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XX| 2 | Poder
Constituinte
Sumário: 1. Introdução: 1.1. Um conceito preliminar de Poder Constituinte; 1.2. Revelar, dizer ou
criar uma Constituição? – 2. Três Leituras Concorrentes no Discurso Jurídico Atual – 3. Poder Consti-
tuinte Originário: 3.1. Conceito e natureza jurídica; 3.2. Classificação; 3.3. Características do Poder
Constituinte Originário; 3.4. Titularidade do Poder Constituinte Originário; 3.5. Poder Constituinte
Originário e direitos adquiridos; 3.6. Dinâmica constitucional – 4. Poder Constituinte Derivado de
Reforma da Constituição: Espécies e Limitações: 4.1. Análise Específica do Poder Constituinte Deri-
vado de Revisão da Constituição; 4.2. Análise Específica do Poder Constituinte Derivado de Refor-
ma via Emendas – 5. Poder Constituinte (Derivado) Decorrente: Espécies, Caracteres e Limitações
– 6. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional: Uma Releitura Contemporânea e Sofisticada
da Teoria do Poder Constituinte.
1. INTRODUÇÃO
1.1. Um conceito preliminar de Poder Constituinte
Inicialmente, podemos apresentar uma definição do que seja o Poder Cons-
tituinte, partindo da afirmação presente em quase todos os manuais de Direito
Constitucional brasileiros, como sendo aquele poder ao qual incumbe criar ou ela-
borar uma Constituição, alterar ou reformar uma Constituição e complementar uma
Constituição. Daí os termos Poder Constituinte Originário (criar), Poder Constituinte
Derivado-Reformador (alterar), Poder Constituinte Decorrente (complementar).
Sua origem se dá quando surgem as Constituições escritas. Certo é que ele
nasce como poder no movimento do constitucionalismo, no século XVIII, que vai
inaugurar as Constituições escritas. É esse movimento que vai trazer o Poder Cons-
tituinte Originário.
Inegável, portanto, a contribuição teórica trazida por Emmanuel Sieyès1 – que
escreveu o livro O que é o Terceiro Estado?, em 1788. Sieyès separa o Poder Consti-
tuinte dos seus poderes constituídos: o Poder Constituinte institui uma nova ordem,
a Constituição, marcando nitidamente uma diferença entre o ato de criação de uma
Constituição e os atos jurídicos subsequentes – subordinando esses atos à Consti-
tuição. Portanto, detentores e destinatários do poder teriam que respeitar o do-
cumento produzido (pactuado) pelos mesmos (pela nação, nos termos de Sieyès),
pois ambos, como já dito, eram constituídos pelo Poder Constituinte e sua a obra:
a Constituição.
1. O que é o terceiro Estado? Tudo. O que tem sido ele até agora na ordem política? Nada. O que ele pode ser?
Pelo menos alguma coisa. Daí a ideia de um poder legítimo com titularidade na nação para elaborar uma
Constituição para a França.
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2. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, 5. ed., p. 68-69. Outra obra que
irá lançar mão de uma abordagem histórico-genética é NEGRI, Antonio, O poder constituinte: ensaio sobre as
alternativas da modernidade.
3. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, 5. ed., p. 69.
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4. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, 5. ed., p. 70-71.
5. “[...] o caso americano é em tudo distinto do caso francês. Distinta é a interpretação do ato revolucionário:
trata-se, no primeiro caso, de libertar as forças espontâneas da auto-regulação a fim de que se coadunem
com o direito natural; no segundo caso, porém é necessário impor ex novo a concepção jusnaturalista contra
um poder despótico. Distinta é a relação com o Estado: na América, trata-se de resistir a um poder colonial;
na França, de construir uma nova ordem.” (NEGRI, Antonio, O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas
da modernidade, p. 33).
6. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, 5. ed., p. 71-72.
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7. Por isso mesmo a relevância do ensaio de Álvaro Ricardo de Souza Cruz (Poder constituinte e patriotismo
constitucional), que apresenta sistematicamente cada um desses três momentos, identificando seus principais
traços teóricos e seus pensadores.
8. “Curioso observar que a visão clássica surge nos primórdios do constitucionalismo do século XVIII, estudan-
do, por conseguinte, tão-somente pactos fundadores datados, como a Assembleia Nacional da França ou a
Convenção de Filadélfia nos Estados Unidos. Logo, constituições predominantemente costumeiras ou as cartas
não codificadas (inorgânicas) não se encaixavam nos parâmetros dessa perspectiva, a despeito de, tal como
a inglesa, serem anteriores ao movimento contratualista do iluminismo.” (SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de,
Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 50).
9. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 48.
10. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Poder constituinte e patriotismo constitucional: o projeto constituinte
do estado democrático de direito na teoria discursiva de Jürgen Habermas. Ver também o capítulo 5 (Qual o
sentido do projeto constituinte do Estado Democrático de Direito? Um exercício de patriotismo constitucional
no marco da teoria do discurso de Jürgen Habermas) da obra CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Direito,
política e filosofia: contribuições para uma teoria discursiva da Constituição democrática no marco do patrio-
tismo constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
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11. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional. In: GALUPPO, Marcelo Campos.
O Brasil que queremos: reflexões sobre o estado democrático de direito. Belo Horizonte: Editora PUC Minas,
2006.
12. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 33.
13. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 35.
14. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 187.
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3.2. Classificação
Certo é que os constitucionalistas realizam classificações20 do Poder Constituin-
te, falando, portanto, em:
1) Quanto à dimensão do Poder Constituinte:
(a) Poder Constituinte Material. Pode ser traduzido no conjunto de forças po-
lítico-sociais que vão produzir o conteúdo de uma nova Constituição, a partir da
ruptura jurídico-política. Ou seja, se traduz na ideia de direito, fruto desse conjunto
15. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 49-50.
16. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 50. Curiosamente, parece
ser esta a tese defendida por Alexandre de Moraes em sua obra Direito constitucional, p. 23; e também por
MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 188.
17. A doutrina também chama essa “origem” de: fatores que desencadeiam o Poder Constituinte Originário.
18. O “Golpe de Estado” se caracteriza como um movimento de usurpação do poder.
19. A seu turno, a revolução é, então, um movimento de ruptura profundo na estrutura social e no sistema do
poder. Todavia, afirmar isso não quer dizer que a mesma seja sempre fruto da violência, como é muitas vezes
mal-interpretada.
20. Citamos aqui a classificação quanto ao exercício do Poder Constituinte originário. Esse envolve a Instauração
de uma Assembléia Constituinte, o seu Funcionamento e Encerramento. Chamamos a atenção para o funcio-
namento e encerramento do mesmo, pois o PCO pode ser desenvolvido de forma típica (pura) (O seu agente
é encarregado apenas de fazer a Constituição) ou de forma atípica (impura) (Após a elaboração da Consti-
tuição o agente do PCO se torna legislador ordinário da Constituição que ele elaborou). Essa última forma foi
a utilizada na Constituição de 1988.
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21. CARVALHO, Kildare Gonçalves, Direito constitucional: teoria do estado e da Constituição, direito constitucional
positivo, 11. ed., p. 178.
22. Nesses termos, é comum, afirma Álvaro Ricardo Souza Cruz, encontrar na doutrina brasileira a diferenciação
entre um Poder Constituinte material e em um Poder Constituinte formal. O primeiro termo é utilizado para
designar a força política geradora da mudança na ordem jurídica do Estado; sendo assim, representa um an-
tecedente lógico do Poder Constituinte formal, de modo que é responsável por fixar o conteúdo das normas
constitucionais. Já o Poder Constituinte formal é o termo utilizado para designação da entidade (grupo cons-
tituinte) que formaliza as normas constitucionais, conferindo ao conjunto uma estabilidade. Dado o enfoque
positivista – e acrítico – a doutrina constitucional se preocupou mais em sistematizar as suas manifestações
que em analisar a legitimidade de seus atos, identificando as seguintes formas de expressão: ato unilateral
singular (por exemplo, a outorga); ato unilateral plural (ato de representação mas conectado ao ato de
manifestação direta); ato constituinte bilateral (combina institutos representativos e democracia direta ou se-
midireta); e ato constituinte plurilateral (com a participação de instâncias distintas do poder representativo).
CARVALHO, Kildare Gonçalves, Direito constitucional, p. 178; SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte
e patriotismo constitucional.
23. Para alguns doutrinadores, ele também é chamado de revolucionário.
24. É bem verdade que essas características (clássicas), embora ainda muito usuais na doutrina pátria, não
são imunes a críticas a partir de uma reflexão mais contemporânea de Poder Constituinte. Nesses termos,
podemos observar as digressões de Cláudio Pereira Souza Neto: “(...) a tendência contemporânea é de
que o poder constituinte seja definido não mais como inicial, uno, ilimitado e incondicionado. Para que seja
reconhecido como legítimo, o poder constituinte deve se manifestar democraticamente e deve instituir um
regime político comprometido com respeito aos direitos humanos, sem os quais não é possível uma vida com
dignidade.” SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Constitucionalismo Democrático e Governo das Razões, p, 75-76, 2010.
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3) Ilimitado: existem três teorias: 1ª) Teoria positivista. Segundo ela, o Poder Cons-
tituinte Originário é ilimitado do ponto de vista do Direito Positivo anterior, pois
o Poder Constituinte Originário é um ponto zero, ou seja, um marco inicial para
a criação de uma nova ordem jurídica. A teoria positivista nos traz a ideia de
que o Poder Constituinte Originário é ilimitado e autônomo, pois se funda nele
mesmo e é ilimitado, do ponto de vista do Direito Positivo anterior. Temos aí a
natureza do Poder Constituinte como poder de fato (pois o direito se expressa
de forma máxima na constituição). Portanto, o Poder Constituinte não é jurí-
dico. Essa tradicionalmente é a tese adotada na doutrina nacional, apesar de
hoje em dia estar, cada vez mais, sendo questionada (conforme iremos ver).
2ª) Teoria Jusnaturalista. Ela afirma que o Poder Constituinte Originário não é
ilimitado, pois ele irá guardar limite em cânones do Direito Natural, como a
liberdade, igualdade, não discriminação, ou seja, cânones do “homem em ra-
zão de ser homem” derivados da natureza humana, que são princípios básicos
do Direito Natural. 3ª) Teoria (de tendência) Sociológica. Segundo ela, o Poder
Constituinte Originário é autônomo, pois exerce funções ilimitadas do ponto de
vista do Direito Positivo anterior não estando, a princípio, preso a nenhum di-
reito positivo pretérito, mas guarda um limite sim no movimento revolucionário
que o alicerçou, ou seja, no movimento de ruptura que o produziu; leia-se, na
ideia de direito que o fez emergir (surgir). Nesse sentido, o Poder Constituinte
Originário guarda limite nele mesmo (na sociedade que está rompendo com o
passado e construindo algo novo). Exemplos: a Constituição russa de 1918; a
Constituição brasileira de 1988 entre outras.25
4) Incondicionado: significa dizer que o Poder Constituinte Originário não guarda
condições ou termos prefixados para a criação da nova ordem constitucional,
ou seja, ele mesmo cria as regras procedimentais para a elaboração da nova
Constituição.
5) Permanente: não se exaure com a elaboração da nova constituição. Ele conti-
nua presente ainda que em estado de latência. Daí a diferença entre o titular
do PCO (permanente) alocado no povo26 e o seu agente (que faz a constitui-
ção, ou seja, redige a constituição) formalizador da nova ideia de direito e de
sociedade. Ou seja, o Poder Constituinte material seria permanente e o Poder
Constituinte formal não, pois iria se exaurir com a produção da Constituição.
Aqui algumas observações finais são válidas. Acreditamos que em sua releitura
moderna, o Poder Constituinte é assumido a partir de marcos democráticos, que tra-
zem para a figura do povo (noção pluralista) sua titularidade. Como consequência,
25. Seria inconcebível, após a Revolução socialista, a elaboração de uma Constituição czarista ou mesmo capi-
talista na nova Rússia, que se descortina fruto da referida Revolução de 1917. No mesmo sentido, não seria
viável, após a ruptura com a ditadura e o advento da democracia, que a Constituição de 1988 fosse em sua
essência fechada, antidemocrática, não dotada de pluralismo e contrária aos cânones democráticos que
estavam se afirmando após a eleição de Tancredo Neves em 1985.
26. Tema a seguir explorado com maior profundidade.
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passa a ser compreendido como limitado, marcando uma inovação quanto ao pen-
samento anterior.27 Tais limitações seriam de ordem:
• Espaciais (Territoriais): vinculando o Poder Constituinte a uma base territorial
determinada.28
• Culturais: uma vez que o povo é o titular do Poder Constituinte, é de se esperar
um condicionamento a partir de tradições, da cultura, enfim, do pano de fun-
do cultural compartilhado por aquela sociedade.29 Por isso mesmo, como bem
observa Álvaro Ricardo de Souza Cruz, o constitucionalismo moderno ainda não
consegue se livrar da herança clássica, acabando por aproximar os conceitos
de povo e de nação.30
• Direitos Humanos: consolidando-se a partir da segunda metade do século XX,
marcando uma retomada do pensamento jusnaturalista e uma reação ao hor-
ror do holocausto nazista, passou-se a defender uma limitação do Poder Cons-
tituinte Originário a direitos suprapositivos,31 contra a deliberação majoritária,
ou provenientes dos tratados pactuados sobre direito internacional.32
Nesses termos, a conclusão é a de que atualmente o Poder Constituinte Origi-
nário para a doutrina mais adequada (dotada de maior razoabilidade) não pode
ser entendido como algo absoluto, pois ele, sem dúvida, guarda limites internos
na própria sociedade que o fez emergir e limites externos em princípios de direito
internacional (cânones supranacionais) como os princípios da independência, da
autodeterminação e da observância dos direitos humanos.
27. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 58.
28. “Logo, em um exemplo simplista, nossa Constituição não poderia eleger, como capital, espaço territorial que
desbordaria o exercício próprio da soberania estatal, tal como, por exemplo, as cidades de Nova York ou de
Buenos Aires [...]” (SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 50).
29. “Um exemplo desses limites são ações quase inconscientes do constituinte de 1988, a menção a Deus – pre-
âmbulo – e a previsão de um descanso semanal remunerado preferencialmente aos domingos (art. 7º, inciso
XV) ilustram bem um condicionamento do texto com tradições predominantemente cristãs da nossa popula-
ção.” (SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 58).
30. “De um lado, pretende abraçar a matriz do ordenamento jurídico como algo que fosse adequado à comple-
xidade estrutural do mundo moderno, ou seja, suportando a concepção de um Direito pluralista. De outro,
concebe limites ao Poder Constituinte Originário com bases sociológicas/antropológicas que incidiriam sobre
seu titular.” (SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 58).
31. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 50. Ver também BACHOF, Otto,
Normas constitucionais inconstitucionais.
32. Temos aqui, mais uma vez, a afirmação atualmente recorrente de que o PCO não pode ser encarado como um
poder absoluto. À luz da perspectiva sociológica, ele encontra um limite na ideia de direito que o alicerçou
(movimento revolucionário que o fez surgir), no que em síntese chamamos de PC Material, bem como atual-
mente em princípios de justiça (princípios suprapositivos) e princípios de direito internacional, ou seja, em
cânones supranacionais (como o princípio da independência, princípio da autodeterminação e o princípio da
observância dos direitos humanos).
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33. Conforme o autor, o Poder Constituinte supranacional: “faz as vezes de poder constituinte porque cria uma
ordem jurídica de cunho constitucional, na medida em que reorganiza a estrutura de cada um dos Estados ou
adere ao direito comunitário de viés supranacional por excelência, com capacidade, inclusive, para submeter
as diversas constituições nacionais ao seu poder supremo. Dessa forma [...] é supranacional, porque se distin-
gue do ordenamento positivo interno assim como do direito internacional.” RODRIGUES, Maurício Andreiuolo,
Poder constituinte supranacional: esse novo personagem, 2004, p. 142.
34. A tese defendida por alguns seria a de uma soberania compartilhada (ou dual), ou seja, haveria o convívio
(com vistas a integração, ao pluralismo e a uma perspectiva de cidadania ampliada de viés universalizável)
da soberania dos Estados nacionais, com a soberania do ente supranacional (comunitário) à luz do Direito
comunitário.
35. Atualmente a União Europeia vive uma tentativa de reorientação após os impasses da Constituição de 2004
(tratado constitucional não referendado pela França e Holanda em 2005). Em dezembro de 2007 foi assinado
o denominado Tratado de Lisboa que veio substituir a falhada Constituição e deve ser ratificado pelos 27
países-membros (o que ainda não ocorreu).
36. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 48
37. “No livro, Sieyès assinala, nas vésperas da Revolução, que o chamado Terceiro Estado – que engloba quem
não pertencesse à nobreza ou ao alto clero, e que, portanto, incluía a burguesia –, embora fosse quem pro-
duzisse a riqueza do país, não dispunha de privilégios e não tinha voz ativa na condução política da França.”
(MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 187).
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Importante frisar que o conceito de nação acaba por envolver uma ideia de
homogeneidade cultural, linguística, econômica e política, como lembra Álvaro Ricar-
do de Souza Cruz, de modo que compartilham “um mesmo passado de tradições
e eventos históricos [que] une os cidadãos em torno de um projeto comum”,38 qual
seja: uma ruptura com o antigo ordenamento jurídico a partir da instauração de
uma nova constituição.
A partir dessa mesma tradição e compartilhamento dos mesmos valores éticos,
religiosos e culturais, um grupo pode até mesmo se arrogar a condição de repre-
sentante desse Poder Constituinte, mas, ao fazer isso, necessariamente, deverá agir
no sentido de obter acolhimento dos valores dominantes, sob pena de perda do
seu reconhecimento como Poder Constituinte Originário. Caso contrário, estaríamos
apenas diante de uma insurreição – o que representa não um movimento político,
na visão de alguns constitucionalistas, mas um ilícito penal.39
Por isso mesmo, nessa concepção há que se destacar uma exigência de eficácia
atual: quem atua como Poder Constituinte Originário “deve-se consistir numa força
histórica efetiva, apta para realizar os fins que se propõe”.40 Mais que um querer
ser legitimado, essas pessoas têm que estar legitimadas, pois devem produzir uma
decisão sobre a nova ordem jurídica, que deve ter acatamento daqueles que foram
submetidos a ela.
(2) Já a versão moderna a partir das lições de Jellineck41 irá conceber o titular
do Poder Constituinte na figura do Povo – como conceito jurídico –, ao invés da Na-
ção – conceito este fortemente ligado a noções sociológicas e antropológicas.
Com o avanço do constitucionalismo, incorporando maiores complexidades,
que marcam a construção e a dinâmica social moderna, a noção de “povo” incor-
pora feições pluralistas trazendo uma preocupação com a tolerância e o direito à
diferença.42 É claro que o “povo”, aqui, não pode ser tomado como sinônimo de um
“bloco de cidadãos ativos”, mas em seu sentido político, como conjunto de pessoas
que atuam a partir de ideias, interesses e representações de ordem política.43
38. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 49.
39. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 189.
40. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 189.
41. É de se registrar que compartilhamos do mesmo espanto de Álvaro Ricardo de Souza Cruz: “A despeito da
obra ter mais de um século, bem como da existência de doutrina mais recente muito mais elaborada do que
a sua, tal como se depreende das obras de Müller (Quem é o povo?) e Arendt (A condição humana), é curioso
como a teoria do Poder Constituinte, especialmente a que é trabalhada aqui no Brasil, ainda utiliza o concei-
to de povo extraído da obra de Jellineck.” (SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo
constitucional, p. 55).
42. Remetemos, então, à leitura da obra SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, O direito à diferença: as ações afir-
mativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de
deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
43. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, 5. ed., p. 75.
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Com isso, a mesma noção de povo não pode ser reduzida ao numerário de
cidadãos ativos ou mesmo ao elemento majoritário, ultrapassando tudo isso. O pro-
blema se radicaliza no fato de que, para tal tradição constitucional, ainda não se
operou uma separação e distinção necessária entre povo e nação.
Para Bruce Ackerman,44 constitucionalista norte-americano, é importante anotar
que o Poder Constituinte Originário se manifesta para além do modelo da Conven-
ção.45 No quadro histórico norte-americano, anota três momentos constitucionais:
“a fundação dos Estados Unidos, ocasião em que uma Convenção de represen-
tantes dos treze Estados se transformou em Assembleia Constituinte; no período
da Reconstrução, em que o modelo de federalismo dual cedeu espaço para um
federalismo cooperativo com uma ampliação significativa das competências fe-
derais; e por último, com a implantação do Estado Social, ali implementado sem
qualquer alteração na Constituição, mas por via infraconstitucional, em especial
pelo conjunto de normas ordinárias que deram forma à política intervencionista
de Franklin Delano Roosevelt (New Deal).”46
O constitucionalismo moderno também lança novas luzes quanto ao “exercício”
do Poder Constituinte, preocupando-se em classificá-lo como democrático ou não
democrático. Esta última se caracteriza pela usurpação da vontade popular, “[...]
seja por arbítrio de um Imperador (Brasil/1824), de um ditador (Brasil/1937), de uma
facção política (União Soviética/1919), ou por potências estrangeiras, tais como as
Constituições dos países da antiga ‘Cortina de Ferro’ ou como a Carta Japonesa de
1947 e a Lei Fundamental da Alemanha de 1949, ambas aprovadas diante de clara
pressão dos países ocidentais, em especial dos Estados Unidos.”47
Em sentido inverso, um exercício democrático do Poder Constituinte está ligado
ao respeito da vontade popular, que pode se manifestar: pelo processo democráti-
co representativo – circunstância em que o povo elege representantes livremente;
ou pelo processo democrático direto, que prevê, além da eleições de representan-
tes, um plebiscito (antecedente aos trabalhos) ou um referendum (homologatório
ou não dos trabalhos).48 A atual Constituição adotou o primeiro modelo (processo
democrático representativo).
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52. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder constituinte e patriotismo constitucional, p. 60. Destaca ainda o constitu-
cionalista mineiro: “É possível lembrar o fato de que a Assembleia Constituinte, que redigiu a Carta de 1988,
foi convocada pelo veículo formal da emenda constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, à Constituição
de 1967. De outro lado, a presença de elementos, tais como as normas transitórias de acomodação (Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias), ao lado de fenômenos como o da recepção de normas infraconsti-
tucionais anteriores ao advento da nova Carta, demonstram sobejamente que o Poder Constituinte Originário
não promove um aniquilamento completo da ordem jurídica anterior.” (SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Poder
constituinte e patriotismo constitucional, p. 60).
53. Por exemplo, como fez o artigo 183 da Constituição de 1937, determinando a continuidade em vigor das leis
anteriores à nova Constituição. (MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 193).
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lei ser recebida ela precisa preencher os seguintes requisitos: “Estar em vigor no
momento do advento de uma nova Constituição; Não ter sido declarada inconstitu-
cional durante a sua vigência no ordenamento anterior; Ter compatibilidade formal
e material perante a Constituição sob cuja regência ela foi editada (no ordenamento
anterior); Ter compatibilidade somente material com a nova Constituição (pouco
importando a compatibilidade formal)” 57.
b) E o que aconteceria com uma lei produzida por um ente da Federação no
regime constitucional anterior se, com nova ordem constitucional, a mesma compe-
tência legislativa fosse transferida para figura federativa diversa? Gilmar Ferreira
Mendes é dos poucos autores a enfrentar o assunto e ensina que “não há que se
cogitar de uma federalização de normas estaduais ou municipais, por força de alte-
ração na regra de competência”. Por isso sustenta que se o tema era antes da com-
petência, por exemplo, dos Municípios e se torna assunto de competência federal
com a nova Carta, não haveria como aceitar que permanecessem em vigor como se
leis federais fossem – até por uma impossibilidade prática de se federalizar simul-
taneamente tantas leis, acaso não coincidentes.58 Todavia, o entendimento é pela
manutenção da lei federal no caso de alteração da competência para as legislaturas
estaduais e municipais.59 Nesse caso, admite-se que as leis seriam municipalizadas
ou estadualizadas.
Continuando, temos ainda que analisar alguns outros fenômenos inerentes à
dinâmica constitucional e aos efeitos das normas constitucionais no tempo. Além
da clássica recepção (ou não recepção) temos a intitulada desconstitucionalização.
O que seria? Ora a desconstitucionalização se traduz no fenômeno da dinâmica
constitucional em que normas de uma Constituição anterior (Constituição revogada)
são recepcionadas pelo novo ordenamento constitucional (pela nova Constituição),
porém com o status de normas infraconstitucionais. Esse fenômeno é de derivação
francesa e só pode ocorrer com o preenchimento de dois requisitos básicos: a) não
contrariedade para que ocorra a recepção no novo ordenamento; b) disposição
expressa do Poder Constituinte, na medida em que sua falta faz com que a descons-
titucionalização não possa ocorrer, até mesmo por razões de segurança jurídica.
Esse fenômeno não ocorreu no Brasil com o advento da nova Constituição de 1988
em relação a normas da Constituição de 1967-69, porém, certo é que a prática já
teve acolhida em solo nacional. Nesse sentido, a desconstitucionalização já existiu
na Constituição paulista de 1967, que no seu art. 147 dispôs expressamente que as
normas da Constituição paulista de 1947 que não contrariassem a nova Constituição
seriam recepcionadas como normas infraconstitucionais sob a égide do novo orde-
namento.
57. Lenza, Pedro, p.188-189, 2010. Ver também: MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p.
283, 2009.
58. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 196.
59. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 196.
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