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CCONSELHO EDITORIAL: ‘Ana Stahl Zilles (Unisinos) ‘Angela Palva Dionisio [UFPE] Carlos Alberto Faraco [UFPR] Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP] Henrique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compost José Ribamar Lopes Batista J. (UFPVCTF/LPT] il Rajagopalan [UNICAMP! ‘Maria Marta Pereira Scherre {UFES] Rachel Gazolla de Andrade [PUC-SP] Roberto Mulinacci [Universidade de Bolonhal Roxane Rojo [UNICAMP] Salma Tannus Muchail [PUC-SP] Siro Possent (UNICAMP) Stella Maris Bortori-Ricardo [Un8] ; ' ) AKCELRUD DURAO 0 que é critica RTC Es Projeto arco e capa: Tawa Custo Revi ema Ma ‘CIP-BRASIL. CATALOGAGAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ bossa. Duro, Fabo Abc ‘Ogue &cica rha? / Fabio Acer Duo 10-0 Paul Narkin ‘tnt Paabea Eder 2016 "20:23 cm Teoria era 3) Incl ior ene aN 976.05 75941175, 1. Urata brasil otic, LT I Sé 1630575 coo:a03 eu: 209 Direitos reservados LNANKIN EDITORIAL Rua Tabatinguer,140, con). 603 -Centro (1020-000 Sto Paulo. fone: (111 3106-7567 | 3105-0261 | 3104-7033 home page: wrw.nankin comb ‘emai nankingnankin.com.br PARABOLA EDITORIAL Rua Dr Miro Vicente, 394- Ipiranga (04270-000 Sio Paulo SP pabac (1 1] 5061-9262 | 5061-8075 |fex 11) 2589-8263, home page: wirw:paraboladitrialcom br ‘mai: prabolaaparabolaeditoriaicom br Todos os direitos reservados. Nenhurs parte desta obra pode St reproduc ou aramid por ust ue forma ou quar ros elena ou mecinica includ topic vac ou aru ‘dh em qualquer sstera cubano de dads sam por por ex ds Paribls torLi, |SBN NANKIN EDITORIAL: 976-85-7751-106- {SBN PARABOLA EDITORIAL: 978-85.7934117-5 © do texto: Fabio Akcelrud Durdo, 2016 ‘© daedicdo: Nankn Editorial & Paraboa Eto, Sao Paulo, junho de 2016 Tecnologizagao da critica e desespecificagdo dos objetos oD © ue a, ae on <@ © Como uma pratica discursiva inerentemente coletiva ¢ publica, a critica literéria é influenciada por tendéncias so- ciais mais amplas. Seria de espantar, em uma época na qual o conhe- cimento cientifico ocupa um lugar tio preponderante na reprodugdo da vida, que a critica nao fosse afetada por esse tipo de saber. Com efeito, desde a segunda metade do século XX, ela tem se tornado cada vez mais tecnologizada. Isso nao € dificil de explicar. A ferra- menta fundamental de qualquer tipo de reflexao, incluindo a critica, € 0 conceito. Sem ele, é obviamente impossivel pensar ¢ fazer sentido de qualquer objeto, dentre eles, textos. No entanto, a tecnologizacio da critica ocorre quando os conceitos perdem o seu caréter mais ou ‘menos transparente, quando deixam o ambito da linguagem comum (leitura, personagem, tempo, espaco, narrador, género, romantismo etc), para adquirirem sentidos cada vez mais especificos, depurados de ambiguidades, por um lado, ou, por outro, se articularem em con- juntos inter-relacionados, com a aparéncia de sistema. Outra maneira de dizer a mesma coisa é observar como, até 0 comeco do século XX, grande parte dos estudos literdrios se dava por meio da compa- ragio de obras umas com as outras. Isso podia ocorrer fazendo-se uso de contetidos especificos (objetos, temas, problemas, assuntos etc.), personagens, experiéncias dos autores, hist6rias de publicacao ou re- cepgao, ¢ assim por diante. O comparativismo prescindia assim em grande medida de conceitos exteriores aos textos, ele fazia, por assim dizer, as obras lerem umas as outras. Isso praticamente nao acontece mais hoje. O procedimento interpretativo mais comum nao é 0 de confrontar obras diferentes, mas relaciond-las a arcabougos teéricos das mais diversas espécies € origens. k Uma consequéncia dessa crescente complexidade e sofisticagio da critica literéria € a de que cla se transformou em um campo que ¢ um conhecimento amplo daquilo que anteriormente era con- siderado como extraliterério e que permanecia desta maneira fora e 94 que é cattcalterara? do campo de visio do critico, Nao é apenas 0 caso de o profissional da drea hoje estar razoavelmente familiarizado com outras modali- dades ficcionais, como o cinema, o teatro ou a internet. Para poder exercer uma critica contundente, é muito recomendavel que ele seja competente em uma ou mais das teoras capazes de trazer inteligib Tidade aos textos. Vale notar que & propria literatura responde a esse estado de coisas, seja incorporando a elaboracao conceitual, fazendo da teoria um material ficcional (0 que € positivo), seja adequando-se de antemao as preocupacées de uma corrente critica (0 que nao é), ‘No primeiro caso, a literatura tenta confrontar a critica com as pré- Prias armas desta, interiorizando um saber a principio gerado para interpreté-la; no segundo, ela se submete a critica em uma simples tentativa de ser aceita ¢ de fazer sucesso. Seja como for, a tecnologizaio do aparato critico ocorreu por meio de um processo complexo, resultado de uma série de fatores tanto inerentemente tedricos quanto de politica intelectual mais am: pla. Para tentar ser didatico, € possivel distinguir duas modalidades de tecnologizagao dos conceitos interpretativos. A primeira se da por meio da relagao da critica com outras dreas das ciéncias huma- nas. Ao dialogar com a histéria, ela percebe (como tentei mostrar an- teriormente) que seu conceito, bem como o da literatura, muda com © tempo. Como vimos, a prépria ideia de grande obra esté ligada a um periodo especifico da constituigio do mundo ocidental e € possi- vel imaginar que nossa época tenha dificuldades para lidar com ela ~ algo que nao seria necessariamente positivo. O desafio aqui € reco- nhecer a mutabilidade extrema da lingua, daquilo que pensamos ser a literatura € da ideia que temos sobre como devemos julgé-ta, sem, no entanto, enfraquecer a agudeza da reflexao. O fato de a literatura em nossa época ser muito diferente de duzentos anos atrés e de que certamente 0 seré em um futuro bastante préximo nao deve levar ao. relativismo. A transitoriedade de nossos conceitos € categorias nao nos exime de nos esforgarmos ao méximo para lidar adequadamente ‘Facnologiiacia de erttica « desemnattiadil mised ail! com eles. Pelo contrério, um conhecimento aprofundado da histéria a tem como implicagio imediata um senso mais agucado de idade para com o presente: se nao existem uma Constante atemporal da literatura, uma substancia ou contetido que Ihe seria es- pecifico, entdo fica evidente 0 quanto a critica responde, para o bem ‘ou para o mal, pela constituigdo de seu objeto. Ao se relacionar com a sociologis apenas de sua funcio social, mas das maneiras com as quais a litera tura vincula-se a sociedade. Na tradicao marxista, ha uma verdadeira a critica conscientiza-se, no poética em torno das formas com que isso pode ocorrer. Para além da imbricacao direta, em certa medida inevitavel, entre cultura ¢ pri- vilégio social, determinada obra pode estar relacionada a uma classe Social especifica, funcionando como uma espécie de porta-voz, ela pode ser concebida como expressando a visdo de mundo de seu autor, ‘sua Wellanschauung, c, consequentemente, sua ideologia. Pode também colocar em cena perspectivas de classes antagénicas; trabalhar simbo- Jicamente contradigées sociais de dificil percepgao e resolugio; orga- nizar, por meio da ficcionalidade, desejos ut6picos de libertagdo da dominacdo, captar, pelo trabalho da imaginagio, sementes do futuro, indicios da direcao na qual a sociedade se move ~ € haveria ainda ‘utras possibilidades. Lim dos modelos mais interessantes de relacdo entre literatura e sociedade (ou base e superestrutura, na terminolo- gia marxista) é oferecido por T. W. Adorno (1903-1969). Trata-se de uma teoria dialética que tenta reconciliar duas nocdes contradit6rias, a de que as obras relevantes séo, a0 mesmo tempo, auténomas, isto € regidas por suas préprias leis internas de composigao ¢ a de que sio significativas socialmente por conterem em si problemas de cunho social. A chave para isso reside em um conceito enfatico de forma, que conteria em si contetidos sociais cristalizados. Para dar um exemplo répido: a ideia de foco narrativo pode ser vista como ligada & emergéncia da categoria de sujeito isolado, diferente de uma voz historicamente IDB) O.que é crtca liters? — II _____——— anterior & ascensio da burguesia, uma voz andnima e coletiva, Ele representaria, portanto, um narrador individualizado, mesmo quando se coloca em 3* pessoa, como no realismo ou naturalismo, O mesmo aconteceria, no polo oposto, com o processo de identificagdo com um personagem, um dos tracos mais marcantes da industria cultural e que resulta em uma atomizagao tanto do leitor quanto do personagem: principal da hist6ria. Como este tiltimo € destacado em relagao aos ‘outros, nao importa o que Ihes aconteca: se o herdi acaba bem, 0 final feliz esté garantido, independentemente de quio terrivel ele possa ser para os personagens secundérios ¢ figurantes. Em suma, trata-se de categorias narrativas com muito a dizer sobre a sociedade que as criou ‘eas utiliza e que as obras de valor problematizaro ao maximo. A relagao da critica com a psicanalise € complexa ¢ ha uma série de pontos de contato tensio que tém sido explorados em uma his- téria de enriquecimento miituo € de desentendimentos. Isso fica evi- dente quando se percebe que a psicandlise tornou-se no século XX um material ficcional importante € que, por outro lado, muitos dos textos de Sigmund Freud (1856-1939) prestam-se a uma leitura “literdria", ou seja, que procura identificar neles algo mais do que contetido concei- tual. Como o cerne da psicanilise reside na descoberta do incons- ciente, a maneira mais comum de se fazer critica psicanalitica tem sido abordar determinada obra a partir de sua fungao psiquica para o autor. No processo de composicio, a obra pode materializar desejos ou ser 0 veiculo de gratificagdes inconscientes. Eo mesmo € vilido para o Ambito da recepgio: justamente por ser um todo ordenado, submeti- do a principios proprios de estruturacdo, o texto litersrio seria capaz de organizar os afetos, os impulsos ou as pulsdes que, caso contra- rio, permaneceriam difusas € vagas para o leitor. Mais interessante — mais dificil — do que psicanalizar autor ou leitor, no entanto, é ten- tar discernir qual seria o inconsciente do préprio texto. Note-se bem, isso no aconteceria como um significado oculto a ser desvelado pelo Tecnologizagio da critica e desespecificacio dos objetos 97 intérprete, mas como uma pritica de leitura que colocasse em ato as leis de funcionamento do inconsciente. O texto literdrio apresentaria, assim, homologias com 0 sonho € o chiste, por exemplo, e a tarefa do critico seria formalizar os procedimentos comuns a eles (condensacio € deslocamento, primazia do significante, ‘atos falhos" narrativos etc.) sem perder aquilo que seria uma especificidade da literatura Por fim, a relacdo com a filosofia é, 20 mesmo tempo, a mais dente ¢ a mais problemtica de todas. Isso se deve primeiramente a0 fato de que a reflexio sobre a arte, a estética, € um dos campos in- ternos da filosofia, A literatura est dentro da filosofia porque poucos foram os fil6sofos que nao tiveram nada a dizer sobre a arte. Para mui- tos deles, a literatura ocupou um lugar central na formulacio de seu Pensamento, Mas a literatura também esta fora da filosofia, porque a filosofia a utiliza como alavanca ou estopim para a reflexio sobre pro- blemas da tradicao filos6fica como a natureza do ser (ontologia), do conhecimento (cpistemologia), da estruturagao do pensamento (6g! 2), da transcendéncia (metafisica), e da vida justa (ética e moral), O mesmo acontece do outro lado da relagao, pois por mais que a critica literdria ambicione ser imanente ¢ nao impor a obra categorias que he Sejam estranhas, € impossivel enunciar algo de coerente sobre a litera- __tura sem algum sistema subjacente de nogdes sobre o que sio a auto- fia, a imaginacio, a ficcionalidade, o sentido, a composicao ete. E, no ‘entanto, isso nao significa que a critica possa simplesmente apoiar-se em alguma filosofia particular para interpretar obras literérias. Se nao houver, no confronto com o texto, algum distanciamento em relagao, postulados pré-formados, cla converte-se em um simples ‘exemplo. A segunda modalidade de tecnologizagio da critica nao surgi a Partir do didlogo com outras disciplinas, mas de um desenvolvimen- {0 interno da questio a respeito do literério. Quem hoje comeca a estudar sistematicamente a literatura nao tarda a se deparar com a _ @xisténcia das chamadas “correntes criticas". las tém sido objeto de 90 Bie cxtica ters? discusses extensissimas ¢ 56 poderao ser abordadas aqui da maneira mais superficial, Para muitos, a moderna critica literdria comega com 0 formalismo russo, um movimento que floresceu no comego do sécu- Jo passado e que durou apenas algumas décadas, tendo sido sufocado nos anos 1930 pela censura stalinista. O ponto central dessa escola interpretativa reside em um deslocamento da questao critica: diferen- temente do que se acreditava até entio, os formalistas defendiam que oestudo da literatura nao deveria estar focado nas intengdes do autor, nem no efeito que seria gerado no leitor. E nem mesmo os contetdos especificos das obras deveriam ser 0 objeto central de investigagao. Seria necessario descobrir 0 que seria o literdrio na literatura, a sua literariedade. Para Viktor Shklovsky (1893-1984), ela residiria na diferenga em relagdo a linguagem cotidiana. Esta tiltima tenderia ao automa- tismo € ao apagamento da materialidade da lingua, que se tornaria transparente no ato da comunicagio. A literatura, pelo contrério, pro- moveria o estranhamento, a desfamiliarizagao da lingua, deixando de ser um meio para converter-se em um fim, A literariedade, entendida assim como uma oposigdo constitutiva entre a literatura e a lingua co- ‘mum, seria dinémica. Assim que determinado traco “estranhador" da literatura fosse absorvido pela linguagem do dia a dia, esta manifesta- Gao literdria deixaria de sé-lo e abriria caminho para algo de diferente Um desenvolvimento posterior reformulou essa ideia e passou a consi- derar que cada obra traria dentro de si diversas camadas ou estratos; a diferenca residiria nao apenas na oposicao entre literatura ¢ linguagem comum, mas entre elementos do proprio texto, Desa maneira, deter- minado artefato poderia continuar a gerar estranhamento, porque sua absorgdo € automatizagio mobilizaria apenas algumas de suas partes Fxsa énfase na diferenga, no fato de que ndo haveria nenhuma caracteristica intrinseca, nenhuma substéncia subjacente & literatura, € 0 elemento de ligagao do formalismo russo com o estruturalismo. Seu postulado fundamental € o da linguistica de Ferdinand de Saussure ‘Tecnokigtzacso da crflic'e desespecificacio dos objetas 49) (1857-1913), segundo o qual, na lingua, nio hé sendo oposicdes entre seus elementos constituintes. O fonema /pI s6 € Ip/, por nao ser /by, /t, /A/, ou nenhum outro. Em outras palavras, a identidade de cada item ‘corre como uma fungao da diferenga em relacgao a todos os demais. A critica estruturalista, portanto, ao invés de preocupar-se com conteti- dos particulares do texto, procura segmenté-lo em unidades minimas encontrar as regras de suas articulagdes. O texto literdrio agora passa a ser concebido como um sistema de combinacoes internas que, no entanto, pode se relacionar com outros sistemas, Com efeito, esse tipo de abordagem pode ser aplicado a qualquer pratica significante, desde atividades propriamente linguisticas, como o. jornal ou a telenovela, até outras priticas culturais, que, uma vez transformadas em signos, €m jogo de oposigdes, tornam-se objetos de andlise. Os exemplos vio desde a moda concebida como ‘sistema, passando pelos habitos alimen- tares de determinado grupo (ou seja, as combinagdes de gosto permiti- das ¢ evitadas), até signos os mais inusitados, como as posturas corpo- rais e seu significado, que variam segundo as sociedades e mesmo faixa etéria ou género sexual. A partir disso, j4 & possivel perceber como 0 estruturalismo € avesso a uma concepgao forte de autoria, pois, embora haja um agente que organiza o material narrativo, ele, por definigao, nao teré controle sobre o funcionamento do sistema. © pés-estruturalismo € um nome muito frouxo que se dé as ‘obras de um conjunto de pensadores que, dependendo do angulo, tém mais em desacordo do que em comum. Em certa medida, a cri- tica pés-estruturalista confunde-se com a pés-moderna. A mane mais didética de concebé-la é por meio de uma exacerbagao da légica estruturalista. O estruturalismo baseava-se em uma dinamica oposi- ional de elementos, que, no entanto, ocorria segundo regras com- Posicionais bem estabelecidas. O P6s-estruturalismo mantém a falta de centro da nogao estruturalista de sistema, mas recusa-se a aceitar ualquer espécie de limitacdo ao jogo textual, que agora surge como 100 © que e critica litersra? incontenivel, ilimitavel por qualquer aparato teGrico restritivo. Toda © qualquer espécie de elemento enriquecedor de sentido passa a ser bem-vindo. Citagdes de estilos, referéncias intertextuais, colagens, montagens, parddias, 0 nonsense, 0 acaso, a indeterminagao, o jogo: estas sio apenas algumas das estratégias composicionais favorecidas por uma estética que nega qualiuer representacao de profundidade em distingoes como contetido ¢ forma, sentido aparente ¢ oculto, ou, no limite, verdade falsidade. A desconstrugo também surgiu no seio do estruturalismo e fre- quentemente é considerada como uma critica pés-estruturalista, Seu pressuposto de base € 0 de que o pensamento filosdfico © a metaff- sica ocidental formaram-se através de um processo de favorecimento de uma série de termos que excluem seus opostos. A presenga, 0 oral, © central, 0 masculino, 0 falo, o branco teriam primazia em relagao & auséncia, ao escrito, a0 marginal, ao feminino, ao himen, ao negro etc — a série opositiva poderia estender-se quase que infinitamente, Para Jacques Derrida (1930-2004), 0 fundador da desconstrugdo, mesmo o estruturalismo trabalhava com alguma espécie de centro quando pos- tulava a reducao de textos a uma oposicao bindria de base. Grosso modo, a critica desconstrutivista comecaré procurando identificar qual o jogo de oposigdes na matha textual para detectar aquilo que é recalcado, qual 0 nao dito da obra. A engenhosidade interpretativa vem no gesto de mostrar que o excluido nao é simplesmente ausente, mas € na rea- lidade uma condigéo de possibilidade da prépria oposicao de que faz parte. Por exemplo: em Plato, a escrita € vista como algo subordinaco, inferior & imediaticidade da fala; cla € inficl, porque nao esté sujeita a presenga do autor, a espontaneidade do falante. Apés uma cuidadosa leitura, no entanto, percebe-se ser impossivel descrever a fala sem uti- lizar metéforas da escrita, sem fazer uso de estratégias de composigio préprias & escrita. Haveria, portanto, uma arquiescrita controlando a propria oposicao entre fala e escrita. ‘Tecnologizacio da critica e desespecificacdo dos objetos 100 Uma posigio radicalmente diferente ¢ oferecida pela estética da recepgao. Seu postulado central € 0 de que a obra litersria nao existe como um objeto isolado em si, mas precisa do leitor para poder vir a ser. Em outras palavras: néo ha texto sem leitura. Esta, Por sua vez, nao € algo passivo, uma simples decodificagao de sentidos jé inscritos no objeto; pelo contrério, ela tem um papel constitutivo. Ha duas ideias importantes que podem ser levadas em consideracdo aqui. A primeira é ade que as obras literdrias so, por definicao, lacunares, Na experiéncia concreta de leitura, 0 leitor sera sempre obrigado a preencher vazios de toda espécie, nao apenas através de um trabalho imaginativo (pre- enchendo eventos nao mencionados na acio, construindo a atmosfera, matcrializando personagens), como também tendo de decidir questdes basicas de linguagem. A ironia, por exemplo, s6 pode ser ativada por ‘uma suspeita do leitor, por definigio, ela nao pode se assumir como tal. A segunda ideia diz respeito aquilo que o leitor traz para 0 contato com a obra literdria, $6 0 fato de vocé saber que o texto que tem em mios pertence a literatura j4 € significante para a sua compreensio. Sempre existiré, portanto, um horizonte de expectativas antecedendo © encontro com o texto, Tal horizonte, € claro, variaré historicamente, desde o primeiro, dentro do qual o autor se inseria, até o atual, Ainda ue seja plenamente exequivel reconstruir historicamente um horizon- te de expectativas do passado, ¢ impossivel abstrai-lo. A imagem é ade- quada: nao importa o quanto voce avance, o horizonte estaré sempre a sua frente, englobando-o. Nas altimas décadas, principalmente nos Estados Unidos, surgi- ram diversas vertentes te6ricas que trouxeram consigo uma preocupa- ‘40 abertamente politica, Para muitos, a critica tem deixado de ser sim- plesmente um discurso que visa & explicagio e a elucidacao de obras especificas, para se tornar parte de uma plataforma mais ampla de rei- vindicagdes de direitos. No caso da critica feminista, sua {unc3o € menos se constituir como um campo de estudos do que serum veiculo 102 Oqueé critica iteraria? para a conscientizagao da opressio de género. A critica feminista relé toda a hist6ria da literatura como relacionada ao dominio do patriarca- lismo. Isso pode se manifestar, por exemplo, em uma limitagao da pre: senga de escritoras no canon literario; na criagao de personagens femi- ninas que se adequam aos esteredtipos de bom comportamento; ou na primazia de valores supostamente masculinos como a competitividade ea rivalidade. Com efeito, uma vez que a oposicao homem x mulher converte-se em instrumento heuristico, toda uma série de contrastes ‘vem & tona, envolvendo os mais diversos aspectos do texto literdrio, desde a forma com que os enredos ou versos sao construidos, até os efeitos gerados nos leitores. Ao centrar seu foco na questdo dos géne- ros sexuais, 0 feminismo descortina um novo horizonte critico, que jeratura como um todo. conduz a uma rearticulagio da Esse gesto de recortar uma problemstica determinada ¢ usé-la para reestruturar 0 passado ¢ avaliar o presente ocorreu nos Estados Unidos em vérios outros tipos de discurso, que, por falta de um ter- mo mais apropriado, podem ser chamados de eriticas de minorias Os Black Studies, ou estudos de negritude, investigam como as relagdes raciais desempenham um papel importante, muitas vezes es truturador, na literatura ocidental. No que concerne & representacao dos negros, eles sio normalmente apagados em um universal sublimi- narmente proposto como branco. Quando de fato aparecem, sempre ‘ocupam uma posigio subalterna, ou tém associada a si uma série de pré-conceitos formados socialmente (como os de preguiga, ineficién. ia, burrice, ou sexualidade extremada). J4 para a critica queer’, fruto da militincia gay e lésbica, a tarefa interpretativa decisiva é localizar nos textos consagrados do canon impulsos sexuais latentes com o fim de questionar a normatividade sexual. Assim como para uma parte do feminismo ¢ para os estudos de negritude, os criticos queer concebern * “Queer” € um termo inglés pejorativo para “homosexual” ou alguém com sexualidade des -viante ou comportamento perverse Tecnologizagao da citca e desespecificacio dos objetos 103, a identidade, no caso, a sexual, como algo construfdo. Foi apenas no século XIX que 0 conceito de homossexual surgiu como algo defini- dor daquilo que um individuo é. Ao invés de algo fixo, a sexualidade teria algo de cadtico € seus objetos poderiam ser miiltiplos No caso da critica pés-colonial, trata-se menos de abrir uma nova via, um novo caminho interpretativo no interior de textos con- sagrados, do que descentrar a cultura ocidental e seus valores. Uma perspectiva pés-colonial da cultura mostra que as obras literdrias nao so veiculos representacionais inocentes, mas que, pelo contrério, participam da dominacao do Ocidente sobre o resto do mundo, Um caso representativo € 0 do orientalismo, O termo pode ter ao menos trés sentidos: um longo periodo de interagao entre Europa ¢ Asia, © estudo académico das linguas € culturas orientais, que se inicia no comeco do século XIX; a série de esterestipos das pessoas da Tegio de uma forma ou de outra postos em cena por escritores € intelectuais curopeus. O interessante € perceber que os trés fend- menos vao juntos na construcio do orientalismo como um objeto, um Fecorte especifico da realidade, uma abstracdo concreta, por assim dizer, que traz consigo relagées de poder e de dominacio. A critica vive hoje um momento de extrema riqueza. Além de todas essas vertentes mencionadas até agora, ha ainda varias outras que se orientam por contetidos ou tematicas determinadas ¢ que ge- falmente so caracterizadas como ‘estudos", Exemplos incluiriam os estudos ut6picos ou estudos de trauma, mas até mesmo outros cam- pos de estudos podem converter-se em objeto da critica, como media studies ou legal studies etc. E interessante perceber aqui a facilidade com ‘ule, nos Estados Unidos, qualquer questo pode se cristalizar em um ‘campo de estudos, Sem diivida, a descrigo oferecida aqui das escolas exilicas € extremamente superficial. Nas "Referéncias’, vocé encon- {yard leituras recomendadas para o aprofundamento do estudo dos movimentos interpretativos neste comeco de século. No entanto, para VOR que critica ineraria? os fins deste livro, mais importante do que caracterizar essas diversas correntes tedricas é chamar a atengao para o surgimento de um pro- blema novo no ambito dos estudos literérios. Trata-se de uma divisiio que vem se consolidando, muitas vezes sem que as pessoas se deem conta disso, entre a critica propriamente dita ¢ a teoria literdria, Para dar um exemplo significativo: no mindo anglo-saxio, as antologias da editora Norton sio das mais populares e respeitadas, sendo adota- das tanto por escolas quanto por universidades. Em 2001, foi publica- do um volume dedicado & teoria € & critica. Aqui € curioso ver todo aqucle aparato textual normalmente empregado para o tratamento de obras literérias ~ notas introdutérias e de rodapé, biografia e biblio- grafia — ser utilizado para abordar criticos. Mais revelador do que isso, porém, € a auséncia do termo literdrio no titulo, pois a antologia chama-se Norton Antholody of Theory and Criticism. Ao constituir-se como um campo préprio, a critica passou a adquirir uma especificidade propria, até mesmo uma autossuficién- ia, que com facilidade a distancia da literatura, sem que no entanto se confunda com a filosofia. No limite, pode até mesmo haver uma animosidade ou rivalidade entre as duas, quando, por exemplo, a li- teratura é caracterizada pela teoria como puro instrumento de domi- nacio de classe, ou de perpetuagao da opressao de género, raga ou sexualidade normativa. Com efeito, varias das abordagens mencionadas acima tém uma postura antagonistica para com a literatura; elas lidam com o canon literdrio como se ele devesse ser denunciado. E a acusagao se estende & critica literdria em seu sentido estrito, pois ao se preocupar exclusiva- mente com obras determinadas, ela pode ser atacada por nao ter uma autoconsciéncia de sua prépria pratica interpretativa e de, consequen- temente, compactuar com o business das letras, Estabelece-se, assim, um ‘campo de tensdo, que se reflete até mesmo em uma nova divisio de trabalho do profissional do ramo: por um lado, o te6rico, um produtor Tecnologizacio da critica e desespecificagio dos objetos 105 — — de enunciados gerais e extrapoliveis aos mais diversos fendmenos da cultura, que faz uso de aparatos conceituais sofisticados e se volta para quest6es arrojadas, mas que € incapaz de interpretar um soneto, por outro, 0 critico, intimo das obras literdrias, mas que encontra dificul- dade para ligé-las a conceitos de validade mais ampla. Ha muito a ser c literatura (ow a cultura em geral) apenas como um pretexto para sua icado aqui. F possivel dizer que a teoria usa a propria existéncia, ou seja, Ié-se determinada obra nao para descobrir © que ela tem de interessante a dizer por si mesma, mas como uma oportunidade para a exibicao da teoria, Em outras palavras, 0 texto converte-se em uma desculpa para 0 exercicio te6rico: ele transtor- ma-se em um exenplo da teoria. O processo interpretativo fica assim extremamente comprometido, porque 0 que de fato ocorre neste caso é to somente uma dindmica de reconhecimento na obra de contetidos que jd estdo na teoria. Se a interpretacao pode ser vista como fazendo uma pergunta ao texto, a das teorias seria mondtona, repe- tindo sempre “o que vocé tem a dizer dos meus conceitos?” De uma outra perspectiva, vale a pena atentar para a presenga de uma metéfora industrial subjacente quando se promove a aplicagio de teoria. E como se a literatura fosse uma matéria bruta que preci- sasse do aparato conceitual, das maquinas interpretativas, para poder significa. A obra literdria aparece como algo inerte, absolutamente passivo. No entanto ~ ¢ isso faz 0 problema ficar mais complexo ~ é impossivel retornar aos tempos pré-te6ricos ¢ fingir que a tecnolo- gizagdo da critica nao aconteceu, Em vez de simplesmente lamentar tal estado de coisas, é mais interessante perceber como o impasse de- corrente da oposicao entre teoria e critica literdria deixa entrever 0 que seria 0 ideal de uma critica verdadeiramente forte: submergir nas obras ¢ tentar fazer com que falem a partir de si, sem contudo des- conhecer as teorias que podem fazer com que tal fala seja pungente Sea primazia € dada a obra, a teoria surgira de sua propria demanda. 106 © que é critica literaia? O que se espera do critico hoje, entao, é nada menos do que a con- jungao de dois impulsos a prinefpio incompativeis, a saber, conseguir esquecer-se de toda teoria ao penetrar na obra, mas, a0 mesmo tem: po, lembrar-se dela para trabalhar aquilo que o texto parece exigir. E © interessante é que isso vale também para a teoria ou qualquer forma de metacritica, como no caso deste livro. Sea tecnologizagao da critica encorajou um descolamento da teoria em relagdo & literatura, a ascensio dos estudos culturais impés & critica literéria a necessidade de justificar seu objeto. Os estudos culturais surgiram na Inglaterra do pés-Segunda Guerre com 0 trabalho de criticos de esquerda como Richard Hoggart, E. P. Thompson ¢ Raymond Williams, que viriam a por em xeque a forma com que os estudos litersrios eram concebidos até entio naquele pais. Tradicionalmente, o mundo das letras era habitado por membros da elite ou entao das camadas sociais médias. O en- sino cra restrito €, até 0 século XIX, baseado nos cléssicos greco- -latinos. Diante disso, € possivel ter uma ideia do que representou para esses € outros intelectuais briténicos da época o contato com a Workers’ Educational Association, entidade encarregada da edu- cacao de adultos da classe trabalhadora. O que ficou claro para eles era que a distancia entre seus alunos ¢ Shakespeare, por exemplo, era to grande que simplesmente forgé-los a aprender informagoes sobre o poeta equivaleria a perpetuar, no Ambito da literatura, a do- minagao que ocorria no plano econémico. Se Shakespeare deveria ser pensado como universal, 0s operarios britanicos teriam fortes entraves para alcangar esse universalismo. Ao invés de impor um Universo tao alienante, pensaram Raymond Williams e seus colegas, Por que nao envolver no proceso de ensino o mundo dos préprios trabalhadores? Com isso ficava patente uma concepcao de cultura que nao mais se atrelava aquilo que seria o valor intrinseco da obra, a veiculacao de algo com uma validade geral, mas se associava a ‘Tecnologizacso da critica e desespecificacio dos obietcs 107 Jormas de vida ligadas, sem divida, a disting6es de classe social, mas também de género sexual e raga. Com a institucionalizagao dos estudos culturais nos anos 1960, essa visio passa a adquirir um caréter metodoldgico ¢ uma série de trabalhos comega a ser escrita sobre 0 que seriam a cultura popu- lar, as praticas de individuos concretos em coletividades especificas Com isso, questionava-se também uma divisio disciplinar que sec- cionava a vida em areas estanques, como por exemplo a psicologia ¢ a sociologia, Ocorre entdo uma multiplicagao dos objetos de estudo, pois doravante qualquer fendmeno de significagio que faca sentido dentro de um contexto de uma experiéncia de grupo pode ser um material para a andlise, desde uma festa popular ou uma procissio religiosa, até telenovela ou uma maneira peculiar de se vestir. Para investigar esses objetos, € possivel recorrer a todo o arsenal da teo- ria literéria. Com efeito, fica dificil pensar o que nao se prestaria a0 escrutinio dos estudos culturais, uma vez que mesmo os artefatos mais massificados como a Disney, a Barbie ou a Coca-Cola podem ser pesquisados como fazendo parte da cultura vivida de milhdes de pessoas, nem que seja para mostrar como elas fazem uso deles de uma maneira idiossincratica ou mesmo transgressora. Isso cria um impasse para a critica literéria, que se vé forcada a delimitar ¢ a legitimar 0 objeto que a define. O que seria entao a literatura? Em que medida ela seria diferente de outras producdes sociais de linguagem, a ponto de querer manter-se & parte do resto? Essas nao so perguntas faceis de responder. Em relagio 8 primeira, € interessante notar que mesmo a caracterizac3o mais ortodoxa e tradicionalista da literatura € obrigada a incluir artefatos que, a rigor, também sio, ou foram, extraliterérios. Exemplos comuns, ¢ absoluta- mente canénicos, seriam 0 drama, a epistola ¢ 0 sermao, bem como a oratéria em geral. Apenas para levar ao extremo 0 argumento, seria até possfvel dizer que as pecas de Shakespeare como livros seriam VOB O que é critica literaria? necessariamente inferiores as suas produgdes teatrais, Hoje em dia, porém, os casos se multiplicam: a revista em quadrinhos ou a graphic novel seriam consideradas literatura? E a cang3o popular? E o que di zer do roteiro de cinema e do blog? Mas talvez a segunda pergunta ajude na resposta da primeira e a literatura, ao invés de ser definida por uma substancia, possa ser caracterizada por seu valor. Essa € uma questdo fulcral e urgente, da qual a critica literéria nao pode nao se ocupar. Seu esquecimento leva a um funcionamento burocratico da literatura, na melhor das hipsteses, ¢ puramente mer- cadolégico, na pior. Se, por um lado, € hoje impossivel defender uma universalidade absoluta dos artefatos literérios, pois sempre serd pos- sivel mostrar que determinado texto exclui (ou até mesmo oprime) um grupo especifico, por outro é inegavel que grandes obras deram ensejo a criticas fascinantes, foram 0 estopim de boa parte do que melhor se pensou nos tiltimos dois séculos. O caso da psicanilise, que teria sido inconcebivel sem Séfocles e sem Shakespeare, é apenas um dentre muitos outros. Também € dificil afastar a ideia de que os textos literdrios que valem a pena possuem um grau de sofisticagio linguistica, de complexidade representacional, ausente em outras ma- nifestacées narrativas. Nao se trata aqui simplesmente de uma l6gica matematica que organizaria uma estrutura intrincada, mas de uma autoconsciéncia da obra enquanto tal, que por vezes pode chegar a antecipar aquilo que vocé est pensando sobre ela. Porém ha mais. nada impede que objetos de linguagem oriundos das mais diversas praticas sociais possam ser incorporados ao corpus literério caso mos: trem-se interessantes o suficiente Seja como for, para que tudo isso acontega, necessério que a critica intervenha = e no fundo ela deve ser grata aos antagonistas dos estudos culturais por obrigé-la a tomar posicio, a assumir certa precariedade da literatura ¢ a refletir criticamente sobre isso. ‘Tecnologizacio da crftica e desespecificacso dos objetes 909)

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