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O TRABALHO POLICIAL

A única característica exclusiva da polícia é que ela está autorizada a usar a força física para regular as relações
interpessoais nas comunidades. Essa é uma definição; ela ensina como reconhecer minimamente a polícia. Mas não
é uma descrição de tudo que a polícia faz. A polícia frequentemente recebe outras responsabilidades. Além disso,
nem sempre ela emprega a força para regular as relações interpessoais, ainda que esteja autorizada a isso. Em
termos de atividades cotidianas, o trabalho que a polícia executa varia enormemente ao redor do mundo, a despeito
do fato de que as leis estabelecendo o policiamento são notavelmente semelhantes em termos das obrigações
atribuídas. Padrões modais de comportamento e autorização formal não são os mesmos. A fim de entender o que a
polícia faz, portanto, é necessário ir além das definições, leis e responsabilidades percebidas, para examinar seu
comportamento.

Este capítulo examina os problemas de descrever detalhadamente o que a polícia faz. Ele ressalta a importância de
se distinguir diferentes significados para o "trabalho" ou "função" da polícia e avalia os tipos de informação que
podem ser coletado sobre eles. São, então, apresentados motivos para que, ao se fazer um trabalho comparativo,
deva-se dar particular atenção aos tipos de situações que a polícia encontra ao lidar com os membros do público. O
capítulo seguinte demonstra as agudas variações na natureza dos confrontos com a polícia no mundo
contemporâneo, Por razões que serão explicadas, mudanças na função da polícia são historicamente difíceis de
documentar. Usando dados internacionais contemporâneos, será feita uma tentativa de construir uma teoria
parcimoniosa que explique as variações no volume e natureza dos confrontos da polícia com o público.

Informações sobre o trabalho policial, afora uns poucos estudos históricos, vêm principalmente do mundo ocidental
contemporâneo, sobretudo da Grã-Bretanha e Estados Unidos. Reconhecendo esse paroquialísmos, tratei de
recolher dados dos confrontos da polícia com o público em uma amostra mundial de países feita no final dos anos
70. Eles são Índia, Japão, Cingapura, Sri Lanka, França, Grã-Bretanha, Holanda Noruega e Estados Unidos. O
propósito era determinar o grau de variação entre as forças policiais quanto ao volume e natureza dos confrontos.
Embora, devido aos limites de acessibilidade, fosse impossível selecionar uma amostra de alcance mundial com
critérios científicos de representatividade, esses países fornecem urna cobertura mais extensa do que qualquer
outro estudo em termos de geografia, cultura, desenvolvimento e tradição política. O trabalho da polícia também
varia indubitavelmente no interior dos países, mas determinar forças policiais subnacionais representativas é
metodologicamente muito difícil. Tudo que pode ser feito é assegurar que as forças selecionadas em cada país não
eram peculiares de alguma forma. Afora esse critério, as forças escolhidas para estudo foram estruturadas de
maneira a contrastar localizações rurais e urbanas, e foram estudadas com a premissa de que teriam padrões
agudamente contrastantes de interação entre a polícia e o público. Esse estudo intensivo de nove países enriquece
consideravelmente as informações disponíveis sobre o trabalho policial no mundo moderno. Contudo, devo repetir
que ele não permite generalizações sobre o trabalho policial representativo quer global, quer nacionalmente.

A NATUREZA DO TRABALHO POLICIAL

Definir o que a polícia faz não é uma questão simples, não só porque é difícil assegurar o acesso permanente a ela,
mas também por motivos intelectuais. Podem ser usadas três maneiras bem distintas de descrever a atividade
policial, cada uma a partir de diferentes fontes de informação. O trabalho policial pode se referir, primeiro, ao que a
polícia é designada para fazer; segundo, a situações com as quais ela tem que lidar; terceiro, às ações que ela deve
tomar ao lidar com as situações.

Atribuições são a descrição organizacional do que os policiais estão fazendo - patrulhando, investigando,
controlando o tráfego, aconselhando e administrando.

Uma vez que padrões de staff normalmente são arquivados, podemos determinar facilmente a proporção de pessoal
designada para diferentes atividades. Quanto maior a quantidade de especialização formal no interior das
organizações policiais, mais fácil essa análise se toma. Ao mesmo tempo, atribuições são um indicador muito cru do
que a polícia está fazendo. A atribuição designada para a maior parte dos policiais em todo o mundo é o
patrulhamento. Contudo, patrulhamento é uma atividade multifacetada. Oficiais de patrulha são pau-pra-toda-obra.
Os ingleses se referem a eles com sensibilidade como "oficiais para deveres em geral': Mas oficiais com qualquer
atribuição, não só patrulhamento, podem fazer coisas associadas a outras atribuições: a polícia do trânsito também
patrulha, oficiais de patrulha controlam o trânsito, detetives aconselham os jovens, oficiais de delinquência juvenil
recolhem evidências sobre crimes, a polícia de controle de tumultos também guarda edifícios públicos, e todos
fazem um bocado de trabalho administrativo (Martin e Wilson, 1969, pp. I22- 123). Informação sobre atribuições é
importante para administração, mas as inferências sobre as atividades são tênues.

O trabalho policial também é comumente descrito em termos de situações com as quais a polícia se envolve: crimes
em andamento, brigas domésticas, crianças perdidas, acidentes de automóvel, pessoas suspeitas, supostos
arrombamentos, distúrbios públicos e mortes não-naturais. Nesse caso, a natureza do trabalho policial é revelada
por aquilo com o que ela tem de lidar.

Finalmente, o trabalho da polícia pode ser descrito em termos de ações executadas pela polícia durante as situações,
tais como prender, relatar, tranquilizar, advertir, prestar primeiros socorros, aconselhar, mediar, interromper,
ameaçar, citar e assim por diante. Nesse caso, o trabalho dos policiais é o que os policiais fazem nas situações que
encontram.

Atribuições, situações e resultados são indicadores conceitualmente distintos do que a polícia faz. A caracterização
do trabalho policial em um lugar específico pode ser significativamente diferente de acordo com o foco adotado.
Usar indicadores diferentes na mesma análise é como comparar maçãs e laranjas. A menos que as pessoas
reconheçam diferenças nas operações, elas vão falar de propósitos cruzados, discordando sobre a natureza do
trabalho da polícia sem nenhuma justificativa sólida. Além disso, uma falha em distinguir os diferentes significados
de trabalho policial atrapalha a busca de explicações para as variações internas. Os fatores que levam a proporções
variáveis quanto ao número de policiais designados para o patrulhamento em vez da investigação criminal
dificilmente serão os mesmos fatores que contam para uma mistura particular de situações trazidas à atenção da
polícia ou os fatores que influenciam o modo como essas situações são enfrentadas. Por exemplo, tem-se sugerido
que os resultados podem ser afetados pela distância social entre 0 suspeito e o oficial de polícia (Black, 1976). A
distância social dificilmente poderia explicar, contudo, por que uma força coloca 20% de seus oficiais em
investigações criminais enquanto outra coloca 40%. Da mesma forma, o público pode ser encorajado a trazer
questões triviais à atenção da polícia se ele acreditar que vai receber um tratamento simpático, mas uma reputação
de simpatia dificilmente vai explicar um padrão quer de atribuições, quer de resultados. Distância social e uma
reputação de resposta simpática são ambas explicações possíveis para diferenças na composição do trabalho
policial, mas não para o próprio trabalho policial, tanto como situação quanto como reação. Ao mesmo tempo,
alguns fatores podem pesar em todas as três medidas do trabalho policial. As características nacionais de uma
população, por exemplo, podem afetar o que as forças estão preparadas para fazer, aquilo com que elas se
envolvem mais frequentemente e como elas costumam lidar com essas situações.

Embora atribuições, situações e resultados sejam conceitualmente distintos, eles são interdependentes. A estrutura
das atribuições afeta os tipos de situação com os quais a polícia se envolve; as situações influenciam o espectro de
resultados prováveis; os resultados dão forma às situações que o público é encorajado a levar até a polícia; e as
situações ajudam a determinar as atribuições formais dentro da organização policial. Questões conceituais e
empíricas levantadas com respeito aos três aspectos do trabalho policial estão dispostas num diagrama na Figura 2,
na página seguinte.

Essa formulação das medidas alternativas do trabalho policial presume que a descrição de atribuições, situações e
resultados pode ser feita independentemente - que a descrição de uma situação não afeta a descrição de uma
reação, e assim por diante. Essa suposição é válida, exceto em uma instância. A caracterização de uma situação feita
por um oficial de polícia pode ser afetada pela ação que ele decide tomar para enfrentá-la. Situações são algumas
vezes descritas de forma que justifiquem as ações tomadas. Quer dizer, situações são redefinidas com propósitos
cosméticos.

Por exemplo, se os oficiais de polícia subjugam alguém pela força, é mais provável se descrever a situação como
"ataque a um oficial" do que como “embriaguez em público”; mesmo que o que ocorreu objetivamente seja o
último. Dificilmente os oficiais
vão descrever uma situação em que decidem não prender o perpetrador como "crime sério". Em vez disso, ela será
chamada de "briga entre bêbados" ou "disputa familiar". Assim, a validade da distinção entre situações e resultados
torna-se questionável quando a fonte de informação sobre ambos é o oficial de polícia responsável.

A variedade de "trabalho" no interior das categorias de atribuições, situações e resultados é bem grande. A fim de
fazer comparações informativas entre as forças, deve-se simplificar a descrição para se concentrar em umas poucas
diferenças principais no interior de cada categoria. De acordo com isso, descreverei atribuições administrativas em
termos de patrulhamento, investigação criminal, controle do trânsito, administração interna e controle auxiliar.
Existem outras especializações funcionais dentro de muitas forças policiais, mas elas tendem a envolver
relativamente poucas pessoas. Os significados desses termos são óbvios, exceto para controle auxiliar. Este se refere
a tarefas administrativas executadas por policiais para o Estado e que não têm nada a ver com suas
responsabilidades primárias: elas poderiam igualmente ser executadas por outras agências governamentais.

A descrição das situações será simplificada ainda mais radicalmente, com o propósito de se fazer generalizações
comparativas. Isso é essencial porque as situações que a polícia enfrenta são tão variadas quanto as exigências da
vida humana". As situações serão divididas entre aquelas que envolvem violações da lei e as que não envolvem.

Na útil terminologia de Michael Banton, os policiais algumas vezes são chamados a agir como "oficiais da lei" e
outras como "oficiais da paz" (1964, p. 608). Uma descrição tão radicalmente simplificada justifica-se porque a
aplicação da lei é urna função central da polícia. Se houver variações significativas na proporção de situações de
aplicação da lei e de não-aplicação da lei encontradas pela polícia, então teremos descoberto alguma coisa
importante sobre a realidade do policiamento. É óbvio que as situações nem sempre podem ser claramente
separadas entre as que são relacionadas à lei e as que não são. Particularmente problemáticas são situações que
surgem da antecipação de uma violação da lei, mais do que de uma ocorrência real, como no caso de disputas
domésticas ou embriaguez. A dicotomia é útil apenas na medida em que a proporção de casos ambíguos não for
muito alta.

Os resultados também serão divididos, para propósitos de descrição, em duas categorias - imposição e não-
imposição - dependendo de a ação policial reprimir fisicamente o comportamento ou não. Essas categorias também
respondem a noções fundamentais sobre o papel da polícia.

Há uma objeção importante a isso: devido à autorização dada à polícia, a repressão é inerente à presença policial,
mesmo quando não aplicada abertamente. Como diz Clifford Shearing: "Esse contexto permeia completamente
todos os outros recursos à sua disposição, e, portanto, modifica o seu sentido e seu significado" (Shearing e Leon,
1976). É um bom argumento, mas não destrói o valor da distinção. Faz uma enorme diferença, tanto para a polícia
quanto para o público, se os oficiais reprimem algum comportamento abertamente ou apenas indiretamente. Todo
tipo de pessoa influencia o comportamento por causa de sua autoridade latente - professores, pais, esposas, padres-
, mas a polícia é a única autorizada a limitar a liberdade fisicamente. Determinar com que frequência ela o faz de
modo explícito é importante para entender em que consiste o trabalho da polícia
Na prática, é óbvio, pode não ser claro se a repressão física está sendo aplicada. Por exemplo, boa parte do trabalho
policial envolve interromper fisicamente um comportamento a fim de evitar a violação da lei. Será imposição
quando bêbados violentos são mandados para casa de táxi, quando delinquentes juvenis são tirados das ruas ou
amantes são mandados para longe de áreas perigosas nos parques públicos?

Ainda que nenhuma lei tenha sido quebrada e nenhuma sanção oficial tenha sido aplicada, foram dadas ordens
repressoras. Advertências dadas por policiais colocam problemas semelhantes. Quando a polícia adverte as pessoas
de que elas serão presas se continuarem a executar uma ação particular, estará ela agindo de forma repressora ou
não? Uma advertência pode ser interpretada como um conselho não-obrigatório ou como uma ameaça velada. No
Sri Lanka e nos Estados Unidos, os oficiais frequentemente relatam a ação tomada como "partes avisadas" Isso pode
significar que as pessoas foram instruídas sobre a lei ou que elas foram advertidas a não fazer alguma coisa. O
primeiro pode ser não-imposição, o segundo é imposição. Na Inglaterra, os oficiais de polícia estão autorizados a
"admoestar" suspeitos, significando que eles interrompem uma prisão ou citação em curso em troca de uma
admissão de culpa, que se torna parte de um registro oficial. A admoestação é feita comumente em conexão com
violações pequenas cometidas por adolescentes ou réus primários. Ela levanta problemas para se julgar e tipificar as
ações da polícia. Os policiais japoneses são treinados para deter pessoas na rua e fazer com que elas se sintam
obrigadas a se submeter a questionamento, inclusive indo à delegacia de polícia, em circunstâncias que não
justificam uma prisão. Os oficiais fazem uso deliberado de sua autoridade latente para obrigar à concordância
(Bayley, 1976, cap. 3). No Canadá, mesmo as prisões legais são de fato ambíguas. De acordo com decisões judiciais, é
considerado como prisão sempre que as pessoas acreditam que não poderiam fazer outra coisa senão obedecer ao
policial, ainda que os próprios oficiais não pretendessem fazer uma prisão (Ericson, 1982, pp. 747-748). Isso estende
a categoria de prisão a um amplo espectro de ações policiais.

Em suma, a natureza do trabalho policial pode ser descrita de modo variado em termos de atribuições, situações e
resultados. É crucial distinguir entre essas medidas do trabalho policial a fim de fazer comparações válidas entre as
forças policiais e facilitar a busca de fatores determinantes. Dada a complexidade de cada dimensão, devem-se
produzir categorias descritivas informativas, mas simplificadas. Com respeito às atribuições, a designação formal das
unidades funcionais dentro da organização da polícia geralmente é suficiente. Podem-se fazer comparações
importantes e geralmente significativas com relação às situações em termos de elas serem ou não relacionadas à lei
e, a respeito dos resultados, em termos de imposição e não-imposição.

ATRIBUIÇÕES

A informação sobre a proporção de pessoal designado para diferentes especializações organizacionais nas forças
policiais ao redor do mundo demonstra, de forma consistente, que o trabalho de patrulhamento é de longe a
atribuição mais importante. Uma quantificação para essa generalização deve ser feita para forças policiais que
mantêm formações separadas para controle de tumultos, como na Índia, Paquistão e Japão. Nessas circunstâncias, o
patrulhamento será a atribuição dominante entre o pessoal destacado para o policiamento civil, o que normalmente
significa as pessoas alocadas nas delegacias de polícia. Comparações de pessoal designado entre as forças policiais
não são particularmente reveladoras sobre a natureza do trabalho policial porque as categorias são muito toscas.
Elas indubitavelmente mostram as preocupações relativas das diferentes forças, mas não mostram a composição da
atividade policial enquanto trabalho-isto é, enquanto coisas executadas (Manning, 1977).

Uma vez que a polícia é uma das instituições governamentais mais disseminadas, a conveniência provoca que lhe
atribuam tarefas administrativas genéricas. Em toda parte, os oficiais de polícia reclamam, argumentando que isso
os distrai de suas responsabilidades de manter a lei e a ordem. A polícia francesa, por exemplo, emite carteiras de
identidade, recolhe pedidos de passaporte, atua como agência de achados-e-perdidos, registra veículos a motor,
emite licenças de motorista e lacra caixões mortuários mandados de um departamento para outro. A polícia
britânica registra estrangeiros e até recentemente mantinha registros de rebanhos contaminados com doenças
contagiosas. Na Noruega, a polícia inspeciona os registros que os comerciantes são obrigados por lei a manter
(Kosberg, 1978). No Japão, ela aplica as leis contra a poluição ambiental. A polícia canadense aplica as leis sobre a
saúde pública, saneamento e prevenção ao fogo (Kelly e KeJJy, 1976, p. 34). A polícia indiana leva animais
desgarrados aos currais que são mantidos em muitas delegacias de polícia. A Polícia Real da Malásia registra
nascimentos e óbitos; a polícia de Mali recolhe alguns tipos de impostos sobre vendas (Hopkins, 1967). E a antiga
polícia soviética mantinha centros de desintoxicação, bem como campos de trabalho forçados (Conquest, 1968,
p.103; Iuviler, 1976, cap. 3).

Entre as forças policiais da Europa, América do Norte e Comunidade Britânica parece ter ocorrido, no último século,
uma ação gradual para desinvesti-las das funções administrativas auxiliares. Isso não pode ser afirmado de modo
conclusivo, porque inicialmente os países variaram muito no que se refere à quantidade de tais tarefas executadas
pela polícia. Na Europa continental, o policiamento originalmente coincidia com a administração civil. Polícia
denotava todas as funções do governo que não eram eclesiásticas (Fosdick, 1915 [1975], pp. 12-14). No século XVIII,
a Prússia tinha polícia de campo e guarda florestal, polícia de doenças do gado, polícia de caça, polícia comercial e
polícia de saúde. A polícia francesa também fazia quase tudo, inclusive assegurar o fornecimento adequado de
comida para as cidades", Ao longo do século XIX, os policiais russos serviam como coletores de impostos,
engenheiros sanitários, farmacêuticos e inspetores de estradas, edificações, indústrias e bem-estar público (Starr
,1970, pp. 493-494). As forças continentais certamente parecem ter contraído seu espectro de atividades nos
últimos cem anos, centrando-se mais exclusivamente na aplicação de leis criminais. Nos países anglo-saxónicos, por
outro lado, as responsabilidades policiais sempre foram concebidas de modo mais estreito, como uma especialização
da administração civil. Como as forças europeias, elas provavelmente reduziram a administração auxiliar, mas a
tendência é difícil de discernir. Em uma data tão recente quanto 1953, o governo britânico pensava que o problema
da administração auxiliar era suficientemente incômodo para designar um Comitê para os Deveres Policiais
Extrínsecos (Punch e Naylor, 1973). Há alguma evidência de que a administração auxiliar pode de fato ter crescido na
Inglaterra desde a metade do século XIX, em paralelo com a expansão das responsabilidades gerais de Estado
(Martin e Wilson, 1969, pp. 25-26). Nos Estados Unidos, embora novas especialidades funcionais tenham emergido,
a policia desistiu de conduzir eleições, providenciar alimento e abrigo para indigentes e inspecionar caldeiras, saídas
de incêndio e pesos e medidas. Tudo somado, uma tendência razoavelmente clara rumo à especialização na
aplicação das leis criminais pode ser vista em todo o mundo, ainda que países com sistemas administrativos menos
desenvolvidos e tradição de delegar muito às autoridades, como nos países que seguem o Direito Romano, ainda
tendam a atribuir à polícia um grande número de tarefas administrativas auxiliares.

Algumas atribuições totalmente novas emergiram como especialidades formais entre as polícias de todo o mundo
durante o último século, notavelmente investigação criminal, controle do trânsito, prevenção à delinquência juvenil
e administração interna. Deve-se ser cuidadoso, contudo, para não ser levado pela especialização organizacional a
pensar erroneamente que a polícia não se preocupava com essas questões antes. No caso da investigação criminal, a
especialização surgiu mais cedo na França que na Inglaterra. A data exata em que os detetives foram criados na
França é uma questão controversa. De acordo com uma autoridade no assunto, o Cardeal Mazarin criou cem
detetives em 1645, embora eles não fossem organizados em unidades separadas até que Fouché criasse a Süreté em
1800 (Stead, 1957, pp. 94-96). A existência da Süreté não foi revelada publicamente até 1832/33, quando os fundos
para suas operações foram listados pela primeira vez no orçamento da polícia. Outro historiador argumenta, a partir
de registros mais detalhados, que a especialização em investigação criminal não ocorreu até 1740, quando
inspetores começaram a ser designados para o controle e investigação de prostituição, sedição, atividades de
estrangeiros, assassinato, roubo armado e latrocínio (Williams, 1979,pp. 99-104). Até a revolução, seu número
parecia não exceder a 20. A Inglaterra criou uma unidade formal de detetives dentro da London Metropolitan Police
em 1842, consistindo inicialmente de dois inspetores e três sargentos. Devido à intensa suspeita do público em
relação a oficiais de polícia à paisana, o departamento foi mantido em segredo até 1878, quando se tornou o
Crirninal lnvestigation Department (CID), lotado com 250 oficiais (Critchley , 1967, pp.160-162). Mas a investigação
criminal não começou na verdade com a Nova Polícia. De fato, Sir Robert Peel queria que seus Bobbie se
enfatizassem mais a prevenção ao crime do que a prisão dos ladrões, como tinham feito os Bow Street Runners e a
Tharnes River Police. A criação do CID na Inglaterra marcou o retorno às preocupações tradicionais. As forças
policiais americanas, como as inglesas, também estabeleceram unidades formais de detetives no século XIX, mas isso
não refletiu uma mudança na atividade organizacional, uma vez que os oficiais tinham historicamente se ocupado da
investigação, frequentemente recebendo honorários por serviços prestados e bens devolvidos (Critchley, 1967, pp.
12-62; Miller, 1977, pp. 36-37).

Controle do trânsito também foi um interesse da polícia muito tempo antes de unidades especializadas serem
criadas no século XX. Nas estreitas ruas não-pavimentadas de Paris no século XVIII ou de Londres no XIX, oficiais de
patrulha desemaranhavam o trânsito, intimavam motoristas dos veículos puxados a cavalo, apartavam brigas entre
motoristas e aplicavam regulamentos sobre onde os passageiros poderiam ser recolhidos ou descarregados. O
trânsito provavelmente era ainda menos administrável do que hoje, devido à sua heterogeneidade - carroças e
carruagens, carros leves e pesados, cavalos, sedãs, carrinhos de mão, padiolas, carregadores, mensageiros e o
interminável fluxo de pedestres, todos exigindo a preferência (Crichtley, 1967, p. 110; Coatrnan, 1959, cap. 5;
Richardson, 1974, cap. 8).

A índia é assim hoje em dia - talvez pior, porque também há táxis motorizados, vans, lambretas e riquixãs.

As mudanças que ocorreram nas atribuições da polícia durante o século passado podem ser atribuídas a diversos
fatores. Primeiro, emergiram novas tarefas para o cumprimento da lei. Delinquência juvenil é um desses casos, assim
como poluição ambiental segundo, a capacidade administrativa geral dos Estados cresceu, criando novas instituições
burocráticas para aliviar a polícia do velho trabalho. Terceiro, atribuições especializadas tornaram-se uma marca de
administração progressista, embora sejam mais pronunciadas em forças grandes do que nas pequenas'. Isso ajudou
a salientar de modo dramático a irrelevância de algumas atribuições tradicionais. Também criou a aparência de
mudança no trabalho da polícia, que nem sempre se reflete no comportamento cotidiano".

As atribuições da polícia têm sido descritas cm profundidade nesta discussão, de acordo com classificações
administrativas do trabalho realizado. Contudo, as atribuições têm ainda um outro atributo, que é de enorme
importância para entender o trabalho da polícia. As atribuições da polícia podem ser comparadas se elas são
direcionadas principalmente ao Estado ou ao público. Algumas atribuições requerem que os oficiais de polícia
respondam exclusivamente à direção do comando, outras que eles sejam responsáveis perante as solicitações do
público. Nas investigações criminais e tarefas de trânsito, por exemplo, a instigação da atividade está no próprio
estabelecimento policial. No patrulhamento, contudo, a instigação parte mais comumente do público, quer
pessoalmente, quer através de chamadas pelo rádio. As forças policiais do mundo variam radicalmente na proporção
de direcionamento para o Estado ou para o público. Na Índia, Paquistão e no atual Sri Lanka, a iniciativa pertence
amplamente ao Estado. Muito pouco do tempo agregado da polícia está disponível para o público. Na Noruega,
Inglaterra e Canadá, por outro lado, o grosso do tempo da polícia está disponível para a iniciativa pública. Calculando
a proporção de tempo comandado pelo Estado e pelo público, em diferentes atribuições, revela-se muito sobre o
papel da polícia em uma dada sociedade.

De fato, a distinção entre atribuições direcionadas para o Estado e direcionadas para o público amplia o conceito de
instigação proativa e reativa para aplicá-lo à organização policial como um todo. Instigação proativa descreve um
contato no qual a iniciativa é tomada pela polícia, instigação reativa ocorre quando a iniciativa vem do público.
Instigação reativa, então, ocorre apenas com forças cujas atribuições não são monopolizadas pelo Estado. Enquanto
a resposta da polícia à iniciativa pública não é automática em qualquer atribuição, algumas atribuições são
inevitavelmente proativas, tais como proteger VIPs, guardar edifícios públicos e controlar multidões, onde a ação é
instigada exclusivamente pela autoridade pública.

A informação sobre a natureza das situações que a polícia enfrenta vem de quatro fontes: observação dos oficiais de
polícia trabalhando, relatórios de atividade por oficiais individuais, arquivos de atividade mantidos coletivamente
pelas unidades de polícia e relatórios de chamadas para assistência vindas do público. A melhor delas é a observação
de oficiais de polícia trabalhando, porque é a mais direta e com menos interesses particulares. A observação,
contudo, é muito cara, requerendo pessoal treinado para acompanhar os oficiais-hora por hora de trabalho. Os
observadores também devem obter total acesso às operações da polícia. Não é surpresa que poucos estudos de
alcance mundial sobre o trabalho da polícia tenham sido feitos com base em observação sistemática e que todos os
que existam sejam de países democráticos afluentes, tais como o Canadá, a Inglaterra, Noruega e Estados Unidos.
Até o momento, a maioria desses estudos tem focalizado exclusivamente as operações de patrulha, negligenciando
todas as outras atribuições especializadas. Existe justificativa para isso. O patrulhamento é a atribuição mais
numerosa em todas as forças policiais, respondendo pela vasta maioria de confrontos com o público, bem como pelo
grosso das prisões. O patrulhamento também é a atribuição mais diversa em termos de situações encontradas.
Apenas um número reduzido de estudos examinou a atividade diária do pessoal designado para investigações
criminais, o que é curioso quando se considera que o detetive geralmente é considerado como o arquétipo do
policial (Ericson, 1982; Greenwood e PetersiJia, 1975; Skolnick, 1966).
Registros de atividade e diários mantidos por oficiais individuais fornecem informação de primeira mão sobre as
situações, mas eles não são disponíveis uniformemente em todas as forças policiais. Mesmo quando estão
disponíveis, a qualidade dos relatórios individuais varia consideravelmente de força para força. O grande problema é
encontrar oficiais de polícia que escrevam cada ocorrência na qual eles estiveram envolvidos. Se um registro pessoal
chegar a ser exigido, os oficiais geralmente relatarão apenas aqueles eventos que podem criar um registro oficial e
pelos quais eles são de alguma forma responsáveis. Os diários dos oficiais de polícia indianos, por exemplo, não são
verdadeiros registros; eles contêm apenas um esboço cru de idas e vindas, bem como fragmentos de informação
que podem ser necessários para investigações subsequentes 1°. As cadernetas dos oficiais ingleses também são
primariamente auxiliares para a memória, não um relatório de toda atividade (McCabe e Sutcliffe, 1978). Registros
pessoais são mais completos quando usados pelos supervisores para avaliar o desempenho de um oficial. Nos
Estados Unidos, por exemplo, algumas forças policiais calculam a quantidade de tempo que os oficiais de patrulha
estão em contato com o público, enquanto oposta a simplesmente cruzar as ruas esperando alguma coisa acontecer.
O interesse pessoal encoraja os oficiais a escreverem cada atividade que possa ser considerada "trabalho", não
importa quão trivial.

Relatórios de situações enfrentadas pelos oficiais podem ser mantidos pelas unidades de comando. Isso funciona
bem onde a maior parte da atividade é iniciada num nível coletivo de comando, tal como a delegacia de polícia e o
esquadrão de detetives. Os arquivos de unidades provavelmente são mais completos nos países ocidentais, onde
chamadas por telefone e rádio são mais comuns, do que nos países menos desenvolvidos. O desenvolvimento de
sistemas computadorizados de comando-e-controle que põem os oficiais em contato por rádio pessoal produziu um
salto quântico na qualidade da informação disponível sobre o trabalho da polícia, especialmente atividades de
patrulha. Ao mesmo tempo, arquivos de unidades podem ser relativamente completos, mesmo sem as chamadas da
central, se a proporção de atividade iniciada pelo oficial for pequena, como na Índia ou onde a disciplina com relação
ao relatórios for estrita.

Qualquer que seja o nível no qual a atividade é registrada - individualmente ou nas unidades de comando - os
arquivos refletem decisões de pessoas sobre o que é importante registrar. Nenhum sistema de registro é
automático. Registrar é trabalho para alguma pessoa. Assim, sempre existe a tentação de omitir eventos triviais,
transitórios ou sem repercussão para os policiais. Outra maneira de dizer isso é que os arquivos da polícia sempre
têm corno meta os eventos sérios, a meta sendo uma função da dificuldade pessoal de criar um relatório e a carga
de trabalho do oficial.

Informação sobre o trabalho policial obtida tanto de relatórios oficiais quanto dos arquivos da unidade geralmente
cobre só o pessoal de patrulha e não fornece um retrato das situações cotidianas encontradas em outras atribuições.
Sistemas de relatório interno, cm outras palavras) concentram-se rotineiramente em padrões de interação inicial
entre polícia e público. Ações policiais derivativas, tais como investigação criminal, aconselhamento juvenil ou
administração interna, não são tão bem monitoradas.

A fonte final de informação sobre o trabalho da polícia durante as situações é o registro de chamadas públicas de
assistência policial. Ele não mostra o que a polícia encontra de fato, mas sobretudo o que o público acha que deve
produzir uma resposta da polícia, sem levar em conta se a polícia concorda. Ele só reflete a informação sobre as
situações trazidas à atenção da polícia por iniciativa pública - no vocabulário administrativo, apenas os confrontos
gerados reativamente, e não pro-ativamente.

O grau de variação entre as forças policiais no mundo com respeito à proporção de seu trabalho gerado reativa ou
pro-ativamente é muito grande. Os dados que coletei em locações urbanas e rurais de vários países ao redor do
mundo mostram que a proporção de situações reativamente instigadas varia de 92,3% a 22,8%. (Ver Tabela 10 na
página seguinte.)
Os dados foram recolhidos como parte de um trabalho de campo intensivo em nove países, o qual envolveu, mais do
que observação, coletar informação confiável dos registros oficiais, sobre a natureza das situações que o pessoal de
patrulha tipicamente encontra. Uma vez que o volume de trabalho policial representado como situações era tão
grande na maioria dos lugares, foi necessário empregar um esquema de amostragem. Todos os dados vêm da
mesma amostra de dias de meses selecionados - janeiro, abril, julho e outubro - cobrindo todas as mudanças quer
durante 1976, quer durante 1977. Os lugares são descritos brevemente no Apêndice. Com respeito aos modos
determinantes de instigação, o esforço foi bem-sucedido apenas nos países que aparecem na Tabela 10 na página
seguinte", outros estudos confirmam que o grau de variação é substancial: 93% reativa em Chicago, 83% em Salford
e 74% em Oxford, Inglaterra, e 53% em Peel County, Ontário (Ericson, 1982; McCabe e Sutcliffe, 1978; Reiss, 1971, p.
96). Supõe-se geralmente que quanto maior a proporção de confrontos gerados reativamente, mais os dados de
chamadas-de-serviço vão exagerar a proporção de situações que não são relacionadas com crime. A razão é que o
interesse público que leva a esses confrontos mais provavelmente envolverá questões não-criminais, ao contrário
dos confrontos produzidos pelos interesses da polícia. Policiais estão interessados em uma "boa prisão"; o público
tem apenas uma noção nebulosa de quando a lei precisa de ajuda com muitas outras situações. Contatos Proativo
tem se mostrado maciçamente relacionados a crimes nos Estado Unidos (Reiss, 1971, cap. 2). Os dados
internacionais levantam sérias dúvidas sobre esse ponto. A análise estatística da associação entre o modo de
instigação e a natureza da situação - se é ou não criminalmente relacionada - mostra que, das quatorze jurisdições
onde estão disponíveis dados significativos, uma relação positiva entre instigação proativa e situações criminalmente
relacionadas ocorre em apenas quatro delas. (ver Tabela 11) E em dois desses casos, o efeito foi leve. Situações
foram codificadas em termos de onze categorias, que descreverei mais tarde. As situações foram então agrupadas
em criminalmente relacionadas e não-criminalmente relacionadas. Situações que não poderiam ser atribuídas a um
ou outro grupo sem ambiguidade foram omitidas da análise. Os resultados estatísticos mostram que, na maioria das
vezes, o modo de instigação não tinha nenhum efeito sobre a natureza da situação enfrentada pela polícia.
Os policiais acreditam que a proporção de situações instigadas reativamente, em vez de pro ativamente, é afetada
pelo desenvolvimento das redes de rádio e telefonia. O serviço policial se torna assim mais fácil de comandar, e os
policiais podem ser encaminhados individualmente para certas necessidades. Os dados internacionais não apoiam
essa linha de raciocínio. Cingapura, que tem aproximadamente 7 pessoas para cada telefone, iniciou 94% dos
confrontos com a polícia reativamente, enquanto algumas cidades americanas, que têm quase tantos telefones
quanto pessoas, geraram uma proporção relativamente pequena. Na Índia, cerca de três quartos de todos os
confrontos foram reativos, ainda que haja apenas um telefone para cada 336 pessoas (Newspaper Enterprise
Association, 1978; Governo dos Estados Unidos, Escritório do Censo, 1979).

Principalmente nas áreas rurais, onde a comunicação por telefone é ainda menos extensiva, a proporção de
confrontos reativos foi maior do que nas cidades. Também em Siri Lanka a proporção de confrontos reativos foi
cerca de 20% maior nas áreas rurais do que nas urbanas. Esses dados mostram que a relação entre o
desenvolvimento das facilidades de comunicação e o trabalho da polícia deve ser repensada. O aperfeiçoamento das
comunicações indubitavelmente torna mais fácil aos cidadãos se encaminharem para a polícia. Mas comunicações
primitivas não significam necessariamente maior iniciativa policial. Precisamente porque as comunicações de todos
os tipos, inclusive estradas, não estão bem desenvolvidas, a polícia pode adotar uma disposição passiva, esperando
ser contatada na delegacia pelas pessoas que precisam de ajuda. Dessa forma, a polícia concentra recursos onde eles
podem ser encontrados pelo público. Desenvolvimento tecnológico, especialmente nas comunicações, não afeta
necessariamente o modo de instigação. Mesmo que o faça, não se pode deduzir seu impacto na composição das
situações encontradas.

Arquivos de solicitações públicas de socorro recolhidos nos níveis da unidade de comando variam enormemente em
qualidade. Despachos centrais facilitam a coleta, mas tais registros são apenas tão completos quanto as decisões dos
operadores permitem. Expedidores ao redor do mundo admitem que omitem importantes chamadas de serviço
quando o volume de trabalho é grande e eles estão cansados. Onde existem facilidades para gravação eletrônica em
fitas, dados crus de todas as solicitações telefônicas estão disponíveis". O problema, nesse caso, é contar com
chamada em trânsito para suplementar o registro telefônico. Mais comumente em todo o mundo, pedidos de ajuda
policial são escritos à mão pelos oficiais recepcionistas nas escrivaninhas de estações de polícia conforme as pessoas
aparecem em pessoa ou chamam ao telefone. Não há nenhuma razão a priori pela qual tais registros devam ser
piores do que os assistidos por computador. Uma delegacia rural de polícia na Índia, com um baixo volume de
chamadas e supervisão estrita pelo oficial responsável, pode produzir registros escrupulosamente completos. De
fato, os diários das delegacias na Índia geralmente estão bem longe disso, constituindo, nas palavras de um oficial
experiente, "o mínimo registro inevitável". O que importa é que nenhum registro policial pode ser tomado pelo seu
valor nominal; só a observação do comportamento ao registrar permite que se façam estimativas da disparidade
entre as chamadas e o registro oficial.

Produzir tabulações sobre a natureza das chamadas de serviço a partir de registros manuscritos, como é requerido
na maioria dos lugares do mundo, é trabalhoso.

Significa folhear volumosos arquivos e registros. Os próprios policiais raramente o fazem. Frequentemente existem
numerosos registros, dependendo da natureza da solicitação, um processo que leva a duplicar entradas e aumenta a
chance de contagem múltipla do mesmo evento. Na Índia, por exemplo, cada delegacia de polícia mantém um diário
da delegacia que se supõe conter o registro de tudo o que acontece, inclusive chamadas de serviço e respostas;
registros de petição para chamadas escritas, geralmente de oficiais governamentais em outras agências e políticos; e
relatórios de primeira mão reportados por vítimas de crimes. As delegacias de polícia em Siri Lanka têm livro de
informações de queixas graves, livro de informações para violações menores, livro de informações sobre o trânsito,
livro de informações sobre acidentes, registros telefônicos e livro de informação sobre os detetives. Esses registros
contêm entradas meticulosas, frequentemente em placas de cobre manuscritas remontando ao fim do século XIX.
Eles são fascinantes em detalhe, mas desajeitados para construir um sumário de chamadas de serviço.

Mesmo quando registros ou pedidos de ajuda policial são razoavelmente completos, eles não fornecem um retrato
acurado das situações que a polícia encontra, porque a caracterização das situações pelo público pode diferir
substancialmente da feita pela polícia ao responder. Um membro do público reporta um assalto que está
acontecendo, enquanto o oficial de polícia reporta que era uma briga doméstica. O que o público percebe corno
uma violação séria de "assalto", o policial mais tarde descreve como "uma simples injúria': a distinção repousando
sobre a natureza da injúria, em vez de nas intenções do assaltante, sem contar o medo da vítima. Um chamado por
assistência médica de um cidadão torna-se um caso de negligência criminal; um relatório de invasão criminosa é
tratado de modo a tranquilizar uma mulher idosa. Em uma comparação cuidadosa da caracterização do público e da
polícia para os mesmos incidentes, Albert Reiss descobriu que 58% das ocorrências eram encaradas pelos cidadãos
como crimes, contra 17%, pelos oficiais responsáveis (Reiss, 1971). Ê como se o público tendesse a aumentar a
gravidade de qualquer situação, pensando talvez que as leis precisam ser violadas para justificar que se chame a
polícia. Se esse é mesmo o caso de modo geral, e não apenas nos Estados Unidos, então registros de chamadas de
serviço podem não estar distorcendo, tanto quanto se pensava, a impressão do trabalho policial como sendo não-
relacionado com a lei. A palavra-chave, contudo, é impressão. Deve-se ser cuidadoso para não presumir que os
relatórios policiais sobre as situações são mais acurados do que os do público. A perspectiva da polícia, embora apta
a estar mais bem informada sobre questões legais, não é necessariamente mais objetiva que a do público. Oficiais de
polícia também são parte interessada, que podem remodelar os relatórios para se adequar a procedimentos
burocráticos ou a suas próprias concepções sobre o que os superiores querem. Somente a observação independente
pode resolver discordâncias nas descrições entre essas fontes conflitantes.

Deveria ser óbvio, agora, que obter informação completa e confiável sobre as situações que a polícia encontra é
terrivelmente difícil. Porque as fontes de informação sobre as situações diferem, comparações entre jurisdições
envolvem comparação entre chamadas de serviço, registros de atividade dos oficiais e compilações da unidade. Mais
ainda, considerando a falta de confiabilidade da maioria dessas fontes, a única conclusão sensível é de que
comparações, especialmente de âmbito internacional, entre as situações que a polícia enfrenta deveriam ser
encaradas com cautela. Análise estatística elaborada raramente se justifica, mesmo entre jurisdições no interior de
cada país, a menos que um sistema de controle de qualidade na construção dos arquivos de polícia seja estritamente
aplicado. Embora a informação sobre as situações seja crítica para se entender a natureza do trabalho policial,
dificilmente é possível uma descrição confiável com a maioria dos dados disponíveis.

Em uma tentativa de documentar as variações na natureza do trabalho policial, fui bem-sucedido em recolher dados
em situações que a polícia encontra em vinte e três localidades de sete países (veja Tabela 12, na página seguinte).
Essas são situações trazidas à atenção da polícia pelo público, ou descobertas pelos oficiais em patrulha. O trabalho
policial especializado não está coberto. Embora todos os dados representem situações, a qual idade é extremamente
desigual. A informação na Inglaterra, por exemplo, vem de um computador de comando-e-controle: na Índia, de
diários de
Uma vez que a variedade de situações com as quais a polícia tem que lidar é tão vasta, comparações só podem ser
feitas se forem descritas em tipos gerais. O número e natureza de categorias necessárias é questão de julgamento.
Quanto mais categorias, menor a distorção da realidade; quanto menos categorias, mais difícil se torna tipificar cada
situação de modo confiável (Banton, 1964; Wilson, 1968; Wycolff e Eisenbart, 1980). Através de tentativa e erro,
descobri que a maioria da r classificada de forma relativamente não ambígua em uma das dez categorias que se
seguem:

1. emergência e criminal

2. queixa e investigação criminal

3. emergência não-criminal

4. prevenção ao crime

5. cuidado com pessoas incapacitadas ou incompetentes

6. briga ou disputa

7. aconselhamento

8. trânsito

9. controle da multidão

10. investigação não-criminal

Uma vez feita toda a classificação das situações, o problema da confiabilidade intersubjetiva foi evitado.

Comparando a incidência proporcional de cada tipo de situação encontrada - Tabela l2 – torna-se óbvio que o
trabalho da polícia não é uniforme em todo o mundo. Não só cada tipo de trabalho mostra um grau substancial de
variação, mas uns poucos simplesmente nem são executados em alguns lugares. O trabalho da polícia tem um
caráter sensivelmente diferente em diferentes lugares. No próximo capítulo, os dados serão analisados para
determinar se existem padrões para essas variações e se eles estão associados com circunstâncias sociais diferentes.
Nesse momento, tentarei capturar o que é distintivo descritivamente no trabalho da polícia combinando as
categorias em um número menor de grupos informativos.

O formato mais comumente usado pelos analistas distingue as situações que envolvem violações da lei das que não
envolvem ( Kelling e Lewis, 1979). A aplicação da lei é geralmente considerada como a responsabilidade central da
polícia, assim como repressão autorizada é sua única característica definidora. Referindo-se à lista de categorias, as
situações 1 e 2 são claramente relacionadas com crimes; as situações 3, 5, 7 e 1O não o são. As proporções de
trabalho criminalmente relacionado e não-relacionado, de acordo com essa divisão, encontram-se na coluna l da
Tabela 13 na página seguinte. As situações 6 e 9 - disputas e controle da multidão - podem ou não ser criminalmente
relacionadas. A coluna 2 da Tabela 13 mostra os resultados quando eles não são considerados criminalmente
relacionados, e a coluna 3 quando eles são tratados como criminalmente relacionados. Geralmente, a incidência de
brigas e controle da multidão é tão pequena que classificá-las como

situações criminalmente relacionadas ou não criminalmente relacionadas só faz uma leve diferença quanto às
proporções. Bolagarh e Kaharaduwa são as exceções sendo áreas rurais da índia e Sri Lanka, respectivamente. A
pequena proporção de situações de controle da multidão é especialmente surpreendente para a Índia, mostrando
um defeito em a1gumas fontes usadas para documentar o trabalho da polícia. Controle da multidão é um grande
problema para a polícia indiana, mas é enfrentado por forças especializadas e não aparece como confrontos nos
diários das delegacias. A situação 4 (prevenção ao crime) e a situação 11 (miscelânea) são impossíveis de classificar,
mesmo teoricamente, como sendo criminalmente relacionadas ou criminalmente não-relacionadas. Elas foram
omitidas da análise, assim como a situação 8 (trânsito). Situações de trânsito geralmente envolvem violação da lei,
quase sempre instigada de maneira proativa, mas são aspectos técnicos, mais que morais, da prevenção da lei.

Os dados mostram que, exceto para a Inglaterra, Noruega e Cingapura, o trabalho de polícia é majoritariamente
relacionado à lei. Se o controle do trânsito for incluído, então a proporção do que é relacionado à lei, mesmo que
não-relacionado criminalmente, sobe ainda mais. Nos Estados Unidos, de dois terços a quatro quintos das situações
podem ser classificados sem ambiguidade como relacionados criminalmente.

Na índia e Sri Lanka, a proporção é ainda maior. Essas descobertas, especialmente para os Estados Unidos, são
surpreendentes. Tem sido considerado como provado que a maioria das situações que a polícia encontra não está
relacionada à lei. Infelizmente, muitos dos estudos não são comparáveis com o meu porque foram baseados em
chamadas de serviço, em vez de registros policiais de situações autenticadas. Espera-se que a polícia seja mais
aplicada ao relatar eventos criminalmente relacionados do que os criminalmente não-relacionados. Ao mesmo
tempo, nem todos os estudos americanos mostram uma clara preponderância de situações não-criminais. Por
exemplo, o Police Executive Research Forum fez um estudo extensivo das chamadas de serviço da polícia em
Birmingharn, Peoria, Hartford e San Josc em 1977, descobrindo que cerca de três quintos delas, excluindo questões
de trânsito, envolvem controle do crime. De resto, a classificação era inexata, porque muitas das chamadas não-
criminais envolviam a “manutenção da paz”, o que incluía situações que se poderia descobrir que eram
criminalmente relacionadas, tais como distúrbios, tumultos, brigas domésticas e danos intencionais. Em conclusão,
dados os problemas de classificação bem como a impossibilidade de se comparar fontes de informação, seria
prematuro, na minha opinião, ser dogmático quanto ao caráter do trabalho policial, mesmo nos Estados Unidos.

Para o resto do mundo, existe ainda menos documentação independente. Meus dados para Suffolk County,
Inglaterra, mostram uma clara preponderância de situações não-relacionadas criminalmente. Outros estudos,
contudo, mostram uma proporção igual de atividades de aplicação da lei e de não-aplicação da lei. A respeito da
Noruega - o único outro estudo do trabalho da polícia feito em uma jurisdição rural semelhante à minha- também
descobre que eventos não-criminais dominam o trabalho policial. No Japão e na Holanda, o grosso do trabalho
policial tende a ser não-criminal. Em Tóquio, em anos recentes, o crime tem sido responsável por apenas 12% das
chamadas recebidas pelo número de emergência da polícia, o trânsito por 25% e questões não-criminais, incluindo
lutas e disputas, por mais de 60% (Departamento de Polícia Metropolitana de Tóquio, 1979, p. 15). Respondendo a
uma pesquisa, a pessoas na Holanda relataram que 16% de seus contatos com a polícia nos últimos três anos tinham
envolvido crimes, 36% trânsito e 48% outros assuntos (Iunger-Tas, 1978).

A preponderância da evidência mundial parece apoiar a conclusão de que assuntos não-criminais dominam o
trabalho da polícia, ainda que, dada a variedade da informação usada e a clara indicação de variações nacionais, a
questão da natureza do trabalho policial não pode ser considerada resolvida.

RESULTADOS

As fontes de informação sobre os resultados são, com uma única exceção, as mesmas que para as situações:
relatórios de observadores, diários de atividades dos oficiais e sumários das unidades. Ao contrário do que acontece
ao relatar situações, o público não é uma fonte de informação sobre resultados. A comparação de padrões de
resultados entre jurisdições deve enfrentar os mesmos problemas já discutidos: fontes de informação discordantes e
sua falta de confiabilidade.

Há também uma consideração teórica que lança dúvidas sobre o valor de se comparar os dados sobre os resultados.
Uma comparação de resultados não tem significado, a menos que as situações geradoras sejam as mesmas. Não é
informativo abrir, por exemplo, que os resultados são 90% coação em uma força policial e 10% em outra, a menos
que também se conheçam as diferenças na natureza de cada situação.

A fim de entender as variações no trabalho da polícia, a análise de situações antecede logicamente a análise de
resultados. Por outro lado, determinar que há diferenças consistentes nos resultados entre forças policiais com uma
composição semelhante de situações é urna tarefa importante. Ê provavelmente a melhor maneira de tornar
operacional o vago conceito de estilo no trabalho da polícia. Um estilo policial é representado pela proporção de
resultados diferentes em situações semelhantes. Se os resultados são descritos de modo dicotômico nessas
formulações corno coação e não coação, então o estilo representa um coeficiente de coação. Outras
operacionalizações de estilo são possíveis, dependendo de como os resultados são descritos, tais como legalidade,
rudeza e uso da força.

Muitas explicações para as variações nos resultados têm sido descritas na literatura sobre a polícia. Não me
proponho a examiná-las aqui porque nunca foram testadas. Nenhuma análise dos resultados e, por extensão, do
estilo foi submetida a um controle levando em conta as diferenças na natureza das situações encontradas. Alguns
estudos de observação em larga escala permitiriam tais análises, mas iriam requerer que os dados originais fossem
retrabalhados, o que seria muito difícil. A questão a reiterar é que a análise empírica de situações é necessária a fim
de interpretar de forma significativa os dados comparativos sobre os resultados.

CONCLUSÃO

O que a polícia faz rotineiramente em seu dia-a-dia varia substancialmente através do tempo e do espaço. O
trabalho da polícia não é de modo algum o mesmo em todos os lugares. O problema intelectual é isolar diferenças
significativas a despeito da presença de medidas alternativas do trabalho da polícia - atribuições, situações,
resultados - cada um dos quais se apoia sobre um conjunto diferente de evidências.

No meu entender, a determinação mais informativa que se pode fazer sobre o trabalho da polícia comparativamente
é o seguinte:

Qual é o grau de especialização funcional em termos de atribuições?

Qual é a proporção de tempo de trabalho sujeito à orientação do público, por oposição ao sujeito à orientação do
Estado?

Qual é a natureza das situações encontradas pelos oficiais de polícia, com particular atenção à proporção das que
são relacionadas à lei?

De que maneira cada situação é instigada?

Que ações são tomadas pela polícia em situações do mesmo tipo, em que delinear a proporção de situações
envolvendo coação é particularmente importante?

O estudo do trabalho da polícia, obviamente, não é uma tarefa simples. Pode ser simplificado se algumas dessas
dimensões do trabalho policial forem consideradas mais importantes do que outras. Pode-se defender que a análise
comece com um aspecto do trabalho policial em vez de com outro? Acho que sim. As situações são fundamentais
por várias razões. Primeiro, elas são o indicador mais direto do que o trabalho policial envolve. Atribuições, bem
como resultados, não o são, uma vez que seu significado deriva das situações. Em segundo lugar, situações revelam
o campo no qual ocorrem os confrontos entre a polícia e o público. Eles são o caldeirão no qual ocorrem as
interações. Em terceiro lugar, as situações são relacionadas empiricamente com outros aspectos do trabalho policial.
Por exemplo, se uma força policial é administrada racionalmente, informações sobre a natureza e a incidência de
situações afetarão a distribuição de atribuições. Além disso, informações sobre as situações podem ser facilmente
expandidas para incluir o modo de instigação, levando assim à orientação da atividade da polícia pelo público ou
pelo Estado. Em outras palavras, existem razões teóricas para se pensar que as situações são o lugar onde se pode
começar a entender o trabalho da polícia em toda sua complexidade. O próximo passo, pois, é elaborar uma teoria
do trabalho policial com base nas situações. Essa é a tarefa do próximo capítulo.

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