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Faculdade de Direito
Ferreira Leite
RELATÓRIO DE CRIMINOLOGIA
Introdução……………………………………………………………...1
1.A Convenção de Istambul e o crime de violação……………………3
1.1Evolução histórica………………………………………………5
1.2 O bem jurídico protegido……………………………………...10
Conclusões……………………………………………………………35
Referências…………………………………………………………...38
RESUMO
Neste relatório temos como enfoque principal a discussão a respeito do tipo penal da
violação do artigo 164 do código penal português, suas alterações no decorrer dos tempos,
sobretudo, após a alteração trazida pela mais recente lei 83/2015, em confronto com os
ditames da Convenção de Istambul. Mesmo após a ratificaçao da Convenção, Portugal
ainda manteve no dispositivo do artigo 164 o constrangimento como elemento
fundamental do tipo penal em questão. Se tentará aqui responder a várias dúvidas para que
se chegue à resposta do questionamento nuclear do presente relatório que é a necessidade
ou não de se substituir o constrangimento, elemento hoje existente no tipo penal da
violação, pelo não consentimento, como prevê a Convenção de Istambul. A previsão do
constrangimento, ao invés da falta de consentimento, como prevê a Convenção de
Istambul, implicaria uma maior desproteção das vítimas do crime de violação? Quais
casos seriam englobados pelo constrangimento previsto no tipo? O constrangimento
poderia abranger todos os casos de não consentimento? Haveria uma zona cinzenta de
casos nos quais o tipo penal da violação, com base no constrangimento, não abarcaria?
Quais seriam as consequências dessa escolha pelo legislador português? Como melhor
poderia se interpretar o artigo 164 de acordo com os ditames da Convenção de Istambul?
Haveria necessidade de nova alteração do artigo 164 para se adequar, verdadeiramente,
aos mandamentos do art.36 da Convenção de Istambul? Essas, dentre outras, são as
questões que iremos nos debruçar neste relatório para construirmos uma resposta plausível
ao questionamento central deste trabalho.
ABSTRACT
The main focus of this report is the discussion about the criminal type of violation of
article 164 of the Portuguese Penal Code, its changes over time, especially after the
amendment brought by the latest law 83/2015, in comparison with the dictates. of the
Istanbul Convention. Even after the ratification of the Convention, Portugal still
maintained in its article 164 the constraint as a fundamental element of the criminal type
in question. We will try to answer a number of questions in order to arrive at the answer to
the nuclear question of this report, which is the need or not to replace the embarrassment,
which is today a part of the criminal type of sexual rape, by non-consent, as provided for
in the Istanbul. Would prediction of embarrassment rather than lack of consent, as
provided for in the Istanbul Convention, imply greater unprotection of victims of rape?
Which cases would be encompassed by the constraint predicted in the type? Could the
embarrassment cover all cases of non-consent? Would there be a gray zone of cases where
the criminal type of rape based on embarrassment would not cover? What would be the
consequences of this choice by the Portuguese legislator? How better could Article 164 be
interpreted in accordance with the dictates of the Istanbul Convention? Would there be a
need for a new amendment to article 164 to truly conform to the commandments of article
36 of the Istanbul Convention? These, among others, are the questions we will address in
this report to build a plausible answer to the central questioning of this paper.
1
INTRODUÇÃO
Neste trabalho procuraremos tomar posição diante da questão que se criou após o
surgimento da Convenção de Istambul de 1 de agosto de 2014, que estabeleceu a
obrigatoriedade de constar no tipo penal de violação, nos ordenamentos jurídicos dos
Estados-partes, o “não consentimento”como elemento fundamental do tipo penal da
violação.
Desta feita é muito bem-vinda a Convenção de Istambul, pois como entende Rita
de Sousa Mota1: “A lei é um discurso de autoridade, com uma particular capacidade para
criar sentidos, reforçando certas visões de mundo e capaz de, definitivamente, moldar o
pensamento coletivo”.
1
SOUSA, Rita Mota. Introdução às Teorias Feministas do direito, Porto: Edições Afrontamento, 2015, p.59.
2
A mentalidade patriarcal existente nas sociedades pelo mundo afora, não apenas na
Europa, implica, não apenas uma legislação menos protetiva das causas das mulheres
como também, interpretações que levam a decisões controvertidas pelos poderes
judiciários no tocante ao crime de violação. Decisões que muitas vezes são aplicadas pelo
mesmo órgão julgador a casos semelhantes, sem falar em decisões escatológicas que não
guardam guarida na melhor interpretação protetora das pessoas vítimas de violação.
Como bem entende Rita Mota Sousa2: “O direito, em muitos de seus aspectos, é
masculino, porque estes experimentam a normatividade androcêntrica.”
Diante desse quadro, não só europeu, mas no mundo afora, o Conselho europeu
entendeu por bem promover a Convenção para Prevenção e o Combate à Violência
Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, designada por Convenção de Istambul,
ratificada por Portugal em 21 de janeiro de 2013, tendo entrado em vigor a 1 de Agosto
de 2014.
Segundo Sottomayor:
2
SOUSA, Rita Mota. Op., cit., pp.8 e 9.
4
Os crimes sexuais ficam, muitas vezes, sem a devida punição, uma vez que existem
vítimas que são desacreditadas, quando não conseguem provar o não consentimento ou a
tentativa de resistência ao ataque sexual. Infelizmente, estes crimes acarretam o peso da
3
SOTTOMAYOR, Maria Clara. Disponível em: > http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0874-55602015000100009< Acesso em 17 de agosto de 2019.
4
Ibidem
5
Convenção de Istambul. Disponível em: >http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?
nid=1878&tabela=leis< Acesso em 24 de setembro de 2019.
5
dificuldade da prova do frozen fright6, medo paralisante que acomete, em muitas casos,
as vítimas, sem qualquer testemunha que o comprove.
É neste contexto que a Convenção exige que sejam tidas em conta, na avaliação do
consentimento, as circunstâncias em que aconteceu o crime, independentemente, de a
vítima ter tentado resistir ou não, ter usado a força ou não. É também prevista a violação
na constância do matrimônio, entre parceiros, ou entre ex-cônjuges, ou ex parceiros. Este
documento prevê, não só disposições relativas a crimes, mas também formas de apoio à
vítima, nomeadamente, a criação de centros de crise (art.25º), com vista a apoiar as
vítimas de crimes sexuais, entre outras medidas de proteção.9
A convenção atua na proteção dos direitos das mulheres e retrata a violação no seu
artigo 36º, que contém a seguinte formulação: “ Violência sexual, incluindo violação” 1 -
As Partes tomarão as medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar a
criminalização das seguintes condutas intencionais: a) a penetração vaginal, anal ou oral
não consentida, de carácter sexual, do corpo de outra pessoa com qualquer parte do corpo
ou com um objecto; b) outros actos de carácter sexual não consentidos com uma pessoa;
c) obrigar outra pessoa a praticar actos de carácter sexual não consentidos com uma
terceira pessoa. 2 - O consentimento deve ser dado voluntariamente, por vontade livre da
pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias envolventes. 3 - As Partes tomarão as
medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar que as disposições do parágrafo
6
SOUSA, Rita Mota. Op., cit., p.73.
7
Ibidem, p.77.
8
Ibidem, p.76
9
APAV, Parecer da APAV sobre as implicações legislativas da Convenção de Istambul do Conselho da
Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, disponível
em:>https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Parecer_da_APAV_relativo_as_implicacoes_legislativas_da_Conv
encao_de_Istambul.pdf< Acesso em 24 de setembro de 2019.
6
Com a leitura da Convenção temos a noção de que esta norma determina que a
incriminação das condutas deve operar tão simplesmente pelo “não consentimento”, por
parte da vítima. Resulta cristalino que o crime de violação não carece, propriamente, de
uma “violência física”, de uma resistência “visível” por parte da vítima, para o seu
preenchimento legal. A norma acrescenta ainda, no seu nº2, que “o consentimento deve
ser dado, voluntariamente, por vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das
circunstâncias envolventes”, o que deve ser apreendido no sentido de que, qualquer outra
forma de consentimento não deve ser valorada.11
O crime de violação está inserido no rol dos crimes sexuais, situando-se no livro II
(Parte Especial), Título I (dos crimes contra as pessoas), Capítulo V (dos crimes contra a
liberdade e autodeterminação sexual), Secção I (crimes contra a liberdade sexual), o que
nem sempre foi assim.
O sujeito passivo desse crime não era a mulher, simplesmente, mas sim, a mulher
solteira e virgem ou a mulher casada, cujo agressor era um desconhecido, jamais o
marido.12
O estudo dessas profundas alterações nas legislações que previam tal crime é
necessário para se demonstrar a positiva mudança que houve no tratamento desse ilícito
penal, sobretudo, para as vítimas.
10
Convenção de Istambul. Op., cit.
11
Convenção de Istambul. Op., cit.
12
BELEZA, Tereza Pizarro. Sem sombra de pecado: o Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código
Penal. Separata de Jornadas de Direito Criminal: Revisão do Código Penal, Lisboa: Centro de Estudos
Judiciários, 1996, pp.12 e 13.
13
Ordenações Afonsinas. Disponível em; > http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg29.htm< . Acesso em
16 de agosto de 2019.
7
Bem mais avançada era a previsão do Código Penal de 1852 14, no qual os crimes
sexuais encontravam-se inseridos no Título IV (dos crimes contra as pessoas), Capítulo
IV, dos crimes contra a honestidade.
O artigo 394º, por sua vez, previa o crime de violação, que seria a cópula ilícita,
cujo agressor usava de meios violentos ou meios fraudulentos de sedução em face de
vítima mulher, não menor e nem honesta, contra a sua vontade, com o intuito de suspender
os seus sentidos ou o conhecimento do crime.
No código penal de 188615, por sua vez, o crime em análise situava-se no art.393º e
sua descrição típica e o bem jurídico protegido não eram diferentes do código predecessor,
ou seja, ainda era um crime tido contra a honestidade da mulher.
Porém, a despeito disso, a condição da vítima foi alargada, já que não se previa
mais a necessidade da mulher ser virgem ou honesta. Conforme se depreende da descrição
típica:
Art. 393. Aquele que tiver cópula ilicita com qualquer mulher, contra
sua vonlade, por meio de violência fisica, de veemente intimidação, ou
de qualquer fraude, que não constitua sedução, ou achando-se a mulher
privada do uso da razão, ou dos sentidos, comete o crime de violação, e
terá a pena de prisão maior celular de dois a oito anos, ou, em
14
Código Penal Português, decreto de 10 de dezembro de 1852. Disponível em:
>https://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1829.pdf< Acesso em 16 de agosto de 2019.
15
Código Penal Português, decreto de 16 de setembro de 1886, Disponível em:
>https://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1274.pdf> Acesso em 16 de agosto de 2019.
8
Nesta descrição típica pode-se dizer que podemos visualizar outros elementos
típicos importantes que denotam uma certa alteração de mentalidade, como, por exemplo,
a intimidação, não constando apenas como obrigatório o uso da força para a configuração
do crime de violação.
No Código Penal Português de 1982 17, o crime de violação era previsto no Título
III (dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade), Capítulo I (dos crimes
contra os fundamentos ético-sociais da vida em sociedade), na Secção II (dos crimes
sexuais), mais, precisamente, no artigo 201º e tinha a seguinte redação:
Art.201º (Violação)
1 - Quem tiver cópula com mulher, por meio de violência, grave ameaça
ou, depois de, para realizar a cópula, a ter tornado inconsciente ou posto
na impossibilidade de resistir ou ainda, pelos mesmos meios, a
constranger a ter cópula com terceiro, será punido com prisão de 2 a 8
anos.18
Uma outra reforma ocorreu em 200721, ampliando ainda mais o crime de violação,
igualando-o para fins de violação à cópula, coito anal ou coito oral (nºs 1 e2, alínea a), a
introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos (nºs 1 e 2 alínea b). Quanto ao
número 2, foi acrescentado à previsão já existente, o abuso de autoridade dependente de
relação familiar, de tutela, ou curatela e o aproveitamento do temor causado, por qualquer
meio não compreendido no número 1, e não apenas por ordem ou ameaça.
Por último, em 2015, com a Lei 83/2015 22, o nº 2 do artigo 164º modificou-se
completamente, deixando, assim, de fazer referência aos casos de abuso de autoridade e
20
Lei 65 de 2 de setembro de 1998 que alterou o Código Penal Português. Disponível em:>
https://dre.pt/web/guest/pesquisa/-/search/566854/details/maximized< Acesso em 17 de agosto de 2019.
21
Reforma do Código Penal Português, Lei 59 de 4 de setembro de 2007. Disponível em:
>http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=930&tabela=leis&so_miolo=<. Acesso em 17
de setembro de 2019.
22
Lei 83 de 5 de agosto de 2015 que alterou o Código Penal Português. Disponível em:
>http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?tabela=leis&nid=2381&pagina=1&ficha=1<.
Acesso em 17 de setembro de 2019.
10
Segundo Inês Ferreira Leite23 o entendimento das variadas formas que o legislador
se dispôs para tutelar a liberdade sexual implica algumas incompreensões e perplexidades,
quase sempre propiciando respostas dogmáticas contraditórias.
Sendo assim:
23
LEITE, Inês Ferreira. A tutela penal da liberdade sexual. Disponível em:> file:///D:/Material
%20Criminologia/Atuteladaliberdadesexual-InsFerreiraLeite.pdf<. Acesso em 18 de setembro de 2019, p.4.
24
Ibidem
25
ALFAIATE, Ana Rita .A relevância penal da sexualidade dos menores. Disponível em: >
file:///C:/Users/worten/Desktop/A%20relevância%20penal%20da%20sexualidade%20dos
%20menores.pdf<. Acesso em 17 de setembro de 2019, p. 87.
11
O artigo 164, n.1 faz parte do rol de tipos penais que tutelam a liberdade sexual
enquanto mera manifestação do sentido de vontade, já o n.2 faz parte dos tipos penais
que tutelam a liberdade sexual enquanto manifestação espontânea de vontade. No
primeiro rol há supressão total da vontade ou superação da expressa declaração de
vontade da vítima. Pode-se inferir assim que no art.164, n.1 há emprego de uso da força
para que a vítima adira ao contato sexual.27
Tal uso da força se dá mediante violência. Este conceito pode ser tido como todo e
qualquer uso da força física apto a diminuir ou eliminar quaisquer resistências que a
vítima pudesse exercer ao acto sexual. (…) 28
Segundo CUNHA apud Inês Ferreira Leite a maioria da jurisprudência acaba por
equiparar à violência a mera ameaça de violência, logo, se a violação se enquadra no
conjunto de tipos que tutelam a liberdade sexual enquanto mera manifestação de sentido
da vontade, no âmbito da violação deverão estar todas as formas de obliteração da
vontade, sendo ou não exercida uma forma de violência concreta sobre a vítima.29
Assim, a ameaça exigida para que se esteja perante o crime de violação deverá ser
de molde a eliminar o sentido da vontade, isto é, deverá ser de tal intensidade que à
vítima não reste outra alternativa que não a ausência de resistências.
26
LEITE, Inês Ferreira. Op., cit., p.9 e 10.
27
Ibidem
28
Ibidem
29
MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA, “Crimes sexuais contra crianças e jovens”, Cuidar
da justiça de crianças e jovens: a função dos juízes sociais: actas do encontro, coordenador científica Maria
Clara Sottomayor, Coimbra, Almedina, 2003, p. 199. Apud LEITE, Inês Ferreira., Op., cit., p21.
30
MOURAZ, José Lopes. Os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual no Código Penal, 4.ª
Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 51. Apud LEITE, Inês Ferreira. Op.,cit., p.21.
12
Desta feita, subsistem nos crimes (…) e de violação (art. 164.º n.º 1) todas as
formas de impor a participação em acto sexual (de relevo) que passem pela superação de
uma vontade contrária expressa pela vítima ou pela prévia supressão da vontade, o que se
tem é a inexistência de qualquer forma de adesão da vontade da vítima à prática do acto
sexual ou seja, pode-se dizer que a vítima é sempre “forçada” a um contacto sexual,
embora a intensidade do contacto sexual seja distinto entre os diversos tipos. 31
Assim, não podemos deixar de concordar que “(…) o bem jurídico a ser tutelado
é a liberdade sexual, pois os comportamentos sexuais devem ser criminalizados quando
limitarem a liberdade sexual da vítima; ou seja, o que se criminaliza é o relacionamento
sexual (em sentido amplo, englobando diversos atos sexuais) que não seja praticado de
acordo com a vontade livre das pessoas envolvidas – podendo assim identificar-se um
(ou vários) agente (s) e uma (ou várias) vítimas”32
Este crime difere da coação sexual, sobretudo, pelos ditos atos sexuais de relevo,
31
LEITE, Inês Ferreira, Op., cit., p.20.
32
CUNHA, Maria da Conceição. “Do dissentimento à falta de capacidade para consentir”, “Combate à
Violência do Género – Da Convenção de Istambul à nova legislação penal”, Universidade Católica Editora,
2016, p.113.
13
caracterizando-se a violação por atos sexuais de relevo mais graves. Na violação temos a
cópula, os coitos anal e oral, a introdução de partes do corpo do agente ou objetos no
corpo da vítima.
Tanto o sujeito ativo, como o sujeito passivo, podem ser uma pessoa de qualquer
gênero e de qualquer idade. Nos casos em que temos vítima menor, a pena prevista para o
crime de violação, em particular, é agravada de um terço nos seus limites mínimo e
máximo, se a vítima for menor de 16 anos, e agravada em metade, se for menor de 14
anos, de acordo com os nºs 6 e 7 do art. 177º.
Neste tipo penal os verbos remetem-se a atos sexuais de relevo mais graves,
diferindo nesse ponto da coação sexual. Segundo Figueiredo Dias: “Ato sexual será
assim todo aquele comportamento que, de um ponto de vista, predominantemente,
objetivo e segundo uma compreensão natural, assume uma natureza, um conteúdo ou um
significado diretamente relacionado com a esfera da sexualidade e com a liberdade de
determinação sexual de quem o sofre ou pratica”.35
Segundo o mesmo autor “há quem acrescente a este elemento objetivo também
33
DIAS, Jorge de Figueiredo, Anotação ao artigo 163º do Código Penal, in “Comentário Conimbricense do
Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131º a 201º”, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, p. 720.
34
BELEZA, Tereza Pizarro. Op., Cit., 1996, p.11
35
DIAS, Jorge de Figueiredo. Op., cit., 2012, p. 718 e 719.
14
Maria do Carmo Dias ordena os atos sexuais em três categorias e por ordem
crescente: “Em primeiro lugar, os menos graves que são os atos de caráter exibicionista e
o contacto de natureza sexual. Depois temos os atos sexuais de relevo, como na coação
sexual e , por último, os atos sexuais de relevo mais grave, como na violação.37
O verbo constranger significa coagir alguém a fazer alguma coisa, deixar de fazê-
la, como também, ter de suportar alguma coisa. Essa alguma coisa no crime de violação é
o ato sexual. O agente constrange a vítima por meio de violência, ameaça grave , tornar a
36
Ibidem, p.718.
37
DIAS, Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva. Notas substantivas sobre crimes contra a liberdade e
autodeterminação sexual in Revista do Ministério Público 136: outubro: dezembro, 2013, p.75.
38
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal Anotado à luz da Constituição da
República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª Edição atualizada, Universidade Católica
Editora, 2015. p. 654.
39
DIAS, Jorge de Figueiredo. Op., cit., p.. 750.
15
Clara Sottomayor41 defende que não se afigura necessária uma luta entre agressor e
vítima, acrescentando que só o facto de o autor do crime praticar um ato sexual de relevo
contra a vontade da vítima, já se revela também um ato violento por si só.
Quanto ao meio típico ameaça grave, como o próprio adjetivo o indica, não se
pode tratar de uma “simples” ameaça, esta deve revestir-se de uma certa gravidade.
Alguns autores entendem que a violência psíquica poderá integrar este meio típico,
outros entendem que no conceito de violência deve caber não apenas a violência física,
40
CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Op., cit., 2016, pp.136 e 137.
41
SOTTOMAYOR, Maria Clara, “o conceito legal de violação: um contributo para a doutrina penalista, A
propósito do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Abril de 2011, in Revista do Ministério
Público, 128: Outubro: Dezembro 2011, p.298.
42
DIAS, Jorge de Figueiredo. Op., cit., 2012, p. 726.
43
CARVALHO, Américo Taipa, Comentário ao artigo 153º do Código Penal, in “Comentário Conimbricense
do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131º a 201º”, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, p. 555.
16
como também a psíquica. A ameaça tem de ser grave, sendo essa gravidade auferida pelo
julgador da causa, que analisará sobre o conteúdo, a medida e a intensidade da ameaça. A
ameaça pode ser empregada contra a vítima ou contra terceiro, cuja vida ou integridade
física seja importante para aquela, como, por exemplo, um filho ou os pais.44
44
DIAS, Jorge de Figueiredo. Op., cit., 2012, p. 727.
45
CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da, “Crimes sexuais contra crianças e jovens”, “Cuidar da justiça
de Crianças e Jovens: a função dos juízes sociais, Coimbra, Almedina, 2003, p.200.
46
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, oacórdão da “sedução mútua. Disponível em:>
>http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6f7c90fb3d34e281802582eb0049ac25?
OpenDocument<Acesso em 28 de setembro de 2019
17
parecem, em muitas das vezes, contos eróticos. Basta que façamos um passeio pela vasta
jurisprudência para inferirmos que os tribunais fazem uma leitura pouco técnica de tais
atos, focando-se numa feição mais sexualizada, mais erotixada dos mesmos.
As expressões utilizadas são quase sempre as mesmas, descrevendo o tribunal
minuciosamente o corpo violado, sendo reduzidas as vítimas, a bocas, línguas, dedos,
seios, ânus, vulvas, vaginas, mamilos, clitóris, pênis eretos, coxas, etc. As vítimas
desaparecem, enquanto, suas partes são ovacionadas numa segunda objetivização sexual,
agora pelo Poder judiciário.47
Tal maneira insensível que o Judiciário trata tal questão faz com que a vítima seja
colocada numa situação de total constrangimento e humilhação, sendo totalmente
impertinente tal relato minucioso que beira a contos eróticos ou até mesmo pornográficos.
Não bastasse a situação estigmatizante de ter sido violada e justificar o porquê de
não ter conseguido se safar, a vítima ainda terá que percorrer a via crucis de ouvir
minúcias de um fato tão doloroso, numa revitimização desnecessária.
Não seria suficiente o relato técnico com base na lei? Os fatos narrados só podem
ser relatados de uma maneira como se estivesse lendo um conto erótico ou pornográfico?
É uma questão que deve permear as discussões a respeito do tratamento do crime de
violação nas decisões judiciais.
O relatório RASI de 2017 assevera que no âmbito da criminalidade grave e
violenta, o crime que mais aumentou no ano passado foi o da violação.48
A conclusão é a do último Relatório de Administração e Segurança Interna (RASI)
disponível e com dados referentes a 2017, ano em que se registaram 408 ocorrências, mais
73 das contabilizadas em 2016 (aumento de quase 22%).
Contudo, é importante não esquecer que as estatísticas para esta tipologia de
violência podem não corresponder à realidade, já que muitos casos não chegam a ser
denunciados. 49
No relatório também podemos inferir que50:
18,7% dos inquéritos iniciados no ano de 2017 foram pelo crime de
violação;
A maioria dos agressores são do sexo masculino, 99, 2% ;
47
VENTURA, Isabel, “A violação na jurisprudência e na doutrina”, “Combate à Violência do Género – Da
Convenção de Istambul à nova legislação penal”, Universidade Católica Editora, 2016, p.47.
48
Relatório Anual da Administração e Segurança Interna do ano de 2017.
49
ANEXO – Gráfico 1 / RASI 2017.
50
ANEXO – Gráficos 2, 3, 4, 5, 6 e 7/ RASI 2017.
18
51
SOUSA, Rita Mota. Introdução às Teorias Feministas do direito, Porto: Edições Afrontamento, 2015,
p.33.
19
alguma resistência da vítima, ignorando-se casos que seriam verdadeiras violações por
obediência ao princípio da tipicidade penal.
Conforme entende Teresa Pizarro Beleza54, o disposto do nº I do artigo 164 revela
uma perspectiva masculina patriarcal da violação que implica a exigência da resistência da
vítima como necessária à comprovação da violação, que deverá existir mediante o
emprego de força física, de grave ameaça e de inibição de resistência da vítima.
Não concordamos assim com essa estrutura do artigo 164 em que se tem no nºI a
regra e no nºII as atenuantes, já que a execução por meio de outro modo diferente do
descrito no nº I implica uma pena bem menor.
Acompanhamos o entendimento de Clara Sottomayor 55 no sentido da inversão do
artigo 164, sendo o inciso nºII a regra e o inciso nº I as agravantes. Ao invés da estrutura
regra + atenuante, teríamos a estrutura agravante + regra. Isto implicaria uma simbologia
diferente na mensagem que o tipo transmite, isto é, haveria a valorização do “não” , com a
agravante da violência em caso de ocorrência. Isto seria positivo em termos de
entendimento jurisprudencial, sem dúvida.
consentimento da vítima.”
Apesar de acompanharmos o entendimento das autoras supracitadas quanto à
necessidade de alteração legislativa do artigo 164 do código penal para se adequar aos
mandamentos da Convenção de Istambul, não podemos, por outro lado, deixar de
mencionar o importante entendimento da professora Inês Ferreira Leite60no sentido de se
interpretar o constrangimento previsto no inciso nº II do artigo 164, inserido pela lei
83/2015, como abrangente da falta de consentimento, podendo assim, conferir uma maior
proteção às vítimas da violação, mesmo não tenho havido ainda uma alteração expressa
do artigo 164.
Incluíriam-se assim os atos não consentidos no inciso nºII, ou seja, o
constrangimento previsto englobaria o não consentimento, quando a vítima disser,
categoricamente, que não quer ter qualquer tipo de ato sexual com o autor. Nesses casos
há a possibilidade de se aproveitar a abertura do dispositivo nº II do artigo e inserir o não
consentimento no conceito mais amplo do constrangimento.
Porém, a dúvida paira quando evidenciamos uma situação em que não se tem um
consentimento expresso, mas também não há um constrangimento, como por exemplo, na
situação em que uma mulher que se embriagou, voluntariamente, numa danceteria e, que
após estar inconsciente, manteve relação sexual com alguém. Poder-se-ia dizer que não
houve consentimento para o ato e nem, tampouco, constrangimento 61. Estaríamos assim
numa zona cinzenta, na qual a violação seria descartada, subsumindo-se a realidade fática
a outros tipos penais, como por exemplo, ao abuso sexual.62
Esta última assertiva nos induz a ratificar o nosso posicionamento no sentido de ser
importante nova alteração do código penal português, para que melhor se aclare a
tipificação do crime de violação sexual, dando a devida importância à falta de
consentimento como elemento fundamental ao tipo penal, para que não se tenha dúvidas
a respeito da importância do “não” expressado pelas vítimas.
Isso conferiria maior proteção às vítimas desse crime tenebroso, como também,
sobretudo, permitiria uma interpretação mais sedimentada e menos discutível por parte
dos magistrados nas suas decisões judiciais, evitando-se assim, o que acontece, em
muitas das vezes, decisões diversas sobre casos semelhantes.
60
Opinião expressada na aula da disciplina de criminologia, ministrada no dia 11 de junho de 2019, na
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
61
Opinião que não adere a professora Inês Ferreira Leite, conforme aula supra citada, já que para a ilustre
autora essa situação estaria também abrangida pelo constrangimento.
62
Acórdão da Relação do Porto, conhecido como da” sedução mútua”. Disponível em:
>http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6f7c90fb3d34e281802582eb0049ac25?
OpenDocument<Acesso em 28 de setembro de 2019.
24
como bem assinalou a professora Inês Ferreira Leite 65, é inegável a margem que se abre a
interpretações judiciais diversas, já que a não explícita inserção do não consentimento no
tipo penal da violação, implica também a diversidade de entendimentos doutrinários, o
que não é salutar para as vítimas, nem, tampouco, para a garantia dos acusados.
Por tudo o que fora dito acima, entendemos, data venia, opiniões ilustres em
contrário, que a escolha do legislador pelo tipo penal do artigo 164, atualmente, existente,
com a tônica no constrangimento, na violência e na grave ameaça, implica uma
mensagem arcaica à sociedade de que deve haver resistência por parte da mulher/criança
vítima para que se configure tal crime, mensagem esta que implica, sobretudo, a
exigência de comprovação de resquícios de violência física na seara da prova, já que sem
estes elementos físicos, os juizes não se sentem à vontade para condenar.
A permanência dessa tônica no tipo da violação simboliza, sem dúvida, apenas
mais um signo das relações de poder existentes na nossa sociedade patriarcal, devendo a
mulher provar, com uma verdadeira luta física, o seu não querer ser violada, pois o seu
simples “não” é insuficiente como aceitável na configuração da violação do seu corpo.
Corpo este considerado como objeto de disponibilidade pelos homens.
Essa disposição do tipo penal do artigo 164 vai de encontro aos ditames da
Convenção de Istambul, já que esta dispõe que a violação é um crime característico da
violência de gênero, isto é, violência que atinge as mulheres, apenas por serem mulheres.
Este tratado nasceu com o intuito, não só de definir os tipos de violência sofridas
pelas mulheres, mas, sobretudo, com o intuito de buscar estabelecer uma harmonização
dos ordenamentos nacionais dos estados-partes que a assinaram no sentido de uma maior
proteção das mulheres, dos seus corpos, de uma ampliação dessa proteção, o que passa,
necessariamente, pela inserção do não consentimento no tipo penal da violação.
De acordo com que prevê a Convenção de Istambul, vários partidos em Portugal
fizeram projetos de lei que adequassem o tipo penal da violação aos seus ditames. É o
que veremos a seguir:
67
Projeto de lei do Bloco de Esquerda nº 1058/XII/4º de 21 de dezembro de 2018. Disponível em:>
http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?
path=6148523063446f764c324679595842774f6a63334e7a637664326c756157357059326c6864476c325958
4d7657456c4a535339305a58683062334d76634770734d5441314f43315953556c4a4c6d527659773d3d&fic
h=pjl1058-XIII.doc&Inline=true< Acesso em 28 de setembro de 2019.
27
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral;
ou
b) A sofrer introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de cinco a dez anos.
A tentativa é punível
Neste projeto também se objetiva a alteração da natureza dos crimes de violação e coação
sexual de semi-públicos a públicos.
Artigo 164.º
[…]
1 – Quem, sem o seu consentimento, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral;
ou
b) A sofrer introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; é punido
com pena de prisão de um a seis anos.
2 - As condutas previstas no número anterior praticadas por meio de violência ou
ameaça grave são punidas com pena de prisão de três a dez anos.
68
Projeto de lei do PS 1155/XII/4º de 8 de março de 2019.Disponível em:
>https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=43523< Acesso
em 28 de setembro de 2019.
28
6. Jurisprudência:
Votação: Unanimidade
Texto integral: s
Decisão: Recurso penal não provido
Actualmente é dominantemente o entendimento de que o exacto sentido jurídico-
penal da expressão cópula é o de introdução completa ou incompleta do órgão
sexual masculino no órgão sexual feminino
II – No que respeita ao conceito de coito relevante para efeitos penais ele traduz
a ideia de penetração do pênis no ânus ou na boca
III- Violência reporta-se à utilização de força física como meio de vencer a
resistência oferecida ou esperada por parte da vítima como reacção à actuação
do agente. Força essa que não tendo que revestir características específicas há-de
revelar-se como meio adequado e idoneo a vencer a resistência real ou
presumível que a vítima oponha à acção
IV- Neste particular afasta-se o entendimento dominante na jurisprudência
que apresenta como suficiente para identificar uma situação de violência
relevante para efeitos da tipificação criminal a inexistência de
consentimento e/ou ele vontade livre da vítima para a prática da cópula.
72
Acórdão do Tribunal da Relaçáo do Porto nº1686/12.9JAPRT.P1, de 24 de setembrode 2014. Disponível
em:>http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/435dca4a6ea099b880257d6b0049c2c
4?OpenDocument&Highlight=0,viola%C3%A7%C3%A3o,sexual< Acesso em 29 de setembro de 2019.
32
Conforme se depreende da análise dos acórdãos citados acima (um breve apanhado
da jurisprudência portuguesa), podemos tentar inferir que a adequação típica dos atos
sexuais perpetrados em todas as decisões analisadas, se deu, tanto no número I, como no
número II, ambos do artigo 164 do Código penal português, com base no constrangimento
da vitima.
No número I do artigo 164 a violação sexual se dá por execução vinculada, ou seja,
a vítima é constrangida a manter relação sexual mediante violência, grave ameaça ou ter
tornado a vítima inconsciente ou impossibilitada de resistir. No número II a violação
sexual se dá mediante o constrangimento, por qualquer outro meio, que não sejam os
previstos no número I, ou seja, de execução livre.
Nesse pequeno apanhado da jurisprudência podemos concluir que para a
configuração do crime de violação há que se ter o constrangimento, sob pena da
adequação típica se estabelecer em outro tipo penal, como o abuso sexual, por exemplo.
Nos casos em que a vítima se encontra em coma ou numa embriaguez total
inconsciente por conta própria, mantendo relações sexuais, a despeito do seu estado
inconsciente, não haverá violação, mas sim, abuso sexual.
Há assim, uma zona em que não se pode adequar, tipicamente, atos sexuais que
não tenham sido consentidos, nem, tampouco, constrangidos à sua realização. Nesse
“limbo”, não há violação.
Podemos resumir a situação da seguinte maneira: a alteração da lei 83/2015 trouxe
33
Art.164
interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, não se faz mister alterar nada do que fora
trazido até agora a esse trabalho, já que as críticas que fizemos, com acompanhamento de
autorizada doutrina, serão ratificadas em relação a essa nova lei.
O legislador português, após 167 anos de criminalização da violação, ainda optou,
mesmo após as recentes alterações pelas leis 83/2015 e 101/2019, a continuar a prever o
constrangimento e a violência, como elementos do tipo, ao invés do simples não
consentimento.
Na nova lei o legislador ainda fala em “vontade cognoscível da vítima”, ou seja,
para que haja violação é preciso que se constranja alguém que dissinta expressamente, ou
que, pelo menos, haja uma reação de vontade contraria ao ato sexual. E quando não há
nem vontade? Quando não há qualquer manifestação de vontade? Nesses casos bem
piores, em termos éticos, não há violação? Manter relações sexuais com alguém em coma
não é violação?
É incompreensível essa relutância do legisladorr nacional em inserir o não
consentimento como elemento do tipo de violação, isto nos faz pensar que o legislador,
em sua maioria, homens, expresse na lei penal toda a sua concepção de superioridade
masculina, não se valorando o simples “não” feminino como sinal bastante para que se
configure o crime de violação.
O crime de violação, conforme já dissemos aqui, anteriormente, expressa uma
norma masculina oculta, norma esta que exige um plus para a configuração do delito. Esse
plus é o constrangimento ou a violência. Tem-se receio do empoderamento do simples
“não” feminino ao inseri-lo como elemento do tipo.
A mantença do constrangimento, ao invés, do não consentimento, sugere uma
disparidade entre a ideia social do que seja violação e o tipo penal, pois em muitos casos,
por exemplo, em que se tem uma verdadeira violação no sentido social, a conduta será
subsumida a outros tipos penais, como o do abuso sexual.
Concluindo, entendemos que apesar da nova lei 101/2019 a mudança não foi
significativa para uma integral adequação à Convenção de Istambul, já que ainda resta um
vazio legal no sentido de se coadunar a concepção social da violação ao sentido do tipo
penal da violação. Haverá, assim, casos em que a conduta criminosa não se adequará aos
incisos do art.164, mesmo existindo uma concepção social de que esta conduta seja uma
verdadeira violação.
Conclusões
35
73
Relatório da Anistia Internacional- Direito a viver livre de violação: Análise das legislações e ações e
constextos na Europa e padrões internacionais de direitos humanos. Segundo o documento, a legislação que
criminaliza a violação continua a ser inadequada e ineficaz na maioria dos países europeus. Foram
analisados os enquadramentos legais dados ao crime de violação em 31 países europeus: os 28 Estados-
membros da União Europeia, assim como Islândia, Noruega e Suíça. A conclusão é que apenas onze países
têm na lei uma definição de violação centrada no conceito de consentimento, o que estaria de acordo com as
recomendações da Convenção de Istambul. Em Portugal, que fez algumas alterações à lei em 2015, já depois
de ter assinado a Convenção de Istambul, reconhece-se que em vez da força possa haver “constrangimento”
a actos sexuais, mas este é um conceito que as autoridades já reconheceram que não é suficiente para incluir
todas as situações em que há ausência de consentimento. Sexo sem consentimento é violação. Este crime
continua sub-denunciado na Europa, devido a uma cultura de culpabilização das vítimas.
Relatório GREVIO (21/01/19) Grupo de peritos em ação contra a violência contra a mulher e a violência
doméstica. Observa que a mudança legislativa não suprimiu definitivamente a exigência do uso da força,
uma vez que a conduta ofensiva é qualificada pelo uso do verbo “constranger”, sendo silente no tocante à
ausência de consentimento. Considerando, assim, que tal formulação legislativa não é suficiente. É levantada
no relatório uma preocupação sobre a falta geral de ênfase na obtenção de condenações em casos de
violência contra as mulheres, incluindo consequência da utilização generalizada de processos suspensos.
Urge as autoridades portuguesas a tomarem medidas para evitar que nos processos judiciais sejam utilizadas
“evidências sem valor probatório relacionadas com o historial sexual e a conduta das vítimas”, como
aconteceu no caso do acórdão da “sedução mútua”.
74
75
SOUSA, Rita Mota. Introdução às Teorias Feministas do direito, Porto: Edições Afrontamento, 2015,
p.33e ss.
37
Referências Bibliográficas
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file:///C:/Users/worten/Desktop/A%20relevância%20penal%20da%20sexualidade%20dos
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38
BELEZA, Tereza Pizarro. Sem sombra de pecado: o Repensar dos Crimes Sexuais na
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_____________________ Consent – It´s as simple as tea: Notas sobre a relevância do
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.
______________________Mulheres, Direito, Crime ou a perplexidade de Cassandra.
Lisboa: AAFDL, 1990.
______________________ A mulher no direito penal, Cadernos Condição Feminina,
nº19, Lisboa: Comissão da condição feminina, 1984.
DIAS, Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva. Notas substantivas sobre crimes
contra a liberdade e autodeterminação sexual in Revista do Ministério Público 136:
outubro: dezembro, 2013, p.75.
LEITE, Inês Ferreira. A tutela penal da liberdade sexual in Revista Portuguesa de Ciência
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39
LARCOMBE, Wendy. Limits of the criminal law for preventing sexual violence in
Henry, Nicola e Powell, Anastasia (Ed.), Preventing sexual violence: interdisciplinary
approaches to overcoming a rape culture, New York: Palgrave, Macmillan, 2014, pp. 64-
68 apud VENTURA, Isabel, “A violação na jurisprudência e na doutrina”, “Combate à
Violência do Género – Da Convenção de Istambul à nova legislação penal”, Universidade
Católica Editora, 2016.
Legislação
Lei 83 de 5 de agosto de 2015 que alterou o Código Penal Português. Disponível em:
>http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?
tabela=leis&nid=2381&pagina=1&ficha=1<. Acesso em 17 de setembro de 2019
Jurisprudência
Acórdão da Relação do Porto, conhecido como da” sedução mútua”. Disponível em:
>http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6f7c90fb3d34e281802
582eb0049ac25?OpenDocument<Acesso
ANEXO
RASI 2017
GRÁFICO 1
Quadro dos valores registados pelas tipologias que integram a criminalidade violenta
e grave
41
Roubo a farmácias 39 44
Roubo a ourivesarias 35 19
507
42
GRÁFICO 2 326
222 341
238 408
335
Outros crimes contra a 430
549
liberdade pessoal
+104 casos; +46,8% 14.246 14.610
Violação de regras de
segurança
+103 casos; +43,3% 23.416
23.173
Violação
+73 casos; +21,8%
Outros crimes contra a
vida
+119 casos; +27,7%
Ameaça e coacção
+364 casos; +2,6%
Ofensa à integridade
física voluntária simples
+243 casos; +1%
GRÁFICO 3
Índice de inquéritos iniciados por tipos de crimes
18,7 %
14,3 %
6,1 %
5,1 %
4,1 %
2,8 %
1,9 % 1,6 % 1,2 % 0,9 %
0,3 % 0,0 % 0,5 %
GRÁFICO 4
Número de detidos 2017
98
3
53
1 34
0 0 0 0 0
0 0 0
0
12
5 6 5
1 1 1 3 1 1
0
GRÁFICO 5
Relação de arguidos e vítimas do crime de violação sexual em Portugal em 2017
GRÁFICO 6
20,3 %
13,6 %
5,9 %
3,4 %
2,5 %
1,7 % 1,7 %
GRÁFICO 7
19,2 %
11,7 % 11,4 %
11,2 %
7,7 %
4,6 % 4,9 %
3,1 %
1,8 %
0,7 % 0,9 %
0,0 %
GRÁFICO 8
37,7 %
31,0 %
17,6 %
11,2 %
1,5 % 1,1 %