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CAPíTULO 7 O DUPLO NEGATIVO:


UMA NOVA SINTAXE PARA
A ESCULTURA

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Em 1969, um jovem escultor chamado Richard


Serra realizou Mão "agarrando chumbo (fig. 179), um
filme de três minutos, repetitivo, austero e quase sem
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enredo. Estendendo-se da direita da tela até ocupar
quase todo o campo visual vêem-se uma mão e um
antebraço que se encarregam da totalidade da ação,
que consiste nas tentativas de Serra agarrar uma su-
...." cessão de tiras metálicas que caem pelo espaço da
imagem. O ritmo pulsante entre mão aberta e punho
lJ! cerrado, à medida que Serra busca deter os objetos
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em queda, é a única pontuação da seqüência espaço-
temporal do filme. Por vezes sua mão erra o alvo e o
.chumbo passa rapidamente por ela. Por vezes a mão
consegue agarrar, detendo a tira por um instante,
,.,: antes de tomar a abri-Ia a fim de permitir que o chum-
bo continue caindo. O' filme é inteiramente compos-
to dessas tentativas bem-sucedidas e frustradas de
agarrar - bem como do sentido da intensa concentra-
'15~ ção da mão, visualmente desprovida de um corpo, em
sua ação.
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Um dos aspectos surpreendentes desse filme é sua
11", incansável persistência - realizar uma determinada ta-
refa repetidas vezes, sem considerar o "sucesso" um
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292 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA o DUPLO NEGATIVO: UMA NOVA. SINTA.XE PARA A ESCULTURA 293

clímax particular qualquer; simplesmente acrescentar ca amplamente desacreditados hoj e em dia corno meios
uma ação específica à seguinte, tal como um náutilo Richard Serra (1939- ): de descobrir como é o mundo."
vai acrescentando câmaras à sua concha. Ao conside- agarrando chumbo Portanto, a idéia de "urna coisa depois outra" era
ramas), 1969. Filme.
rar a repetição uma forma de compor, uma demonstra- uma forma de furtar-se a estabelecer relações. Estava
ção de quase absurda tenacidade, o filme de Serra se presente nas pinturas criadas por Stella depois de
inscreve em uma tradição da escultura que se desen- 1960, com suas fileiras concêntricas ou paralelas de
volvera nos sete ou oito anos que antecederam sua rea- faixas idênticas, que preenchiam a tela com o que se
lização. E não apenas o seu filme, como também al- ......•.••. afigurava como uma repetitividade mecânica. É pos-
gumas esculturas que produziu naquele ano igual- sível encontrá-Ia na escultura produzida no início dos
mente: trabalhos como Peça moldada (fig. 180), produ- anos 60 por Donald Judd, nas fileiras de caixas afixa-
zida arremessando chumbo derretido no ângulo for- das a paredes em que a mesmice das unidades e a re-
mado entre o piso e a parede, arrancando a forma en- gularidade dos intervalos entre elas pareciam expulsar
durecida e colocando-a no centro da sala, depois repe- do ato de dispor ou organizar as formas qualquer pos-
tindo o gesto, formando, dessa forma, uma sucessão sibilidade de um "significado". O uso, por Dan Fla-
de tiras de chumbo, seqüenciais e muito parecidas, vin, de lâmpadas fluorescentes produzidas industrial-
como as ondas que se sucedem umas às outras em di- mente (fig. 182) vinha na esteira da abordagem de Stella
reção à praia. e Judd. Tal como a faixa de 10 em de largura prosai-
Em 1964, Donald Judd falou sobre essa qualidade de camente pintada ou a caixa comum pré-fabricada, as
repetição tanto em sua própria escultura (fig. 181) como lâmpadas não receberam nenhuma forma ou signifi-
nas pinturas de Frank Stella (fig. 196). "A ordem", escre- cado especial por parte do artista. A resistência ao sig-
veu, "não é racionalista e subjacente, mas é simplesmen- nificado, uma característica da lâmpada isolada, é
te ordem, como a da continuidade; uma coisa depois da
transposta para as composições criadas por Flavin a
outra." I Algum tempo depois, em uma entrevista cole-
partir de grupos de lâmpadas. Elas são afixadas à pa-
tiva, ele e Stella discorreram mais a fundo sobre o in-
rede em seqüências simples: uma lâmpada isolada,
teresse de ambos nessa composição de "urna coisa de-
depois um espaço, depois um par de lâmpadas e, en-
pois outra". Tratava-se, afirmaram, de uma estratégia
tão, ao fim de outro intervalo de parede, urna unidade
para escapar à composição relacional que identifica-
tríplice. Um traço característico da abordagem dos es-
vam com a arte européia. "A concepção deles baseia-
cultores minimalistas é a exploração de objetos en-
se toda no equilíbrio", observou Stella com respeito
contrados ao acaso, utilizados como elementos de urna
ao forrnalismo europeu. "Você faz uma coisa num can-
to e a equilibra com alguma coisa no outro canto."? Ao estrutura que se repete. Isso não se aplica somente às
explicar os motivos por que se opunha à composição obras que acabamos de descrever, mas também às filei-
relacional, Judd reforçou: "É que eles estão ligados a ras de Carl Andre formadas por blocos de espuma de esti-
uma filosofia - o racionalismo, a filosofia racionalis- reno (fig. 183) ou tijolos refratários, bem como as pilhas de
ta (... ) Toda essa arte está baseada em sistemas cons- chapas de vidro laminado criadas por Robert Smithson
truídos de antemão, sistemas apriorísticos; eles ex- (fig. 184). No final dos anos 60, encontramos o mesmo

pressam um determinado tipo de pensamento e de lógi- princípio igualmente em alguns trabalhos de Serra e
180. ESQUERDA Serra: Peca 182. ESTA PÁGINA, ALTO Dan Flavin
moldada, 1969. Chumbo: 10 em (1933- ): A árvore nominalista (Para
x 533 em x 762 em (atualmente Guilherme de Oekham). 1 963-64.
destruido). (Foto Peter Moore para Lãmpadas fluorescentes
Leo (astelli Gallery, Nova York) branco-leitosas, 243 em x 670 em x
10 em. John Weber Gallery, Nova
181. PÁGINA AO LADO, ALTO
York. (Foto John Weber Gallery)
Donald Judd (1928- ): Sem titulo
(quatro caixas), 1965. Ferro 183 ESTA PÁ.GINA, EMBAIXO Car!
galvanizado e aluminio pintado, Andre (1935- ): Recife, 1969.
83,8 cm x 358 cm x 76.2 em. 65 ehapc:; de espuma de estireno,
50,8 em .' ~2,8 em x 25,4 em.
-
Coleção Phiiip Johnson,
.-
o DUPLO NEGATIVO: UMA. ~IOVA SINTAXE PARA A. ESCULTURA 297

no uso, por Mel Bochner, de números manuscritos que


se prolongam em uma cadeia ao longo do espaço de
uma parede (fig. 185). "Uma coisa depois da outra" era
uma idéia inegavelmente presente como estratégia
composicional, mas que pudesse ser, como diz Judd,
"um meio de descobrir as feições do mundo", é bem
mais duvidoso.
Isso porque temos uma tendência a pensar que o
ato de descobrir como é determinada coisa significa
-- conferir a ela uma forma, propor para ela um modelo
ou imagem capaz de organizar o que, visto superfi-

184 ESQUERDA.Smithson Estrato


de vidro, 1967. Vidro, 30,5 cm x
274em. John We-ber Gallery, Nova
york. (Foto John l.Neber Gallery)
185.ALTO Mel Bochner (1940- ):
7i'êsidéias e sete procedimentos
(atualmente destruido/desmanchado),
.1971.Caneta hidrogràíica sobre fita
adesivaem parede do Museum of
Modern Art, Nova York, 27 de set.·1?
denovode 1971. (Foto Erie PoIlitzer)
186.DIREITAAnd y Warhol
(1928-87): Caixas de Brillo, 1964.
Acrilico com aplic.ação de si/k-screen
sobremadeira; ea da caixa, 43,18 em
x 43,18 em x 35,5 em. Coleção Peter
M. Brant, Nova York.

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298 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA

cialmente, parece um arranjo incoerente de fenômenos.


Esta, evidentemente, era a convicção dos construtivis-
tas quando passaram a elaborar modelos abstratos por
cujo intermédio pudessem representar a organização
da matéria. Por outro lado, "uma coisa depois da ou-
tra" parece o transcurso dos dias, que simplesmente se
sucedem um ao outro sem que nada lhes tenha confe-
rido uma forma ou uma direção, sem que sejam habi-
tados, vividos ou imbuídos de significado. Com esse
pensamento, poderíamos ser levados a indagar se Judd
estaria propondo, com essa fileira de caixas idênticas,
uma analogia com a matéria inerte - com coisas into-
cadas pelo pensamento ou não-mediadas pela perso-
nalidade. Ao fazer a pergunta nesses termos, começa-
mos a descobrir um vínculo entre o procedimento de
Judd com essas fileiras ou pilhas de caixas e o proce-
dimento de Duchamp, quase cinqüenta anos antes, com
seus ready-mades.
Por essa sua tendência a empregar elementos ex-
traídos do universo comercial, a arte minimalista tem,
portanto, uma fonte em comum com a arte pop: um
187. Andre: Alavanca. 1966.
interesse recém-despertado pelo ready-made ducham- Tijolos refrata rios. 10.16 em x
piano, que o trabalho de Jasper Johns, no final dos 914 em x 10.16 em. tnstalação.
"Estruturas Primordiais", Jewish
anos 50, tornara acessível aos artistas do início da dé- Museum, Nova York. (Feto John

cada seguinte (fig. 193). Contudo, há uma importante di- Weber Gallery)

ferença entre a atitude dos artistas minimalistas e pop


para com o ready-made cultural. Os artistas pop tra-
balhavam com imagens já altamente difundidas (fig. 186),
como fotos de artistas de cinema ou imagens de his-
tórias em quadrinhos, ao passo que os minimalistas se
valiam de elementos aos quais nenhum tipo específi-
co de conteúdo fora conferido. Por essa razão, conse-
guiam tratar o ready-made como uma unidade abstra-
ta e concentrar a atenção nas questões mais genéricas,
relativas a como se poderia dispor deste. Sua prática
consistia em explorar a idéia do ready-made de uma
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300 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA t:' O DUPLO NEGATIVO: UMA NOVA SINTAXE PARA A ESCULTURA 301

forma bem menos anedótica do que os artistas pop, a derrotar a idéia de um centro ou foco para cuja dire-
considerando antes suas implicações estruturais do que ção as formas estão voltadas ou em relação ao qual
suas implicações temáticas. são construídas. Chegamos a uma modalidade de com-
A primeira delas diz respeito às unidades básicas posição da qual a idéia de necessidade interna foi re-
de uma escultura e à descoberta de que determinados movida: a idéia de que a explicação para uma confi-
elementos - tijolos refratários, por exemplo - resisti- guração particular de formas ou texturas na superficie
rão ao aspecto de manipulação. A idéia de não terem de um objeto deve ser buscada em seu centro. Em ter-
sido fabricados pelo artista, mas sim para algum outro mos estruturais ou abstratos, os expedientes composi-
uso na sociedade em sentido amplo - na construção tivos dos minimalistas negam a importância lógica do
de edifícios -, confere a esses elementos uma obscuri- espaço interior das formas - um espaço interior que
dade natural. Será difícil, em outras palavras, inter- fora celebrado por boa parte da escultura do século
pretá-los sob uma perspectiva ilusionista ou identifi- XX até então.
car neles a alusão a uma vida interior da forma (da A importância simbólica de um espaço interior,
maneira como a pedra erodida ou talhada no contexto central, de onde provém a energia da matéria viva, a
de uma escultura pode aludir a forças biológicas inter- partir do qual sua organização se desenvolve como os
nas). Em lugar disso, os tijolos refratários permane- anéis concêntricos que anualmente se formam em di-
cem inexoravelmente externos, como objetos de uso e reção ao exterior a partir do núcleo constituído pelo
não como veículos de expressão. Nesse sentido, os tronco da árvore, tinha desempenhado um papel cru-
elementos ready-made são capazes de transmitir, em cial na escultura moderna. Isso porque, na medida em
um nível puramente abstrato, a idéia de simples exte- que a escultura do século XX rejeitou a representação
rioridade. realista como sua principal ambição e voltou-se para
Ao combinar vários desses elementos de modo a jogos bem mais genéricos e abstratos da forma, surgiu
formar um agrupamento que pudesse ser chamado de a possibilidade - o que não se deu com a escultura na-
composição esculturaI, os artistas minimalistas explo- turalista - de que o objeto esculpido fosse visto como
raram outra implicação ainda do elemento pronto para nada senão matéria inerte. Se Henry Moore e Jean
o uso. A produção em massa garante que cada objeto Arp foram notáveis no uso da pedra erodida ou do blo-
terá uma forma e um tamanho idênticos, impedindo co de madeira desbastado (fig. 189) não foi com o intui-
qualquer relação hierárquica entre eles. Por conse- to de oferecer esses materiais, não-transformados, ao
guinte, as ordens composicionais que, parece, devem observador de seus trabalhos. Em lugar disso, preten-
concorrer para essas unidades são as da repetição ou diam criar a ilusão de que, no centro dessa matéria
da progressão em série: ordens desprovidas quer de inerte, existia uma fonte de energia que dava forma e
pontos focais logicamente determinados, quer de li- vida a ela. Pretendiam estabelecer uma analogia entre
mites externos ditados internamente. Já examinamos a vagarosa formação dos estratos de rocha, ou das fi-
a atração dos minimalistas pela simples repetição co- bras da madeira, e o crescimento da vida orgânica a
mo método para evitar as interferências da composi- partir da minúscula semente que é seu ponto de parti-
ção relacional. Ligar elementos em seqüência sem uma da. Ao usar a escultura para criar essa metáfora, esta-
ênfase ou uma terminação lógica equivale claramente vam estabelecendo o significado abstrato de seu tra-
o DUPLO NEGATIVO UMA NOVA SINTft.XE PARA /1, ESCULTURA 303

balho; estavam afirmando que o processo de criação


da forma é, para o escultor, uma meditação visual so-
bre a lógica do próprio desenvolvimento orgânico.
N o caso de artistas como Gabo e Pevsner, que em-
pregaram um vocabulário bem mais geométrico e se
utilizaram dos materiais da era industrial, o conteúdo
imediato do trabalho é diferente, porém o significado
188. ESQUERDA Judd: Sem titulo
1965. Ferro galvanizado, 22,8 c~ x fundamental é semelhâiite. A escultura de Gabo (fig.
101,6 em x 78,7 em (cada bloco;
190) e Pevsner não gira em torno do plástico, do com-
22,8 em entre cada bloco). Colecão
Gordon Locksley. (Foto Rudolph· , pensado e da folha-de-flandres mais do que a de Moore
Burckhardt)
gira em torno do calcário ou do carvalho. Para os rus-
189. DIREITA Moere: Formas
internas e externas, 1953-54. Olmo, sos, a lógica da construção, dirigindo-se simetrica-
261,6 cm x 91,4 em. Albright-Knox mente para fora a partir de centros revelados, era uma
Art Gallery, Búfalo, Nova York.
Consolidated Purchase Fund. forma de apresentar visualmente o poder criativo do
(Foto Greenberg-May Prod. Inc.) pensamento, uma meditação sobre o crescimento e o
desenvolvimento da Idéia. Por trás da superfície de
suas formas abstratas havia sempre a indicação de um
interior, e era desse interior que emanava a vida da es-
cultura. Era esse o tipo de ordem, ou princípio cons-
trutivo, a que Judd se referira como "racionalista e
subjacente", e vinculado a uma filosofia idealista.
Contrariamente aos procedimentos de Gabo ou
Moore, os escultores minimalistas, tanto em sua esco-
lha dos materiais como em seu método de os compor,
tinham por objetivo negar a interioridade da forma es-
culpida - ou ao menos repudiar o interior das formas
como fonte de seu significado. Sua noção do real sig-
nificado de se descobrir "como é o mundo" excluía a
possibilidade de formularmos qualquer hipótese es-
tética segundo a qual pudéssemos investigar em pro-
fundidade o centro da matéria e dar-lhe vida metafo-
ricamente.
Não é de surpreender que tal postura tenha afetado
a reação desses artistas ao trabalho de seus contempo-
râneos. Escrevendo sobre a escultura de Mark di Su-
vero (fig. 191), por exemplo, Donald Judd objetava que
"[ ele] utiliza vigas como se fossem pinceladas, imi-
j.
304 CAMINHOS DA ES(ULTURA MODERNA
o DUPLO NEGATIVO: UIv1A NOV.lI. SINTAXEPAR'" A ESCULTUR.A305

tando movimento, à maneira de Franz Kline. Os mate- 190. ESQUERDA Gabo Construção
riais nunca apresentam seu movimento próprio. Uma vertical e cirétk» com motor n.o 2.
(Foto Musées Nationaux)
viga empurra, uma peça de ferro acompanha Um 191. ABAIXO di Suvero: Escada,
gesto; juntas, elas formam uma imagem naturalista e 1961-62. Madeira e aço, 190 em.
Coleção de Philip Johnson,
antropomórfica'". Conneeticut. (Foto Rudolph
No início dos anos 60, quando Judd emitiu essejul_ Burckhardt)
-~~
gamento negativo, o público da escultura moderna, em
sua maioria, considerou os termos de sua crítica alta-
mente perversos. Se, argumentavam, o significado não
..
deve brotar da ilusão do movimento humano, ou da in-
teligência humana afixando-se ao material pelo poder .-
de o escultor criar metáforas, como poderá a obra de
arte transcender sua condição de simples matéria, iner- .;
te e desprovida de sentido? Não estará Judd, nessa crí-
tica, negando à escultura sua única fonte de significa- .
do? Não estará defendendo a idéia de que a escultura
é totalmente desprovida de significado? Com efeito,
esse pressuposto de que o minimalismo representava
um ataque à própria possibilidade de significação da
arte constituiu a base da resposta inicial ao minirnalis.
mo - tanto por seus adeptos como por seus detratores.
O próprio termo minimalismo aponta para essa idéia
de uma redução da arte a um ponto de vacuidade, a
exemplo dos outros termos, como "neodadaísmo" e
"niilismo", utilizados para caracterizar a obra desses
artistas'.
Entretanto, Judd não estava sendo perverso nem
niilista em sua apreciação de di Suvero. Estava sim-
plesmente enfocando o trabalho de um contemporâ-
neo segundo um sistema de valores inteiramente no-
vo. Para compreender a natureza da obj eção de Judd
e, dessa forma, perceber com mais clareza o que o
minimalisrno buscava ativamente enquanto valor
positivo de um novo conceito de escultura, talvez seja
conveniente examinarmos novamente o que ele diz
sobre di Suvero. O elemento-chave na apreciação de
Judd é sua referência a Franz Kline e o paralelo que
.."."
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306 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA

traça entre as pinceladas de tinta preta sobre um fundo


branco feitas por este e as justaposições de vigas de
aço e madeira pelo primeiro. A acusação de Judd, tro-
cando em miúdos, é a de que não é mais possível tra-
balhar segundo a retórica da arte de Kline - uma retó-
rica identificada com os artistas americanos dos anos
50, os expressionistas abstratos - pois, prossegue Judd,
"[uma] larga parcela de seu significado é indigna de
crédito"; .
O significado mencionado por Judd como "indig-
no de crédito" é um significado atribuído ao expres-
sionismo abstrato por alguns de seus primeiros defen-
sores. Harold Rosenberg, por exemplo, descreveu tal
significado como a transcrição das emoções interiores
de um artista por meio de um "ato" pictórico ou escul-
tural. "A pintura que é um ato", escreveu Rosenberg,
"é inseparável da biografia do artista. A pintura em si
é um 'momento' na mistura adulterada de sua vida."
Ou ainda: "A arte (...) retoma em direção à pintura por
intermédio da psicologia. Como Wallace Stevens diz
acerca da poesia, 'é um processo da personalidade do
poeta' ."6
Ao falar nesses termos, Rosenberg está equiparan-
do a própria pintura ao corpo fisico do artista que a
criou. Da mesma forma que o artista é formado por um
espaço fisionômico exterior e um espaço psicológico
interior, a pintura consiste em uma superficie material
e um interior que se revela ilusionisticamente por trás
dessa superficie. Essa analogia entre o interior psico-
lógico do artista e o interior ilusionista da pintura per-
mite que se veja o objeto pictórico como uma metáfo-
ra das emoções humanas que assomam das profunde- 192. Willem De Kooning (1904- ):
zas desses dois espaços interiores paralelos (fig. 192). No Porta para o rio, 1960. Óleo sobre
tela, 203 em x 177,8 em. Acervo do
caso do expressionismo abstrato, Rosenberg enxerga The Whitney Museum of American
cada sinal sobre a tela ou cada posicionamento angu- Art, Nova York. Doação dos amigos
do The Whitney Museum 01
lar de uma peça de aço no contexto de uma intensa Ameriean Art. (Foto Oliver 8aker
experiência interna. Para ele, a superficie externa da Assoeiates)
308 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA o DUPLO NEGATIVO: UMA NOVA SINTAXE PARA A ESCULTURA 309

eu individual que supõe personalidade, emoção e sig-


nificado como elementos existentes em cada um de
nós separadamente. Como corolário de sua rejeição a
esse modelo do eu, Judd pretende repudiar uma arte
que baseia seus significados na ilusão como uma me-
táfora daquele momento psicológico privilegiado (por-
que privado).

-
Ao refletirmos sobre esse ataque à credibilidade de
um modelo ilusionista (ou interior) de significado na
arte, será proveitoso considerarmos as fontes imedia-
tas do minimalismo, em particular o trabalho de Jas-
per Johns, desenvolvido em meados da década de 50
e que constituiu uma crítica radical ao expressionismo
abstrato. No que se refere à escultura, essa crítica rea-
lizou-se em obras como as Latas de cerveja Ale, de
1960 (fig. 193), em que Johns fundiu duas latas de cer-
veja Ballantine Ale em bronze e depois pintou suas
superfícies, de modo a reproduzir o aspecto das latas
originais. Na pintura, Johns utilizou um método se-
193.Jasper Johns (1930- ): Sem
'C:.
melhante. Em Alvo com quatro rostos, de 1955 (fig. 194),
(Latas de cerveja Ale). 1960.
pintado, 13,9 em x 20,3 em por exemplo, o desenho do artista simplesmente re-
. x 12 em. Coleção, dr, Peter Ludwig,
.•", NovaYork. (Foto Rudolph urckhardt)
produz as divisões internas de um objeto produzido
comercialmente; sua exploração do desenho de um
alvo plano que se acha no comércio nega à pintura o
tipo específico de espaço ilusionista/sugestivo que con-
obra exigia que se olhasse para ela como um mapa que
taminara a arte americana do pós-guerra.
permitisse a leitura das correntes Íntimas que atraves-
O Alvo de Johns, ou suas Latas de cerveja Ale, ao
sam a personalidade - uma espécie de testemunho do
negarem a internalidade do quadro expressionista abs-
eu interior e inviolável do artista. Uma vez que a escul- trato, rejeitam, ao mesmo tempo, a interioridade de seu
tura ou a pintura eram compreendidas como um suce- espaço e o caráter particular do eu para o qual esse
dâneo do artista, que se utiliza da linguagem da forma espaço servia de modelo. A rejeição por ele manifesta-
para transmitir sua experiência, os significados perce- da referia-se a um espaço ideal que existe anterior-
bidos no expressionismo abstrato dependiam da analo- mente à experiência, esperando para ser preenchido, e
gia entre a inacessibilidade do espaço ilusionista e a a um modelo psicológico segundo o qual o eu existe
intensa experiência da privacidade do eu individual. repleto de seus significados, anteriormente ao conta-
Quando afirma que tais significados não são mais to com seu mundo. O tratamento do ready-made por
dignos de crédito, Judd está rejeitando uma noção do Johns reforçava sua oposição a toda a idéia da arte
o DUPLO NEGATIVO UMA NOVA SIHTAXE PARA A ESCULTURA311

como pura expressão; seu entendimento deste condu-


zia não em direção, mas para longe, da expressão do
eu. Na verdade, Johns via no ready-made a indicação
do fato de não ser necessário vínculo nenhum entre um
objeto de arte final e a matriz psicológica de onde pro-
vém, uma vez que, no caso do ready-made, tal possibi-
lidade é inviável desde o princípio. A Fontaine (fig. 195),
por exemplo, não foi feita por Duchamp, mas apenas
selecionada por ele. Por conseguinte, não há meios de
o mictório poder "expressar" o artista. É como uma sen-
tença dirigi da ao mundo sem que seja sancionada pela
voz de um orador postado atrás dela. Uma vez que o
criador do objeto e o artista são evidentemente distin-
tos, não há meios de o mictório servir de exterioriza-

ESQUERDAJohns: Alvo com


rostos, 1955. Eneáustiea
jornal sobre tela, 66 em x
em - eneimado por quatro rostos
gesso. Museum oí Modern Art,
York. Doação do sr. e sra.
Scull.
DIREITADuehamp: Fontaine
nda vista, ver figo 58).
312 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA o DUPLO NEGATIVO: UMA NOVA SINTAX.EPARA A ESCULTURA 313

ção do estado ou estados de espírito do artista ao pro- este. Uma vez que nenhum dos dois dispõe de meio
duzir a obra. E, por não funcionar nos moldes da gra- algum para verificar os dados individuais indicados
mática da personalidade estética, pode-se considerar por essas palavras, nenhum dos dois pode verificar o
que a Fontaine estabelece uma distância entre si e a significado delas, e, portanto, os vocábulos que atuam
noção de personalidade per se. em um espaço público - passando entre os indivíduos
Johns e os artistas minimalistas insistiam em pro- - têm seu significado conferido a elas a partir do que
duzir obras que refutassem o caráter singular, privado é, na verdade, um espaço particular no interior de
e inacessível da experiência. Tal refutação fazia eco, cada orador.
no âmbito das artes visuais, a questões que haviam Essa questão da linguagem e do significado ajuda-
sido levantadas pelos filósofos interessados no modo nos, por analogia, a perceber o lado positivo da produ-
pelo qual a linguagem verbal comunica uma experiên- ção minimalista, pois, ao se recusarem a dotar a obra
cia interna, pessoal. A obra de Ludwig Wittgenstein de arte de um centro ou um interior ilusionistas, os ar-
em sua fase final, por exemplo, questiona a idéia da tistas minimalistas estão simplesmente reavaliando a
possível existência de algo que pudéssemos classifi- lógica de umafante particular de significado e não ne-
car como uma linguagem particular - uma linguagem gando um significado ao objeto estético em absoluto.
em que o significado é determinado pelo caráter sin-
gular da experiência interna do indivíduo de tal modo
'- Estão reivindicando que o significado seja visto como
originário - para estendermos a analogia com a lingua-
que, se aos outros não é dado ter essa experiência, não gem - de um espaço público e não privado.
lhes é dado conhecer verdadeiramente o que determi- Para que se veja como isso se dá em um meio de
nada pessoa designa com as palavras que usa para expsessão visual, talvez seja proveitoso examinar um
descrevê-lo. exemplo pictórico antes de abordarmos a escultura
iJ! Concentrando-se na linguagem da resposta psico- produzida pelos minimalistas e pelos artistas que os
tj
j:! lógica - as palavras empregadas para descrever im- sucederam no início dos anos 70. O trabalho de Frank
pressões dos sentidos, imagens mentais e sensações Stella prestou um importante serviço à escultura ao
il'-

i
pessoais -, perguntou se seria verdadeiramente impos- mostrar de que modo seria possível aproveitar o uso
sível qualquer verificação externa do sentido das pala- por Johns do objeto cultural ready-made para fins mais
vras que empregamos para indicar nossa experiência abstratos, mais amplamente generalizados.
pessoal, se o significado propriamente dito deveria ser Die Fahne Hoch! (fig. 196), uma pintura preta criada
refém daquele vídeo individual de impressões regis- por Stella em 1959, está relacionada à exploração por
m tradas pela tela do monitor mental de cada um. Pois, Johns do ready-made como uma estrutura externamen-
I[,i,' se isso fosse verdade, a linguagem estaria atolada em te dada, em particular a série deste baseada na bandei-
I' uma espécie de solipsismo no qual o significado "real" ra americana. Todavia, em lugar de utilizar um mode-
j
I
das palavras seria conferido a elas por cada um de nós lo de bandeira conhecido, Stella chega a uma configu-
!
!I; separadamente. Nesse sentido, meu "verde" e minha ração própria, extraindo um padrão de faixas do fato
! "dor de cabeça" indicariam aquilo que eu vejo e sinto, externo, físico, do formato da própria tela. Iniciando
I" da mesma forma que o "verde" e a "dor de cabeça" de nos pontos intermediários dos lados horizontais e ver-
i outrem designariam apenas o que é percebido por ticais, impõe às faixas uma declaração repetitiva e
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o DUPLO NEGATIVO: UM";. NOVA SINTAXE PARA A ESCULTURA 315

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,
ininterrupta da expansão dos quatro quadrantes da pin-
~
, ,
tura em um conjunto duplo de inversões espelhadas.
Nas pinturas posteriores em tinta de alumínio, em que
as telas são formadas por chanfraduras recortadas do
li retângulo pictórico tradicional, as faixas exercem uma
q
t. reverberação mais auto-evidente para dentro a partir da
~
forma do quadro e, dessa maneira, parecem depender
P mais abertamente ainda dessa característica literal

I~!.
\ do suporte pictórico. O efeito desse tipo de superfície,

Ir
I 196. Frank Stella (1936 - ): Die pontuada continuamente pela marca de sua extremida-
Fahne Hoch! 1959. Esmalte sobre
tela, 308 em x 185,4 em. Coleção sr. de, varre de si o espaço ilusionista, atingindo uma qua-
e sra Eugene M. Schwartz, Nova lidade plana que constitui uma inexorável apresentação
York.(Foto Rudolph Burekhardt)
do espaço pictórico como algo tão-so-mente externo.
~. Contudo, as marcas freqüentes nas primeiras pintu-
I~.
ras listradas de Stella são mais que simples expressões
r.l de suas formas literais ou do caráter plano de sua su-
perfície. Die Fahne Hoch! (assim como muitas outras
telas de Stella) chega a uma configuração particular,
a configuração de uma cruz. Poderíamos qualificar o
fato de acidental, é claro, da mesma forma que pode-
ríamos conceber como acidental o fato de a cruz pro-
priamente dita estar relacionada ao mais primitivo
signo de um objeto no espaço: a linha vertical da figu-
ra projetada contra a linha de horizonte de um fundo
implícito. Mas a relação tripolar amalgamada ao longo
da superfície listrada desses quadros é urna espécie de
argumentação em favor da ligação lógica entre o cará-
ter cruciforme de toda pictoricidade, de toda intenção
de localizar uma coisa neste mundo, e o modo como o
signo convencional- neste caso, a ClUZ - emerge natu-
ralmente de um referencial existente no mundo. En-
contramo-nos, em telas e mais telas, na presença de
um emblema particular, extraído do repertório comum
de signos - estrelas, cruzes (fig. 197), entrelaçamento em
anel etc. -, parte de uma linguagem que pertence, por
assim dizer, ao mundo e não à capacidade criadora
li! particular de Stella de inventar formas. Aquilo de que
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316 CAMINHOS DA ESCULTUR.A.MODERNA O DUPLO NEGATIVO: UMA NOVA SINTAXE PARA A ESCULTUR.A317

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Stella nos convence é uma explicação da gênese des-

II ses signos - porque percebemos, nessas pinturas, de


que forma eles nascem por meio de uma série de ope-
rações naturais e lógicas.
II A lógica da estrutura compositiva, portanto, é mos-
trada como inseparável da lógica do signo. Cada uma
parece responder pela outra e, ao fazê-lo, solicitam-
110S que apreendamos a história natural da linguagem
pictórica como tal. O verdadeiro mérito dessas pintu-

~
í
I
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11:.

197. ESQUERDA Stella: Luis Miguel ras é terem mergulhado por completo no significado,
Dominguin, 1960. Tinta de alumínio
sobre tela, 243,8 em x 182,8 em. mas ainda conseguirem fazer do significado em si uma
Coleção SL e sra Burton L. Tremaine. função da superfície - do espaço externo, público, que
Conneetieul. (Foto Rudolph
Burekhardt) de modo algum expressa os conteúdos de um espaço
198. ALTO Morris: Sem título (Vigas psicologicamente particular. O significado do expur-
em L), 1965. Compensado pintado.
243.8 em x 243,8 em x 60,9 cm
go do ilusionismo por Stella é ininteligível senão por
(cada). Coleção Philip Johnson, esse propósito de alojar todos os significados dentro
Connecticut. (Foto Rudolph
Burckhardt) das convenções de um espaço público.
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I-

318 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA o DUPLO NEGATIVO: UMA NOVA SINTAXE PARA A ESCULTURA 319
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I

A importância da arte surgi da nos Estados Unidos lados da terceira. Dessa forma, por mais claramente

!II no início dos anos 60 consiste em ter ela pautado tudo


pela precisão de um modelo de significação apartado
que possamos, entender que os três Ls são idênticos
(em estrutura e dimensões), é impossível enxergá-los
das pretensões de legitimidade de um eu particular. Tal como uma mesma forma. Por conseguinte, Morris pa-
é o sentido em que esses artistas compreendiam sua rece estar dizendo que o "fato" da similitude dos obje-
ambição como atrelada a um novo corpo de proposi- tos pertence a uma lógica que existe anteriormente à
ções sobre "como é o mundo". Dessa forma, se inter- experiência; isso porque, no momento da experiência,
pretarmos o trabalho de Stella, Judd, Morris, Andre ou na experiência, _os Ls derrotam essa lógica e tor-
Flavin ou LeWitt simplesmente como partes de um tex~ nam-se "diferentes". Sua "igualdade" pertence tão-so-
to de reorganização formal, estaremos negligenciando mente a uma estrutura ideal - um ser interior que não
o significado mais fundamental de seu trabalho. podemos enxergar. Sua diferença pertence a seu exte-
Os escultores minimalistas começaram com um rior - ao ponto em que despontam no mundo público
procedimento para declarar a externalidade do signi- de nossa experiência. Essa "diferença" consiste em seu
ficado. Como vimos, esses artistas reagiram contra um significado escultural; e tal significado depende do
ilusionismo escultural que converte cada material no vínculo dessas formas com o espaço da experiência.
significador de outro: a pedra, por exemplo, em carne Na proporção em que a escultura está 'constante-
- um ilusionismo que retira o objeto escultural do es- mente formando uma analogia com o corpo humano,
paço literal e o instala em um espaço metafórico. Es- o trabalho de Morris dirige-se ao significado projeta-
ses artistas recusavam a utilização de contornos e pla- do por nossos próprios corpos, questionando a rela-
nos para dar forma a um objeto de modo que sua ima- ção desse significado com a idéia de privacidade psi-
gem externa sugerisse um princípio de coesão, uma cológica. O artista está sugerindo que os significados
ordem ou tensão subjacentes. Tal como na metáfora, que criamos - e expressamos por intermédio de nos-
está implícito nessa ordem o fato de ela residir além sos corpos e nossos gestos - dependem por comple-
dos simples aspectos externos do objeto - sua forma to dos outros seres para os quais os criamos e de cuja
ou substância -, dotando o referido objeto de uma es- i visão dependemos para que esses significados façam
pécie de centro intencional ou privado. sentido. Está sugerindo que a imagem do eu como
Essa extraordinária dependência com relação aos um todo contido (transparente apenas para si mesmo
aspectos exteriores de um objeto, a fim de determi-j, e para as verdades que é capaz de constituir) se desin-
nar o que ele é, ocorre na escultura sem título elabo-' tegra diante do ato de vincular-se a outros eus e ou-
rada por Robert Morris em 1965 e que se utiliza de tras mentes. As vigas em L de Morris funcionam co-
três grandes Ls de compensado. Nesse trabalho (fig. mo urna espécie de cognato dessa franca dependência
198), Morris apresenta três formas idênticas em dife-
da intenção e do significado com relação ao corpo no
rentes posições com relação ao piso. O primeiro L é /, momento em que desponta no mundo em cada parti-
vertical, o segundo se apóia na lateral e o terceiro se r cularidade externa de seus movimentos e gestos - isto
I; é, do eu que se faz entender apenas na experiência.
apóia em suas duas extremidades. Tal disposição alte-
ra visualmente cada uma das formas, adensando o ele- ~ Ao concentrar-se no mo~en~o em que o trabalho
mento inferior da primeira unidade ou curvando os f se apresenta em um espaço público, Morns invalida o
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199a. b e c. Morris: Sem titulo modo em que a superfície, na escultura tradicional, é


(Peças de fibra de vidro) (trés vistas),
1967 Fibra de vidro, 119,3 em x entendida como o reflexo de um arcabouço ou uma
121,9 em x 120,6 em (quatro
peças); 120,6 em x 215,9 em x
estrutura interna preexistente. Em suas esculturas des-
119,3 em (quatro peças). Leo montáveis de fibra de vidro criadas em 1967, gera um
Castelli Gallery, Nova York. (fotos b
tipo de estrutura (figs. 199a, b e c) desprovida de qualquer

'I
:1 e c Rudolph Burekhardt)
~~
, ordem interna fixa, uma vez que cada escultura pode
ser (e era) continuamente reorganizada'. Portanto, a
,~. ,
r noção de um arcabouço interno rígido, capaz de refle-
Jl~ II
tir o próprio eu do observador - formado na íntegra
anteriormente à experiência -, desmorona com a ca-
pacidade das diferentes partes para mudarem de posi-

I
ção, para formularem uma idéia do eu existente ape-
nas naquele momento de externalidade e no âmbito
r"
I' daquela experiência.
11' Adereço de 1 tonelada (Castelo de cartas), de 1969
I
11
(fig. 200), dá prosseguimento ao protesto do trabalho de
Morris contra a escultura como metáfora de um corpo
dividido entre interior e exterior, em que o significa-
do desse corpo depende da idéia de um eu interno, par-
ticular. A simplicidade da forma da escultura sugere
inicialmente a presença de um arcabouço ideal subja-
I"
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~: 322 CAMINHOS DA ESCULTURAMODERNA
§ I' O DUPLO NEGATIVO UMA NOVA SINT.l\XEPl\Rll, A ESCULTURA323
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l!íj
ilil
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A ambição do minimalismo, portanto, era relocar
as origens do significado de uma escultura para o
exterior, não mais modelando sua estrutura na priva-
,1.1j cidade do espaço psicológico, mas sim na natureza
convencional, pública, do que poderíamos denomi-
nar espaço cultural. Com vistas a isso, os minimalis-
.!~
cente, pois assume a configuração de um cubo, forma tas adotaram um grande número de estratégias com-
que parece pertencer a uma lógica atemporal e não ao positivas. Uma delas era utilizar sistemas convencio-
momento de uma experiência. O objetivo de Serra, nais de ordenação para determinar a composição.
porém, é invalidar a própria noção desse idealismo ou Assim como no caso da utilização de signos conven-
~ cionais por Stella, tais sistemas resistem a uma inter-
,J
dessa atemporalidade, e fazer depender a própria exis-
tência da escultura de cada momento passageiro. Com
.~! esse fim, Serra constrói o Castelo de cartas apoiando 200. DIREITA Serra: Adereço de 1
~.'
tonelada (Castelo de cartas),
quatro placas de chumbo, de 250 kg cada, uma contra 1969. Chumbo, 121,9 em x 152,4 em
til'., x 152,4 em. Whitney Museum of
a outra, criando pontos de contato somente em seus Ameriean Art, Nova York. (Foto Peter
cantos superiores e sem utilizar meio permanente al- Moore)
201. ACIMA Judd: Sem título,
gum para fixá-Ias em sua posição. Dessa forma, Serra 1970. Cobre, 12,7 em x 175,2 em x
cria uma imagem da escultura como algo constante- 22,2 em. Leo Castelli Gallery, Nova
York. (Foto Eric Pollitzer)
mente compelido a renovar sua integridade estrutural
mantendo seu equilíbrio. Serra substitui o cubo en-
quanto "idéia" - determinada a priori - pelo cubo
como existente - criando a si próprio no tempo, em to-
tal dependência com relação aos aspectos de sua su-
perfície em tensão.
Serra parece declarar, nesse trabalho, que nós mes-
mos somos como o Adereço. Não somos um conjun-
to de significados privados que podemos escolher en-
tre tornar ou não público aos outros. Somos a soma de A
nossos gestos visíveis. Somos tão acessíveis aos ou-
tros quanto a nós mesmos. Nossos gestos são, eles pró-
prios, formados pelo mundo público, por suas conven-
iI, ções, sua linguagem, o repertóri o de suas emoções, a
partir dos quais aprendemos os nossos. Não por aca-
so, Morris e Serra produziam no exato momento em
que os romancistas franceses declaravam: "Eu não es-
I
'1 crevo; eu sou escrito."
I!
?'~

1
t
I
324 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA I

pretação como algo que emerge de dentro da perso-


I
nalidade do escultor e, por extensão, de dentro do
corpo da forma escultural. Em lugar disso, o sistema
de ordenação é reconhecido como proveniente de
fora do trabalho.
A escultura mural de Judd com o uso de progres-
sões aritméticas (fig. 201) é um bom exemplo disso. A
própria progressão determina o tamanho dos elemen-
tos, que se projetam em série, dos menores para os
maiores, pela extensão da escultura. A mesma progres- 202a e 202b. Sol LeWitt (1928 _ ):
I
são determina (mas em ordem inversa) o tamanho dos Cubo modular abertc (duas vistas),

I
1966. Aluminio pintado, 152,4 em x
espaços negativos entre os elementos. A própria inter- 152,4 em x 152,4 em. Acervo Art
Gallery of Ontario, Canadá. (Foto a,
pretação visual das duas progressões - uma de volu- John D. 5ehiff; b, Ron Viekers l.td.)
I
mes, a outra de vazios - converte-se numa metáfora da
dependência da escultura com relação às condições do I
espaço externo, pois é impossível determinar se é o
!
i
volume positivo do trabalho que gera os intervalos ou
se é o ritmo dos intervalos que estabelece os contornos
do trabalho. Dessa forma, Judd está representando a I
1
reciprocidade entre o corpo integral da escultura e o
espaço cultural que a rodeia. Os sistemas de permuta
explorados por Sol LeWitt (fiqs. 202a e 202b) em sua
escultura dos anos 60 são outro exemplo dessa estraté- I
gia de extemalizar o significado da obra.
Para Carl Andre, despojar a escultura das implica-
ções de um espaço interno não era uma simples ques-
tão de composição cumulativa, mas envolvia igual-
mente explorar o peso real dos materiais. Diante de
um dos "tapetes" de Andre, em que placas de diferen-
tes metais são dispostas borda a borda de modo a for-
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marem quadrados planos e alongados postos direta- ! ~'"'7,;$;...'

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mente no chão (fig. 203), o observador é levado a perce-
ber que o espaço interno está literalmente sendo es-
premido para fora do objeto escultural. A estratégia des-
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se trabalho é fazer do peso uma função do material, mes-
i,
mo enquanto os próprios materiais parecem, paradoxal-
li
mente, privados de massa. O caráter plano dos tapetes
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I,
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elimina dessas esculturas todo e qualquer sentido de pro-


fundidade ou densidade e, portanto, toda e qualquer su-
gestão de interior ou centro". Ao contrário, parecem es-
tender-se conjuntamente com o próprio piso em que se
encontra o observador. Contudo, a diferença percebida
de placa para placa refere-se à cor e à ref1etividade dos
diferentes metais, de modo que o que enxergamos nos
trabalhos é o registro do material como uma espécie de
absoluto. A qualidade de peso específico, das diferentes
pressões exercidas por cada placa de metal contra o piso,
203. ESQUERDA Andre Décimo
expulsa da escultura o espaço ilusionista.
segundo canto de cobre. 1975 Generativo de grande parte do que era importante
Cobre. 0.6 em x 600 em x 600 em.
Sperone Westwater Flscher. lnc.,
para os artistas mais jovens, a obra de Andre suscitou
Nova York especulações acerca da composição escultural que
204. ACIMA Eva Hesse (1936-70): não fosse nem relacionalnem baseada no princípio de
Ccnti naenre. 1969 Fibra de vidro
e gas e-de algodão emborraehada. "uma coisa depois da outra", em uma cadeia poten-
8 unidades. 289.5 cm-426,7 cm x cialmente infinita. Em lugar disso, seria possível uti-
91,4 em-121,9 em (cada) Coieeão
sr. e sra ''/iccar Ganz. ~Jova York lizar as propriedades inerentes a algum material espe-
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~í 328 CAMINHOS DA ESCULTURAMODERNA
~l
litr cífico para compor a obra, como se o que estivesse
I sendo abordado fosse a natureza como objeto pronto
para o uso e não algum aspecto da cultura, Esse traba-
lho, que passaria a ser conhecido como arte proces-
sual e que tinha em Eva Hesse um de seus principais
proponentes (fig. 204), tinha no princípio de transforma-
ção a lógica observáve1 do trabalho". Os tipos de trans-
formação empregados eram principalmente aqueles de
que as culturas se utilizam para incorporar as maté-
rias-primas da natureza, como a liquefação, com vistas
ao refino, ou o empilhamento, com vistas à construção.
Trabalhando com os processos de liquefação e lamina-
ção, ou de liquefação e modelagem, Hesse dota seus
objetos de imagens antropológicas, como se a atenção
dedicada à mudança inicial do bruto para o processado
i
a conduzisse para um espaço escultural em si mesmo i

extremamente arcaico.
I
i
Da mesma forma, o trabalho de Serra com chumbo
derretido está envolvido com as formas criadas duran-
te a solidificação do material, muito embora, confor-
me vimos anteriormente, o arranjo das ondas de chum-
bo solidificadas em sua Peça moldada estivesse menos
relacionado às propriedades inerentes do metal do que I
ao recurso composicional da repetição. Todavia, as
t 1
peças de aço empilhadas, feitas por Serra mais tarde
I'
naquele mesmo ano, combinam o uso do peso por
Andre, a fim de expulsar da obra o ilusionismo, com I
um uso das propriedades evidentes do material para

I
determinar, de dentro da escultura, onde sua composi-
ção termina. Pois Placas de aço empilhadas, escultu-
ra criada por Serra em 1969 (fig, 205), termina no ponto I
em que o acréscimo de uma única placa ao conjunto
acarretaria o desequilíbrio e a destruição da escultura. I
Como a resposta de cada placa à gravidade é o único I
aspecto estabilizador (e potencialmente desestabiliza-
dor) da escultura, o trabalho de Serra está limitado por 205, Serra: Placas de aço
empilhadas, 1969. Aço, 609,6 em x
outra noção de Andre acerca de como fazer da compo- 243,8 em x 304,8 em. Leo Castelli
sição escultural uma função dos materiais: "Meu pri- Gallery, Nova York.

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11,:" 330 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA O DUPLO NEGATIVO: UMA NOVA SINTAXE P)l,RA )l ESCULTURA 331

~t,
,~\ meiro problema", diz Andre, "foi encontrar um con- percebemos a distância conceitual que o separa do que
:! junto de partículas, um conjunto de unidades e, depois, normalmente esperaríamos encontrar no caderno de
combiná-Ias segundo leis específicas a cada partícula anotações de um escultor Em lugar de um inventário
e não segundo uma lei aplicada à totalidade do conjun- de formas, Serra registra uma relação de atitudes com-
:~I;
to, como colar, rebitar ou soldar?" portamentais. Percebemos, contudo, que esses verbos
Apesar da semelhança de seu princípio - o princí- são, eles próprios, os geradores de formas artísticas:
pio da aderência não-artificial das várias unidades do são como máquinas que, postas em funcionamento,
I(il: trabalho -, as Placas de aço empilhadas de Serra e as têm a capacidade de construir um trabalho. Trazem à
peças de Andre postas no piso são gramaticalmente lembrança a admiração de Duchamp pelas máquinas
i> distintas. O trabalho de Serra parece habitar o mundo de criação artística apresentadas por Raymond Roussel
do verbo transitivo, com sua imagem de atividade e efei- em Impressões da África, e da insistência do próprio
to, ao passo que a escultura de Andre ocupa um estado
Duchamp em uma atitude especulativa com respeito aos
1,1' intransitivo: materiais percebidos como expressões de
~
iI procedimentos de elaboração, Nesse sentido, podemos
sua própria existência. Por essa razão, é sem surpresa
ver a última indicação - "soltar" - combinada com um
que deparamos com uma longa lista elaborada por Serra
elemento posterior da lista de Serra - "agarrar" - co- '
para si mesmo em 1967-68 - uma anotação de trabalho,
mo a imagem dupla que deu origem ao filme Mão agar-
em cujo início se lê:
rando chumbo (fig, 179).

ROLAR Ao se meditar sobre a atividade de uma mão (vi-


VINCAR sualmente) desprovida de corpo, o filme explora uma
DOBRAR definição muito particular do corpo humano ao longo
ARMAZENAR
dos três minutos de sua projeção. Ao assistir ao filme,
CURVAR
ENCURTAR
I, compartilhamos o tempo real da concentração do es-
TORCER '~
cultor em sua tarefa e temos a sensação de que, duran-
TRANÇAR te esse tempo, o corpo do artista é essa tarefa: seu pró-
MANCHAR prio ser está representado por essa demonstração ex-
MANCHAR
ESMIGALHAR
terna de .comportamento contraída até uma única ex-
APLAINAR tremidade. O tempo desse filme é o "tempo operacio-
RASGAR nal" da "nova dança" descrita no Capítulo 6, e sua ima-
LASCAR gem corporal é, de forma semelhante, delineada pelo

II
PARTIR
"cumprimento de uma tarefa". Como o Adereço de 1
CORTAR
SEPARAR tonelada de Serra (ou os três Ls de Morris), o filme
SOLTAR" apresenta uma imagem do eu como algo a que se che-
ga, algo definido em e graças à experiência. Ao sepa-
Ao contemplar esse encadeamento de verbos tran- rar a mão do corpo, o filme de Serra participa também
sitivos, cada qual especificando uma ação particular a de uma lição ensinada anteriormente por Rodin e por
ser desenvolvida sobre um material não-especificado, Brancusi: a fragmentação do corpo é uma maneira de
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!;i!
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o DUPLO NEGATIVO: UMA NOVA SINTAXE PARA A ESCULTURA 333
r-
I
, libertar o significado de um gesto particular de uma
d impressão de que o mesmo é pré-condicionado pela

I estrutura subj acente ao corpo, compreendido como


um todo coerente. Muito embora seu estilo seja muito
diferente, Mão agarrando chumbo tem um significa-
do muito próximo ao de obras como o Balzac (fig. 25),
em que Rodin liberta visualmente a cabeça do pedes-
tal de seu corpo, ou o Torso de um jovem (figs. 75 e 76),
em que Brancusi representa a figura adolescente co-
mo um momento de puro erotismo pelo uso de um
fragmento.
;'10 Se apresentei até aqui o trabalho minimalista dos
I: últimos dez anos como um desenvolvimento radical
na história da escultura, isso se deve ao rompimento
professado por ele com relação aos estilos dominan-
tes que o precedem imediatamente e ao caráter pro-
fundamente abstrato de sua concepção". Existe, porém,
um outro nível em que esse trabalho pode ser encara-
do como uma renovação e uma continuação do pensa-
ij'!:
206a. Michael Heizer (1944- ): mento dessas duas figuras decisivas para a história da
Duplo negativo, 1969. Deserto
de Mohave, Nevada. (Foto escultura moderna em seus primórdios: Rodin e Bran-
Gianfranco Gorgoni) cusi. A arte de ambos representou uma relocação do
~- ponto de origem do significado do corpo - de seu nú-
:.:"' .~
cleo interno para a superfície -, um ato radical de des-
centralização que incluiria o espaço em que o corpo
se fazia presente e o momento de seu aparecimento. A
tese que venho defendendo até aqui é a de que a escul-
tura de nosso tempo dá continuidade a esse projeto de
descentralização mediante um vocabulário radicalmen-
te abstrato da forma. O caráter abstrato do minimalis-
mo dificulta o reconhecimento do corpo humano nes-
ses trabalhos e, portanto, dificulta nossa projeção no
espaço dessa escultura, deixando intactos todos os nos-
sos pré-julgamentos já sedimentados. Entretanto, nosso
corpo e nossa experiência de nosso corpo continuam a
ser o tema dessa escultura - mesmo quando uma obra
é formada por várias centenas de toneladas de terra.
':1'
;[:i::
I:

j.
li 334 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERN,ll.

ti
:1I o Duplo negativo (figs. 206a e 206b), uma terraplana-
:1
:i gem escultural de Michael Heizer, foi criado em 1969
no deserto de Nevada. Consiste em duas fendas, cada
qual com 12 m de profundidade e 30 m de comprimen-
to, escavadas no topo de duas mesetas situadas uma
defronte à outra e separadas por um desfiladeiro pro-
fundo. Dadas as suas dimensões enormes e a sua loca-
lização, a única forma de se experimentar o trabalho é
estando dentro dele - habitá-lo à maneira como ima-
ginamos habitar o espaço de nossos corpos. Porém, a
imagem que temos de nossa própria relação com nos-
so corpo é a de estarmos centrados no interior deste;
o conhecimento que temos de nós mesmos situa-nos,
por assim dizer, em nosso núcleo absoluto; somos to-
talmente transparentes a nossa própria consciência, de
uma forma que nos permite dizer: "sei o que eu penso
e sinto, mas ele não". Nesse sentido, Duplo negativo
não tem semelhança com a imagem que temos do mo-
do como habitamos nós mesmos. Pois, embora seja si-
métrico e possua um centro (o ponto intermediário do
desfiladeiro que separa as duas fendas), é impossível
ocuparmos esse centro. Podemos apenas nos colocar
em um dos espaços fendidos e olhar para a frente em
direção ao outro. Na verdade, é somente olhando para
o outro que podemos formar uma imagem do espaço ~'_::~_.;; .''. _
no qual nos encontramos. :;~'~~,;::,~; .._.~.~.;
Ao impor-nos essa posição excêntrica relativa- ,.. ..
mente ao centro do trabalho, o Duplo negativo suge-
206b. Heizer: Duplo negativo centros físicos e psicológicos. Entretanto, vai até mes-
re uma alternativa para a imagem que temos de nosso (segunda vista).
conhecimento de nós mesmos. Leva-nos a meditar acer- mo além disso. Uma vez que é necessário olhar atra-
ca do conhecimento de nós mesmos formado pela ati- vés do desfiladeiro para enxergarmos a imagem refle-
tude de se olhar para fora em busca das respostas dos tida do espaço que ocupamos, a extensão do desfila-
outros ao nos devolverem esse olhar. É uma metáfora deiro em si deve ser incorporada ao recinto formado
do eu tal como conhecido mediante sua aparência para pela escultura. Por conseguinte, a imagem de Heizer
o outro. reproduz a intervenção do espaço externo na existên-
O efeito de Duplo negativo é declarar a excentrici- cia interior do corpo, ali se alojando e formando suas
dade da posição que ocupamos relativamente a nossos motivações e seus significados.
<,
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,

336 CAMINHOS DA ESCULTURA rvlODERNA O DUPLO NEGATIVO: UMA NOVA SINTAXE PARAA ESCULTURA 337

Tanto a noção de excentricidade corno a idéia da in- salgado interior parecera, durante séculos, uma ex-
vasão de um mundo no espaço fechado da forma rea- centricidade da natureza, e os primeiros habitantes
parecem em outra terraplanagem escultural, concebida buscaram no mito uma explicação para o fato. Um
na mesma época que Duplo negativo, mas executada
207 _Smithson: Quebra-mar espiral desses mitos era o de que o lago estava originalmente
(segunda vista; ver figo 2).
no ano seguinte no Grande Lago Salgado em Utah. O (Foto Gianfranco Gorgoni) ligado ao Oceano Pacífico através de um gigantesco
Quebra-mar espiral, de Robert Smithson (1970), é uma
trilha formada pelo acúmulo de basalto e areia, com
4,5 m de largura e que avança 45 m em espiral pelas
águas vermelhas do lago em Rozelle Point (figs. 2 e 207).
Tal como Duplo negativo, Quebra-mar espiral desti-
na-se a ser fisicamente penetrado. Só é possível apre-
ciar o trabalho percorrendo seus arcos, que se estrei-
tam à medida que nos aproximamos do final.
Sendo uma espiral, essa configuração possui ne-
cessariamente um centro, que nós, como espectadores,
podemos efetivamente ocupar. Contudo, a experiência
do trabalho é a de estarmos sendo continuamente des-
centralizados em meio à vasta extensão de lago e céu.
O próprio Smithson, ao escrever sobre seu primeiro
contato com o local desse trabalho, evoca a reação
vertiginosa ao se perceber descentralizado: "Contem-
plando o local, ele reverberava para os horizontes su-
gerindo um ciclone imóvel, enquanto a luz bruxulean-
te fazia com que a paisagem inteira parecesse sacudir.
Um terremoto dormente propagava-se por uma imen-
sa circularidade. Desse espaço giratório surgiu a pos-
sibilidade do Quebra-mar espiral. Nenhuma idéia,
conceito, sistema, estrutura ou abstração podiam sus-
tentar-se diante da realidade daquela prova fenomeno-
lógica."'3
A "prova fenomenológica" que deu origem à idéia
de Smithson para o Quebra-mar resultava não apenas
do aspecto visual do lago, como também do que po-
deriamos chamar sua ambientação mitológica, a que
Smithson se refere com seus termos "ciclone imóvel"
e "espaço giratório". A existência de um imenso lago
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208a e 208b. Smithson: Um não-lugar
(Franklin, Nova Jersey). 1968. a. Mapa
aéreo; b. Caixas de madeira pintadas de
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bege cheias de pedras, 41,9 em x
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279,4 em x 27,9 em, Acervo do artista.
(Fotos John Weber Gallery)

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tábuas de duas polegadas por quatro
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pintados, 243,8 em x 914,4 em
(diâmetro). Institute of Contemporary
Art, University of Pennsylvania, 'iladélfia.
(Foto Will Brown)

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210 ACIMA À ESQUERDA curso d' água subterrâneo, cuja presença levava à for-
Smithson: Amarillo Ramp, 1973.
Argila xistosa de arenito vermelho, mação de perigosos redemoinhos no centro do lago.
.~ 4572 cm (diâmetro no topo).
Acervo do artista. (Foto Gianfranco
Ao utilizar a forma da espiral para imitar o redemoi-
Gorgoni) nho mítico dos colonos, Smithson incorpora a exis-
211a e 211 b. Serra: Desvio tência do mito ao espaço da obra. Assim procedendo,
(duas vistas), 1970-72.
Cimento, seis partes retilíneas, expande-se pela natureza daquele espaço externo lo-
152,4 em x 20,32 em (cada).
Acervo do artista, King City, Ontário.
calizado no centro de nossos corpos, que fora parte da
(Foto b, Gianfranco Gorgoni) imagem de Duplo negativo. Smithson cria uma ima-
gem de nossa reação psicológica ao tempo e do modo
como estamos determinados a controlá-lo pela cria-
ção de fantasias históricas. Todavia, Quebra-mar espi-
ral busca suplantar as fórmulas históricas com a expe-
riência de uma passagem momento a momento através
do espaço e do tempo.
Essa idéia de passagem, com efeito, é uma obses-
são da escultura moderna. Encontramo-Ia no Corre-
dor de Nauman (fig. 178), no Labirinto de Morris (fig. 209),
no Desvio de Serra (figs. 211 a e 211 b) e no Quebra-mar de
Smithson. E, com essas imagens de passagem, a trans-
formação da escultura - de um veículo estático e idea-
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,'i 342 CAMINHOS DA ESCULTURAMODERNA o DUPLO NEGATIVO UMA NOVA SINTAXE PARA A ESCULTURA343
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experimenta a madeleine e, graças à memória invo-


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luntária desencadeada por esse objeto, revive sua in-
!1 fância em Combray. Proust nos conta que tentara com
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freqüência controlar essas lembranças. Mas, afirma
11 I ele com respeito à memória voluntária, "é caracterís-
!I I tico que as informações que ela fornece do passado
não guardam o menor vestígio dele?", Poderíamos
!1
i i considerar as idéias clássicas de organização formal
como uma espécie de memória voluntária, que não
guarda "o menor vestígio" da experiência tal como
vivida. E poderíamos estabelecer uma analogia entre
os modos de cognição formulados pela escultura mo-
derna e o encontro com a madeleine. Essa escultura
convida-nos a experimentar o presente da maneira co-
mo Proust encontra o passado: "Ele está oculto, fora
do seu domínio e do seu alcance [da inteligência], nal-
gum objeto material (na sensação que nos dará esse
objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse obje-
to, só do acaso depende que o encontremos antes de

i; morrer, ou que não o encontremos nunca?".

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lizado num veículo temporal e material-, que teve iní- 212. Joel Shapiro (1941· ): Sem
título, 1974. Bronze, 34,3 em x
cio com Rodin, atinge sua plenitude. Em cada um dos 6,35 em. Museum 01 Modern Art,
casos, a imagem da passagem serve para colocar tanto Nova York. (Foto Geoffrey Clements)
o observador como o artista diante do trabalho, e do
mundo, em uma atitude de humildade fundamental a
fim de encontrarem a profunda reciprocidade entre ca-
da um deles e a obra.
Não há nada de novo nessa tentativa. Proust refe-
re-se a ela em um incidente no qual o Marcel adulto

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