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Há muito desejava ler o romance (“Até você saber quem é”, Ed. Record, 2016) do
diplomata e escritor Diogo Rosas G. O fiz “de uma sentada” e logo desejei entrevistar
o autor, que já havia colaborado certa vez com O Camponês. O livro do Diogo é de
leitura leve, mas cheio de profundos significados. No momento em que terminei a
leitura, havia acabado de entabular alguns diálogos ‘in box’ interessantíssimos com
Ricardo Leal, também diplomata, que conhecera já há alguns anos nos debates
interessantíssimos que rolavam nos comentários do blog da finada revista
Dicta&Contradicta (naquela época já havia Orkut, mas a gente gostava mesmo era de
transitar nos blogs). Então: eureka! Por que não chamar o Ricardo para fazer a
entrevista, uma vez que os dois são colegas e se conhecem ? Fiz proposta, aceitaram,
conversaram, demoraram e demorei, mas enfim, a entrevista, que virou uma espécie de
ensaio ou ensaio-entrevista e, como disse o Diogo, cheio de “miolos” para outros
ensaios sobre o livro, saiu e está aqui. Como o livro já vai fazer três anos de lançado, é
provável que você o tenha que reler, diante das perspectivas aqui apresentadas.
Enfim, é um texto que supera todas as minhas expectativas. Agradeço ao Diogo Rosas
pela disponibilidade, e ao generoso Ricardo Leal, pela boa vontade.
***
Diogo, caro, seu primeiro livro rende leitura leve, como a de um bom “thriller”. Para
mim, fazer-lhe perguntas a respeito implica porém refletir em torno de algumas
dificuldades que, emprestando palavras de Heloisa Vilhena sobre o “Grande Sertão”,
são difíceis porque difícil é o que você conta.
P. b) Dizer “não falar” e falar nos nomes satânicos, deixar à mostra o oculto — pensei
nisto ao ler a passagem em que Hauptmann inverte o sentido de um versículo do salmo
91, para atribuir a Rosa o pacto que ele próprio, Hauptmann, está em vias de celebrar.
“É exatamente isso o que está acontecendo aqui”, você escreve neste trecho, em que o
escritor-personagem recorda que “uma das formas de operação do satanismo é a
inversão de fórmulas e símbolos cristãos.” É excessivo ler o seu livro como um
exercício de exorcismo por meio da ironia?
P. c) Por vias diversas e no formato quase de um “thriller” com suspense e tudo, seu
livro trata da questão do “eu” que se auto-define e do “mim” que percebe como os
outros o definem. Em entrevista pouco antes de seu falecimento, Zygmunt Bauman
lembrava do “cogito, ergo sum” cartesiano, para contrastar esta perspectiva egocêntrica
(a de Descartes, segundo ele; talvez radicalmente a que se vê espelhada em Daniel
Hauptmann) com a de autores contemporâneos, em que o “cogito” interno equilibra-se
com o “mim” da interação externa, em benefício de uma dinâmica na qual “tu és,
porque eu sou”.
Voltando ao seu romance: Roberto não é explicitamente religioso; mas seja como for, a
dinâmica em que se inscreve é esta que o Bauman percebe como alternativa à do
“cogito” egocêntrico, a meu ver tipificado em Hauptmann. Roberto se compõe e
recompõe em função de encontros, com uma generosidade e um sentido de ascese que
nos seus efeitos — inclusive no bom humor — resultam bem paulinos. Lembro de
Riobaldo mais uma vez: “com nosso cansaço, em seguir, sem eu nem saber, o roteiro de
Deus nas serras das Gerais…”
“Até você saber quem é” — no que recorre ao “Grande Sertão” — não seria também
algo assim como um capítulo nesse “roteiro de Deus”, nesse crescimento da consciência
do Outro “até você saber quem é”?
***
Resposta de Diogo Rosas G.: Caro Ricardo, peço desculpas pela demora em responder,
mas a verdade é que eu não sabia bem por onde começar. Por um lado, as tuas perguntas
— pequenos ensaios acerca do meu livro — param em pé e merecem ser lidas si
mesmas. Por outro, e isso é o que me criou mais dificuldades, respondê-las diretamente
implicaria, necessariamente, concordar ou discordar da sua interpretação e, ao fazê-lo,
apresentar o meu próprio ponto de vista. E isso foi algo que me propus a não fazer
desde o princípio. Muito da graça, muito do prazer de publicar um romance é deparar-se
com as múltiplas interpretações de leitores e críticos, observar o tecido de leituras que
vai sendo urdido ao redor do que você escreveu. Umberto Eco tem um posfácio ao
“Nome da Rosa” em que ele discute essas questões com mais habilidade e propriedade
do que eu jamais poderia fazê-lo. A quem não conhece, recomendo.
Pensei, então, em fazer algo um pouco diferente. Em vez de responder as tuas perguntas
com interpretações alternativas ao meu romance, resolvi escrever um texto não muito
longo discutindo algumas ideias que as perguntas me trouxeram, aproveitando também
para contar um pouco do processo de composição do romance e de como acho que
certos temas que você levanta podem ser abordados.
Para começar, você falou em “exorcismo pela ironia” e isso me fez pensar. Porque, no
fundo, eu não tenho certeza de que haja exorcismo algum. Há mesmo? No fim das
contas, o diabo não ganha a parada? Sem estragar a história para quem não leu, ele
trabalha, lança sua isca e pesca seu peixe.
Uma possível objeção a essa leitura seria, creio eu, a seguinte: “mas eram duas as
pessoas sobre quem a ação do diabo se projetava mais intensamente. Uma delas
sobrevive e termina bem. Isso não é uma espécie de exorcismo?”. Neste momento, faço
uma pausa e conto como a ideia — ou a necessidade — de escrever um romance surgiu
para mim.
Em 2011, eu tinha um blog com um amigo e fiz uma lista dos meus contos preferidos;
lá estava “Young Goodman Brown”, e, ao comentá-lo, brinquei com alguma coisa na
linha de: “A literatura brasileira nunca vai ser grande enquanto não tratar do Diabo”. Foi
uma época difícil para mim aquela, eu passava por um mau momento e pensei em
escrever um romance para mostrar para mim mesmo que era capaz de fazer alguma
coisa de útil, de proveitoso. A dificuldade, porém, era que eu nunca tinha me visto como
escritor, o que me trazia sérias dúvidas sobre se conseguiria produzir qualquer coisa.
Certo dia, andando pela rua, um pensamento nítido e instantâneo atravessou minha
cabeça: “vai ser a história de duas pessoas; uma delas é um destruidor, a outra, um
sobrevivente. O sobrevivente sobrevive ao destruidor e volta para casa”. Em paralelo,
decidi aproveitar a brincadeira feita no blog e resolvi tentar inserir nessa história dos
dois amigos o tema do pacto. No fim, eu iria “escrever um romance sobre o diabo”.
Desde já deixo registrado que não tive a intenção de emular este esquema no meu
romance, até porque sua estrutura geral estava fechada muito antes de eu conhecer os
diários do Eliade. No entanto, desde então me peguei pensando mais de uma vez na
possibilidade de fazer o Roberto escrever incipit vita nova na dedicatória final do seu
livro. Brincadeiras à parte, não acho impossível essa leitura, digamos, eliadiana das
“duas vidas” do Roberto. Isso estaria ligado de maneira bastante óbvia ao ponto que
você levantou com muita perspicácia sobre a questão do “eu” que se auto-define e do
“mim” que percebe como os outros o definem.
Por outro lado, há uma outra forma de ver a dialética vital entre o Daniel e o Roberto e o
destino dos dois. Uma forma em que manteria toda a questão do “eu” que se auto-define
e do “mim” que percebe como os outros o definem, só que colocando-a sob uma
perspectiva cristã, mais afim talvez aos conceitos que você coloca.
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Diogo Rosas G. nasceu em 1976, em Curitiba, e morou em seis cidades de cinco países.
No caminho, estudou direito, tradução e filosofia. É diplomata e autor do romance “Até
você saber quem é”, Ed. Record, 2016.