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A
herdeira,
o
universo
de
A
Seleção
entrou
numa
nova
era.
Vinte
anos
se
Em
passaram
desde
que
America
Singer
e
o
príncipe
Maxon
se
apaixonaram,
e
a
?ilha
do
casal
é
a
primeira
princesa
a
passar
por
sua
própria
Seleção.
Eadlyn
não
acreditava
que
encontraria
um
companheiro
entre
os
trinta
e
cinco
pretendentes
do
concurso,
muito
menos
o
amor
verdadeiro.
Mas
às
vezes
o
coração
prega
peças…
E
agora
Eadlyn
precisa
fazer
uma
escolha
muito
mais
di?ícil
—
e
importante
—
do
que
esperava.
1
1
AS MÃOS DA MINHA MÃE ESTAVAM TÃO SUAVES, quase de papel. A sensação me fez
pensar em como a água lapidava as arestas de uma pedra. Sorri, pensando
em como ela devia ter sido uma pedra bem áspera em outros tempos.
— Você costumava errar? — perguntei. — Dizer as palavras erradas,
fazer as coisas erradas?
Esperei uma resposta, mas não recebi nada além do chiado do
equipamento e das batidas do monitor.
— Bom, você e o papai costumavam brigar, então deve ter errado
algumas vezes.
Apertei a mão dela com mais força, na tentativa de esquentá-la com a
minha.
— Fiz todos os anúncios. Agora todo mundo sabe do casamento de Ahren
e que você está meio… indisposta no momento. Cortei os rapazes para seis.
Sei que foi um corte grande, mas o papai disse que tudo bem e que também
fez isso na vez dele, então ninguém pode reclamar. — Suspirei. — Não
importa. Tenho a sensação de que as pessoas ainda vão dar um jeito de
reclamar de mim.
Pisquei para não chorar, preocupada com a possibilidade de ela sentir o
quão amedrontada eu estava. Os médicos acreditavam que o choque pela
partida de Ahren havia desencadeado o estado atual dela, mas eu não
conseguia deixar de pensar que talvez eu mesma tivesse contribuído para
seu desgaste no dia a dia, como pequenas gotas de veneno que a pessoa só
percebe que ingeriu depois de se intoxicar.
— Em todo caso, vou para a sala de reuniões presidir minha primeira
reunião com o conselho assim que o papai voltar. Ele diz que não vai ser tão
difícil. Para ser sincera, acho que o general Leger teve o trabalho mais
difícil de todos hoje, tentando fazê-lo comer, porque ele teimou muito em
ficar aqui com você. O general insistiu, porém, e o papai enfim cedeu. Fico
feliz por tê-lo aqui. O general Leger, quero dizer. É como ter um pai reserva.
Segurei a mão dela um pouco mais forte e me inclinei para sussurrar:
— Mas, por favor, não me faça precisar de nenhum outro parente, certo?
Ainda preciso de você. Os meninos ainda precisam de você. E o papai… acho
que ele pode desmoronar se você partir. Então, quando for a hora de
acordar, você precisa voltar, tudo bem?
Esperei por uma contração na boca, por um movimento dos dedos,
qualquer coisa que demonstrasse que ela podia me ouvir. Nada.
Bem nesse momento meu pai escancarou as portas, com o general Leger
logo atrás. Sequei as bochechas na esperança de que ninguém notasse.
— Viu? — frisou o general Leger. — Ela continua estável. Os médicos
teriam vindo correndo se algo tivesse mudado.
— Mesmo assim, prefiro ficar aqui — meu pai disse, decidido.
— Pai, você não ficou longe nem dez minutos. Chegou a comer?
— Comi. Conte a ela, Aspen.
O general Leger soltou um suspiro.
— Vamos fingir que ele comeu.
Meu pai lançou um olhar na direção dele que, para alguns, poderia
parecer ameaçador, mas apenas fez o general sorrir.
— Vou ver se consigo contrabandear um pouco de comida para cá. Assim
você não precisa sair.
Meu pai concordou com a cabeça e disse:
— Cuide da minha menina.
— Claro. — O general Leger piscou para mim. Levantei e o acompanhei
para fora do quarto, dando uma última olhada na minha mãe só pra
garantir.
Ela ainda dormia.
No corredor, o general estendeu o braço para mim.
— Está pronta, minha quase rainha?
Tomei o braço dele e sorri.
— Não. Vamos.
Avançamos rumo à sala de reuniões, e quase pedi ao general Leger para
dar mais uma voltinha pelo andar. O dia estava tão intenso que eu já
duvidava da minha capacidade de encarar os conselheiros.
Besteira, disse a mim mesma. Você já participou dessas reuniões milhares
de vezes. Quase sempre pensava as mesmas coisas que seu pai acabava
dizendo. Sim, é a primeira vez que vai chefiar a reunião, mas esse momento
sempre esteve à sua espera. E ninguém vai pegar pesado com você hoje. Sua
mãe acabou de ter um ataque cardíaco.
Abri a porta, determinada, e o general Leger veio logo atrás. Fiz questão
de cumprimentar os cavalheiros à medida que passava por eles. O ministro
Andrews, o ministro Coddly, o sr. Rasmus e um punhado de outros homens
que eu conhecia havia anos estavam sentados, ajeitando papel e caneta. A
srta. Brice parecia orgulhosa de me ver avançar até o lugar do meu pai,
assim como o general quando sentou ao lado dela.
— Bom dia — eu disse enquanto tomava a cadeira à cabeceira da mesa,
baixando os olhos para a pasta fina diante de mim. Ainda bem que a pauta
do dia parecia leve.
— Como está sua mãe? — a srta. Brice perguntou, solene.
Eu devia ter feito um cartaz para não ter mais que repetir.
— Dormindo ainda. Não tenho certeza da gravidade do estado dela no
momento, mas meu pai está ao seu lado, e vamos avisar quando houver
alguma mudança.
A srta. Brice abriu um sorriso triste.
— Tenho certeza de que ela vai ficar bem. Sempre foi dura na queda.
Tentei esconder a surpresa, mas não fazia ideia de que a srta. Brice
conhecia minha mãe tão bem. Na verdade, eu mesma não conhecia muito a
srta. Brice, mas ela pareceu tão sincera que fiquei feliz de tê-la ao meu lado
naquele momento.
Concordei com a cabeça e emendei:
— Vamos resolver isso logo para eu poder contar a ela que meu primeiro
dia no cargo foi ao menos um pouco produtivo.
As risadas criaram um suave burburinho na sala, mas meu sorriso se
desfez assim que li a primeira página que me foi apresentada.
— Espero que seja piada — eu disse, seca.
— Não, Alteza.
Voltei os olhos para o ministro Coddly.
— Acreditamos que se trata de uma ação deliberada para enfraquecer
Illéa, e visto que nem o rei nem a rainha deram consentimento, a França
basicamente raptou seu irmão. Esse casamento é uma traição, portanto não
nos resta escolha senão a guerra.
— Senhor, posso lhe garantir que não é traição. Camille é uma garota
sensata — eu disse com a cara fechada, odiando ter que reconhecer aquilo.
— Ahren é o romântico, e tenho certeza de que foi ele que a apressou, não o
contrário.
Fiz uma bolinha de papel com a declaração de guerra, sem vontade de
pensar naquilo por mais um segundo que fosse.
— Alteza, a senhorita não pode fazer isso — insistiu o ministro Andrews.
— Faz anos que as relações entre Illéa e a França são tensas.
— O que aconteceu tem mais a ver com o âmbito privado do que político
— interveio a srta. Brice.
O ministro Coddly gesticulou, enfático.
— O que torna tudo ainda pior, porque significa que a rainha Daphne está
se aproveitando de uma situação delicada para causar ainda mais
sofrimento à família real. Desta vez, somos obrigados a fazer algo. Diga a
ela, general!
A srta. Brice balançava a cabeça, frustrada, quando o general Leger falou:
— Tudo o que direi, Alteza, é que podemos acionar tropas aéreas e
terrestres em vinte e quatro horas, se você ordenar. Embora eu certamente
não a aconselhe a dar essa ordem.
Andrews bufou.
— Leger, diga a ela o perigo que está enfrentando.
O general deu de ombros.
— Não vejo perigo nenhum aqui. O irmão dela se casou.
— Aliás — questionei —, um casamento deveria aproximar os países,
não? Não era por isso que, por tantos anos, princesas se casavam com
herdeiros estrangeiros?
— Mas eram casamentos planejados — Coddly afirmou num tom que
dava a entender que eu era ingênua demais para aquela discussão.
— Como este — repliquei. — Todos sabíamos que Ahren e Camille se
casariam um dia. Só aconteceu antes do esperado.
— Ela não compreende — Coddly murmurou para Andrews.
O ministro Andrews balançou a cabeça para mim.
— Alteza, isso é uma traição.
— Ministro, isso é amor.
Coddly deu um soco na mesa.
— Ninguém vai levar a senhorita a sério se não for firme.
Houve um instante de silêncio assim que a voz dele parou de ecoar pela
sala, e a mesa inteira permaneceu imóvel.
— Pois bem — respondi calmamente. — Você está demitido.
Coddly riu, olhando para os outros cavalheiros à mesa.
— Não pode me demitir, Alteza.
Inclinei a cabeça para o lado, com os olhos fixos nele.
— Garanto que posso. Não há ninguém acima de mim na hierarquia neste
momento, e será fácil substituí-lo.
Embora tentasse ser discreta, a srta. Brice apertou bem os lábios
tentando não rir. Sim, ela com certeza era minha aliada.
— A senhorita precisa lutar! — ele insistiu.
— Não — respondi firme. — Uma guerra apenas traria mais desgaste
num momento já tenso para o país, além de causar uma ruptura nas
relações entre Illéa e o país a que agora estamos ligados por um casamento.
Não vamos lutar.
Coddly baixou o queixo e apertou os olhos.
— Não acha que está sendo muito sentimental nesta questão, Alteza?
Levantei, fazendo a cadeira chiar.
— Vou fingir que você não quer dar a entender com essa pergunta que,
na verdade, estou sendo feminina demais nesta questão. Porque, sim, estou
sendo sentimental.
A passos largos, fui até o outro lado da mesa com os olhos cravados em
Coddly.
— Minha mãe está num leito de hospital com tubos enfiados goela
abaixo, meu irmão gêmeo está em outro continente e meu pai mal se
mantém de pé. — Parei bem diante dele. — Tenho dois irmãos mais novos
para cuidar e acalmar depois de tudo o que aconteceu, um país para
governar e seis garotos no andar de baixo à espera de que eu ofereça minha
mão a um deles. — Coddly engoliu em seco, e senti uma minúscula ponta de
culpa pela satisfação que isso me proporcionou. — Então sim, estou sendo
sentimental agora. Qualquer pessoa que tivesse alma, nestas condições,
também seria. E o senhor, ministro, é um idiota. Como ousa tentar impor
uma situação tão monumental por causa de algo tão pequeno? Para todos
os efeitos, eu sou a rainha, e você não vai me coagir a nada.
Caminhei de volta à cabeceira da mesa.
— General Leger?
— Sim, Alteza?
— Há algo nesta pauta que não possa esperar até amanhã?
— Não, Alteza.
— Ótimo. Estão todos dispensados. E sugiro que todos lembrem quem
está no comando na próxima vez que nos encontrarmos.
Assim que parei de falar, todos exceto a srta. Brice e o general Leger se
levantaram e se curvaram — aliás, se curvaram bastante, percebi.
— A senhorita foi maravilhosa, Alteza — a srta. Brice disse assim que nós
três ficamos a sós.
— Fui? Veja só a minha mão — disse, mostrando a ela.
— Está tremendo.
Cerrei o punho, decidida a parar de tremer.
— Tudo o que eu disse estava certo, né? Eles não podem me forçar a
assinar uma declaração de guerra, podem?
— Não — o general Leger assegurou. — Como você sabe, sempre houve
neste conselho membros que acham que deveríamos invadir a Europa.
Acho que viram esta situação como uma oportunidade para tirar proveito
da sua pouca experiência, mas você fez tudo certo.
— Meu pai não declararia uma guerra. A paz sempre foi uma marca de
seu reinado.
— Exato — o general confirmou com um sorriso. — Ele ficaria orgulhoso
da maneira como você defendeu sua posição. Na verdade, acho que vou lá
contar para ele.
— Será que eu também deveria ir? — perguntei, de repente louca para
ouvir o pequeno monitor confirmar que o coração da minha mãe ainda
estava lá, tentando.
— Você tem um país para governar. Trago notícias assim que puder.
— Obrigada — respondi enquanto ele deixava a sala.
A srta. Brice cruzou os braços sobre a mesa.
— Está se sentindo melhor?
Fiz que não com a cabeça.
— Eu sabia que esta função seria difícil. Já tinha ajudado um pouco e
visto meu pai trabalhar dez vezes mais. Mas eu achava que teria mais
tempo para me preparar. Assumir o cargo agora, porque minha mãe pode
morrer, é pesado demais. E, depois de cinco minutos como a responsável
pelo país, tive que decidir sobre uma guerra? Não estou pronta para isso.
— Muito bem, primeiro o mais importante. A senhorita não precisa ser
perfeita ainda. Esta situação é temporária. Sua mãe vai melhorar, seu pai
vai voltar ao trabalho e você vai retomar o aprendizado com uma grande
experiência na bagagem. Pense neste período como uma oportunidade.
Respirei fundo. Temporário. Oportunidade. Tudo bem.
— Além disso, a senhorita não precisa tomar todas as decisões sozinha. É
para isso que servem os conselheiros. Concordo que eles não foram muito
úteis hoje, mas estamos aqui para que a senhorita não se sinta sem rumo.
Mordi o lábio, pensativa.
— Certo. Então o que faremos agora?
— Em primeiro lugar, mantenha-se firme e despeça Coddly. Isso vai
mostrar aos outros que a senhorita cumpre a palavra. Devo admitir que me
sinto meio mal por ele, mas acho que seu pai apenas o mantinha por perto
para ter uma espécie de advogado do diabo, que ajuda a avaliar todos os
aspectos de uma questão. Confie em mim, Coddly não deixará muitas
saudades — Brice reconheceu secamente. — Em segundo lugar, considere
este momento um período de aulas práticas para o seu reinado. Comece a
se cercar de pessoas em quem sabe que pode confiar.
Suspirei.
— Tenho a sensação de que todos em quem confio me deixaram.
Ela fez que não com a cabeça.
— Observe melhor. Provavelmente a senhorita tem amigos em lugares
que jamais esperaria.
De novo, passei a enxergar a srta. Brice sob uma nova luz. Ela tinha
permanecido no cargo por mais tempo do que qualquer outra pessoa, sabia
como meu pai tomava decisões e era pelo menos mais uma mulher na sala.
Ela me encarou, insistindo para que eu me concentrasse.
— Quem a senhorita tem certeza de que será sempre sincero? Quem vai
estar ao seu lado não porque a senhorita é da realeza, mas porque é quem
você é?
Sorri, certa de onde iria assim que deixasse a sala de reuniões.
3
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— EU?
— Você.
— Tem certeza?
Agarrei Neena pelos ombros.
— Você sempre me diz a verdade, mesmo quando não estou muito a fim
de ouvir. Você atura o que eu tenho de pior e é muito inteligente para
passar os dias dobrando minhas roupas.
Radiante, ela piscava para conter as lágrimas.
— Uma dama de companhia… O que isso quer dizer?
— Bom, é uma mistura que inclui fazer companhia, o que você já faz, e me
ajudar com o lado menos glamoroso da minha função, como agendar
compromissos e garantir que eu me lembre de comer.
— Acho que posso dar conta — ela disse com um sorriso.
— Ah, ah, ah — acrescentei, erguendo as mãos para prepará-la para a
parte mais empolgante do emprego. — Você também não vai mais precisar
usar esse uniforme. Então, vá se trocar.
Neena riu.
— Não sei se tenho um traje adequado para isso. Mas vou arrumar algo
para amanhã.
— Besteira. Escolha alguma coisa no meu closet.
Ela me encarou boquiaberta.
— Não posso.
— Humm, pode e deve. — Apontei para as portas amplas do closet. —
Vista-se, me encontre no escritório e vamos resolver tudo o que aparecer,
um dia de cada vez.
Ela fez que sim com a cabeça, como se já tivéssemos passado por aquilo
mil vezes, e me deu um abraço.
— Obrigada.
— Eu é que agradeço — insisti.
— Não vou desapontar a senhorita.
Me afastei, observando-a.
— Eu sei. A propósito, sua primeira tarefa é escolher uma nova criada
para mim.
— Sem problemas.
— Ótimo. Até daqui a pouco.
Saí do quarto me sentindo melhor por saber que tinha pessoas ao meu
lado. O general Leger seria a ponte para meus pais, a srta. Brice assumiria
como minha conselheira-chefe, e Neena me ajudaria a encarar a carga de
trabalho.
Menos de um dia havia se passado, e eu já compreendia por que minha
mãe achava que eu precisava de um parceiro. E eu ainda tinha intenção de
encontrar um. Só precisava de um pouquinho de tempo para descobrir
como.
ENTREI NA BANHEIRA E LOGO NOTEI que não havia lavanda nem sais nem
qualquer espuma de banho. Eloise era discreta e ligeira, mas não era Neena.
Suspirei. Não importava; pelo menos aquele era um espaço onde eu podia
enfim parar de fingir que sabia o que estava fazendo. Abracei os joelhos
contra o peito, finalmente livre para chorar.
O que eu ia fazer? Ahren já não estava mais ali para me orientar, e me
preocupava a ideia de que eu podia cometer um erro atrás do outro sem
ele. E por que ele ainda não tinha ligado? Por que não pegou o primeiro voo
para casa?
O que eu ia fazer se tirassem os tubos da garganta da minha mãe e ela
não conseguisse mais respirar por conta própria? De repente me dei conta
de que, embora eu jamais tivesse pensado em casamento e filhos de
maneira concreta e pessoal, sempre imaginei que ela dançaria em meu
casamento e faria meu primogênito dormir. E se ela não estivesse presente
para fazer isso?
Como eu assumiria o lugar do meu pai? Um dia só já tinha me cansado até
os ossos. Eu era incapaz de me imaginar fazendo aquilo todos os dias pelas
semanas seguintes, muito menos pelos anos que eu teria pela frente
quando assumisse o trono.
E como eu escolheria um marido? Quem era a melhor opção? Quem teria
mais aprovação do público? Aliás, essa pergunta era justa? Era a pergunta
certa a fazer nesse caso?
Sequei os olhos com a palma da mão como uma criança e desejei voltar a
um tempo feliz em que eu ignorava a quantidade de coisas ruins que
podiam acontecer num único dia.
Eu tinha poder e nenhuma ideia de como usá-lo. Era uma governante que
não sabia liderar. Uma gêmea sem meu irmão. Uma filha de pais ausentes.
Tinha meia dúzia de pretendentes e não sabia direito como me apaixonar.
A tensão que comprimia meu peito era suficiente para sufocar qualquer
um. Esfreguei o peito dolorido, me perguntando se o problema de minha
mãe tinha começado dessa maneira. Me sentei ereta, espirrando água e
tentando bloquear essa ideia.
Você está bem. Ela está bem. Você só precisa seguir em frente.
Me vesti e estava quase pronta para dormir quando ouvi uma batida
tímida na porta.
— Eady? — alguém chamou.
— Osten?
Ele espiou pela porta, com Kaden logo atrás. Corri até eles.
— Vocês estão bem?
— Estamos — Kaden garantiu. — Não estamos com medo nem nada do
tipo.
— Nem um pouco — Osten acrescentou.
— Mas não ouvimos nenhuma notícia da mamãe e pensamos que talvez
você soubesse de alguma coisa.
Dei um tapa na cabeça.
— Desculpem. Eu devia ter contado logo o que está acontecendo.
Fiquei muito irritada comigo mesma por ter acabado de passar vinte
minutos na banheira em vez de usar esse tempo para encontrar meus
irmãos.
— Ela está se recuperando — comecei, tentando escolher as palavras
com cuidado. — Está sedada para poder sarar. Vocês conhecem a mamãe.
Se estivesse acordada, ia querer correr atrás de nós para garantir que
estivéssemos cumprindo nossas obrigações. Desse jeito, ela vai descansar o
suficiente para estar saudável quando despertar.
— Ah — Osten ergueu os ombros, e percebi como aquilo tudo, por mais
que me abalasse, era muito mais difícil para eles.
— E o Ahren? — Kaden perguntou, roendo a unha, coisa que nunca o vira
fazer.
— Nenhuma palavra ainda, mas tenho certeza de que é porque ele ainda
está se adaptando. Afinal, é um homem casado agora.
A expressão de Kaden demonstrava sua insatisfação com a resposta.
— Você acha que ele vai voltar?
Respirei fundo.
— Não vamos nos preocupar com isso agora. Tenho certeza de que ele
vai ligar logo e nos contar tudo. Por ora, tudo o que vocês precisam saber é
que nosso irmão está feliz, que a mamãe vai ficar boa e que eu tenho tudo
sob controle. Certo?
Os dois sorriram.
— Certo.
A expressão de Osten mudou de perfeitamente calma para
completamente desesperada em segundos, e os lábios dele começaram a
tremer.
— É culpa minha, não é?
— O que é culpa sua? — eu quis saber, já ajoelhada diante dele.
— A mamãe. É culpa minha. Ela sempre me dizia para ser um pouco mais
comportado e depois passava a mão no cabelo como se estivesse exausta. É
culpa minha. Eu deixei ela cansada demais.
— Pelo menos você não a incomodava tanto com coisas da escola —
Kaden disse baixinho. — Eu sempre perturbava a mamãe para pedir livros
e professores melhores, e ficava fazendo perguntas quando ela tinha outras
coisas para fazer. Eu tomava todo o tempo dela.
Então todos se sentiam culpados. Perfeito.
— Osten, não pense isso. Nunca — insisti, puxando-o num abraço. — A
mamãe é uma rainha. Quando muito, você é a parte menos estressante da
vida dela. Sim, é difícil ser mãe, mas ela sempre podia vir correndo para nós
se precisasse rir um pouco. E quem é o mais engraçado de nós quatro?
— Eu — a voz de Osten saiu fraca, mas ele chegou a sorrir um pouco
enquanto esfregava o nariz.
— Exato. E Kaden, você acha que a mamãe prefere que você faça vinte
perguntas a ela ou que continue vivendo com as respostas erradas?
Ele mordeu a unha um pouco mais enquanto pensava na resposta.
— Ela prefere que eu faça perguntas.
— Viu só? E vamos ser sinceros: somos uma turma bem complicada, né?
— Osten riu e o rosto de Kaden se iluminou. — Mas não importa o que a
fazíamos passar, ela aceitava de bom grado. Ela com certeza preferia me
forçar a aprender caligrafia do que nunca ter tido uma filha. Ela preferia ser
a sua enciclopédia ambulante do que não estar próxima de nós. Ela preferia
implorar para você ficar quieto do que ter tido apenas três filhos. Nada
disso é culpa nossa — garanti.
Esperei os dois me darem as costas e saírem correndo, para tentar
superar o fato de que tinham exposto essa minúscula rachadura na
armadura deles. Mas eles não se moveram. Suspirei, ciente do que queriam
e disposta a perder um pouco do meu tão necessário sono por causa deles.
— Vocês querem dormir aqui?
Osten voou para a minha cama.
— Sim!
Balancei a cabeça. O que eu ia fazer com aqueles garotos? Me arrastei
para a cama. Kaden apoiou o corpo contra minhas costas enquanto Osten
descansava a cabeça no travesseiro do outro lado. Reparei que a luz do
banheiro estava acesa, mas deixei. Precisávamos de um pouco de luz no
momento.
— Não é o mesmo sem o Ahren — Kaden disse baixinho.
Osten chegou mais perto, se aconchegando.
— É. Não é normal. Falta alguma coisa.
— Eu sei. Mas não se preocupem. Vamos achar um novo normal. Vocês
vão ver.
De algum jeito, por eles, eu faria isso acontecer.
5
5
KILE PÔS A MÃO NA MINHA CINTURA e me conduziu pelo jardim. A lua estava baixa
e cheia, projetando sombras apesar da noite.
— Você foi espetacular hoje de manhã — ele disse, balançando a cabeça.
— Estávamos todos preocupados com a sua mãe, e é muito estranho não
ter Ahren por perto. E Kaden? Nunca vi o garoto tão… aturdido.
— É péssimo. E ele geralmente é o mais equilibrado.
— Não se preocupe demais. Faz sentido que ele esteja abalado agora.
Me aproximei ainda mais de Kile.
— Eu sei. Só é difícil ver isso acontecer com alguém que em geral não se
abala.
— Por isso o café da manhã foi ótimo. Eu achava que ia ser uma refeição
triste e que não daria para conversar sobre o que estava acontecendo, nem
sobre qualquer outra coisa, aliás. Foi incrível. Não se esqueça dessa sua
habilidade — ele disse, com o dedo apontado para mim.
— Que habilidade? Distração? — questionei, rindo.
— Não — ele respondeu, procurando as palavras. — Está mais para a
capacidade de deixar a situação mais leve. Quer dizer, você já fez isso antes.
Nas festas ou no Jornal Oficial. Você muda o clima. Nem todo mundo é capaz
disso.
Caminhamos até a beira do jardim, onde o terreno se abria num espaço
enorme e plano antes de a floresta começar.
— Obrigada. Isso significa muito para mim. Estava preocupada.
— Não há nada de errado em se preocupar.
— É mais do que a situação da minha mãe — comecei, mas logo parei.
Pus as mãos no quadril, pensando em quanto eu deveria dividir com ele. —
Ahren me deixou uma carta. Você sabia que o povo está insatisfeito com a
monarquia? Comigo, especificamente. E agora basicamente estou no
comando e, para ser sincera, não sei se vão me apoiar. Já jogaram comida
em mim uma vez. Li tantos artigos horríveis a meu respeito… E se quiserem
se livrar de mim?
— E se quiserem? — Kile brincou. — Opções não faltam. Podíamos virar
uma ditadura, aí o povo entraria na linha. Uma república federativa,
monarquia constitucional… Ah, teocracia, talvez! Podíamos entregar tudo
nas mãos da igreja.
— Kile, estou falando sério! E se me depuserem?
Ele tomou meu rosto nas mãos e assegurou:
— Eadlyn, isso não vai acontecer.
— Mas já aconteceu antes! Foi assim que meus avós morreram. Entraram
na casa deles e mataram os dois. E todo mundo idolatrava minha vó! — Já
sentia meus olhos marejarem. Argh, como eu estava chorona naqueles
últimos dias! Sequei as lágrimas, esbarrando nos dedos dele.
— Me escute. Aquilo foi coisa de um grupo radical. O movimento se
desfez, e o povo lá fora está ocupado demais vivendo a própria vida para
perder tempo atrapalhando a sua.
— Não posso apostar minhas fichas nisso — murmurei. — Sempre tive
certeza de algumas coisas, e quase todas desmoronaram nas últimas
semanas.
— Você… — Ele fez uma pausa, olhando bem nos meus olhos. — Você
está precisando parar de pensar um pouco?
Engoli em seco enquanto processava a proposta. Nós dois ali, a sós
naquela noite escura e silenciosa… Lembrava muito a noite do nosso
primeiro beijo. Só que dessa vez ninguém nos observava, ninguém ia
estampar nossa foto nos jornais. Nossos pais estavam longe, e nenhum
guarda seguia nossos passos. Para mim, isso queria dizer que, por apenas
um momento, não havia nada que me impedisse de ter o que queria.
— Eu faria qualquer coisa que você me pedisse, Eadlyn — ele sussurrou.
Balancei a cabeça.
— Mas não posso pedir.
Ele apertou os olhos, confuso.
— Por que não? O que eu fiz de errado?
— Não, seu idiota — repliquei, me afastando. — Pelo jeito… — Bufei. —
Pelo jeito você fez alguma coisa certa. Não posso beijar você como se não
fosse nada, porque não é como se você não significasse nada.
Olhei para o chão, ficando cada vez mais irritada.
— É tudo culpa sua, aliás! — acusei, lançando um olhar fulminante para
Kile enquanto andava de um lado para o outro. — Eu estava muito bem
sem gostar de você. Estava muito bem sem gostar de ninguém.
Antes de continuar, cobri o rosto com as mãos.
— E agora estou no meio desse furacão e tão perdida que nem consigo
pensar direito. Sinto algo por você e não sei o que fazer com isso. —
Quando juntei coragem suficiente para olhar para ele de novo, encontrei
um sorriso malicioso. — Pelo amor de Deus, não faça essa cara de
convencido.
— Desculpe — ele disse, ainda sorrindo.
— Você faz ideia de como é assustador dizer tudo isso?
Ele chegou mais perto.
— Quase tão assustador quanto ouvir tudo isso.
— Estou falando sério, Kile.
— Eu também! Em primeiro lugar, é estranho pensar no que tudo isso
quer dizer. Porque você vem com um título e um trono e uma vida inteira
planejada pela frente. Pra mim é insano tentar digerir isso. Em segundo
lugar, mais do que qualquer outra pessoa aqui, sei que você esconde o jogo.
Uma confissão como essa deve ter sido dolorosa.
Concordei com a cabeça.
— Não é que eu esteja com raiva de gostar de você… mas meio que estou.
Ele riu.
— É compreensível.
— Mas preciso saber, agora, antes de darmos qualquer outro passo: você
sente alguma coisa parecida por mim? Uma faísca minúscula que seja?
Porque, do contrário, vou ter que fazer alguns planos.
— E se eu sentir?
Levantei os braços e os deixei cair novamente.
— Ainda vou ter que fazer planos, mas diferentes.
Ele soltou um suspiro pesado.
— Eu também sinto algo por você. E não teria me dado conta disso se não
fosse pelos projetos que fiz ultimamente.
— Hum… Era pra ser romântico?
Ele riu.
— Não, de verdade, até que é. Geralmente eu me empolgo com projetos
de arranha-céus e abrigos para moradores de rua, coisas que vão ficar na
memória ou que podem ajudar as pessoas. Mas outro dia me peguei
projetando uma casa de verão para você, uma versão em miniatura de um
palácio ou talvez uma casa num vinhedo. Hoje de manhã tive a ideia de uma
casa de praia.
Fiquei boquiaberta.
— Eu sempre quis uma casa de praia!
— Não que daria pra gente usar se você governasse o mundo e tudo mais.
— É uma ideia fofa mesmo assim.
Ele deu de ombros.
— Parece que nos últimos tempos tudo o que eu quero fazer é para você.
— Isso quer dizer muito. Sei o quanto seu trabalho é importante para
você.
— Não é bem meu trabalho. É só uma coisa que eu gosto.
— Pois bem, então. E se, por enquanto, a gente encarasse nosso
relacionamento desse mesmo jeito? A gente gosta um do outro, sabe disso,
e agora vamos ver o que acontece.
— Justo. Não quero te desencorajar de jeito nenhum, mas acho que é
cedo demais para chamar isso de amor.
— Com certeza! — concordei. — Cedo demais para uma coisa tão grande.
— Tão complicada.
— Tão assustadora.
Ele riu.
— No mesmo nível de perder o trono?
— Dá pelo menos empate!
— Certo. Tudo bem, então — ele disse sem deixar de sorrir, talvez
também pensando em como era improvável gostarmos um do outro. — E
agora?
— Eu continuo com a Seleção, acho. Não quero te magoar, mas preciso
seguir em frente. Preciso ter certeza.
Ele concordou.
— Eu não ia querer se você não tivesse.
— Obrigada, senhor.
Permanecemos ali, parados, ouvindo apenas o vento na grama.
Ele limpou a garganta.
— Acho que precisamos de comida.
— Desde que eu não tenha que cozinhar.
Ele passou o braço pelo meu ombro e viramos para voltar ao palácio.
Parecia um gesto de namorado.
— Mas nos saímos tão bem na última vez.
— Só aprendi sobre manteiga.
— Então aprendeu tudo.
Na manhã seguinte, fui direto para a ala hospitalar, desesperada para ver
o rosto da minha mãe. Mesmo que ela estivesse dormindo, eu só precisava
de uma confirmação de que ela estava viva e se recuperando. Mas quando
abri a porta, ela estava sentada, bem desperta… e meu pai dormia.
Sorrindo, ela levou um dedo à boca. Com a outra mão, traçava linhas
delicadas no cabelo do meu pai, que estava deitado esparramado, metade
na cadeira e metade na cama, um braço debaixo da cabeça e o outro no colo
dela.
Em silêncio, fui até o outro lado da cama para dar um beijo na bochecha
da minha mãe.
— Eu acordo a noite toda — ela cochichou, apertando de leve a minha
mão. — Esse monte de tubos e fios me incomoda. E toda vez ele está
acordado, me observando. Ver seu pai dormir faz bem pra mim.
— Pra mim também. Ele andava meio acabado.
Ela sorriu.
— Ah, já vi pior. Mas ele vai superar isso também.
— Os médicos já vieram ver como você está hoje?
Ela fez que não.
— Pedi para virem depois que ele descansar um pouco. Volto para o
quarto depois.
Claro. Claro que a mulher que tinha acabado de ter um infarto podia adiar
a mudança para um lugar mais confortável para que o marido pudesse tirar
um cochilo. Sério, mesmo que eu encontrasse alguém, como se compararia
a isso?
— Como você está? Estão te ajudando? — minha mãe perguntou sem
parar de fazer cafuné no meu pai.
— Demiti Coddly. Acho que não contei pra você ontem.
Ela ficou imóvel, me encarando.
— O quê? Por quê?
— Ah, nada grave. Ele só queria começar uma guerra.
Ela cobriu a boca, tentando não rir do modo casual com que discuti a
questão. Um segundo depois ela parou de rir totalmente e levou as duas
mãos ao peito.
— Mãe? — perguntei alto demais, e meu pai levantou a cabeça no ato.
— Querida? O que houve?
Minha mãe balançou a cabeça.
— Só os pontos. Tudo bem.
Meu pai voltou a se ajeitar na cadeira; já não queria saber de dormir.
Minha mãe tentou retomar a conversa, fazendo de tudo para tirar o foco de
si mesma.
— E a Seleção? Como vão as coisas?
Fiz uma pausa antes de responder.
— Hum, vai bem, acho. Não tenho conseguido passar muito tempo com
os garotos, mas vou trabalhar nisso. Principalmente porque logo vai ter
Jornal.
— Sabe, querida, ninguém vai te culpar se você cancelar a Seleção. Você
passou por muita coisa na última semana e agora é regente. Não sei se
deveria tentar equilibrar as duas coisas.
— Os garotos são ótimos — meu pai comentou —, mas se estão tirando
demais o seu foco…
Suspirei.
— Acho que podemos parar de ignorar o fato de que eu não sou o
membro mais amado da família. Pelo menos não para o público em geral.
Vocês dizem que ninguém vai me culpar, mas tenho certeza que vão. —
Minha mãe e meu pai trocaram olhares. Pareciam querer refutar o que
tinha dito, mas ao mesmo tempo não queriam mentir. — Se quero ser
rainha um dia, preciso conquistar o povo.
— E você acha que encontrar um marido é a melhor maneira de
conseguir isso? — minha mãe perguntou desconfiada.
— Acho. Tudo gira em torno da imagem que fazem de mim. Acham que
sou fria demais. A maneira mais certeira de refutar isso é me casar. Acham
que sou masculina demais. A maneira mais certeira de refutar isso é
aparecer vestida de noiva.
— Não sei. Ainda tenho dúvidas sobre continuar a Seleção.
— Será que preciso lembrar que a ideia foi sua?
Ela soltou um suspiro.
— Ouça sua filha — meu pai disse. — Ela é uma garota esperta. Puxou
isso de mim.
— E você não quer dormir mais um pouco, querido? — ela perguntou
seca.
— Não. Estou me sentindo renovado — ele respondeu. Não sei se disse
isso para continuar a conversa ou se sentia necessidade de ficar de olho na
minha mãe. De um jeito ou de outro, era evidente que estava mentindo.
— Pai, parece que a morte em pessoa deu um soco na sua cara.
— Você deve ter puxado isso de mim também.
— Pai!
Ele riu e minha mãe também, de novo pressionando o próprio peito.
— Olha só! Suas piadas péssimas agora são um risco de morte. Você
precisa parar com isso.
Ele e minha mãe trocaram sorrisos.
— Vá fazer o que tem que fazer, Eadlyn — ela disse. — Vamos te dar todo
apoio que pudermos.
— Obrigada. Vocês dois, por favor, vão descansar.
— Ai, como ela é mandona — minha mãe lamentou.
Meu pai concordou com a cabeça.
— Eu sei. Quem ela pensa que é?
Lancei um último olhar para eles. Meu pai piscou para mim. Já não me
importava quem bateria de frente comigo naquele dia. Ao menos eu tinha
meus pais.
Me despedi e subi as escadas até o escritório. Fiquei chocada ao
encontrar um belo buquê de flores na minha mesa.
— Alguém acha que você está se saindo muito bem no trabalho, hein? —
Neena comentou.
— Ou acha que vou morrer de estresse e queria ser o primeiro a mandar
flores — brinquei, sem querer admitir o quanto tinha ficado feliz com a
surpresa.
— Anime-se. Você tem sido ótima — Neena disse, mas sem olhar para
mim. Ela olhava fixo para o cartão.
Puxei-o para perto do peito em meio às reclamações dela e o ergui o
suficiente para que apenas eu conseguisse ler.
Você parecia meio triste quando nos despedimos no outro dia. Queria que o dia de hoje
começasse mais feliz. Estou aqui para o que precisar.
Marid
Sorri e passei o cartão para Neena, que suspirou antes de voltar a olhar o
buquê enorme.
— Quem mandou isso? — o general Leger perguntou ao cruzar a porta.
— Marid Illéa — respondi.
— Ouvi dizer que ele fez uma visita. Só veio trazer presentes ou precisava
de alguma coisa? — o general quis saber, a voz tingida de ceticismo.
— Por incrível que pareça, veio para conferir se eu não precisava de algo.
Se ofereceu para me dar uma mão com o público. Sabe bem mais sobre a
vida das pessoas no período pós-castas do que eu.
O general Leger passou para o meu lado da mesa e olhou fixamente para
o arranjo extravagante.
— Não sei. As coisas não terminaram muito bem entre a sua família e a
dele.
— Eu lembro. Vivamente. Mas pode ser bom aprender um pouco agora e
me preparar para quando chegar a minha vez.
O general sorriu para mim, com o rosto mais ameno.
— Sua vez já chegou, Alteza. Tenha cuidado antes de decidir confiar em
alguém, certo?
— Sim, senhor.
Neena ainda agia meio deslumbrada.
— Alguém precisa dizer a Mark para se esforçar mais. Acabei de receber
uma promoção gigante. Cadê as minhas flores?
— Talvez ele planeje entregar pessoalmente. Muito mais romântico — eu
disse.
— Pfff! Do jeito que ele trabalha? — ela questionou, cética. — Se todos no
palácio morressem e eu por algum motivo virasse rainha, ainda assim ele
não conseguiria uma folga. Está sempre tão ocupado.
Embora Neena tentasse fazer piada, dava para perceber seu incômodo.
— Mas ele ama o trabalho, não é?
— Ah, sim, ele gosta da pesquisa. Só é difícil porque ele está longe e
sempre trabalhando muito.
Não sabia mais o que dizer sobre o assunto, então reconduzi a conversa
para o presente que tinha acabado de ganhar.
— Essas flores são um pouco demais, você não acha?
— Acho perfeitas.
Balancei a cabeça.
— Em todo caso, devem ser levadas para outro lugar.
— A senhorita não quer olhar para elas? — Neena questionou quando foi
pegar um vaso.
— Não. Preciso de espaço na mesa.
Ela deu de ombros e levantou o arranjo com cuidado para levá-lo à sala
de estar. Sentei à mesa e tentei me concentrar. Eu precisava de foco se
quisesse conquistar meu povo. E era isso que eu precisava fazer — era isso
que Ahren tinha dito.
— Espere! — minha voz saiu um pouco mais alta do que eu pretendia, e
Neena tomou um susto. — Traga o arranjo de volta.
Ela fez uma careta, mas devolveu as flores mesmo assim.
— O que fez a senhorita mudar de ideia?
Levantei o olhar para o buquê e corri os dedos por algumas pétalas que
pendiam mais embaixo.
— Acabo de lembrar que posso ser líder e ainda gostar de flores.
7
7
— NO JORNAL DESTA NOITE O FOCO SERÁ VOCÊ, Alteza — a srta. Brice avisou
enquanto andava em círculos em frente à minha mesa. Era reconfortante
observar seus passos elegantes enquanto ela pensava em cada mínimo
detalhe. Meu pai agia assim às vezes. Me levava para dar uma caminhada
com ele no jardim enquanto tentava resolver algum problema.
— Sei que não tenho muita experiência fazendo o Jornal sozinha, mas
Gavril vai estar lá para ajudar. E já tenho uma ideia de como falar sobre
meus avanços na Seleção.
— Ótimo. Já era hora de revelar alguma coisa mesmo — a srta. Brice
provocou. — Por falar em Seleção, tem outra coisa. Mas ainda estou em
dúvida se vale a pena falar sobre isso.
Olhei para ela, confusa.
— Bom — ela começou. — Marid Illéa foi a um programa de rádio ontem.
Temos uma gravação se você quiser ouvir, mas basicamente ele deixou
escapar que visitou o palácio e te mandou flores.
— E daí?
— E daí que perguntaram se o gesto significava alguma coisa.
Eu a encarei.
— Mas estou no meio da Seleção. Como…?
— Ele disse o mesmo, mas também falou que lamentava ter perdido
contato e que a sua beleza e inteligência se tornaram mais notáveis do que
já eram. — A srta. Brice arqueou a sobrancelha, e senti uma leve palpitação.
— Ele disse isso?
Ela fez que sim.
— Por que estamos discutindo isso? — perguntei enquanto tentava
respirar fundo.
— Você precisa estar ciente de que, na imprensa, agora existe uma
ligação entre vocês dois. E esse fato pode acarretar duas coisas. Pode
prejudicar sua Seleção, fazendo parecer que você não liga para ela. Ou…
— Mas como?
— Bom, se começarem a achar que você pode abandonar seus
pretendentes por ele…
— Entendi. E a segunda opção?
— Mais um pretendente estaria disponível, se você não se opusesse.
Comecei a rir.
— Estou convicta de que as regras da Seleção são bem estritas. Não acho
que eu poderia abandonar a competição para ficar com outra pessoa.
Ela deu de ombros.
— Ele é bem popular.
— Você está sugerindo que eu o leve em conta?
— Não. Estou sugerindo que tenha consciência de que a visita se tornou
pública e que precisa ter cuidado ao interagir com ele. E com a Elite.
— Sem problemas. Mal tive contato com ele. Não quero fazer nada que
desestabilize a Seleção. Eu mesma já fiz isso muitas vezes, mas agora quero
que o povo saiba que ela é importante para mim. Não fiz nada para
incentivar Marid e não acho que valha a pena mencionar isso no Jornal.
— De acordo.
— Ótimo. — Só comigo um ato generoso de educação era transformado
em escândalo.
— Agora, não me leve a mal, mas o que vai vestir hoje à noite?
Corri os olhos pelo meu vestido.
— Não faço ideia. Mal tenho conseguido me vestir direito.
A srta. Brice examinou minha roupa.
— Vai parecer uma ofensa, mas acredite: não é minha intenção. Acho que
você precisa subir um pouco o nível. Apesar de sempre ter escolhido e
desenhado trajes bonitos, é hora de parar de brincar com a moda e passar a
usá-la como ferramenta de sustentação para suas palavras.
Pensar em desfazer a imagem que construíra para mim mesma e
transformá-la em algo para os outros era como levar uma facada. Ainda
assim, concordei.
— Entendi. O que você tem em mente?
Ela cruzou os braços, pensativa.
— Você pode pegar um vestido da sua mãe emprestado?
Olhei para o relógio antes de responder.
— Se eu for lá agora, posso escolher alguma coisa. Mas Neena é a única
pessoa capaz de ajustar o vestido rápido o bastante, e ela precisa terminar
minha agenda para a semana que vem. E eu tenho um encontro na hora do
almoço.
Ela juntou as mãos e suspirou.
— Oooooun!
— Sério? Já não basta minha vó dizendo pro Fox que ele é bonito?
A srta. Brice começou a rir.
— Ela fez isso?
— Ninguém segura aquela mulher.
— Deve ser de família. Se apresse. Vai escolher um vestido.
— Muito bem. Chame Hale. Tenho certeza de que ele é tão talentoso
quanto Neena; vamos descobrir se é rápido também. E você pode fazer uma
lista de tópicos para mim esta noite? Estou com medo de me dar branco.
— Pode deixar.
Me apressei pelo corredor, com a esperança de que minha mãe ainda
estivesse na ala hospitalar, porque eu ia me sentir péssima se incomodasse
seu descanso para procurar um vestido no quarto dela. Não tinha dado nem
dois passos quando vi Gunner à minha espera. Ele saltou do banco no ato e
fez uma reverência.
— Oi. Tudo bem? — perguntei ao me aproximar.
— Tudo — ele disse. — Bom, exceto por eu estar prestes a fazer uma
coisa tão incrivelmente idiota que consigo sentir as batidas do meu coração
até na sola do pé.
— Por favor, não faça. Já vi idiotices suficientes para a vida inteira.
Ele riu.
— Não, não é isso. Eu queria só… queria só pedir uma coisa.
Arqueei as sobrancelhas, avançando com cautela.
— Tudo bem. Você tem dois minutos.
Ele engoliu em seco.
— O.k. Certo. Então, é uma honra você ter me mantido entre os seis
finalistas. Dá a sensação de que acertei alguma coisa, embora eu não faça a
menor ideia do que seja.
Dei de ombros.
— Seu poema me fez rir. Rir é importante.
Ele sorriu.
— Concordo, mas isso meio que prova a minha tese — ele retomou, com
as mãos meio trêmulas. — É que… é que chegar tão longe, sendo que você
está tão ocupada e não tivemos nenhum momento a sós, me faz pensar em
quais são as minhas chances reais.
— É uma pergunta justa. Só que não posso responder no momento.
Tenho muita coisa em que pensar.
— Exatamente — ele respondeu entusiasmado. — Por isso vou pedir
uma coisa ridícula. Posso te dar um beijo?
Dei um passo atrás.
— O quê?
— Só se você quiser. Mas acho que um beijo pode revelar muita coisa.
Acho que bastaria para saber se vale a pena eu continuar atrás de você ou
você atrás de mim.
Havia certa doçura no pedido dele, como se, apesar da foto do meu beijo
em Kile ter sido estampada nos quatro cantos do país, ele não acreditasse
que eu beijava qualquer um. E ele tinha aprendido o suficiente com o caso
de Jack para agir com cautela. Só isso já me fez querer atender seu pedido.
Mas arriscar e provavelmente perder um dos finalistas sem tentar conhecê-
lo melhor? Parecia meio bobo.
— Você pode se tornar um príncipe. Ter mais dinheiro do que é capaz de
gastar, ser tão famoso que mesmo quem não tem televisão reconheceria
seu rosto. Está disposto a apostar tudo isso num beijo?
— Estou disposto a apostar a sua felicidade e a minha num beijo.
Respirei fundo, pensativa.
— Tudo bem — respondi, afinal.
— Sim?
— Sim.
Passada a surpresa, Gunner pôs a mão na minha cintura. Baixou o rosto
até o meu, fazendo uma pausa para rir.
— Isso é meio surreal.
— Estou esperando, garoto.
Ele sorriu um pouco antes de nossos lábios se tocarem. Havia muitas
coisas boas naquele beijo. A boca dele não era rígida, e ele não tentou enfiar
a língua na minha garganta. Gunner também tinha um cheiro bom, embora
não parecesse canela ou flores ou qualquer outra coisa que eu
reconhecesse. No fim das contas, considerei que não foi ruim.
Mas, pensando bem, o fato de eu conseguir fazer uma avaliação durante o
beijo…
Gunner recuou, apertou os lábios e refletiu um pouco.
— Não, né? — perguntei.
Ele balançou a cabeça.
— Acho que não. Não que tenha sido ruim.
— Só não foi tão bom assim.
— Exatamente — ele confirmou, com a postura mais relaxada. — Muito
obrigado pela experiência, mas acho que é hora de eu voltar para casa.
Eu sorri.
— Tem certeza? Você está mais do que convidado para ficar para o Jornal
e voltar para casa de manhã.
— Não precisa — ele rejeitou com um sorriso tímido. — Acho que, se
ficasse, tentaria me convencer a continuar. Você provavelmente é a garota
mais bonita que vou conhecer na vida, mas… não acho que é a garota certa
para mim. Seria péssimo tentar me convencer de que talvez você seja,
sendo que passei tanto tempo dizendo a mim mesmo que era improvável.
Estendi a mão.
— Respeito sua decisão. Desejo o melhor para você.
Gunner apertou minha mão.
— E eu para você, Alteza.
Assim que Gunner partiu rumo à escadaria, vi um mordomo
acompanhando Hale até o quarto da minha mãe. Fiz um gesto para ele se
aproximar, embora seus olhos estivessem fixos no pretendente descartado.
— O que Gunner estava fazendo aqui em cima? — ele perguntou.
— Uma escolha. Venha comigo. Preciso do seu talento.
9
9
SAÍ DO CLOSET DA MINHA MÃE vestida com nossa opção favorita. Apertava-o bem
contra o peito para o tecido não escorregar.
— Obrigada por fazer isso — agradeci assim que Hale se pôs a trabalhar,
puxando costuras e ajustando-as com alfinetes.
— Está brincando? Estou ajudando a vestir a futura rainha. Estou no céu!
— Ele continuou os ajustes, observando o caimento do tecido pelo espelho.
— Claro, não é a mesma coisa que fazer um vestido do zero para você, mas
vai ser um acréscimo impressionante para o meu currículo.
Ri um pouco.
— É que fico mal de fazer você perder a tarde por causa disso.
— Bom, às vezes é chato ficar no Salão dos Homens. Tenho certeza de
que, se eu pedir, Kile vem aqui me fazer companhia enquanto trabalho. Ou
Ean, talvez.
— Ean? — indaguei, chocada. — É difícil imaginá-lo fazendo companhia
para alguém por livre e espontânea vontade.
Hale sorriu.
— É. Acho que ele finalmente está se acostumando com a gente. Às vezes
conversa comigo e com Erik. Provavelmente porque ele não é parte da
concorrência.
— Faz sentido. Ean parece ser do tipo que não está aqui para fazer
amigos, mas acho que ninguém consegue aguentar a Seleção sozinho. É
pesado demais. Sei que é tão difícil para vocês quanto para mim.
— Bom, com certeza somos a parte mais beneficiada do acordo — ele
disse, piscando para o meu reflexo.
Inclinei a cabeça.
— Não sei. Quanto mais penso, mais triste fico por ter que mandar todos
vocês embora, exceto um. Vou sentir falta de vocês aqui.
— Já pensou em formar um harém? — ele disse com a cara séria.
Dobrei o corpo de tanto rir e ganhei como recompensa uma espetada de
alfinete na cintura.
— Ai!
— Desculpe! Eu não devia fazer piada com agulhas por perto.
Hale então veio para a minha frente. Continuei sem me mexer; apenas
observei os olhos dele e reconheci o olhar analítico, ciente de que eu
mesma empregava esse olhar com desenhos, projetos e às vezes até
pessoas.
— Acho que precisamos deixar um pouco mais arrojado — ele comentou.
— Tem certeza de que a rainha vai concordar com isso? Porque não vou
poder desfazer algumas mudanças.
— Não se preocupe. Você tem total permissão para mexer no que julgar
necessário.
— Isso faz com que eu me sinta muito importante.
— Bom, você é. Está me ajudando a parecer uma líder hoje à noite. Mil
coisas são necessárias para dar essa impressão, então fico te devendo uma.
Ou duas. Pelo menos duas.
— Está tudo bem?
Olhei para cima, sem perceber como tinha ficado séria.
— Está. É que às vezes tenho muita coisa para lidar. Estou tentando dar
conta, só isso.
Ele tirou um alfinete da almofadinha que a criada havia deixado ali e me
deu.
— Use isto da próxima vez que achar que as coisas estão desmoronando.
Vai ajudar, prometo.
Peguei o alfinete devagar e em seguida comecei a girá-lo entre o
indicador e o polegar. Pelo menos por um momento, acreditei que aquilo
ajudaria de verdade.
Henri chegou bem na hora. Entrou na sala como se estivesse louco para
cruzar a porta havia um tempão. Dispensando toda cerimônia, me tomou
pelas mãos e beijou minha bochecha, o que me fez rir.
— Olá hoje!
Abri um sorriso.
— Olá, Henri.
Atrás de Henri, Erik fez uma reverência e cumprimentei-o acenando com
a cabeça.
Tomei o braço de Henri e o conduzi até a mesa posta com dois pratos
bem próximos e um terceiro um pouco mais afastado.
— Aqui — Henri disse ao puxar minha cadeia.
Assim que sentei, ele se apressou para o outro lado da mesa para sentar
de frente para mim e… a conversa parou. Levantei a tampa do prato para
que os dois soubessem que podiam fazer o mesmo e, depois de algumas
garfadas silenciosas, tentei preencher o vácuo.
— Como vai sua família? — perguntei. — E sua irmã?
— Miten on Annika? — ele pediu para Erik confirmar. O intérprete fez
que sim, e Henri voltou a me olhar, encantado. — Bem. Ela muito bem.
Saudade.
Olhei com tristeza para ele e concordei:
— Entendo completamente. Você não faz ideia do quanto eu gostaria que
Ahren estivesse aqui.
Henri permaneceu calmo, mas se inclinou para Erik, que murmurou a
tradução da minha resposta o mais rápido possível.
— Sua mãe? Está bem? — Henri perguntou, se esforçando ao máximo.
— Está, ainda bem. Voltou para o quarto e está se recuperando.
Mais uma vez, Erik veio ao nosso resgate. Continuamos desse jeito por
mais uns minutos e, por mais que Henri tivesse se esforçado para aprender
inglês, estava tão perdido quanto eu. Odiava aquilo. Era impessoal demais.
Uma coisa era precisar de intérprete para a visita de um alto dignitário,
mas para alguém em casa todo dia? Era demais. Mesmo que a estadia de
Henri no palácio fosse curta, eu queria muito ser capaz de conversar com
ele, só com ele, pelo menos de vez em quando.
— Erik, como é a relação de Henri com os outros membros da Elite?
Todos conversam com a sua ajuda?
Erik se ajeitou na cadeira enquanto pensava numa resposta.
— A maioria. Hale e Kile aprenderam algumas palavras.
— E os outros?
Ele apertou os lábios com cara de culpado, como se estivesse preocupado
em não manchar a reputação dos demais.
— Gunner demonstra algum interesse, assim como Fox, mas nenhum dos
dois parece querer encarar o desafio. Dá trabalho demais. E Ean vem
conversar comigo, mas não tenta de verdade falar com Henri.
Deixei escapar um longo suspiro; vários pensamentos fervilhavam na
minha cabeça.
— Você toparia nos dar uma aula de finlandês amanhã de manhã?
Erik arregalou os olhos.
— Sério?
— Com certeza. Parece meio injusto que Henri tenha que se esforçar
sozinho.
Quando mencionei seu nome, Henri virou na minha direção na hora. Com
certeza tinha acompanhado a conversa à sua maneira, mas eu estava
empolgada para que ele soubesse logo exatamente o que estávamos
planejando.
Erik falou rápido em finlandês, e os olhos de Henri brilharam.
— Eu falar, também? Eu falando? — perguntou, como se fosse haver uma
festa em vez de uma aula.
— Claro — eu disse, e Henri permaneceu sentado, com as engrenagens
da cabeça claramente em movimento.
— Acho que você acabou de fazer o dia dele — Erik comentou.
— Estou chateada por não ter pensado nisso antes. Vai facilitar para todo
mundo.
— Espero que sim. Mas ainda vou focar nas aulas de inglês. Tenho
esperança de evitar outras aparições no Jornal.
Fiz uma careta.
— Não foi tão ruim.
— Foi péssimo! — ele afirmou, balançando a cabeça, e em seguida
apontou o garfo para mim. — Minha mãe não para de falar nisso. “Você
estava tão bonito! Por que não sorriu mais?” Juro, é de enlouquecer.
— Você está me culpando? — perguntei, fingindo indignação.
— Para sempre. A culpa será sempre sua! Não gosto de ser filmado — ele
disse, estremecendo. Fiquei feliz por ele não parecer irritado de verdade,
embora desse para perceber que falava sério.
Comecei a rir, e ele baixou os olhos para o prato, envergonhado, mas
sorrindo. Foi quando percebi Henri paralisado, me observando papear com
seu intérprete quando o encontro era com ele.
— Sabe, Henri, talvez pudéssemos fazer uma imersão total na cultura
norueca, e você podia ensinar todo mundo a fazer aquela sopa que você
comentou.
Erik traduziu, e de novo Henri ficou exultante.
— Kalakeitto! — exclamou.
Havia coisas que eu estava curiosa para saber sobre Henri. Queria saber
mais sobre sua família, especialmente sua irmã. E queria saber se ele estava
tranquilo com a ideia de morar no palácio e trabalhar ao meu lado ou se o
afligia a perspectiva de haver mais momentos como o desfile e que talvez
ele tivesse que me proteger de multidões furiosas pelo resto da vida. Queria
perguntar sobre aquele beijo na cozinha, se pensava muito sobre aquilo ou
se achava que tinha sido uma decisão errada de uma ou das duas partes.
Mas eu não seria capaz de falar sobre nada daquilo enquanto não
soubesse como me dirigir a ele sem ter que me dirigir a Erik também.
10
10
O VESTIDO ERA VERMELHO. Fazia anos que minha mãe não o usava, e esse era
um dos motivos para eu tê-lo escolhido. Hale cortou as mangas de renda
até a altura do cotovelo e retirou algumas camadas sob a saia para que não
ficasse muito rodada. Ele estava certo quando disse que algumas alterações
eram irreversíveis, mas teve tanto bom gosto que, mesmo que minha mãe
quisesse o vestido de volta um dia, ficaria empolgada com as mudanças.
Eloise me ajudou com o cabelo, que ficou muito elegante com tranças se
encontrando na parte de trás da cabeça para formar um coque
despretensioso. Escolhi uma tiara de rubis, então eu parecia estar em
chamas.
Ficou lindo, de verdade. Eu tinha certeza disso e estava grata a todos que
trabalharam para me ajudar a criar a imagem de alguém a quem se podiam
confiar as decisões do país. Eu parecia mais velha, mais do que me sentia,
mas provavelmente mais próxima da idade cujo comportamento deveria
adotar. Suspirando, aceitei o vestido e aquela nova imagem. Aquela era
quem eu deveria ser por enquanto.
Eu ajeitava as costuras quando Josie veio falar comigo no estúdio.
— Que vestido maravilhoso — elogiou, incapaz de manter os dedos longe
das camadas de cetim.
Continuei arrumando o caimento.
— É da minha mãe.
— Sinto muito por tudo que aconteceu — ela disse baixinho. — Acho que
ainda não tinha dito isso para você.
Engoli em seco.
— Obrigada, Josie. Significa muito para mim.
— Sabe, já que tudo anda tão sério, pode ser uma boa ideia fazer uma
festa.
Bufei quase ao ponto de rir.
— Estou um pouco ocupada para isso. Talvez assim que as coisas se
acalmarem.
— Eu posso planejar tudo! Falo com as criadas e podemos preparar tudo
para daqui a uma semana.
Dei as costas para o espelho.
— Como eu disse, em outro momento, mas agora não.
Me afastei, tentando me concentrar, mas ela veio atrás, insistente.
— Mas por quê? Você não devia comemorar? Quer dizer, você é
praticamente a rainha, então…
Me virei com tudo para ela, irada.
— Não sou a rainha. O título pertence à minha mãe, que quase morreu. O
fato de você deixar esse detalhe de lado, como se fosse uma coisa mínima,
praticamente anula os sentimentos que você acabou de expressar. O que
exatamente você não entende, Josie? Você acha que este cargo só envolve
vestidos e festas?
Ela parou na hora, pasma. Observei os olhos dela correrem pelo
ambiente, conferindo se alguém observava a cena. Eu não queria humilhá-
la. De certa forma, eu a compreendia. Houve um tempo em que nada me
dava mais alegria do que começar a fazer uma lista de convidados, um
tempo em que eu mesma achava que esse cargo só envolvia vestidos e
festas…
Soltei um suspiro.
— Não quero te ofender. Mas não convém fazer uma festa com a minha
mãe ainda em recuperação. Por favor, eu só te peço um pouco de
compreensão esta noite, o que talvez seja pedir demais, dado o nosso
histórico. Ainda assim, pela minha sanidade mental, apenas tente imaginar
o que é estar no meu lugar.
Ela fechou a cara.
— Isso é tudo que eu sempre quis. Mas claro, você só se importa com isso
quando é conveniente.
Senti vontade de arrancar a cabeça dela. Que parte da minha vida ela
considerava conveniente naquele momento? Mas eu tinha um programa
com que me preocupar.
— Por favor — eu disse, chamando uma criada que estava de passagem.
— Você poderia acompanhar a srta. Josie até o quarto? O comportamento
dela esta noite está me atrapalhando, e tenho trabalho a fazer.
— Pois não, Alteza. — A criada se virou animada para Josie, sem se
preocupar com nossas desavenças e pronta para fazer seu trabalho.
Josie bufou.
— Odeio você.
Apontei para a porta.
— Claro que odeia, e você pode fazer isso no seu quarto tão bem quanto
aqui.
Sem esperar para conferir se ela tinha obedecido, fui até meu assento.
Nunca tinha visto o estúdio arrumado daquele jeito: a Elite de um lado e
uma cadeira solitária do outro.
Eu estava com os olhos fixos na cadeira triste e solitária quando Kile
apareceu ao meu lado.
— O que houve com Josie?
Abri um sorriso e pisquei várias vezes para ele.
— Nada, querido. Só estava me fazendo questionar seriamente o quanto
eu gostaria de tê-la como cunhada.
— Ainda é cedo demais.
Comecei a rir.
— Não, nós tivemos uma… discordância. E me sinto meio mal, porque eu
a entendo. Só gostaria que ela me entendesse.
— Pode ser difícil para Josie. Ela só pensa em si mesma. Mudando de
assunto, você viu Gunner?
Franzi a testa.
— Foi embora hoje à tarde. Ele não se despediu?
Kile fez que não com a cabeça.
Fui até os outros garotos, que se endireitaram nas cadeiras quando me
aproximei.
— Gunner se despediu de algum de vocês? — perguntei.
Todos balançaram a cabeça, confusos, menos Fox, que limpou a garganta
antes de dizer:
— Ele passou no meu quarto para me ver. Gunner é um pouco
sentimental, e não queria uma despedida longa. Só disse que não era certo
continuar e que tinha a sua autorização para ir embora.
— E tinha. Nos despedimos, ficou tudo bem.
Fox fez que sim com a cabeça.
— Acho que ele pensou que ia voltar atrás se ficasse por aqui. Ele me
pediu para avisar a todos que sentiria saudades. — Ele sorriu. — Cara legal.
— Era mesmo. Mas reflitam sobre a atitude dele — pedi, olhando bem
para o rosto de cada um. — Isso tudo envolve o futuro de vocês também.
Não fiquem se acharem que talvez não sejam capazes de lidar com tudo
isso.
Kile concordou com a cabeça, pensativo de repente. Hale abriu um
sorriso lindo. Ean permaneceu impassível como sempre, e Henri
processava a tradução de Erik, parecendo confuso.
Com certeza eu passaria o resto da noite analisando excessivamente a
expressão deles, mas, naquele momento, tínhamos um show para dar.
— Hale — sussurrei com o dedo apontado para o vestido. — Obrigada.
— Linda — ele disse só com os lábios, e tentei manter a postura. Queria
fazer jus ao vestido naquela noite.
Havia várias coisas boas para o país prestar atenção, mas com a
eliminação em massa no começo da semana e a saída de Gunner antes do
Jornal, mais uma vez parecia que eu estava afastando as pessoas. Pelo
menos era isso que os jornais diziam. Era como se não tivessem escutado
uma só palavra do que Ean tinha dito sobre o quanto eu era criteriosa para
tomar qualquer decisão relacionada à Seleção. Toda uma edição ao vivo do
Jornal tinha sido desmantelada por um punhado de manchetes.
Surpreendentemente, logo abaixo dessas reportagens aparecia o rosto de
Marid estampado ao lado do meu, comentando que ele tinha perdido a
chance já que o processo da Seleção já havia começado.
— Passe isso para cá — Neena insistiu, fazendo uma bola com os jornais
e os arremessando na lixeira. — Parece que eles publicam menos notícias e
mais fofocas hoje em dia.
— Sem dúvida — concordou a srta. Brice. — Se concentre menos no que
essa gente diz e mais no que pode realizar.
Fiz que sim com a cabeça, ciente de que ela tinha razão. Ela me dava
conselhos com os quais meu pai certamente concordaria e, apesar de nem
sempre ser fácil, eu tendia a ouvi-la.
— Não sei direito se sou capaz de me concentrar no que posso fazer
enquanto não conseguir manter a opinião pública sob controle. Qualquer
coisa que eu propuser, ainda que seja algo que defenderiam se fosse
iniciativa do meu pai ou da minha mãe, provavelmente vai enfrentar
resistência. Preciso escolher um marido — afirmei, decidida. — Tenho
certeza de que isso vai me ajudar com a opinião pública. E vamos todas
torcer para isso, porque eles definitivamente não gostam de mim.
— Eadlyn, isso não é…
— É verdade, srta. Brice. Sei disso melhor do que ninguém. Por acaso
preciso lembrar do desfile?
A conselheira cruzou os braços.
— Muito bem, está certo. Você não é muito popular. E entendo que
encontrar um parceiro poderia amenizar isso. Então é nisso que vamos nos
concentrar hoje?
— Pelo menos nos próximos cinco minutos. Confio um pouco mais na
minha cabeça do que no meu coração, então me ajudem. Falem.
Neena deu de ombros.
— Quem é o primeiro? Kile? O palácio inteiro torce por ele. Ele é lindo e
inteligente e, céus, se não quiser ficar com ele, pode passar pra cá.
— Você já não tem namorado?
Ela suspirou.
— Odeio quando você tem razão.
Comecei a rir.
— Seria mentira dizer que não temos uma ligação. Já até disse isso para
ele… mas não consigo avançar. Não sei bem por quê, mas não estou pronta
para dizer que ele é a minha primeira opção.
— Muito bem — a srta. Brice replicou. — Quem mais?
— Hale. Ele tem uma postura ótima e jurou fazer algo de bom para mim
todo dia. Ainda não falhou. E é fácil ficar perto dele. Esse é um dos motivos
pelos quais também gosto de Fox.
— Fox é mais atraente que Hale — Neena disse. — Não quero ser
superficial, mas esse tipo de coisa é importante para a opinião pública.
— Compreendo, mas a beleza é subjetiva. Você sabe que às vezes o que
torna uma pessoa atraente é o jeito que ela faz você rir ou como ela parece
ler a sua mente? Quero levar isso em conta também.
Neena abriu um sorriso.
— Então você prefere Hale a Fox?
Fiz que não com a cabeça.
— Não foi bem isso que quis dizer. Só acho que aparência não é tudo.
Precisamos focar em outras qualidades.
— Por exemplo? — insistiu a srta. Brice.
— Por exemplo, o otimismo infinito de Henri. Não importa a
circunstância, ele é um farol de alegria. E não duvido nem um pouco de seu
afeto por mim.
Neena fez cara de tédio.
— Isso é bom, mas ele não fala sua língua. Não há como vocês dois terem
uma conversa que vá além do superficial.
— É… Bom, é verdade. Mas ele é muito gentil e seria bom para mim. Erik
falou que Henri é capaz de aprender, mas que vai levar um tempo. E ele tem
estudado até meia-noite desde que avançou para a Elite. Quanto a mim,
estou a caminho de uma aula de finlandês neste exato momento. Cada um
pode fazer a sua parte, e Erik poderia ficar aqui pelo tempo que fosse
necessário para que nos entendêssemos.
A srta. Brice negou com a cabeça.
— Isso é uma grande injustiça com Erik. Ele tem família, emprego. Não se
inscreveu para ficar preso no palácio pelos próximos cinco anos. E se
quiser encontrar uma parceira?
Quis rebater dizendo que ela estava errada, mas… não dava. Erik não
sabia quanto tempo a Seleção ia durar quando aceitou vir, mas com certeza
não veio pensando em morar no palácio até seu cliente ser fluente em
inglês. E não seria justo da minha parte pedir para ele ficar.
— Ele ficaria. Tenho certeza — foi só o que eu disse.
Fez-se um silêncio em seguida, como se a srta. Brice soubesse que eu
estava errada e refletisse a respeito de como me dizer aquilo. Em vez disso,
suspirou.
— Quem falta? Ean? — ela perguntou.
— O caso de Ean é um pouco mais complexo, mas acreditem, ele é
importante.
Neena franziu a testa.
— Então todos são favoritos?
Respirei fundo.
— Acho que sim. Não sei se isso significa que escolhi bem ou mal.
A srta. Brice caiu na gargalhada.
— Escolheu bem. De verdade. Talvez eu não entenda o apelo de Ean ou
como as coisas funcionam com Henri, mas todos têm seus méritos. Acho
que o necessário agora é intensificar o treinamento deles, começar a
adestrá-los para o trono. Isso vai ajudar a destacar alguns, com certeza.
— Adestrar? Que sinistro!
— Não no mau sentido. Só estou dizendo que…
O que a conselheira ia dizer foi interrompido porque, sem avisar, minha
vó escancarou a porta.
— A senhora precisa pedir permissão… — um guarda avisava com a voz
abafada.
Ela continuou a caminhar na minha direção.
— Bom, minha menina, chegou a hora de eu ir embora.
— Mas já? — perguntei com um abraço.
— Nunca posso ficar muito tempo. Sua mãe está se recuperando de um
ataque cardíaco, mas mesmo assim tem a audácia de ficar me dando
ordens. Sei que ela é a rainha — minha vó concedeu, com as mãos erguidas
em rendição —, mas eu sou a mãe dela. E mãe é mais importante do que
rainha.
— Vou lembrar disso no futuro — comentei, rindo.
— Faça isso — minha vó recomendou, enquanto acariciava minha
bochecha. — E se não for um incômodo, arranje um marido o mais rápido
possível. Fico cada dia mais velha e queria conhecer pelo menos um bisneto
antes de morrer. — Ela olhou fixamente para a minha barriga, agitando o
dedo. — Não me decepcione.
— Tuuuudo bem, vó. Precisamos voltar ao trabalho aqui, então vá para
casa e não se esqueça de avisar quando chegar.
— Pode deixar, querida.
Permaneci em silêncio, curtindo a insanidade que era a minha avó.
Neena se inclinou para mim e perguntou:
— Agora, qual dos cinco finalistas você acha que seria o mais empenhado
para ter bebês? Vamos acrescentar esse item à lista?
Nem mesmo a minha cara mais feia bastou para repreendê-la.
— Não se esqueça de que posso chamar um pelotão de fuzilamento a
qualquer momento.
— Pode chamar o pelotão que quiser; sua vó está do meu lado, então não
preciso me preocupar.
Soltei o corpo na cadeira.
— Infelizmente, Neena, acho que você está certa.
— Não se sinta mal. No fundo ela tem boa intenção.
— Vou tentar lembrar disso. Tudo bem por enquanto? Tenho que ir
aprender um pouco de finlandês.
— Desculpem, desculpem, desculpem! — exclamei ao entrar na
biblioteca. Os garotos se animaram com a minha chegada, e me esgueirei
até um assento vazio na mesa de Henri, Hale e Ean. — O dever me chamou.
Erik riu baixo e pôs uma pequena pilha de papéis diante de mim.
— Está desculpada. Não se preocupe. Não avançamos muito. Dê uma
olhada na primeira página. Henri vai ajudá-la com a pronúncia enquanto eu
vejo como os outros estão se saindo. Depois continuamos.
— Muito bem — falei ao pegar o papel, que nada mais era do que um
xerox das anotações à mão de Erik com uma série de desenhos também à
mão na margem. Abri um sorriso. A primeira tarefa do dia era aprender a
contar até doze para podermos falar as horas. Aquela lição tão simples me
deixou confusa de imediato. Só conseguia pensar que pareciam faltar
vogais nas palavras, e que aquelas que se davam ao trabalho de aparecer
estavam todas no lugar errado. — Certo — falei, olhando para a primeira
palavra: yksi. — Íksi?
Henri riu e fez que não com a cabeça.
— Diz iúu-ksi.
— Iúuksi?
— Sim. Vai, vai — ele incentivou e, apesar de eu não estar nem um pouco
perto da perfeição, era bom ter um torcedor. — Diz kahk-si.
— Kahk-si… kaksi.
— Bom, bom. Agora é kolme.
— Kulmi — ensaiei.
— Errrr… — ele disse, ainda tentando ser positivo. — Kôll-mê.
Tentei de novo, mas sabia que não estava acertando. Tinha fracassado já
no número três. Sempre cavalheiro, Henri se inclinou mais para perto,
disposto a gastar o tempo que fosse necessário.
— Diz ô. Kôll-mê.
— Ôô. Ôô — tentei.
Ele levantou as mãos e pôs de leve na minha bochecha para tentar mudar
o formato da minha boca. Aquilo fez cócegas, e abri um sorriso, incapaz de
produzir o som. Mas Henri continuou a segurar meu rosto mesmo assim.
No instante seguinte, o humor sumiu dos olhos dele, e reconheci a
expressão. Já tinha visto aquele olhar antes, na cozinha, quando ele
transformara sua camisa num avental para mim.
Era um olhar tão atraente que esqueci completamente que havia pessoas
em volta.
Até Erik soltar um livro sobre a mesa.
— Excelente — ele disse, e me afastei de Henri o mais rápido possível,
rezando para que ninguém tivesse reparado no que quase havia
acontecido.
— Parece que vocês estão se saindo muito bem com os números, então
vamos começar a usá-los em frases. Aqui no quadro eu escrevi um exemplo.
Mas como vocês com certeza notaram, a pronúncia é um pouco traiçoeira.
Os garotos riram; pareciam ter sofrido tanto quanto eu com os números…
e também pareciam concentrados demais para ter notado o quase beijo.
Fixei o olhar na lousa, tentando compreender a fonética daquelas palavras
em vez de pensar no quanto Henri estava perto de mim.
12
12
O PRIMEIRO MOMENTO LIVRE que tive no dia foi o almoço, e sabia que precisava
daquele tempo para minimizar os estragos. Enquanto todos foram para a
sala de jantar depois da aula de finlandês, voltei ao escritório e peguei o
cartão de Marid na gaveta da escrivaninha. Era óbvio que o papel era caro.
Comecei a imaginar o que a família dele fazia para bancar uma coisa
daquelas. Deviam ter se dado bem, qualquer que fosse o caminho que
tivessem seguido.
Disquei o número, um pouco na esperança de que ele não atendesse.
— Alô?
— Alô, hum, Marid?
— Eadlyn, é você?
— Sim — hesitei, ajeitando a roupa, ainda que ele não pudesse me ver. —
Você pode falar?
— Claro. Como posso ajudar, Alteza?
— Só queria dizer que vi que a imprensa publicou especulações a nosso
respeito outro dia.
— Ah, sim. Sinto muito por isso. Você sabe como eles são capazes de tirar
uma situação do contexto.
— São mesmo — quase exclamei. — E, de verdade, queria pedir
desculpas. Sei que a vida de uma pessoa que se aproxima de mim pode
virar um turbilhão, e sinto muito por você estar passando por isso.
— Ah, deixe que falem — ele respondeu com uma risada. — Sério, não
precisa se desculpar. Mas já que estamos conversando, queria apresentar
uma ideia.
— Pode dizer.
— Sei que você anda preocupada com a violência pós-castas e pensei que,
talvez, uma espécie de audiência pública pudesse ajudar.
— Como assim?
— Você poderia escolher um grupo de pessoas de origens variadas para
ir ao palácio e conversar diretamente com você. Seria uma oportunidade
única para ouvir o povo e, se você convidasse a imprensa, também seria
uma grande oportunidade para demonstrar como o palácio presta atenção
nas pessoas.
Fiquei desnorteada.
— É mesmo uma ideia maravilhosa.
— Se quiser, posso cuidar da maior parte dos preparativos para você.
Tenho contato com algumas famílias que costumavam ser Oito e com
outras que tiveram dificuldade para abandonar o status de Dois. Talvez
pudéssemos convidar umas doze pessoas, para você não ficar
sobrecarregada.
— Marid, parece perfeito. Vou pedir para a minha dama de companhia
entrar em contato com você. Ela se chama Neena Hallensway e é tão
organizada quanto você parece ser. Ela cuida da minha agenda e seria a
melhor pessoa para tratar de dias e horários.
— Excelente. Vou esperar o contato dela.
Houve um longo silêncio, e eu não sabia bem como encerrar a conversa.
— Obrigada — comecei. — Agora, mais do que nunca, preciso provar o
quanto me importo com o povo. Quero que as pessoas saibam que, em
alguns anos, posso me tornar uma líder como meu pai.
— Como podem duvidar disso é um mistério para mim.
Sorri, empolgada por ter mais um aliado em meu arsenal.
— Desculpe a pressa, mas preciso ir — falei.
— Sem problemas. Falamos de novo em breve.
— Claro. Tchau.
— Tchau.
Desliguei o telefone e sorri aliviada. Não tinha sido tão constrangedor
quanto eu temia. As palavras de Marid ainda ressoavam. “Deixe que falem.”
Eu sabia que eles sempre falariam. Tomara que logo tivessem algo mais
positivo para dizer.
13
13
— ESPERA, PARA QUE LADO ESSES CARAS ANDAM MESMO? — Hale perguntou antes de
estender a mão para pegar dois petits fours e pôr no prato.
— Os bispos andam na diagonal. Mas não faria isso se fosse você.
Ele riu.
— Certo. E os castelinhos?
— Linhas retas: de um lado para outro ou para a frente e para trás.
Ele moveu uma torre e comeu outro peão meu.
— Sinceramente, jamais desconfiaria que você é fã de xadrez.
— Não sou. Ahren era e me obrigou a jogar com ele diariamente por
meses. Até que o relacionamento com Camille ficou sério, e todo o tempo
do xadrez virou tempo de escrever cartas.
Movi um bispo e ganhei o cavalo dele.
— Argh, nem vi isso — ele lamentou entre um biscoito e outro. — Fazia
tempo que queria perguntar sobre Ahren, mas não sabia se você queria
falar sobre isso.
Dei de ombros, pronta para dispensar o assunto, mas então lembrei a
mim mesma que, se queria tentar ser feliz, precisava deixar as pessoas se
aproximarem. Suspirando, contei a verdade:
— Sinto falta dele. É como se eu tivesse nascido com um melhor amigo
junto, que agora sumiu. Também sou próxima de outras pessoas, como a
minha dama de companhia, Neena. Acho que não tinha me dado conta de
como sou apegada a ela até a partida de Ahren. Mas isso me dá medo
também. E se eu ficar tão próxima dela como era de Ahren, a ponto de ela
ser a pessoa a quem recorro para tudo, mas alguma coisa acontecer e ela
for embora?
Hale acenava com a cabeça enquanto ouvia, e notei que ele tentava conter
um sorriso.
— Não tem graça! — reclamei, jogando um dos peões que tinha comido
sobre ele.
Ele começou a gargalhar e desviou da peça.
— Não estou rindo por causa disso. É que… na última vez que
conversamos assim, você saiu correndo. Você não está de tênis por baixo
do vestido, está?
— Claro que não. Não ia combinar — provoquei. — Mas, sério, eu devia
ter confiado em você naquela vez, e agora confio. Desculpe a minha lerdeza.
Se abrir com os outros não é uma das minhas qualidades.
— Sem pressa. Sou bem paciente.
Eu não conseguia mais suportar o olhar de Hale, então encarei o
tabuleiro, observando a mão dele se mover sobre as casas.
— Quanto ao que você sente por Neena — Hale continuou —, ainda que
ela tivesse que partir, isso não a tornaria menos sua amiga, assim como
Ahren não é menos seu irmão agora. Talvez você tenha mais trabalho para
manter contato, mas se os ama tanto quanto diz, vai valer a pena.
— Verdade — reconheci. — É que a distância não facilita muito. E fazer
amigos é difícil para mim, já que não saio muito. Então meio que preciso
conservar os que tenho.
Hale riu baixo, e não prestei atenção à jogada dele.
— Bom, quero deixar registrado que, mesmo se eu não for escolhido,
você terá a minha amizade para sempre. Posso pegar o primeiro voo para
Angeles sempre que precisar de mim.
Abri um sorriso.
— Uma coisa por dia.
Ele concordou com a cabeça.
— Todos os dias.
— Eu precisava muito ouvir isso. Obrigada. — Me ajeitei na cadeira e
comecei a planejar a próxima jogada. — E você? Quem é seu melhor amigo?
— Na verdade, passei por um interrogatório sobre isso faz umas
semanas, logo depois que Burke foi embora. Meu melhor amigo é uma
amiga, e pensaram que eu escrevia cartas para “a namorada da minha
cidade”. Confesso que foi humilhante pedir para ela falar com um guarda
por telefone para explicar que nunca, jamais, tivemos qualquer
envolvimento romântico.
Mordi o lábio, contente por ele conseguir enxergar o lado engraçado de
uma situação como aquela.
— Sinto muito.
— Tudo bem. Carrie até que ficou empolgada com a situação.
— Bom, fico feliz por ela ter tirado de letra. — Limpei a garganta. — Mas
agora tenho que perguntar. Você nunca teve nem uma quedinha por ela?
— Não! — ele rebateu, quase estremecendo. — Carrie é como uma irmã
para mim. Só pensar em beijá-la já parece muito errado.
Levei as mãos à frente do corpo, impressionada por ele ter ficado tão
ofendido.
— Tudo bem. Já sei que não preciso me preocupar com Carrie!
— Desculpe — a irritação no rosto dele se transformou num sorriso
tímido. — É que já me perguntaram isso um milhão de vezes. Outros
amigos, nossos pais… É como se todo mundo quisesse que ficássemos
juntos, e eu não sinto nada desse tipo por ela.
— Entendo. Às vezes parece que todo mundo quer que eu escolha Kile só
porque crescemos juntos. Como se isso bastasse para garantir que você vai
se apaixonar.
— Bom, a diferença é que você sente mesmo alguma coisa por ele.
Qualquer um percebe — ele afirmou enquanto brincava com um dos peões
fora do tabuleiro.
Baixei os olhos para o meu colo.
— Eu não devia ter falado sobre isso. Desculpe.
— Não, tudo bem. Acho que a única maneira de manter a sanidade
durante o processo é lembrar que é você quem comanda. Você é quem
decide o lugar de cada um. A única coisa que podemos fazer é ser nós
mesmos.
— E que lugar você acha que tem?
Ele deu um sorrisinho.
— Não sei. Talvez o do meio?
Fiz que não com a cabeça.
— É melhor do que isso.
— É?
— É.
O sorriso dele vacilou um pouco.
— É meio maravilhoso, mas também assustador. A vitória aqui traz um
monte de responsabilidades.
— Toneladas — confirmei.
— Acho que nunca parei de verdade para pensar nisso. Mas com você
governando o país de fato, é meio… massacrante.
Encarei Hale, convicta de ter entendido alguma coisa errado.
— Você não está pensando em desistir, está?
— Não — ele disse, sem parar de girar o peão. — Só estou considerando
a enormidade de tudo isso. Com certeza sua mãe teve momentos assim
também.
Ele estava sendo seco de um jeito que não era normal; parecia esconder
algo mais profundo do que sua frustração por causa de Carrie. Insisti,
tentando não alterar o tom de voz, enquanto ele desviava o olhar.
— Eu entendi mal? Você sempre demonstrou tanto entusiasmo, a ponto
de eu questionar sua sanidade. Está amarelando agora?
— Eu não disse que estava amarelando — ele rebateu. — Simplesmente
manifestei uma preocupação. Você sempre manifesta as suas. Qual a
diferença?
Havia muita verdade no que Hale tinha dito, mas era óbvio que eu pusera
o dedo em alguma ferida. E, depois de ter me esforçado tanto para me abrir
com ele, por que ele queria se fechar comigo? Embora eu não acreditasse
que ele fosse do tipo que me testaria, comecei a me perguntar se ele não
estava tentando avaliar minha paciência.
Abri e fechei as mãos embaixo da mesa, relembrando a mim mesma que
eu confiava nele.
— Talvez seja melhor mudar de assunto — sugeri.
— De acordo.
Mas só houve silêncio depois disso.
14
14
A SALA ESTAVA PRONTA PARA RECEBER NOSSOS CONVIDADOS. Duas fileiras de assentos
estavam dispostas como numa arquibancada, o que me lembrava a forma
como os Selecionados sentavam no Jornal. Havia comida e bebida em
alguns pontos do cômodo, um controle de segurança perto da porta e
algumas câmeras circulando.
Atrás da equipe de produção estava a Elite, sentada contra a parede, e
todos pareciam empolgados por poder acompanhar uma parte do meu
trabalho. Fiquei feliz ao ver Kile e Erik com cadernos nas mãos (ainda que,
no caso de Erik, fosse mais para ajudar Henri). Tinham vindo a trabalho.
— Você está linda — Marid garantiu, provavelmente depois de me ver
ajeitando a gola.
— Tentei escolher um traje de trabalho sem parecer formal demais.
— E conseguiu. Só precisa se acalmar um pouco. Eles não estão aqui para
atacar você; estão aqui para conversar. E a única coisa que você precisa
fazer é ouvir.
Concordei com a cabeça.
— Posso fazer isso. — Respirei fundo. Nunca tínhamos feito uma coisa
daquelas antes, e eu estava tão alegre quanto horrorizada. — Como você
conheceu essas pessoas? São amigos?
— Não exatamente. Algumas ligaram para os programas de rádio que fiz
antes, outras foram sugestão de conhecidos. É uma boa mistura de
situações econômicas e sociais, o que deve garantir uma discussão bem
abrangente.
Processei a informação. Tratava-se simplesmente disso: uma discussão.
Eu encararia pessoas que viviam de fato no nosso país e ouviria o que elas
tinham a dizer. Não era uma multidão enorme; apenas algumas pessoas.
— Nós vamos conseguir, o.k.? — ele disse para me tranquilizar.
— Muito bem. — Tentei lembrar a mim mesma que aquela era uma coisa
boa assim que os convidados começaram a entrar na sala.
Fui cumprimentar uma mulher que parecia ter gastado mais tempo com
o cabelo do que eu, e seu marido, que, embora fosse bonito, poderia ter
abusado um pouco menos do perfume.
— Alteza — a mulher saudou, curvando-se numa reverência. — Meu
nome é Sharron Spinner, e este é meu marido, Don. — Ele também fez uma
reverência ao ouvir seu nome. — Estamos muito contentes por estar aqui. É
ótimo que o palácio invista um tempo para ouvir o povo.
Concordei.
— Já estava mais do que na hora. Por favor, sirvam-se e fiquem à
vontade. Os produtores podem parar para entrevistá-los enquanto os
outros se acomodam, mas vocês não são obrigados a falar com eles se não
quiserem.
Sharron tocou o canto dos lábios para garantir que a maquiagem estava o
mais impecável possível.
— Não nos incomodamos nem um pouco — ela disse. — Vamos, querido.
Não me contive e revirei os olhos. Os Spinner pareciam ansiosos demais
para aparecer.
Atrás deles vieram os Barns e os Palter. Havia uma garota
desacompanhada, Bree Marksman, e dois jovens, Joel e Blake, que se
conheceram no saguão de entrada e já conversavam como se fossem
amigos. Por fim, chegou um casal mais jovem que se apresentou como sr. e
sra. Shell. Pareciam ter feito o máximo para conseguir roupas legais para a
ocasião, mas sem sucesso.
— Brenton e Ally, certo? — perguntei, chamando-os para vir ao meu lado.
— Sim, Alteza. Obrigado pelo convite — Brenton respondeu com um
sorriso, aparentando estar grato e envergonhado ao mesmo tempo. — Quer
dizer que vamos conseguir nos mudar agora?
Parei na hora e encarei os dois. Ally engoliu em seco, numa tentativa
clara de não criar muita expectativa.
— Mudar? — perguntei.
— É. Faz tempo que tentamos mudar de bairro lá em Zuni.
— Não é muito seguro — Ally acrescentou em voz baixa.
— Pensamos em formar uma família, mas não param de mudar os preços
dos apartamentos.
— Temos amigos que conseguiram se mudar sem nenhum problema —
Ally insistiu.
— Mas quando tentamos ir para a mesma região, o aluguel estava o
dobro do que Nic e Ellen pagam.
— Os donos disseram que nossos amigos deviam ter informado o preço
errado… Bom, não quero acusar ninguém, mas Nic era Três, e nós, Cinco.
— Nós só queremos morar num lugar seguro — Brenton acrescentou,
levantando os ombros. — Mesmo que a senhorita não possa dar um jeito
nisso, pensamos que encontrar a princesa talvez ajudasse.
— Alteza — a produtora chamou. — Desculpe interromper, mas vamos
começar.
Ela então levou os Shell para seus lugares, e sentei diante de todos, sem
saber ao certo como começar.
Ri um pouco para tentar quebrar a tensão.
— Como nunca fizemos algo assim antes, não temos um protocolo a
seguir. Alguém tem alguma pergunta?
Um dos jovens — Blake, reconheci — ergueu a mão, e observei as
câmeras mudarem de ângulo para focalizar seu rosto.
— Sim, Blake?
— Quando o rei vai voltar?
E, simples assim, me tornei insignificante.
— Não sei ao certo. Depende da recuperação completa da minha mãe.
— Mas ele vai voltar, certo?
Forcei um sorriso.
— Se, por algum motivo, ele não voltar, o país continuaria a avançar
conforme o planejado. Sempre fui a primeira na linha de sucessão e tenho
os mesmos ideais do meu pai. Ele queria muito ver o fim das castas e, agora
que elas acabaram, eu trabalharia ainda mais para suprimir as marcas que
elas deixaram.
Lancei um olhar para Marid, que me deu um rápido sinal de positivo.
— Mas o negócio é o seguinte — Andrew Barns começou. — O palácio
não tem feito nada para ajudar aqueles cujos pais eram Cinco ou Seis ou
menos.
— Acho que ainda não conseguimos definir exatamente o que seria mais
eficaz. Esse é um dos motivos para vocês estarem aqui hoje. Queremos
ouvi-los — finalizei, as mãos cruzadas sobre o colo, tentando dar a
impressão de estar no controle.
— Mas a monarquia é mesmo capaz de ouvir o povo? — Bree perguntou.
— Já pensaram em passar o poder às massas? Não acham que existe a
chance de fazermos um trabalho melhor do que o seu?
— Bom…
Sharron me cortou ao se voltar para Bree:
— Querida, você mal consegue se vestir. Como pode achar que seria
capaz de governar um país?
— Me dê o direito ao voto! — Bree exigiu. — Isso já bastaria para mudar
muita coisa.
O sr. Palter — Jamal — se inclinou para a frente.
— Você é jovem demais — começou, também se opondo a Bree. — Quero
ver a mudança chegar até mim. Vivi a época das castas. Eu era Três e, de lá
para cá, perdi muita coisa. Essa garotada não sabe de nada para contribuir
com a discussão.
O outro rapaz solteiro levantou, irado.
— Só porque sou jovem não quer dizer que não preste atenção ou que
não conheça gente que sofreu. Quero um país melhor para todos, não só
para mim.
Tinham-se passado menos de cinco minutos, e a conversa inteira tinha
virado um bate-boca. Várias pessoas mencionavam meu nome, mas
nenhuma delas chegava a falar comigo.
Imaginei que a tentativa de vislumbrar uma ampla variedade de estilos
de vida poderia acarretar conflito, mas desejei que Marid tivesse filtrado
melhor as pessoas. Mas, pensando bem, talvez ele tivesse feito isso, e ainda
assim acabamos com pessoas que não davam a mínima para a minha
presença. Eu tinha passado tanto tempo preocupada com a possibilidade de
eles me odiarem que não parei para considerar a possibilidade de eu
simplesmente ser irrelevante aos olhos deles.
— Poderiam levantar a mão antes de falar? — propus na tentativa de
recuperar o controle. — Não consigo ouvir as ideias de vocês com todos
falando ao mesmo tempo.
— Exijo direito ao voto! — Bree berrou, e os outros se calaram. Ela então
me fulminou com o olhar. — Vocês não fazem ideia de como é a nossa vida
de verdade. Olhe esta sala — ela apontou para as paredes e para a
tapeçaria, combinadas com maestria, e para os pratos de porcelana e os
copos cintilantes. — Como podemos confiar nas suas decisões se vocês
estão tão distantes do povo? Vocês governam a nossa vida sem saber como
é viver como a gente.
— Ela tem razão — disse Suzette Palter. — Vocês nunca passaram um dia
no meio da sujeira ou tendo que fugir para sobreviver. É fácil decidir a vida
dos outros quando não se está na pele deles.
Fiquei ali sentada, frente a frente com aqueles estranhos. Era responsável
por eles. Mas como poderia ser? Como uma pessoa poderia garantir que
toda e cada alma recebesse todas as oportunidades possíveis, tudo de que
necessitasse? Não era possível. Mesmo assim, renunciar também não
parecia ser a solução.
— Desculpem, mas tenho que interromper — Marid anunciou, surgindo
das sombras. — A princesa é delicada demais para lembrar todos vocês
quem ela realmente é, mas como amigo que se importa, não posso permitir
que falem com ela desse jeito.
Ele me lembrou alguns dos meus tutores, que se aproximavam para ver o
que eu estava fazendo e me deixavam envergonhada mesmo que eu
achasse que não havia motivo.
— A princesa Eadlyn pode não ser sua soberana hoje, mas está destinada
ao trono. Ganhou esse direito por causa de uma linhagem inteira de
tradição e sacrifício. Vocês esquecem que podem escolher profissão,
endereço, todo o seu futuro, enquanto ela tem o destino traçado desde o
nascimento. E ela aceitou esse peso de bom grado por vocês. Gritar pelo
fato de ela ser jovem é injusto, pois todos sabemos que o pai dela tinha
pouca experiência a mais quando subiu ao trono. A princesa Eadlyn
estudou com afinco ao lado dele ao longo dos anos e já disse que pretende
dar continuidade às ambições de Maxon. Digam-lhe como alcançar isso.
Bree esticou o pescoço.
— Eu já disse.
— Se a sua ideia é que nos tornemos uma democracia do dia para a noite,
saiba que isso traria mais caos à sua vida do que você é capaz de imaginar
— Marid insistiu.
— Mas se você quer votar — comecei —, talvez possamos conversar
sobre como implementar eleições locais. É muito mais provável que os
líderes mais próximos de vocês, aqueles que de fato vivenciam a sua região
diariamente, possam cuidar das necessidades mais urgentes.
Bree não sorriu, mas relaxou um pouco a tensão nos ombros.
— Seria um começo.
— Muito bem — eu disse, reparando que Neena tomava notas feito louca.
— Brenton, você comentou algo sobre moradia quando entrou. Pode falar
mais do assunto?
Depois de quinze minutos, o grupo chegou à conclusão de que ninguém
deveria ter o direito a uma casa negado com base na profissão ou na antiga
casta, e que todos os valores deveriam ser anunciados para que não
houvesse reajustes para barrar o acesso de certas pessoas.
— Não quero parecer esnobe — Sharron disse —, mas alguns de nós
vivemos em regiões em que preferiríamos… que não morassem certas
pessoas.
— Não deu certo — comentou um dos rapazes. — Você foi totalmente
esnobe.
Suspirei e pensei um pouco.
— Em primeiro lugar — comecei —, imagino que você more num bairro
rico e que a mudança para lá demandaria uma quantidade considerável de
dinheiro para começo de conversa. Em segundo lugar, você parte do
princípio de que as pessoas com menos meios econômicos são péssimos
vizinhos.
“O que você disse a meu respeito, Suzette, era verdade.” A mulher se
animou ao ouvir seu nome e sorriu por ter acertado, mesmo sem saber o
quê. “Nunca morei fora do palácio. Mas, graças à Seleção, jovens de origens
muito diferentes entraram na minha vida e me ensinaram muito. Alguns
trabalhavam e estudavam ao mesmo tempo; outros sustentavam a família;
outros tentam aprender inglês para ter mais oportunidades. Talvez tenham
crescido com bem menos oportunidades do que eu, mas enriqueceram a
minha vida de maneiras que nem posso começar a descrever. Sharron?”,
perguntei afinal. “Isso não tem algum valor?”
Ela não respondeu.
— No fim das contas, sou incapaz de forçar vocês a tratar as pessoas
como deveriam. Mas tenham consciência de que não importam as leis que
eu aprovar, nenhuma terá muito efeito se vocês não assumirem a
responsabilidade de serem bons com os outros cidadãos.
Vi Marid sorrir e tive certeza de que, apesar de não ter sido perfeita, tinha
dado um grande passo. Me senti vitoriosa.
Quando a reunião acabou, eu estava prestes a desmoronar de tão tensa.
Quase duas horas de conversa pareciam equivaler a uma semana de
trabalho. Felizmente, a Elite pareceu compreender que eu estava exausta e
se retirou com reverências educadas. Eles teriam bastante tempo para
conversar entre si sobre o assunto mais tarde. Por ora, eu queria apenas me
jogar num sofá.
Resmunguei para Marid:
— Tenho a sensação de que vão querer outra reunião como esta, mas me
recuso enquanto não estiver completamente recuperada, o que pode levar
anos.
Ele riu.
— Você foi ótima. Eles que dificultaram. Mas como foi a primeira vez,
ninguém sabia como se comportar. Se você fizer de novo, vai ser bem mais
fácil para as duas partes.
— Espero que sim — eu disse, esfregando as mãos. — Não paro de
pensar em Bree, na intensidade dela.
— Intensidade? Não sei se usaria essa palavra para descrever — Marid
disse com cara de tédio.
— É sério. A reunião parecia muito importante para ela — lamentei,
pensando em como ela parecia a ponto de chorar diversas vezes. — Estudei
ciência política a vida inteira. Sei o que são repúblicas, monarquias
constitucionais e democracias. Fico pensando se ela não tem razão. Talvez
devêssemos…
— Pode parar por aí. Por acaso já esqueceu como ela parecia perturbada
ao se dar conta de que as coisas não sairiam do jeito que ela queria? Você
quer mesmo que as escolhas do país sejam feitas por alguém como ela?
— Ela é uma voz entre milhões.
— Exatamente. Eu estudei política tanto tempo quanto você, e pelas
abordagens mais variadas. Acredite em mim, é muito melhor manter o
controle aqui.
Ele tomou as minhas mãos, com um sorriso tão confiante que resolvi
parar de pensar naquilo.
— E você é muito capaz — ele retomou. — Não deixe um pequeno grupo
de pessoas que não sabe expressar racionalmente a própria opinião
derrubar a sua confiança.
Fiz que sim.
— Fiquei um pouco abalada, só isso.
— Claro que ficou. O público era difícil. Mas você pode digerir tudo isso
com uma garrafa de vinho. Sei que vocês têm adegas excelentes aqui.
— Temos — respondi com um sorriso largo.
— Vamos, então. Vamos comemorar. Você acaba de fazer uma coisa
maravilhosa pelo seu povo. Com certeza merece uma taça.
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— BOM, NÃO FOI ÓTIMO — admiti. — Mas poderia ter sido bem pior.
— Falem para sua filha se valorizar um pouco mais — Marid insistiu.
Meus pais sorriram, e fiquei feliz por termos cruzado com eles no
corredor. A voz do meu pai, mais do que qualquer outra, ia me ajudar a
compreender o que eu tinha acabado de fazer e dizer.
— Nós tentamos, Marid, garanto a você — meu pai comentou. Ele tomou
um gole de vinho e logo afastou a taça para se servir de uma xícara de chá,
como minha mãe.
O médico tinha dito que uma bebida de vez em quando não faria mal, mas
era óbvio que ela não estava a fim de arriscar, e não me surpreendeu meu
pai acompanhá-la.
— Como vai a sua mãe? — minha mãe perguntou. Pela sua expressão, ela
estava morrendo de vontade de saber.
Marid abriu um sorriso largo.
— Ela nunca diminui o ritmo. Está triste, claro, por não poder fazer coisas
maiores, mas trabalha diligentemente para cuidar de quem está próximo de
nós em Columbia. Até um bem pequeno é melhor do que nenhum.
— De acordo — minha mãe replicou. — Você poderia lhe dizer que penso
nela sempre?
Ela olhou para meu pai, que permanecia indecifrável, mas Marid pareceu
satisfeito.
— Vou dizer. E posso garantir que o mesmo vale para ela.
A conversa teve uma pausa, e todos se concentraram em suas bebidas
por um momento. Por fim, meu pai nos salvou do silêncio.
— Então parece que um dos casais beirava a crueldade. Qual era mesmo
o nome da mulher?
— Sharron — Marid e eu respondemos em coro.
— Ela veio com um propósito.
— Todos vieram — eu disse. — Mas era essa a ideia, certo? Todo mundo
provavelmente tem uma ideia específica de como melhorar o próprio
cotidiano. O ruim não era que tivessem essas ideias, mas como tentavam
comunicá-las.
Minha mãe concordou com a cabeça.
— Deve haver um jeito de fazer algo assim sem toda a briga. Isso só
atrasa o processo.
— Por um lado sim, mas por outro, contribui para a discussão — Marid
alegou. — Quando voltaram a ter consciência de que falavam com a
princesa, a conversa fluiu melhor.
— Estou certa de que tivemos mais pontos positivos do que negativos
hoje — complementei.
Meu pai estava de cabeça baixa, os olhos fixos na mesa.
— Pai? Você não acha?
Ele levantou o olhar para mim e sorriu.
— Acho, querida, acho — disse. Em seguida, suspirou e endireitou a
postura. — E lhe devo um agradecimento, Marid. Um gesto como esse com
certeza não afeta apenas o palácio, mas todo o nosso país. Foi uma ideia
muito boa.
— Vou repassar seu agradecimento ao meu pai, que me deu a ideia anos
atrás.
— Então também lhe devo um pedido de desculpas — meu pai replicou
com um sorriso enorme. Em seguida, batucou na mesa com os dedos como
que para organizar os pensamentos. — Por favor, diga aos seus pais que
eles não precisam continuar afastados. Só porque discordamos sobre os
métodos, não quer dizer que…
Marid ergueu a mão.
— Não diga mais nada, Majestade. Meu pai já disse mais de uma vez que
passou da linha. Vou insistir para que ele entre em contato. Logo.
Meu pai sorriu.
— Eu ia gostar.
— Eu também — minha mãe emendou.
— E você é bem-vindo para visitar sempre que quiser — acrescentei. —
Principalmente se tiver mais ideias para melhorar a relação com nosso
povo.
Marid assumiu uma expressão triunfante.
— Ah, tenho várias.
SENTADA, EU ESPERAVA HALE CHEGAR AO MEU QUARTO. Queria ter aquela conversa
num lugar íntimo e confortável. Minhas mãos suavam, e de repente me dei
conta de que logo só restariam os garotos que eu não queria mandar
embora. Sabia que no final só haveria um, mas quase desejava que os
outros também pudessem chamar o palácio de casa ou quem sabe
prometer uma visita nos feriados.
Ergui a cabeça ao ouvir a batida na porta e fui abrir pessoalmente. Não
queria Eloise por perto naquele momento.
Hale fez uma reverência.
— Alteza.
— Entre. Quer alguma coisa para comer, beber?
— Não, estou bem — ele disse, esfregando as mãos, aparentando tanto
nervosismo quanto eu.
Sentei à mesa e ele fez o mesmo. Quando o silêncio se tornou
insuportável, disparei:
— Você precisa me contar o que está acontecendo.
Ele engoliu em seco.
— Eu quero contar. Mas não sei o que vou fazer se você acabar me
odiando.
Apesar do calor que fazia, senti um calafrio.
— Por que eu odiaria você, Hale? O que você fez?
— Não é o que eu fiz. É o que não consigo fazer.
— Que é…?
— Casar com você.
Embora eu esperasse aquilo, embora meu coração nunca tivesse chegado
a ser dele por inteiro, ainda foi doloroso.
— Mas o que… — tive que parar para respirar. Meu maior medo se
tornava realidade. Era impossível alguém me amar. Eu sabia. Ele só
precisou de algumas semanas ao meu lado para perceber. — O que de
repente te deixou tão convicto de que não pode casar comigo?
Ele fez uma pausa. Parecia angustiado. O fato de aparentar não querer me
magoar era algum consolo.
— É que descobri que sinto algo por outra pessoa — ele respondeu
afinal.
Pelo menos era mais fácil lidar com isso do que com a minha
preocupação inicial.
— Carrie?
Ele negou com a cabeça.
— Ean.
Fiquei no mais absoluto silêncio. Ean? Tipo, Ean, “o” Ean?
Por aquela eu não esperava. Hale tinha sido tão carinhoso, tão romântico.
Mas tudo a respeito de Ean passou a fazer sentido.
Na época das castas, era lei que as famílias assumissem a casta do
marido. Por causa disso, só podia haver um chefe de família homem em
cada domicílio. O mesmo valia para as mulheres: se não se casavam com
um homem, não constituíam um lar considerado legítimo. Algumas pessoas
moravam juntas sem se importar com casamento; chamavam o parceiro de
colega de quarto, mas eram malvistos. Minha mãe me contou sobre um
casal do mesmo sexo lá de Carolina, por exemplo, que tinha sido tão
discriminado que precisou mudar de cidade.
Eu nunca tinha dado muita importância àquela história. A meu ver, com
tanta gente sofrendo horrores naquela época, por que alguém deixaria de
cuidar da própria vida para piorar a dos outros?
Independente disso, os casais de mesmo sexo tendiam a viver nas
sombras, marginalizados, e ainda era assim. Isso tornava bem mais
compreensível o fato de Ean se conformar com uma vida sem amor.
Mas Hale?
— Como… como vocês…?
— Começamos a conversar uma noite no Salão dos Homens. Eu não
estava conseguindo dormir e decidi ir até lá para ler. Encontrei Ean
escrevendo no diário. — Hale sorriu sozinho. — Pode até não parecer, mas
na verdade ele é bem sensível. Em todo caso, apenas conversamos. Não
faço ideia de como acabei sentado ao lado dele, mas aí ele me beijou e…
entendi por que nunca tinha sentido nada por Carrie. Entendi por que,
apesar de você ser a garota mais inteligente, divertida e corajosa que
conheço, jamais conseguiria me casar com você.
Fechei os olhos e ponderei tudo aquilo. Fiquei completamente
horrorizada porque a única coisa que me vinha à cabeça era como aquilo
poderia me prejudicar. Deixei de lado o fato de que Hale teria que explicar a
descoberta para sua família e para si mesmo, e que Ean talvez fosse
obrigado a se assumir. O que a imprensa diria quando soubesse que não só
um, mas dois dos meus pretendentes preferiam casar um com o outro do
que comigo?
Às vezes eu era mesmo uma pessoa terrível.
— Sei que um relacionamento com outra pessoa na Seleção é
considerado traição — Hale balbuciou. Franzi a testa, porque tinha
esquecido completamente daquele detalhe. — Mas também sei que uma
vida curta e honesta é melhor do que uma vida longa e mentirosa.
— Hale — censurei, me inclinando por cima da mesa para tomar a mão
dele —, o que te faz pensar que eu seria capaz de punir você?
— Conheço as regras.
Suspirei.
— Passamos a vida atados a elas, não é?
Ele fez que sim.
— Talvez a gente possa fazer um acordo?
— Que tipo de acordo?
Retraí as mãos e as esfreguei.
— Se você me fizer o favor de ficar até a coroação e me deixar dispensar
você e Ean com o intervalo de algumas semanas, ou talvez dias, podem sair
do palácio sem qualquer repercussão.
Hale me encarou incrédulo.
— Sério?
— Confesso: fico preocupada com as consequências de tudo isso. Mas se
parecer que vocês dois se apaixonaram depois de terem sido eliminados,
ninguém vai poder acusá-los de traição. E, desculpe, mas se a imprensa
descobrir, vão acabar comigo por causa disso.
— Eu realmente não queria dificultar ainda mais a sua vida. Não estou
apaixonado por você, mas te amo o bastante para dizer a verdade.
Levantei e cheguei mais perto dele. Ele fez o mesmo. Abracei-o e apoiei a
cabeça em seu ombro.
— Eu sei. Também te amo. Não desejaria que você passasse a vida
acorrentado a mim e infeliz.
— Posso fazer alguma coisa por você? Sair daqui com a sua bênção é mais
do que eu esperava. Como posso ajudar?
Dei um passo para trás.
— Apenas seja um Selecionado exemplar por mais alguns dias. Tenho
consciência de que é pedir muito, mas esperar até a coroação significaria
demais para mim.
— Não é pedir muito, Eadlyn. É pedir quase nada.
Levei a mão à bochecha dele. Uma prova por dia.
— Mas me conta, ele é o cara da sua vida?
Hale riu, finalmente aliviado.
— Não sei. Quer dizer, nunca me senti assim antes.
Acenei com a cabeça.
— Já que Ean e eu não conversamos muito, talvez seja melhor você dizer
a ele como a eliminação de vocês vai funcionar. Ele provavelmente vai para
casa antes, já que para o público sempre foi um candidato menos cotado.
Dizer aquilo em voz alta me fez sentir uma leve pontada no coração. Ean
não passava de um plano B; ainda assim, mesmo sabendo a verdade, eu não
me alegrava com a ideia de vê-lo partir.
— Obrigado. Por tudo.
— Não há de quê.
Hale se aproximou e me deu outro abraço antes de ir embora correndo.
Sorri sozinha, pensando que nós dois enfrentávamos situações parecidas:
nos entregando ao futuro, sem garantias de um “felizes para sempre”.
Ainda assim, dar esse passo enorme já significava alguma coisa, não?
Eu gostava de pensar que sim.
TOMEI CHAMPANHE E GARGALHEI ALTO e devo ter comido metade do meu peso em
chocolate. Por apenas algumas horas, quis me acabar naquela opulência
ridícula que nunca tinha valorizado. No dia seguinte eu tomaria muita água
e botaria a cabeça no lugar. No dia seguinte me preocuparia com a
manutenção da ordem no país. No dia seguinte pensaria em maridos.
Mas naquela noite? Naquela noite eu só queria curtir o momento perfeito
e empolgante.
— Mais uma dança? — Ahren perguntou, me pegando no meio de um
gole do que eu tinha jurado que seria a última taça. — Tenho que pegar o
avião, mas queria me despedir.
Levantei e segurei a mão dele.
— Aceito qualquer despedida. Qualquer uma vai ser melhor do que a
última.
— Ainda sinto muito por isso, mas você sabe por que eu não conseguiria
me despedir.
Assumimos nossas posições e ele me girou pelo salão.
— Sei, sim — concordei. — Mas isso não facilitou nada. Adicione a isso
tudo que está acontecendo aqui e vai ver que a vida tem sido bem difícil
sem você por perto.
— Desculpa. Mas você está indo muito bem, melhor do que pensa, aposto.
— Veremos. Ainda preciso estabelecer meu governo, garantir que a
mamãe e o papai vão pegar leve, e encontrar alguém para casar comigo.
Ele deu de ombros.
— Praticamente nada.
— Quase férias.
Ele riu. Ah, como senti falta do som daquela risada.
— Desculpa se a minha carta foi dura demais — ele disse. — A mamãe e o
papai queriam proteger você, mas eu estava com medo de que você fosse
prejudicada por não saber a verdade.
— Não foi fácil de ler, mas essa questão ressurgiu mais de uma vez. Eu
devia ter percebido antes. Se não tivesse sido tão egocêntrica…
— Você queria se proteger — ele me interrompeu rápido. — Você está
fazendo uma coisa inédita na história do país. Claro que encontrou jeitos de
deixar as coisas mais fáceis.
Balancei a cabeça.
— O papai vive exausto. A mamãe nunca diminui o ritmo. Você estava
apaixonado, e eu tentei te convencer a abandonar seu amor. Existe uma
palavra para descrever o que eu sou, mas sou muito educada para
pronunciá-la.
Ele gargalhou com o que eu disse, e percebi vários olhares recaírem
sobre nós, sendo que o mais ostensivo era o de Camille. Eu queria ter raiva
dela, a garota que fazia tudo que eu tentava fazer, mas dez vezes melhor; a
garota que tinha roubado meu irmão gêmeo. Mas era evidente que ela
estava feliz por nos ver juntos outra vez.
Eu ainda não entendia como ela tinha dominado tudo com tanta
facilidade, como parecia conseguir ser uma líder e ser uma garota sem
fazer esforço. Apesar do dia perfeito, eu me preocupava com a
possibilidade de aquilo não durar.
— Ei — ele disse, ao notar a preocupação nos meus olhos. — Vai ficar
tudo bem. Você vai sobreviver.
Mudei minha expressão, tentando recuperar a magia que parecia ter
sentido nas veias apenas alguns momentos antes. Eu era a nova rainha. Não
podia ficar triste justo naquele dia.
— Eu sei — disse. — Só não sei ao certo como.
A música chegou ao fim, e Ahren fez uma reverência profunda.
— Você precisa ir a Paris para o Ano-Novo.
— E você precisa voltar para o nosso próximo aniversário — insisti.
— E depois você tem que passar a lua de mel na França.
— Só se você vier para o casamento.
Ele estendeu a mão.
— Combinado.
Apertei a mão do meu querido irmão gêmeo, que me puxou para um
abraço.
— Passei dias me sentindo mal, achando que você jamais me perdoaria
por ter ido embora. O fato de você não estar nem um pouco zangada
dificulta muito ir embora novamente.
— Você tem que ligar. E não só para os nossos pais. Tem que ligar pra
mim também.
— Vou ligar.
— Amo você, Ahren.
— Amo você, Majestade.
Dei risada, e nós dois secamos os olhos.
— Por falar em casamento — ele começou —, alguma ideia de quem será
o noivo?
Corremos os olhos pelo salão. Era fácil localizar os garotos da Elite, todos
de ternos e gravatas refinados, tão lindos quanto qualquer convidado da
realeza. Eu os observara a noite inteira, para analisar seu comportamento
naquela situação e juntar a informação às pilhas que eu já tinha sobre eles.
Kile tinha sido atencioso com os convidados mais jovens, e Fox tinha
apertado tantas mãos que o flagrei massageando os pulsos em determinado
momento. Embora Ean e Hale estivessem fora do páreo, ouvi meio por cima
que os dois deram declarações esplêndidas sobre o meu caráter à
imprensa, bem acima de todas as minhas expectativas. E havia Henri. Ele
tinha dado o seu melhor, com Erik sempre ao seu lado, ajudando nas
conversas, mas quando o vi sentado, só observando os convivas, tive
certeza de que tudo aquilo tinha sido muito difícil para ele.
— Já fiz e refiz essa pergunta. É difícil saber com certeza quem seria a
escolha certa. Só quero fazer o melhor para todos.
— Inclusive você?
Apenas abri um sorriso, incapaz de responder.
— Se a minha partida prova alguma coisa — Ahren disse, sério —, é que
você tem que ficar com a pessoa que ama, custe o que custar.
Amor. Eu achava que o amor era como uma roupa, incapaz de vestir duas
pessoas do mesmo jeito. Ainda não sabia ao certo o que aquela palavra
significava para mim, mas tinha a sensação de que chegaria a uma definição
antes do que imaginava. Só restava saber se a definição me satisfaria.
— Vou dizer uma coisa, Eady: guerras, tratados e até países vão e vêm.
Mas a sua vida é só sua, única e sagrada, e você deve passá-la com alguém
que faz de cada segundo uma bênção.
Baixei os olhos para examinar meu vestido. Senti o peso da coroa sobre a
minha cabeça. Sim, a minha vida era única e sagrada, mas desde o instante
em que nasci — meros sete minutos antes do meu irmão —, ela pertenceu a
todos menos a mim.
— Obrigada, Ahren. Vou lembrar disso.
— Por favor.
Apoiei a mão no ombro dele.
— Vá encontrar sua esposa. Faça uma boa viagem e avise quando
aterrissar, certo?
Ele tirou minha mão do seu paletó e a beijou.
— Tchau, Eady.
— Tchau.
Embora eu estivesse ficando cansada, sabia que ainda não era hora de
sair de fininho. Uma última volta pelo salão, disse a mim mesma. Para
distribuir apertos de mão, dar uma ou duas entrevistas e me esgueirar para
a porta lateral.
Tantos sorrisos e abraços, tantos desejos positivos e tantas promessas de
entrar logo em contato. Aquilo tudo me dava energia com a mesma rapidez
com que a sugava. No momento em que eu passava pelo canto onde Ean
conversava com alguns ganhadores do sorteio para assistir à coroação,
mais uma valsa começou a tocar.
— Ah, uma dança! — uma jovem suplicou. Eu pensei que ela queria que
Ean dançasse com ela, mas ela o empurrou de leve na minha direção, e ele
não se mostrou nem um pouco triste de me acompanhar até a pista.
Depois de alguns giros, precisei perguntar:
— Há quanto tempo você gosta de Hale?
Ele sorriu.
— Desde o momento em que vi ele se preparando para te conhecer. Ele
parecia tão feliz, a ponto de lembrar um personagem de desenho animado.
Foi muito fofo.
— Fofo mesmo — concordei.
— Sinto muito por ter mentido para você. Meu plano era levar isso
comigo para o túmulo.
— E agora?
Ele deu de ombros.
— Não sei. Mas Hale é tão teimoso com essa história de ser sincero
consigo mesmo que jamais tentaria usar outra pessoa como fachada para
me esconder, que foi o que tentei fazer com você. Não é justo com ninguém.
— É difícil ser justo consigo mesmo às vezes, não é?
Ele fez que sim.
— Mas eu não compararia as nossas circunstâncias. No fim das contas,
ninguém se importa comigo, e todo mudo se importa com você.
— Não seja bobo. Eu me importo com você. Já me importava com o
arrogante metido que se apresentou no primeiro dia. — Ele riu ao recordar.
Um pouco daquele verniz tinha se desgastado. Não completamente, mas eu
sabia o quanto era difícil derrubar as próprias muralhas. — E também me
importo com essa pessoa ansiosa e gentil diante de mim.
Ean não era do tipo que chorava. Não engoliu em seco nem piscou nem
deu qualquer sinal típico, mas senti que, se em algum momento da vida ele
esteve prestes a derramar lágrimas, tinha sido aquele.
— Estou muito feliz por ver você se tornar rainha. Obrigado, Majestade.
Por tudo.
— Não há de quê.
A canção chegou ao fim, e nos afastamos com um aceno de cabeça.
— Tudo bem se eu for embora amanhã de manhã? — ele perguntou. —
Gostaria de passar um tempo com a minha família.
— Claro. Mantenha contato.
Ele concordou com a cabeça e atravessou o salão, pronto para iniciar sua
nova vida.
E eu tinha conseguido. Tinha sobrevivido ao dia sem fazer nada
humilhante, sem ouvir nenhum protesto, e ainda estava de pé. Era o fim, e
eu podia fugir para a paz e a tranquilidade do meu quarto.
Então, quando estava prestes a abrir a porta lateral, vi Marid falando
diante de uma câmera.
Ele olhou para mim e sua expressão se iluminou, gesticulando para que
eu me juntasse à sua entrevista. Apesar de cada milímetro do meu corpo
querer descansar, o sorriso de Marid era tão encantador que decidi ir até lá.
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— AQUI ESTÁ ELA, A DAMA DO MOMENTO — ele disse, passando o braço ao meu
redor e provocando risos na entrevistadora.
— Majestade, como está se sentindo? — ela perguntou com o microfone
apontado para o meu rosto.
— Posso dizer que estou cansada? — brinquei. — Não, sério, o dia foi
incrível e, apesar dos problemas no nosso país ultimamente, acredito muito
que o dia de hoje levantará o ânimo de todos. E estou muito entusiasmada
para trabalhar. Agradeço aos incríveis garotos da Seleção e aos amigos,
como o sr. Illéa aqui, por me ajudarem a conhecer muito mais do meu povo.
Tenho certeza de que seremos capazes de encontrar maneiras de ouvir as
demandas da sociedade e atendê-las de maneira muito mais eficiente.
— A senhorita pode nos dar algumas indicações do que pretende fazer?
— a repórter perguntou, ansiosa.
— Bom, penso que nossa assembleia, que foi ideia de Marid — comecei a
responder, gesticulando para ele —, começou um pouco complicada, mas
no final foi extremamente informativa. E o sr. Woodwork apresentou
recentemente uma proposta interessante para que os cidadãos tenham um
meio mais direto de entrar em contato com a coroa. Não posso falar muito
sobre isso no momento, mas é uma ideia incrível.
— Por falar em propostas — a jovem prosseguiu, toda empolgada —,
alguma de casamento?
Caí na gargalhada.
— Deixe passar minha primeira semana como rainha e então voltarei a
me concentrar nesse assunto.
— Justo. E quanto ao senhor? Algum conselho para a nova rainha?
Virei de frente para Marid, que deu de ombros e baixou a cabeça.
— Só lhe desejo toda a sorte no reinado e na Seleção. O cara que ganhar o
coração dela será mais sortudo do que pode imaginar.
Marid engoliu em seco, aparentando dificuldade para voltar a encarar a
entrevistadora, que por sua vez concordou efusiva.
— Com certeza será.
Tomei Marid pelo braço e o puxei de canto, para que ninguém ouvisse.
— Não quero ser grosseira depois de toda a bondade que você
demonstrou comigo, mas não convém se comportar dessa maneira.
— Que maneira? — ele quis saber.
— Como se você e eu pudéssemos ter tido algo mais caso a Seleção não
tivesse acontecido. Pelo que sei, esta é a terceira vez que você sugere algo
assim, mas não nos vemos há anos. Sou obrigada, pelo dever e pela honra, a
me casar com um dos candidatos. Esse seu jeito de bancar o coitado apesar
de jamais termos tido qualquer coisa é inaceitável. Precisa parar com isso
imediatamente.
— E por que faria isso? — ele disse, num tom de voz mais traiçoeiro.
— Como é?
— Se a sua família tivesse prestado o mínimo de atenção ao povo, talvez
você saberia que, no que diz respeito ao público, minha voz tem uma força
incomparável. As pessoas me adoram. Você devia ver as pilhas de cartas de
fãs que recebo. Nem todos consideram a linhagem dos Schreave válida.
Gelei, apavorada com a possibilidade de que algo daquilo pudesse ser
verdade.
— Você me deve muito, Eadlyn. Eu cuidei para que você aparecesse bem
nos jornais, elogiei você nas entrevistas e salvei aquela assembleia. Eu, não
você.
— Eu poderia…
— Não, não poderia. E esse é o problema. Você não consegue cumprir o
seu trabalho sozinha. É quase impossível, por isso o casamento é uma ideia
maravilhosa. Só que você está procurando no lugar errado.
Eu estava atônita demais para falar.
— E sejamos sinceros: se esses garotos estivessem mesmo a fim de você,
por acaso não estariam ao seu redor neste exato momento? Para quem vê
de fora, todos estão indiferentes.
Meu choque se transformou em angústia. Olhei ao redor do salão. Marid
estava certo. Ninguém da Elite parecia ter a menor consciência da minha
presença.
— Por outro lado, se você se unir a mim, a linhagem Illéa-Schreave estará
completamente assegurada. Ninguém ousaria questionar o seu direito ao
trono se você fosse minha esposa.
O salão pareceu estremecer por um instante. Tive que me esforçar para
manter a compostura enquanto ele continuava:
— E pode conferir os números se quiser, mas no quesito opinião pública
minha taxa de aprovação é o dobro da sua. Eu poderia fazer você passar de
“tolerada” para “adorada” do dia para a noite.
— Marid — eu disse, odiando que a minha voz soasse tão fraca —, isso
não é possível.
— Claro que é. Você pode terminar a Seleção por conta própria, ou então
eu espalho tantos boatos sobre nós que ninguém mais vai acreditar nela.
No final, você vai parecer ainda mais insensível do que já pensam que é.
Endireitei as costas e jurei:
— Vou acabar com você.
— Pode tentar. Veja como logo o povo se volta contra você. — Ele beijou
minha bochecha. — Você tem o meu número.
Marid foi embora, cumprimentando todos à sua passagem como se já
fosse membro da família real. Enquanto os olhares pareciam acompanhá-lo,
me esgueirei discretamente para fora do salão.
Eu era mesmo uma idiota. Tinha pensado que Hale gostava de mim, que
Ean me apoiava, e me enganara redondamente. Havia errado ao confiar em
Burke, em Jack e Baden. Estava convicta de que Marid tinha vindo me
ajudar, e ele só queria o trono. Meus instintos tinham errado em todos os
aspectos, e de repente as pessoas ao meu redor me pareceram todas falsas.
Será que tinha me enganado a respeito de mais alguém? Errava em
confiar em Neena e na srta. Brice? Será que Kile era o amigo que eu
pensava? Eu podia confiar no que sentia e pensava em relação aos outros?
Encostei na parede, prestes a desatar a chorar. Eu era a rainha. Nenhuma
pessoa era mais poderosa do que eu. E, no entanto, nunca tinha me sentido
tão indefesa.
A porta se abriu e, antes que eu conseguisse me esconder mais, vi o rosto
de Erik.
— Majestade, sinto muito. Eu só queria escapar da multidão. Lá dentro
estava um pouco demais para mim.
Não respondi.
— Parece que foi um pouco demais para você também — ele acrescentou
com cautela.
Cravei os olhos no chão.
— Majestade? — ele sussurrou. — Posso ajudar?
Encarei aqueles olhos de um azul selvagem e abandonei todas as
preocupações na minha cabeça. Meu coração disse: Corra. Agarrei a mão
dele e saí correndo.
Atravessei o corredor, lançando um olhar para trás para conferir que
ninguém nos seguia.
Como eu esperava, o Salão das Mulheres estava vazio. Sem acender as
luzes, puxei-o para perto da janela para que ao menos a luz da lua me
ajudasse a enxergar.
— Sob o risco de fazer um papel de idiota ainda maior do que já fiz, quero
te fazer uma pergunta e gostaria que você respondesse, por favor. E tem
que ser uma resposta absolutamente sincera. Você tem permissão para
ferir meus sentimentos, mas eu preciso saber a verdade.
Depois de um longo instante, ele fez que sim com a cabeça, embora sua
expressão revelasse um pavor terrível do que poderia vir.
— Existe alguma chance de você sentir por mim o mesmo que sinto por
você? Se você sente ao menos um milésimo dessa revolução que está
acontecendo no meu coração, precisa me dizer.
Erik suspirou, aparentemente atônito e triste ao mesmo tempo.
— Majestade, eu…
— Não! — gritei, arrancando a coroa da cabeça e atirando-a do outro
lado do salão. — Nada de Majestade. Eadlyn. Sou apenas Eadlyn.
Ele sorriu.
— Você é sempre apenas Eadlyn. E é sempre a rainha… É tudo para
todos. E infinitamente mais para mim.
Pus a mão sobre o peito dele e pude sentir seu coração latejar no mesmo
ritmo do meu. Ele de repente tomou consciência do meu desespero naquele
momento e, sem dizer uma palavra, tomou meu queixo na mão e se inclinou
para me beijar.
Cada momento que passamos juntos se embaralhou na minha cabeça. Seu
comportamento constrangido quando nos conhecemos, e a minha bronca
antes do desfile porque ele roía as unhas. A forma como ele me protegeu
quando a briga começou na cozinha, o olhar que me lançou quando todos
estavam rezando diante da ala hospitalar. E o mais impressionante: aquele
momento no Salão das Mulheres quando Camille me perguntou em quem
eu não parava de pensar, e tive que me esforçar muito para não dizer o
nome dele em voz alta.
Tudo aquilo, cada segundo mágico e proibido pareceu me incendiar
durante aquele beijo perigoso e comprometedor. Quando finalmente
paramos, lágrimas escorriam pelo meu rosto, convicta de que a partida de
Ahren e o medo de perder minha mãe não tinham sido nada perto dessa
nova dor.
Ele balançou a cabeça, ainda me abraçando.
— Claro. Na única vez que me permito amar tem que ser alguém de outra
estratosfera.
Cravei os dedos na camisa dele, no colete, furiosa por não poder ficar ali
para sempre.
— Esta vai ser a primeira vez na vida que não vou poder ter o que quero
de verdade. É tão cruel que aconteça justo com você.
Ele engoliu em seco.
— Então é impossível mesmo?
Fiquei de cara no chão. Eu não queria pronunciar aquelas palavras.
— Receio que sim. Agora mais do que nunca. Mal consigo elaborar todos
os motivos, mas as coisas ficaram bem mais complicadas para mim.
— Você não me deve explicações. Eu já sabia. Cometi o erro de criar
expectativas por um instante. Só isso.
— Sinto muito mesmo — sussurrei de cabeça baixa. — Se eu pudesse
cancelar tudo, cancelaria. Mas uma atitude como essa seria considerada
mais um erro no meio de tantas outras coisas idiotas e egoístas que eu já
fiz.
Ele levantou meu queixo delicadamente.
— Por favor, não fale assim da mulher que eu amo.
Abri um sorriso fraco.
— Fui tão injusta com você. As dúvidas estavam me corroendo, mas
talvez fosse melhor que você não soubesse de nada.
— Não — ele disse, de alguma maneira capaz de encontrar um consolo
no meio da nossa agonia. — Não há vergonha em amar a quem se ama, e há
muita honra em fazer o que é certo. Pena que essas duas coisas não
coincidem para nós. Mas isso não diminui a importância deste momento
para mim.
— Nem para mim.
Ele segurou minha mão com ternura, aparentemente chocado consigo
mesmo por ter tido coragem para isso.
— Preciso voltar — ele disse. — Odiaria provocar um escândalo.
— Você tem razão — concordei, suspirando, ainda incapaz de deixá-lo
partir. Endireitei o corpo e o abracei bem forte. — Ainda não estou
comprometida com ninguém — sussurrei. — Não quer me encontrar
amanhã à noite?
Dava para ver que todas as engrenagens da cabeça dele estavam girando.
Também foi fácil notar o instante em que, apesar de tudo, ele decidiu parar
de pensar e concordar com a cabeça.
— Eu te passo os detalhes depois. Pode ir agora. Vou daqui a alguns
minutos.
Erik me deu um último beijo apressado e correu de volta para o corredor.
Enquanto isso, peguei a coroa do chão e fui até o painel escondido atrás da
estante de livros. Queria garantir que ninguém me encontrasse naquela
noite.
Já não havia rebeldes em Illéa, não havia ameaças das quais fugir. Mas
ainda havia dezenas de passagens secretas no palácio, e eu conhecia cada
uma delas.
24
24
ANTES QUE AQUELE QUE SERIA O DIA mais importante da minha vida sequer
tivesse começado, fui chamada ao Salão das Mulheres. Minha mãe podia
presidir suas audiências onde quisesse, e eu ainda não compreendia o que
tornava aquele espaço enorme seu local favorito para isso. Mas como ela
me chamou, eu fui.
Madame Lucy estava lá, assim como a tia May. Eu não sabia quem tinha
vazado a notícia para ela, mas fiquei tão entusiasmada que quase voei pelo
salão para abraçá-la. Foi quando percebi que minha tia querida não era o
motivo do chamado. Madame Marlee chorava no ombro da minha mãe.
Ela levantou os olhos e olhou fixo para mim.
— Tudo bem não querer casar com ele, mas por que, POR QUE banir meu
filho? Como vou viver sem ele?
— Josie vai continuar aqui — recordei com a voz gentil.
Ela ergueu o dedo para mim.
— Não banque a espertinha. Você pode ser a rainha, mas ainda é só uma
criança.
Os olhos da minha mãe saltavam de uma para outra, sem saber ao certo o
que fazer: defender uma filha com idade suficiente para se defender, mas
ainda assim sua filha, ou consolar a amiga cujo filho partia sem aviso
prévio, uma dor que ela conhecia por experiência própria.
— Madame Marlee, você vai ter que me deixar explicar.
Atravessei o salão, e ela soltou o corpo numa cadeira.
— Eu amo Kile. Ele se tornou mais importante para mim do que eu
poderia esperar. E a verdade é que ele teria ficado aqui por mim. Poderia
ter ficado por você. Mas você quer mesmo isso?
— Sim! — ela respondeu, me encarando com os olhos vermelhos.
— A partida de Ahren quase acabou com o coração da minha mãe,
literalmente. E arrasou o meu. Isso quer dizer que ele deveria ter ficado
aqui para sempre?
Ela não respondeu. Minha mãe baixou os olhos, apertou os lábios; talvez
ela mesma só tivesse compreendido tudo naquele momento.
— Sei que é difícil falar de assuntos desconfortáveis. Por exemplo, as
cicatrizes nas suas mãos — continuei, com os olhos fixos na madame
Marlee. — Mas precisamos falar disso. Foi impressionante o que você fez
por amor. Fico com inveja e ao mesmo tempo maravilhada.
Ela se recompôs, mas logo as lágrimas voltaram a cair, e fiz força para
não me abalar. Tinha muita gente contando comigo naquele dia.
— Todas sabemos o que você fez — retomei. — E como você foi salva, e
compreendo que você sinta que tem uma espécie de dívida eterna em
relação à nossa família. Mas você não nos deve nada. Madame Marlee, o que
mais você acha que poderíamos querer de você?
Ela continuou calada.
— Pergunte à minha mãe. Ela não quer você trancafiada aqui. Vocês
podem ir com seu filho, se quiserem. Podem viajar o mundo como
dignitários, se quiserem. A ideia de que a sua vida não é sua só porque foi
poupada é falsa. E passar esse fardo para seus filhos? Forçar um jovem
inteligente, talentoso e apaixonado a passar seus melhores anos atrás
destes muros? Isso é crueldade.
Madame Marlee enterrou a cabeça entre as mãos.
— Você podia ter ido embora do palácio, se quisesse — minha mãe
cochichou em seu ouvido. — Pensei que soubesse.
— Não era essa a vontade, pelo menos não a minha. Carter e eu teríamos
morrido anos atrás se não fosse por você e Maxon. Eu não era capaz de me
imaginar fazendo outra coisa além de agradecer vocês.
— Você me ofereceu sua amizade quando mal nos conhecíamos. Você me
convenceu a não desistir da Seleção. Você segurava meu cabelo para trás
quando eu tinha enjoos matinais. Lembra? Eles só vinham à tarde.
As duas riram.
— Quando eu tive medo de assumir o cargo, você me disse que eu era
capaz. Você ajudou a dar pontos num ferimento de bala!
Quase perguntei do que aquilo se tratava, mas deixei para lá.
Madame Lucy se aproximou, ficou de joelhos ao lado de madame Marlee
e tomou a mão dela.
— O nosso passado é bem complicado, não é? — perguntou, e minha mãe
e madame Marlee sorriram. — Cometemos erros, guardamos segredos e
fizemos um monte de idiotices, assim como coisas boas. Mas olhem para
nós agora. Somos mulheres maduras. E olhem para Eadlyn.
As três fizeram exatamente isso.
— Acham que daqui a vinte anos ela precisa estar presa a cada um dos
seus errinhos? Acorrentada a eles?
Engoli em seco.
— E nós? Devemos nos prender também? — madame Lucy concluiu.
Madame Marlee soltou os ombros e puxou minha mãe e madame Lucy
para um abraço.
Observei a cena com um nó na garganta.
Chegaria um dia em que minha mãe não estaria mais aqui, em que minha
tia não poderia mais me visitar, em que aquelas mulheres deixariam o
palácio. Mas Josie e Neena e eu estaríamos lá, com filhas e primos e amigos.
Viveríamos juntas e compartilharíamos nossas vidas e cultivaríamos uma
irmandade sagrada que poucas mulheres teriam experimentado na vida.
Fiquei feliz por minha mãe ter decidido atravessar o país e vir para o
palácio. Ter vindo para a casa de um estranho e confiado numa garota no
avião e ter feito amizade com a garota que preparava seu banho. E não
importava se ou quando as três se separariam, porque elas nunca estariam
separadas. Não de verdade.
33
33
O ESTÚDIO TINHA PASSADO POR UMA RENOVAÇÃO. Meu ideal de intimidade não
correspondia exatamente a um anúncio de noivado transmitido ao vivo
para o país inteiro, diante de uma plateia de amigos, familiares e da equipe
de produção. Mas às vezes uma garota precisa se contentar com o que tem.
Corri os olhos pelo salão à procura dos meus pais. Precisava ver os dois,
ver o sorriso deles com a minha escolha. Se estivessem felizes e calmos, eu
também estaria. Mas eles ainda não tinham chegado. Kaden, por outro lado,
já estava lá.
Observei-o da porta. Seu olhar estava perdido, como o de alguém meio
enfeitiçado. Ele se assustou um pouco quando me aproximei.
— Você está bem?
Ele limpou a garganta e olhou para o chão, corado.
— Estou. Tudo ótimo. Só estou espairecendo.
Segui os olhos dele para tentar descobrir alguma coisa. Logo tudo ficou
claríssimo. Josie tinha parado de usar aqueles penteados sofisticados e as
joias exageradas. Tinha deixado de lado a maquiagem pesada e os vestidos
espalhafatosos. Sua aparência — cabelo levemente cacheado, um leve
batom nos lábios e um vestido azul apropriado à idade dela — dava a
entender que ela finalmente tinha começado a ser ela mesma, em vez de me
imitar.
— Josie está muito bonita esta noite — comentei.
—Ah é? Não tinha reparado. Mas agora que você comentou, é verdade,
ela está bonita.
Madame Marlee, aparentemente leve e serena, disse algo ao sr. Carter, e
Josie riu, num tom ainda um pouco alto demais para o meu gosto, mas
agradável mesmo assim.
— Já que você não vai aparecer no programa, talvez pudesse sentar ao
lado dela. Parece que tem um lugar vazio. — Olhei de relance para Kaden.
Deu para ver os lábios dele formarem um sorriso que ele logo disfarçou.
— Acho que sim. Eu não tinha planejado sentar em algum lugar
específico.
Ele foi até Josie, ajeitando o terno a cada passo, e me peguei morta de
curiosidade para saber como aquilo acabaria.
— Eadlyn.
Virei na direção da minha mãe, feliz por vê-la se aproximar de braços
abertos.
— Como você se sente?
— Totalmente ótima e nem um pouco amedrontada — brinquei.
— Não se preocupe. Henri é uma boa escolha. Improvável, mas muito boa
mesmo assim.
Espiei o fundo do estúdio, onde Eikko endireitava a gravata de Henri, e os
dois não paravam de falar; seus lábios assumiam vários formatos estranhos
que eu não conseguia ler.
— O curioso, porém, é que não há nada para invejar.
Olhei para a minha mãe, confusa.
— Invejar?
— Hoje de manhã você disse para madame Marlee que sentia inveja do
que ela tinha feito por amor.
— Eu disse isso? — Engoli em seco.
— Disse. E me pergunto por que você teria inveja de alguém que sofreu
para ficar com a pessoa amada quando tem um garoto muito fofo prestes a
cair nos seus braços.
Gelei. Como ia inverter o jogo?
— Talvez “admiro” fosse uma palavra melhor. O que ela fez foi muito
corajoso.
Minha mãe fez uma cara de enfado.
— Você pode mentir para mim, tudo bem, mas te aconselho a parar de
mentir para si mesma antes de se meter numa situação sem volta.
Depois de dizer aquilo, ela seguiu em frente e foi sentar perto de madame
Lucy e do general Leger. O estúdio costumava ser frio, mas eu tinha certeza
de que o calafrio que percorreu meu corpo não tinha nada a ver com a
temperatura.
— E você vai esperar bem aqui — a produtora explicou a Henri enquanto
o arrastava para o meu lado. — Ainda temos tempo, mas não saia correndo.
Alguém viu Gavril? — ela gritou para ninguém especificamente.
Henri apontou para a gravata que Eikko tinha acabado de acertar.
— Está bom?
— Está — respondi, acariciando os ombros e as mangas de seu paletó.
Dei uma olhada atrás dele, na direção de Eikko, que mantinha
perfeitamente a compostura. Eu tinha a esperança de parecer tão calma por
fora quanto ele. Por dentro, me sentia como uma blusa de lã com um fio
solto que ia sendo puxado e puxado, até não sobrar mais nada além de um
emaranhado de lã no chão.
Dei uma volta ao redor de Henri com a desculpa de conferir o terno dele
por todos os ângulos. Baixei os braços ao passar por Eikko e nossos dedos
se tocaram antes de eu voltar ao meu lugar, diante do meu noivo.
Sentia o nervosismo na pele como eletricidade, então enlacei as mãos
diante de mim, concentrada no peso do anel no meu dedo. Pelo canto do
olho, notei que Eikko tinha desaparecido na multidão, provavelmente para
que também pudesse manter um pouco de sanidade naquele momento.
— E então? — perguntei de frente para Henri. — Você está pronto?
Ele olhou para mim, e seu rosto geralmente radiante estava meio
desanimado.
— Você está?
Queria dizer que sim, e conseguia ouvir a palavra na minha cabeça, mas
era incapaz de pronunciá-la. Então apenas sorri e acenei com a cabeça.
Ele percebeu na hora o que se passava comigo.
Henri tomou minha mão e me levou até o fundo do estúdio, na direção de
Eikko.
— En voi — Henri disse, no tom de voz mais solene que eu já tinha ouvido
na vida.
Os olhos de Eikko caíram imediatamente sobre nós dois.
— Miksi ei?
— Sou lento aqui — Henri disse, apontando para a boca. — Não aqui — e
apontou para os olhos.
Minha respiração acelerou. Eu sabia que a minha vida estava a ponto de
desmoronar e fiquei aterrorizada com o que poderia vir depois.
— Vocês amam vocês — ele disse, gesticulando para nós dois.
Quando Eikko começou a balançar a cabeça, Henri deu um suspiro e
levantou a mão do amigo, apontando para o anel de sinete. E depois
levantou a minha, que ainda estava com o anel de Eikko.
— Eikko, por favor, explique para ele. Preciso continuar a Seleção. Diga
para ele nunca duvidar de mim.
Ele começou a traduzir minha súplica, mas a expressão de Henri
permaneceu inabalável.
— Por favor — implorei agarrada ao braço dele.
Com um olhar extremamente doce, Henri simplesmente falou:
— Eu dizer não.
Em seguida, tomou a minha mão e retirou com delicadeza a aliança.
O estúdio começou a ficar turvo. Eu estava a poucos minutos de um
anúncio ao vivo, e tinha acabado de levar um fora.
Henri segurou meu rosto e olhou fundo nos meus olhos.
— Amo você — declarou. — Amo você.
Depois, se voltou para Eikko e agarrou-o pelo braço.
— E amo você. Meu bom amigo. Muito bom amigo.
Eikko engoliu em seco, pronto para chorar diante das palavras de Henri.
Pelos últimos dois meses, só tinham um ao outro. Deixando de lado o que o
momento significava para mim, pensei no que significava para eles.
Henri nos aproximou e disse:
— Vocês juntos. Faço o bolo!
Apesar das minhas preocupações, eu ri. Olhei nos olhos de Eikko. Meu
coração implorava para que eu me entregasse àquele que eu queria de
verdade. Mas eu não conseguia superar o medo.
Corri os olhos pelo estúdio, à procura da única pessoa de quem eu
precisava naquele momento. Quando o encontrei, disse aos rapazes:
— Esperem aqui. Por favor.
Atravessei o estúdio correndo.
— Pai! Pai, preciso da sua ajuda.
— Querida, o que houve?
Respirei fundo.
— Não quero me casar com Henri. Quero me casar com Eikko.
— Quem?
— Erik, o intérprete dele. Estou apaixonada e quero casar com ele. E,
apesar de ele odiar tirar fotos, quero tirar mil para pendurar na parede do
quarto e acordar todos os dias e ver a nossa imagem rindo, como você faz
com a mamãe. E quero que ele faça pasteizinhos para mim, que nem a mãe
dele faz com o pai. E quero descobrir qual vai ser a nossa coisa ou talvez
descobrir que todas as coisas são nossas, porque sinto que, com ele, até as
besteiras seriam importantes.
Meu pai permaneceu imóvel, meio boquiaberto.
— Mas basta você dizer uma palavra e nunca mais vou mencionar isso de
novo. Quero fazer o que é certo e sei que você jamais me deixaria fazer uma
idiotice. Me diga o que fazer, e aceito sem questionar, pai.
Ele conferiu o relógio com os olhos ainda arregalados pelo choque.
— Eadlyn, você só tem sete minutos.
Segui o olhar dele. Meu pai tinha razão. Faltavam sete minutos.
— Então me ajude. Me diga o que fazer!
Depois de um segundo atônito, meu pai me levou para fora do estúdio.
— Todos sabemos que você queria agir rápido por causa de Marid, e acho
que há um pouco de lógica na sua linha de raciocínio. Mas você não pode
deixar um mau-caráter decidir o resto da sua vida. Confie em mim. Você
não precisa anunciar nada hoje.
— Não é essa a questão. Quero tanto ficar com Eikko que chega a doer,
mas já fiz tantas coisas idiotas e egoístas no passado que temo que as
pessoas não vão me perdoar caso eu quebre a menor das regras. Não
suportaria decepcionar você, pai. Não suportaria.
— Eu? Decepcionado por causa de uma regra besta? — ele perguntou,
balançando a cabeça. — Eadlyn, você vem de uma longa linhagem de
traidores. Eu nunca me decepcionaria com você.
— O quê?
Ele sorriu.
— A fuga do seu irmão para a França tecnicamente era motivo suficiente
para começar uma guerra. Acho que ele sabia. Isso o deteve?
Fiz que não.
— A sua mãe — ele riu —, ela conspirou com o governo italiano para
financiar os rebeldes do norte, o que a teria mandado para o túmulo se meu
pai tivesse descoberto.
Permaneci imóvel, embasbacada.
— E eu? Deixei viver alguém que deveria ter morrido há vinte anos.
— Os Woodwork? — chutei.
— Ah! Não, tinha me esquecido deles, embora tenham sido oficialmente
perdoados. Na verdade, é uma pessoa bem mais perigosa para a
monarquia.
— Não entendi, pai.
Ele soltou um suspiro e deu uma olhada no corredor para conferir se
ninguém nos espiava. Então desabotoou rápido a camisa, virou de costas e
baixou-a rapidamente junto com o paletó.
Suspirei horrorizada ao ver as costas do meu pai. Estavam cobertas de
cicatrizes: algumas largas, como se tivessem sarado sem qualquer
tratamento; outras estreitas e enrugadas. Não parecia haver qualquer
unidade entre elas, exceto que todas deviam ter sido causadas pela mesma
vara ou chicote.
— Pai… Pai, o que aconteceu com você?
— Meu pai aconteceu — ele respondeu enquanto arrumava a camisa e a
fechava o mais rápido possível. — Desculpe nunca ter te levado à praia,
querida. Eu simplesmente não conseguia.
Desabei na hora. Ele ainda se desculpava…
— Não entendo. Por que ele fazia isso com você?
— Para me manter na linha, calado, e me tornar um líder melhor… Ele
tinha uma miríade de motivos. Mas você só precisa saber de duas dessas
surras. A primeira foi a que aconteceu depois que a sua mãe propôs o fim
das castas.
Ele balançou a cabeça, quase rindo com a lembrança.
— Ela resolveu dizer isso no Jornal Oficial quando ainda era uma
Selecionada. Claro que o meu pai, que já a odiava, viu aquilo como uma
ameaça ao seu controle. E era mesmo. Era traição sugerir uma coisa dessas.
Como eu disse, é de família. Eu fiquei com medo de que ele pudesse puni-la,
então deixei que descontasse em mim.
— Minha nossa!
— É. Foi a última surra que levei na vida e juro que não me arrependo.
Passaria por tudo de novo cem vezes por ela.
Eu nunca tinha ouvido falar nada daquilo. Só sabia que eles tinham
começado a eliminar as castas juntos. Tantos detalhes horríveis da história
deles haviam passado despercebidos. O maravilhoso vinha sempre
acompanhado pelo péssimo.
— Odeio perguntar, mas qual é a outra surra que preciso saber?
Ele fechou o último botão e suspirou.
— A primeira.
Engoli em seco. Não tinha muita certeza se queria ouvir.
— Veja, meu pai era um homem muito presunçoso. Pensava que o mundo
lhe devia tudo porque ele era rei. E, de fato, ele não tinha motivos para ser
infeliz. Tinha poder, uma casa maravilhosa, uma esposa que o adorava e o
próprio filho para continuar sua linhagem. Mas nunca era o bastante.
Meu pai olhava para o nada, e eu apenas observava, ainda sem entender.
— Eu sempre sabia quando a amante dele vinha — continuou. — Logo
cedo ele dava um presente para a minha mãe, como se quisesse pagar os
pecados antes de cometê-los. Depois, no jantar, enchia a taça de vinho dela
sem parar até que ela estivesse prestes a adormecer. E, claro, o quarto dela
ficava em outra ala. Imagino que tenha sido ideia dele, não dela. Não
consigo imaginar minha mãe separada do meu pai de propósito. Ela tinha
uma verdadeira adoração por ele.
Ele prosseguiu:
— Em todo caso, eu devia ter uns onze anos quando, circulando pelo
palácio, flagrei a mulher indo embora uma noite. O cabelo bagunçado e uma
capa nos ombros, como se pudesse esconder o que tinha feito. E eu sabia.
Sabia por que ela estava aqui, e a odiava por isso. Mais do que odiava meu
pai, o que era injusto. Assim que ela saiu, fui falar com ele. Ele estava de
roupão, bêbado e suado. E eu lhe disse: “Nunca vou esquecer isso. Você não
pode mais deixar essa vagabunda entrar aqui de novo”. Como se eu
pudesse dizer a um rei o que fazer. Meu pai me agarrou pelo braço com
tanta força que deslocou meu ombro. Me jogou no chão e bateu nas minhas
costas com uma vara não sei quantas vezes. Fiquei tão tonto com a dor que
desmaiei. Acordei no meu quarto, com uma tipoia no braço. Quando
recobrei a consciência, meu mordomo disse que eu não devia fazer
brincadeiras de mão com os guardas, que eu era novo demais para achar
que podia brincar com eles.
Meu pai balançou a cabeça.
— Não sei quem foi demitido ou coisa pior para dar credibilidade à
história, mas sabia que devia ficar calado. E eu era tão pequeno que não
ousei contar para ninguém. Quando fiquei mais velho, passei a esconder o
acontecido por vergonha. E depois, de algum jeito, aquilo virou motivo de
orgulho para mim. Suportei o sofrimento sozinho, sem apoio, o que era
admirável. Claro que não era. Era burrice, mas inventamos desculpas para
nós mesmos quando somos jovens.
Ele me abriu um sorriso fraco.
— Sinto muito, pai.
— Tudo bem. Isso me tornou uma pessoa mais forte e, espero, um pai
melhor. Espero ter acertado com você.
Meus olhos marejaram.
— Acertou.
— Ótimo. Bom, respondendo à sua pergunta, uns anos mais tarde
comecei a achar que meu pai tinha finalmente se livrado da amante. Já
contei que eu sempre percebia quando ele planejava trazê-la ao palácio. Eu
ficava de olho para ver se ele voltava à velha rotina e cheguei a me
esgueirar pela casa várias noites só para garantir. Ela sumiu por meses e
meses e então, um dia, lá estava ela, caminhando pelo corredor como se
fosse dona do palácio. Aquilo me encheu de ódio. Fiquei furioso por aquela
mulher ter a cara de pau de aparecer enquanto minha mãe dormia no fim
do corredor. Por isso, fui até lá e a confrontei. Ela inclinou a cabeça para o
lado e abriu um sorriso sarcástico, como se eu fosse um inseto, um nada.
Então, falou baixo no meu ouvido: “Vou dizer à sua irmãzinha que você
mandou um oi”. E foi embora, me deixando completamente pasmo. Devo
ter ficado ali por uns bons dez minutos, atônito demais para me mexer.
Será que ela tinha dito aquilo para me cutucar? Será que eu tinha mesmo
uma meia-irmã que não conhecia? Eu não ia implorar para que ela me
respondesse, e era óbvio que não podia perguntar ao meu pai. Só depois
que ele morreu é que pude começar a procurá-la.
Ele engoliu em seco.
— Mas há um porém. Filhos bastardos da realeza não têm o direito de
viver.
— O quê? Por quê?
— Acho que porque podem representar uma ameaça à linhagem real.
Guerras civis e instabilidade política não fazem bem para ninguém. Ainda
hoje, veja só o problema que Marid causou. Por isso, no passado,
eliminávamos as ameaças logo que eram descobertas — meu pai explicou
inexpressivo, quase indiferente.
— Então você a matou?
Ele sorriu para si mesmo.
— Não. Fiquei encantado assim que pus os olhos nela. Ela era só uma
criança e não fazia ideia de quem era seu pai. Não tinha culpa por ter
nascido metade realeza. Então, tirei-a da mãe e a mantive próxima de mim,
e é assim até hoje.
Ele finalmente arriscou um olhar para mim.
— A srta. Brice?
— A srta. Brice.
Eu não sabia o que dizer. Eu tinha outra tia. E nos últimos tempos ela
tinha feito tanto por mim quanto qualquer outro membro da família. Mais
do que alguns, na verdade. Eu devia muito a ela.
— Eu me sinto mal por deixá-la nas sombras — meu pai confessou.
— Eu sei. Se ela tem sangue real, acho que merece mais.
— Não é possível. E ela compreende. Agradece simplesmente por estar
aqui — meu pai argumentou. E, embora nós dois soubéssemos que aquilo
era verdade, não concordávamos a respeito de ser ou não suficiente. —
Então, veja só, faz vinte anos que cometo um ato de traição todos os dias. E
sua mãe cometeu, seu irmão cometeu. Ouso dizer que Kaden é o único que
consegue viver sem quebrar regra nenhuma.
Sorri, pensando em como aquilo era verdade, e já lamentava todas as
regras que Osten ainda ia quebrar.
— Quebre essa regra idiota, Eadlyn. Case com o homem que ama. Se ele é
bom o suficiente para merecer sua aprovação, então merece a minha
também. E se o povo não gostar, problema dele. Porque, afinal, quem é
você?
— Sou Eadlyn Schreave, e nenhuma pessoa no mundo é mais poderosa
do que eu — respondi sem pensar.
Meu pai fez que sim.
— É isso aí.
A produtora escancarou a porta.
— Ainda bem! A senhorita tem dez segundos. Corra!
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EPÍLOGO
FIM
Dustin Cohen
KIERA CASS
nasceu em 1981, na Carolina do Sul, Estados Unidos.
Formou-se em história na Universidade de Radford, na Virginia, e
atualmente mora em Christiansburg. Além da série A Seleção, também
é autora de A sereia. Beijou aproximadamente catorze garotos em sua
vida, mas nenhum deles era um príncipe.
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