter um lebri7Jlda pelas insurreiçOes camponesas
sistema de comunicaÇllo entre os assen­ do nosso tempo. Destacam, sobretudo,
tamentos. Com isso se resolviam, além uma tática eficiente no enfrentamento
dos problemas de segurança, aqueles re­ dos dispositivos militares convencio­
lacionados com o aprovisionamento. A nais. Determinadas circunstâncias que
própria gesUlo das povoações exigia cui­ acompanham essa tática, no caso do
dados permanentes. Da mesma forma, o Contestado, embora consignadas na
contato com O mundo exterior precisava eUlografia, continuam, porém, a causar
de atenÇllo, pois era necessário manter admiração.
IigaçOes de natureza comercial, bem Para compreender a "guerra santa", é
como uma espécie de serviço de inteli­ necessário mais do que a referência às
gência. "bombeiros". suas funçOes manifestas (o confronto ar­
A iminência do "fim dos tempos" mado) ou latentes (a solidariedade do
desloca a vida para uma espécie de grupo). É preciso ir além. Devemos ad­
IMalrwn mlUldi," condensado de forma mitir a possibilidade de encontrar nos da­
exemplar na "guerra santa", que se apre­ dos disponíveis os materiais para a ela­
senta como algo inelutável, em conse­ boraçllo de implicaçOes até aqui ocultas.
qüência da interpretaçlio apocalíptica. Por isso, desejamos recordar, em poucas
Como O Quadema de A pedra do reino, linhas, como era a "guerra santa".
José Maria é um decifrador. Consegue As técnicas das escaramuças e da al­
penetrar no sentido do liber mundi. Vê ternância do fustigarnento e da retirada;
os sinais e os reconhece como emblemas o papel desempenhado, nesse particular,
do milênio.

pelo superior conhecimento do terreno;
Na prosa do mundo surgem as marcas a inventividade na composiÇão e utiliza­
da presença do anticristo. A casa de ção do armamento, explorando todas as
Deus está dividida. Abandonada a possibilidades; o equacionamento do
Monarquia, sucedem-se as lutas internas. grave problema do apoio logístico e da
A República separou a religião do atuação atrás das linhas inimigas - tudo
Estado, os estrangeiros têm precedên­ isso são fatos conhecidos e apreciados.
cia sobre os filhos da terra. Territórios Outros elementos, no entanto, além
são disputados.'" As rivalidades políti­ de desempenharem funçOes na aplicaÇllo
cas se multiplicam com a disputa das eficaz da tática de guerrilha, podem
concessOes fundiárias, configurando revelar-se importantes quando, para
um estado de confusão que equivale, além do dado militar, se trata de compre­
para o decifrador, ao anúncio da batalha ender a natureza dessa guerra_
fmal. Nas suas batalhas e refregas, os "fa­
Tudo gira, portanto, em torno da náticos" usam verdadeiras técnicas de
"guerra santa", que nllo é mais do que apavoramento. Bradam imprecaçOes e
uma antecipaçllo do connito derradeiro a esconjuros. Urram vivas estentórios.
ser travado contra os ímpios pelo exér­ Atroam os ares com salvas de foguetes.
cito encantado de slIo Sebastião. Animados pelo clamor das mulheres, os
204 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/4

guerreiros se desencadeiam sobre O ini­ do mato e relalhados pelas aves de rapi­


migo em arriscadas investidas. na.
Esse desasoombro vai manifestar-se, Os relatórios de campo dos oficiais
principalmente, nos assaltos a arma detêm-se nesses fatos com repulsa e
branca A todas as fonnas de luta, os ca­ constemaçlio." O horror que expressam
boclos preferiram sempre a do tntrevt­ comprova não SÓ o impacto dessas prá­
ro. Arremetiam brandindo suas espadas ticas sobre o moral das tropas republica­
(muitas delas de paul, às quais davam nas, seu efeito de escarmento, mas taJ1l.;
nomes altissonantes, acometendo um bém a perplexidade dos homens diante
adversário no mais das vezes espavorido. das manifestações da originalidade radi­
São como espectros, quando apare­ cai do Outro.
cem de súbito saltando de uma dobra do Para a antropologia, a dislância tem
terreno, de trás de um pinheiro ou pe­ uma virtualidade positiva, por que, se­
nhasco, de denlJO das grolaS e matagais. gundo Roben Darnton, "os antropólogos
Sua indiferença diante da morte conver­ descobriram que as melhores vias de
te-se, nessas ocasiões, em verdadeiro acesso, numa tentativa para penetrM uma
entusiasmo. Combatem transfigurados cullUra estranha, podem ser aquelas em
pela máscara de GÓrgona. %7 que ela aparece mais opaca. Quando se
Não queremos dar a essa evocação o percebe que não se está entendendo
aspecto de frivolidade erudita. Por isso alguma coisa - uma piada, um provér­
nos apressamos em estabelecer uma bio, uma cerimônia - particularmente
conexão significativa. O furor guerreiro significativa para os nativos, existe a
está presente, também, na epopéia de possibilidade de se deseobrir onde cap­
Carlos Magno, encarnado pela figura do tar um sistema estranho de significaçoo,
conde Roldao, porlador do cpíteto "Fu· a fim de decifrá-lo."'"
rioso". Esse era, ao que tudo indica, o Nesse aspecto, parece oportuno refe­
modelo da virtude guerreira dos serlane­ rir-se a mais outro fator de estranheza.
jos, atualizado não só na legenda do Em uma guerra cujo trunfo é a agilidade
Contestado, mas na gesta das lutas dos movimentos táticos, um adversário
políticas do Brasil meridional, de David que não deixa em campo um SÓ de seus
Canabarro e Bento Gonçalves a Gumer­ mortos há de parecer, sempre, incompre­
cindo Saraiva. ensível. Mais incompreensível ainda,
Além das divers.1s fonnas qualifica­ porque o mesmo zelo empregado na
das da violência que as análises têm remoção dos "innãos" caídos, vai apare­
apontado e discutido, vamos encontrar cer, também, na pertinácia com que são
no Contestado uma outra espécie de exumados os cadáveres do inimigo e na
violência - a violência inspirada." obstinação feroz com que é impedido
Esta alcança seu paroxismo na relaçlio seu sepultamento, quando os serlanejos
dos combatentes sertanejos com os cadá­ pennanecem senhores do terreno.
veres dos inimigos. CoslUmavam fare­ Todo esse empenho devia representar
los em pedaços. O verbo usado na des­ um acréscimo nada desprezível para o
criçlio é picar. Desenterravam os adver­ esforço de guerra. Sobrecarregava com­
sários mortos, deixando·os de bruços, batentes recém-saídos de peripécias ex­
com o crânio marcado por um talho em tenuantes, às volcas, ademais, com a
cruz, para serem fuçados pelos porcos trabalhosa edificação da vida santa.
MONARQUIA CONTRA REPÚBUCA 205

A retirada com mortos e feridos é, no aos adversários. Está claro, no entanto,


entanto, uma exigência consignada na que se trata de uma oposição comple­
própria organização das unidades de mentar. Cada parte desse díptico deve,
cambare. Os piquetes marchavam para a em conseqüência, se.- compreendida com
lUla após toda uma série de precauçOes referência à outra_
sacralizadoras. Eram abençoados junto Os "irmãos" não só têm de ser enter­
com suas armas e insígnias. Entoavam rados, como devem sê-lo no interior do
suas rezas de combate (coleúvas ou indi­ recinto sagrado dos redutos, ao cabo de
viduais) e traziam ao peito os "patuás" rituais cuja descrição não possuímos,
que lhes garanliam o "corpo fechado" e mas que nem por isso deiJtal110s de ima­
continham pequenos crucifixos em ginar elaborados. Alguns fragmentos,
madeira ou melai, fragmentos de oraçOes dispersos nos relatórios e depoimentos,
miraculosas e a "medida do santo" - apóiam essa suposição. Sabemos, por
uma fita com O comprimento correspon­ exemplo, que os enterrarnentos eram fei­
dente ao da allllra do monge." tos pelos dou pares de França. E o
Um piquete não era, como um regi­ general Setembríno faz referência à "fú­
mento, um conjunto de indivíduos nebre melopéia por alma dos irmãos que
aprestados para o combate. Era um con­ passaram do exército da terra para o dos

junto de pares de guerreiros. Cada qual invisíveis" dizendo que tal melopéia se
combatia lado a lado com um compa­ ouvia na manhã após uma escaramuça
nheiro. Um era responsável pelo outro, com os sertanejos nas cercanias de Pa­
evenwalmente para trazer de volta o seu panduva. Os inimigos da monarquia ser­
corpo.l2 taneja, ao contrário, não podem ser en­
Essa profusão simbólico-ritual torna terrados. E, caso já o tenham sido, toma­
pouco crível que o tralamento dado aos se necessário exumá-los. O caráter ex­
cadáveres dos inimigos correspondesse pressivo desse desentermmento equiva­
apenas a um surto irracional do ânimo le, portanto, à negação de um direito
profanatório, uma expressão grosseira da através de um enunciado riwal inequívo­
disposição de vingança. Contra essa idé­ co: os adversários do exército encantado
ia, fala, também, O fato de que esses não podem repousar na terra. Não po­
procedimentos eram sistemáticos. Não dem sequer permanecer inteiros. Devem
surgiam como conseqüência esporádica ser destroçados e servir de pasto aos
de combates mais encarniçados. Mani­ ammms.
• •

festavam-se com a recorrência escrupu­ Não estamos aí diante de uma mani­


losa dos com portamentos obsessivos. A festação de impiedade, como parece a
própria maneira de agir revela a presença alguns. A recusa do direito de inumação
do preceito_ Os inimigos eram desenter­ dos inimigos corresponde antes à rigo­
rados, picados, virados de bruços e mar­ rosa aplicação dos preceitos resultantes
cados. E tudo isso er8 tlIo obrigatório de uma certa concepção da terra e do
quanto os rituais de inumação dos "ir­ papel desta na economia do milênio.
mãos" mortos na peleja O glande connito social do Contesta­
Estamos, pois, diante de um rito mor­ do nasce, em última instância, do desa­
tuário. Ficarnos desconcertados, porque cordo quanto a esse valor fundamen­
este se desdobra nas duas vertentes desti­ tai que é a terra. Com relação a ela, de­
nadas, uma aos companbeiros, a outra senvolve-se toda uma política do signifi-
206 ESnJOOS lDS1'ORIcos - 1989/4

cado." Esta envolve diferemes alOres cu­ os faulOres do caos, que se estabelece

jas orientações cognitivas slIo mais ou preciSll1TU!nte a propósilO da terra


menos discrepantes e concollentes. Recapitulada de modo livre, para que
Para os uustes estrangeiros, corporifi­ se evidencie a dimensão metafórica do
cados pela Soulhem Lumber e pela processo, a história poderia ser cont:v!a

Brazil Railway, a terra é um objelO ne­ da seguinte maneira: expulsos de suas


cessário para o empreendimento de co­ terras os caboclos começaram a vagar.
,

lonilÃlÇllo, na medida em que lhes pro­ Em determinado momenlO, vieram a


porciona as possibilidades de lucro ca­ reunir-se numa festa. Era uma festa
pazes de tomá-los abaente para os seus cristli, em lOmo do Bom Jesus que, na
investidores, sob a forma de dividendos agreste teologia sertaneja, represenla o
pagos aos acionistas. padecimento da terra sob a opressão dos
Para O governo federal, ela represen­ rigores invernais. Na festa enconuaram
ta, sob a espécie da terra devoluta, um um santo homem. MuilOs o conheciam
recurso em potencial. Este é passível das em virtude dos seus prodígios. Em IOmo
mais diversas utilizações no jogo polfti­ dele se juntaram e, segundo alguns,
co, onde vai aparecer sob a forma de proclamaram a "monarquia", em meio a
concessão, negociada em uoca de uma grandes festas, "vivas" e foguetórios.
contrapartida cuja natureza e relOmo Com isso teve início uma grande encena­
podem variar de acordo com as inOexOes ç1lo, lalvez a maior já conhecida por
dadas ao projeto de naÇllo que se preten­ qualquer festa de arraial nos sertOes
de implementar. brasileiros. O santo homem, no enlanlO,
Para Santa Catarina e o Paraná, a foi obrigado a fugir perseguido pelos
terra, sob a espécie do territ6rio, implica seus inimigos. LulOu contra eles e foi
o maior ou menor peso polftico no mono, mas disse que ia voltar. Ia apare­
contexlO da federaÇllo. Sob a forma de cer um ano depois, no lugar da antiga
eSlOQue de terras devolutas, servirá às fesla. Viria com o exércilO encantado.
oligarquias esladuais como recurso poli­ Todos acredi taram e, na época cena, se
tico para a expansllo e consolidaÇllO de reuniram outra vez. Era a época do mi­
suas redes de alianças dentro dos res­ lho verde e das melancias.
pectivos estados. Esta poderia ser a história mítica do
Os coroniis slIo os benefICiários p0- reencantamenlO do mundo nos senOes
tenciais das concessões que pode fazer do Contestado.
quem detém a máquina do governo esta­ Com esse reencantamenlO, enlJelanlO,
dual. Quando obtem terras por esse m0- a terra assumiu um novo significado.
do, ampliam seus recursos no nIvel local, Tomou-se um valor tão radical quanlO o
mas ficam comprometidos com uma paradigma dentro do qual vai adquirir
oligarquia no jogo político de seu eslado. seu novo sentido. De acordo com a mais
O último elo dessa cadeia sao os ser­ Iídima tradição, t·s<:a terra deixa de ser
tanejos, tradic ionalmente vinculados um objeto no jogo da riqueza e do p0-
pela patronagem aos potenlados locais. der, para desempenhar um papel funda­
Para esse segmento, a terra passou a mentai na economia da salvaÇllo.
significar a experiência exlJema do de­ Nos rilOs funerários do cristianismo,
sarraigamento. Em sua perspectiva, os enterrar os morlOS é um procedimenlO
demais protagonistas vão aparecer como necessário à passagem destes para o ou-
MONARQUIA CONTllA REPúBUCA 207

uo mundo. Na constelaçoo de me/áforas dos Fabrícios. Interpretada retrospectiva­


que falam dessa passagem, a temi ocupa mente, esta mostra-se como a verdadei­
um lugar cenlIal, como têm procurado ra conjuntura inaugural da "guerra san-
demonstrar alguns estudos" recentes ta".
sobre a morte e o lamento riwaJ em s0- Nessa qualidade, os (atos sucedidos
ciedades meditenâJleas, seja na tradição nos Campos do lrani são, sob vários as­
antiga, seja sob a égide do cristianismo. pectos, reveladores. Com eles a morte

A terra cabe reabsorver a carne que dela gloriosa e a recusa de sepultura aos cor­
proveio, pois o pó deve relomar ao pó. O pos dos inimigos assumem um caráter
paraJelismo dos destinos do corpo e da exemplar. A cada novo episódio do con­
alma, tao bem focalizado por Henz," flito reeditavam-se a bravura temerária e
permanece na tradiçoo crista da morte. A o arrebatamento entusiástico com que o
perfeita decomposiçoo do corpo atesta o monge e seus adeptos haviam combatido
êxito da passagem." De certa forma, sua primeira batalha contra as forças
pois, o caminho para o outro mundo republicanas. Do mesmo modo repetir­
passa pela lerra e pelo desempenho de se-ia o quadro sinistro dos cadáveres
ritos monuários apropriados. Dos que despedaçados e insepultos, bem como o
são enterrados sem eles, dos suicidas, surpreendente desaparecimento dos cor­
dos malditos e excomungados, dos mal­ pos dos "fanáticos", após cada refrega.
vados e dos imorais e daqueles que não Desde o primeiro momento há, por­
foram inumados, acredita-se estarem tanto, um evidente contraste no destino
condenados a vagar perpetuamente. que se dá ao corpo dos "irmãos" e na­
Esse significado encontra-se também quele que é infligido ao dos adversários.
no paradigma do milênio, ao qual ade­ É lIcito supor, igualmente, que o massa­
riram os seguidores de José Maria. cre dos Selenta praças do Regimento de
Quando eles enterram seus "irmãos" Segurança do Paraná pelos cerca de tre­
monos na uguerra santa" no rcc:inlo sa­ zentos seguidores de José Maria não
grado de seus "redutos", abrem-lhes o tenha se dado, simplesmente, em virtude
caminho mais direto para o exército en­ da superioridade numérica, mas também
cantado de são Sebastião, onde vai en­ (e talvez até sobretudo) pelo ímpeto
cenar-se definitivamente sua vida erran­ avassalador dos últimos.
te. Quando desenterram e desfiguram os A paixão dos combatentes senanejos
cadáveres de seus inimigos, sentenciam­ manifesta-se no tratamento a que foi
nos a uma errância perpétua, vedando­ submetido o corpo do coron el João
lhes de modo irrecorrfvet o acesso ao Gualbeno e tem seu paralelo mais elo­
milênio. qüente no zelo com que os adeptos de
É necessário continuar falando da José Maria cuidaram dos restos mortais
morte, para que os desdobramentos do deste. Basta reconlar como picaram os
lema permitam a compreensão mais níti­ despojos do primeiro e dispuseram em
da da funç!lo da temi nos ritos monllá­ seu sepulcro o cadáver de José Maria,
rios peculiares cuja atualizaçoo vai mar­ mantendo-se junto dele em vigília, como
car de forma indelével a "guerra santa" relata o depoimento Ferrante.n
do Contestado. Da mesma forma, como era necessá­
Com essa fmalidadc, temos de retor­ rio garantir ao monge a realização da
nar à morte de José Maria, no Faxihal passagem, depositando-o na terra para
208 ES11JDOS IUSTóRJcos - 1989/4

que dela pudesse ressurgir, era necessá­ que lbe concede a cosmologia cristã. Por
rio impedir o corofU!1 João Gualbeno e isso, não devemos nos surpreender
seus comandados de cumprirem este diante do elevado poder de contamina­
mesmo ciclo, evilalldo, pois, seu ingres­ çao desse valor ao longo da guerra.
so no milênio. Os dados etnográficos atestam que,
O destino desses últimos será, de res­ no decorrer do conflito, a preocupação
to, o mesmo que os "fanáticos" voo dar, das forças republicanas com o problema
em seus redutos, aos réprobos, quando da inumaçao dos cadáveres vai num
aparecem no seio da "innandade".31 Isso crescendo. Ocupam-se em disfarçar cui­
parece suficiente para demonstrar que os dadosamente as sepulturas de seus com­
procedimentos pelos quais se notabili­ panheiros para evitar o quadro aterrador
zaram os "fanáticos" eram decorrentes dos desenterrados. Mais para O fmal da
de uma interpretação sistemática da guerra, as próprias forças republicanas
própria idéia do milênio. parecem ter-se empenhado na exumação
Para tal hennenêutica, O advento do de "fanáticos"." A verossimilhança
milênio é inseparável da imagem de uma desses dados pode ser aferida pela fero­
batalha final entre as forças do bem e as cidade com que passou a travar-se a luta,
hostes do anticristo. O mal surge como sucedendo-se massacres e degolas, de
algo mais do que a simples ausência ou o outro ponto de vista inúteis e simples­
desvio do bem. É, ao contrário, en­ mente criminosos.
tendido como princípio ativo, e nessa A inumaçoo é, pois, um valor profun­
qualidade deve ser extirpado pela com­ do e partilhado das concepções cristãs a
pleta aniquilação dos que lhe são devota­ respeito da mone e do in gresso no outro
dos: neste caso, sob a espécie das forças mundo_
da República, essa forma inautêntica, Podemos agora retomar o termo faná­
ausente dos quadros originais da criação ticos até aqui usado entre aspas e por
ruvina.l9 suas virtudes denotativas. A violência
No contexto da "guerra santa", não inspirada resulta do caráter de "vivên­
há, pois, lugar para uma atitude piedosa cia" que tem o paradigma do milênio
em face do inimigo morto. A vida santa entre os senanejos do Contestado. Com
é uma palingenesia, um renascimento, ele, perde-se a noção da assimetria entre
uma regeneraçoo da ordem divina sobre o modelo e o que este inspira Não há

a terra. E o milênio encenado. Mais que mais a menor distância entre o homem,
isso, é o milênio vivido, do qual, no en­ possuído pela utopia, e sua ação. O mi­
tanto, faz parte a virnlalidade iminente lênio se constrói pela reiteraçao da dis­
do confronto final. Com relação a este é ciplina mística que se manifesta IaIlto
preciso se prevenir, cuidando de engros­ no minas (furor), que comprova o valor
sar as hostes do exército encantado, pela guerreiro do jagunço, quanto pela visão
ace;taçao da morte gloriosa, e rarefa­ que corrobora o carisma de sua crença
zendo, ao mesmo tempo, as meiras do O fanático surge, sob essa luz, como

anticristo, evitando a passagem dos seus O portador de uma crença irrelativa.


servos. Como visionário, toma-se completamen­
Nesse processo a terra vai aceder a te cego para a existência de quaisquer
um valor mais alto e mais fundamental. outros parâmetros, presa de summa
Com ele, retoma a dimensao axiológica admiraJio que sua fé suscita Pode-se
MONARQUIA CO>mlA REPúBUCA 209

afuroar sua perfeita identidade com o acontecimentos e nas análises posteri­


mundo tal como é concebido no paradig­ ores, deu sem pre margem a controvér­
ma do milênio, ao qual adere titcral e sias. No Coco delas estava a queslllo de
escrupulosamente. Religiosamente, de­ saber em que medida a pilhagem poderia
verfamos acrescentar, pois este é o sig­ (ou não) ser considerada como roubo,
nificado inerente ao adjetivo religwsus, delito agravado quando se uata de ca­
aplicado ao homem que cumpre integral­ dáveres, pois, nessas circunstâncias, ten­
mente os preceitos de sua fé sem deria a assumir nítidas conotaçOes de
ressenÚf-se deles como de um constran­ impiedade.
gimento. Para compreender o significado das
O milênio é, para os fanáticos do práticas de pilhagem, devemos reportar­
Contestado, uma realidade não apenas nos uma vez mais à natureza que os ser­
próxima, senão lnúma. Corresponde ple­ tanejos atribuem ao conllito. Chamam­
namente às suas expectativas e, dcsse no de "guem santa". Essa designação
modo, pode aparecer-lhes como a reali­ tem uma amplitude que não se revela de
zaçao de um anseio, quase como uma imediato. Não se refere apenas a uma
escolha. guerra em que os contendores pertencem
Com essa perspectiva, o quadro da a diferentes aJiliaçOes religiosas cujas
"guem santa" deixa de nos parecer tão esferas de innuência visam expandir-se
insólito. A começar pela morte gloriosa, às expensas uma da outra Tudo isso faz
nao SÓ passamos a compreender o para­ parte da "guerra santa", mas nao é sufi­
digma épico do guerreiro (furioso) das ciente para definir-lhe o caráter.
novelas de cavalaria, mas descobrimos, O grande modelo da "guerra santa",
para além dele, a atualizaçao do martírio que é parte da uadição cristA e que como
como paradig/TUJ radical de cristanda­ tal, impregna a literatura dos ciclos épi­
de.'" cos da cavalaria, pressupõe, na verdade,
O elMs da "guerra santa", determ ina­ uma dimensão escatológica. Na Europa
do pelo comportamento dos fanáticos, medieval a expectativa do milênio não
resulta, pois, da compreensão que estes está ausente do grande movimento das
têm do milênio. Para eles, entre as forças cruzadas conua os "infiéis". Da ideolo­
do bem e as do mal nao há qualquer gia das cruzadas faz parte a idéia da
medida comum. Aos republicanos costu­ guerra jusla. Ao combatente dessa
mavam referir-se como "caes" e à Repú­ guerra são assegurados a salvação
blica como "lei do cao". Essa rejeição de imediata, no caso de sua morte no
seus adversários para além' das Cronteiras desempenho da missão e corpos e bens
do humano aparece, ainda, na freqUente dos "infiéis", no caso de sua vitória"
designação destes como "bichos" e O valor que, sobre todos os outros,
"peludos". deve ser arrebatado aos "infiéis" é a
Com base nessa negação do laço tem. Não simplesmente como dimensão
comum fundamental de humanidade, o potencialmente ativa na reprodução
comportamento dos fanálicos com rela­ material da existência, mas na sua quali­
çao aos corpos dos "peludos" está longe dade de lerra sanla.
de se configurar como ato falto de pieda­ O imaginário crislAo permite assoc iar
de. O me�mo se poderá dizer da pilha­ à idéia de lerra sanla seja a topografia
gem, qu�, na crônica contemporânea dos legendária do' Evangelho, cujo centro é
210

Jemsa1ém (a TOla Santa propriamen!C cuidadosa semeadura dos justos que,


dita), seja a idéia de campo santo, lugar dessa forma, via renascer no exército
onde repousam os fiéis, aqueles que, por encamado de slIo Sebastilo. Neste senti­
ocasiao do milenio, podedIo figurar en­ do, a terra apresenta-se como sujeito em
Ire os justos. um proce<SO de transfonnaçlo capaz de
O em da uguaJ8 santa"
lO coovCi1et a "",ne gloriosa no começo de
medieval visava anebatar aos "infiéis" o uma nova vida, superaçllo definitiva da
Santo Sepulcro e com ele as relíquias e coodiçlo de despojamento e desamliga­
os demais lugacs 8aClalizados pela pai­ o...,to dos camponeses de Salla Cala­
do, morte e ressurreiçllo do Cristo. rina e Paraná.
Te"a santa, no entanJo, nlIo é apenas a Nao é exagero, pois, considetar que
da epopéia fundadora de Jesus. O !Cimo se eslava em face de uma sociedade in
se refere, com freqoéncia, aos recinlOS stal" NlScendi, autOnoma, ademais, pois
sacralizados dos cemiJérios cri�laOS, 80 nlIo dependia senllo dos I.... arsos e do
campo sanJo, do qual se excluem OS ré­ grau de mobilizaçlo dos próprios cabo­
probos, 8p(ISlatas. suicidas, excomunga­ clos. Por isso, uao deixa de ser inJeres­
dos, hereges impeni!CnJeS ou ouJros de san!C a especulaçllo sobre quais !Criam
qualquer forma malditos, como, por sido os resultados do proce<SO, se este ti­
exemplo, os infiéis (muçulmanos, ju­ vesse podido superar a comnwnitas es­
deus, pagaos). pontânea do surto quiliástico, ingrr.ssan ­
Ai; implicaçOes desse campo de des­ do na commwtitas normlltiva das fonnas
dobramento das metáforas para a ideo­ instibJcionais consolidadas. A luta e seu
logia da !erra no movimento do ConJeS­ lrágico desf....ho uao pennitiram, enJre­
lado slIo cruciais. Trazem -nos de volta às tanto, a rotinizaçllo do carisma.
motivaçOes do conflito. MosJramos, no E, por isso, o desenvolvimento pos!C­
início, o processo de despojamento a rior da ideologia da !Crra pertencerá,
que foram submetidos os sertanejos, para sempre, ao reino das conjecturas.
muitos dos quais haveri8ln de se juntar a Isso posto, desejamos concluir. Em
José Maria. Desencadeado o surto mile­ seu comenJário sobre a metáfora da esfe­
narista, vimo-Ios constitufrern sua rede ra de Pascal, Jorge Luiz Borges !ermina
de vi/as santas, para formar um auJênti­ por afirmar. "Qllizá la historia uni­
CO recinto sagrado. Sua vida denJro dele, versal és la historla tk la diversa en­
marcada pelo desenvolvimento da "guer­ tonaci6n de alg"nas metáforas."" A
ra sanla", revela um dado paradoxal. Os saga da "guerra santa" do Con!Cslado
fandticos deixaram de semear, como es­ nos proporciona, neste sentido, uma
tavam acostumados a fazê-lo, na sua noJável, porém nem sempre bem-in!Cr­
existência camponesa. Ao contrário, pretada infIexao 'da mNáfora da !Crra na
empenharam-se, encarniçadarnen!C, em hislÓria das lutas sociais dos sertlles
reservar a te"a santa aos corpos de seus brasileiros. A propósito das dificuldades
"irmãos". Esse fato, noullalmente atri­ de compreensllo dessa metáfora, nlIo há
buído às circunstâncias do estado de melhor a1l<lrnativa senao enfatizar o ca­
guena, admite, no entanto, uma in!Clpre­ ráJer precário e fugidio da aJribulaçllo do
IaÇIo simbólica significado. Palavras nao devem nos
A inumaçao dos fanáticos poderá, iludir. Michel Foucault goslava dos poe­
enUlo aparecer, à luz do milêllio, como a mas de seu amigo René Char, em espe-
MONARQUIA COImlA REPÚIIUCA 21 1

cial de um verso: "A história da huma­ vem a ser um movimenlO maquiavtl.ico no "00 ·
leiro do joao polhioo.
nidade t uma seqüência de sinônimos de
5. Cf. título dado por Mario Vara" Uou ao
um mesmo vocábulo: desmentir isso t .eu IOtil&nee em tomo dos epi.6dioe reladonadol

um dever," com o movimento de Canudos, no. Jert&t da


Bahia.
Se tivermos conseguido convencer
6. loca Ruivo comand.aria, mais urde, tropa.
nossoS leitores da densidade semântica de Ydf�GIIOS no& a&aqUCJ 801 "redutos" doi "ri·
do significante lerra, ajudando a esclare­ n6ticoa".
7. S6lvio Gonu,a era pernambucano, com·
cer o seu significado e papel na cosmo­ panheiro de Silva Jardim na ala mais allemlda e
logia milenariSIa do Conteslado; se ti­ dcrnocntica da a,itaçio iepublicana - a doi "re·
vermos semeado neles a salular descon­ public:ano& hillóricoa"-, rato que ajuda a esclare­
cer a .ua aWlçio no caJo.
fiança das in fcilaS a partir
8. cr. Proccno 806 (apud Vinhas de Queiroz,
da ótica "civ ilizada" do litoral; se lhes 1966: 100·101; grilos nouoo).
tivermos inspirado ·uma certa considera­ 9. A noçlo � ulada, aqui, no sentido que lhe
dlo a. an'lise. de Viaor Tumer, em especiaJ seu
çDo por esse catolicismo rústico, com
excdente tolO "ReliJ,iou. pandiam. and politica1
sua ag.este hermenêutica da escatologia Iction: Thom.. Becket ai lhe Council or
cristã; se, no nosso texto, a epopéia ser­ North ampCon", em Tumer, 1974:60-91.
10. Convbn rccoular que, em 1897, ocorre, no
laneja da "guerra sanla" tiver podido
diJlrilOde Campo Belo, o epiWdio conhecido como
surgir aos seus olhos em toda a sua "Canudinhos de uje.... objeto de violenta repres­
expressividade e grandeza, entl10 pode­ lio à tpoeo (cl. Vinhu de Queiroz, 1966:65·6).
1 1 . "Joio Maria" parece ler sjdo uma desi,­
mos considerar realizada nossa larefa no
n.açio cll ...
iJicat6ri.a, poli oom eue nome apare­
cumprimento dessa obrigaçao, que nDo cem v'rios mo",u cujo perf tl te Uscme1hL Para
encerra apenas o anseio do poela, mas OI habitanles doi seI1&:. meridionai., e.teI diver-
101 perlORaacn. te rundou em uma 11nica fi,ura:
lodo o dilema em tomo do qual a antro­
"alo 1010 Maria". Uma disculllo mais CJ.lensa
pologia procura tecer seu discurso. poder6 ser encontrada na biblioa1'1lfia .obre o
movimento, denacando-.e O.waldo R. Cabral
(1960) e Irei Pedro Sinzin, ( 1 93S). T.mbtm
Mauricio Vinhas de Queiroz (1966), Maria baura
No... Pereira de Queiroz. (1 951), Ou,lal T. Monteiro
(1974) e LAi. Mourto S' (1971) .. ocupom do
I. "Com um milto de ttisu::za e de raiVI, viam o
persona,cm.
,ovemo .poi.r I Companhia n. promoçio de
12 A configul"'Çlo da r6 aislJ relativamente
núcleos coloni.i •• onde ettran&cirol te c.­ ao advenl.O do milênio deve-se, wm deilO, "lo só
tabeleci.m DlS temi que antes oo!p'vam; viam OI
i reve1lçio contida no Apocalip'e, mas t.nblm
colonos Klem proce,ido. to aslutidoa, enquanto 1. inlerpretaçOes posteriores da e.catoloaia do
eles, verdadeirol hOlhuu d. TUia. nlo eram consi­
Novo Testamento, oonsaafad.. pela autoridade
derados. nem se lheJ dav. alenÇlo" (1homl, 1983: hCOlliê
iCI1 ulica dos Padres da lareja.
155-6).
13. CI. Orteg. y G.. ..� 1952:109.
2. "Por um. lona' c1lenlio 'do interior do
14. CI. Tumer, 1969 e MalrClOti, 1981.
Brasil, o culto do Bom JCSUI era celebrado pelos
15. TetllCmunho de Cantídio da Co.ta Moreira,
JefWlejOl depoia que haviam denubldo o mato em "Processo 806" , apud Vinha. de Queiroz,
para •• Illl' roçaI, mal Mia da queimadl Era um
1966:107.
rilO de n(tido c:an.ter .,firio; • ima,em do Bom
1 6. U lllhOl o a.ennG tal COiII\O Weber o aplica,
Jesus repruertlaYa o Cristo 'nU O corpo c:hc:io de
..rerindo-.. 10 probIem. lOcioI6&ia> do hUl6rio
chia", I' mio. amarradas, qurando um. cana relia;osa do. judeu., nos leuI Gcsammelte
yctde. Aoa fa6J kmbraYl • natun21. àquela alwra
AuJlllze zur Reliaionlloziolo,ic. (d, Wcber,
do ano mutilada pelo rrio. a seca e o mamado. 19IO-19�
mas que bccyc rc:nasceria após o rOlo e a se·
17. A fón'nula se irUpl1'1l no útulo do livro de
meadura" (Vónhu de Quciroz, 1 966:11). Maurice Halbwam., IA IOpogTlJpht. U,otdDire
3. CI. Soa ... 1931:19·20 (.pud Vinho. de
.
da �wa1tfiJu (.,. T.". SGiNcJ, Pari., PUF, I941.
Queiroz, 1966:92� 1 8. As hec"ombes con,ulufam, na .ua oriaem,
4 . Falu. a propósito, da "renauraçlo
ritoe nos quais eram 'Iauicados ali cem bois (c!.
monirquica", mais do que uma ücença semântica. SeyfTert, •.d.).
212 ESTUDOS IOSTÓRICOS - 1989/4

19. "AIOI'1l os velhos do ficar rnOÇOl. Vem I 43. "La esfen. de Puca1", em 8011C', Otra.
gucm de Sio Sebastiio. Vamos ser muito felize'" inquiliciones, 1960: 11.
rDoa.mento Lemos", Apld Vinhas de Queiroz.
1966: 1 24).
20. Queiroz, 1957.
2 1 . Vide biblioarafia. Blbllograflo
22. Com o pseudônimo de CriveJaro Mlft:ial,
DenncvaJ Peixoco publica, em 1920, no Rio de ALEXIOU, Margan::l_ 1974. TIv ,iJUlJJ Janvltl iII
Janeiro. o seu livro A C4mptV1NJ do CONutado G,.d " odÍlioft. Cambridge.. Cambridae Univer­
(opud Vinha. de Queiroz, 1 966). sily Prcu.
23. O. Monteiro, 1914:277. AZEVEDO, J. Lócio de. 1947. A ,volwç40 do 3«­
24. Apud Vinh.. de Queiroz, 1966: 1 52- Ixu,&tvtumo. Lisboa, LiVT'lfta aúsica..
25. "A me"rora teatral, nutrida pela In.diçlo
BOBBIO, N.; MA·" ElJCCJ, N.; PASQUlNO, G.
&Oti,. e medieval, volta lO tettro vjvo e toma-se
1986. DiciolláTio tU poUliu. Brunia, Editora
fonnl de CJ.pressio de um conceito lcocinlrico d.
Universidade de Brasai&.
vida humana que nem o teatro inglês. nem o
lranc€s conhecem" (Curtiu., 1957:1 48). Ver BORGES, Jor,e Luiz, 1960. Ot,as iIIqwUicioM�.
tamb6n Monteiro, 1974: 1 7 1 .
Buenos Aires, Et1'ICCt Editores.
26. "Mais tarde, em 1940, .s lerru calarinenscs BRAND ÃO. JunÍlo de Souu. 1985. T�tro ,TI,O.
nlo colonil.ldas foram lnCOiporadas eo Patrimônio Tragédia e CQllédia. Petrópolis. Vaus.
d. Uniio, que por SUl Vt7. passou . .lien... parte CABRAL, Oswaldo R. 1960. J040 Ma,io. Inter­
dells I outros, entre os quais . Madeira o,apecó­ preüÇÃo da campanha do ConlCltado. 510 Paulo,
Pepery W•., agra WJNÚJ aWJo mais Q silwaç40. Companhia Editora Nacional, Brasiliana, voJ.
WftQ 'In q.u nj" ia ali " iplicidtvú th IfJuJos (Ú 310.
...."., IrVsma d,ea" (Thom�. 1983:150; sriros nOl­ CA .... VAI.I10 FRANCO, Mari. Sylvia. 1969.
SOl). Ao mesmo tempo. cumpre lembnr que as lIonutu Ij."rts IIQ O'Mm e3C'O'lOCrato. 510
noúciu da Primeira Guerra Mundial, em que lu­ Plulo, IEB/USP.
tam muitos "reis", penetram nos sertões durante a
CURTIUS. Emsl Roben. 1951. Lit.,atwra eu.­
"guem ,anta", tendendo a coitoborar e reforçar a
,oplio • 140M Mldia la,iJI.a. Rio de Janeiro.
inlerpretaçio miJenarista.
MEC/lNL
27. A evocaçio mftiCl nio surge por aClSO.
DANFORllI. lorin. M. 1982. TIu Ma,lt ,i,wml
Nu cen.. de suem da llfada, a mhca,.. de
01 ,u.ral G,ue•. Photoaraphy by Aleunder
Górgona, o;preulo do poder de terror que ema­
Tsiara •. PrincelOO. Princetan UniversÍlY Pre.ss.
na do guerreiro, aparece na �gidc. de Alena, no
DARNTON. Roben. 1986. O g,OJIde mIJ.uoc,e tU
Clcudo de Asamenon, na face de Heitor e no da­
mQr de batalha de Aquiles. Cf. Vemant, 1988:49- ,0tol • Oll.1ro� .pis6dj
O$ da ltü,6,ÜJ cw'wo1

51. frallcuo. Rio de Janeiro, Graal


28. Carvalho Franoo, 1969; Monteiro, 1914. DE MARTINO, Ernesto. 1975. Mo,/e • piotllo
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31. Queiroz, 1951:203-4. OERENGOSKJ, Paulo Ramos. 1986. O MImD1'O­
32 Monteiro. 1974:231. tUllPWn'o do mlVldo ja,Wltço. Florian6poHs. Fun­
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GERSON. B,..s iJ. 19S5. Pequ.eM 1t;",6,", dos
36. D..,foM, 1982:49-52.
jaftÓticos do ColllultJdo. Rio de Janeiro. MECI
37. Apud Vinh.. de Queiroz, 1966:1 12-3.
INL. Cadernos de Culwra.
38. cr. Monteiro, 1974:163, nota 87.
IIAL8WACIIS, Mauricc. 1941. La 'opo,roplUe
39. Essa id�ia se cApressa numa Clr\I de Oico
li,efld/Jj,. du ellofl,ilu (E" Tu,. Sai",.).
Ventura, quando CIte afi""a que OI sertanejos nio
rcconhcci.-n a. lei_ do laVemo, pois a "lei que
I!.tudc de mémoire coUecUve. Paris, PUr:o

Deus deÍJtou no mundo" tinha sido "lei de rei" IIERTI-. Robc.rt.. 1910. Sociolo,ie ,eli,jetlS' e'
(Apud Vinhu de Queiro., 1966: 1 52). jolldo,•. Paris, PUF.
40. Cf. Monteiro, 1914:18, ..... 50. 11ISTORJA DO IMPERADOR CARLOS MAG­
41. Tumer. 1974:84 c sCls. NO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA. • 913.
42. Para a icU.ia da lucm justa veja-se do Traduzida do Clstelhano em portuguE. por J.
Tom" de Aquino, Summa theologica [JJ]]. I � I e . lho. Rio de Janeiro, 510 Paulo,
Mon:ira de Ca,....
40. Ver também ijobbio. Maueucci &: Pasquino Belo 1I0rilOnte/Paris e Usboa, Francisco Alva!
(1 986:571 -1). Aillaud, Alves ar. a•.
MONARQUIA CONTRA REPÚBUCA 213

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SEYFFERT, Oskar, t.d. - Encic/opedia c/dsica Amo Vogel é professor do Dqnrumenlo de
de milolog ia, religi6ft, biogra[lOs, literolwra, Orle Antropologia (tCHF/UFF), da Escola de Ar­
y tlJIligiiedtJdes. Buenos Aires. EI Aleneo Edito· quitetura e Urbanismo (UFF) e pertence 100 Pro­
rial. grama l-l.cso-Orasil.

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