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O trabalho da psicologia na luta por direitos coletivos dos povos


indígenas: parecer psicossocial sobre os Xavante de
Marãiwatsédé
BRUNO SIMÕES*

Resumo: A violência política contra diferentes populações indígenas durante a ditadura militar
brasileira ainda é muito desconhecida e pouco difundida. O presente artigo é a apresentação e análise
do parecer técnico psicológico realizado para averiguar os efeitos psicossociais da violência política
contra a população xavante de Marãiwatsédé, no Mato Grosso. No ano de 1966, a população xavante
– 263 pessoas – foi removida para a missão salesiana de São Marcos, localizada a 600 quilômetros
de distância. Dias após a chegada a São Marcos, iniciou-se um processo de intensa mortandade entre
essa população. Em algumas semanas morreram 83 indígenas. Após a realização dos estudos,
conclui-se que a remoção e a morte coletiva produziram uma traumatização psicossocial coletiva
nessa população. A constatação de que há um processo continuado de violência contra os Xavante
de Marãiwatsédé não só enseja o exame desses efeitos como abre para possibilidade de uma
reparação psicossocial coletiva dessa população.
Palavras-chave: ditadura; direitos humanos; violência política; trauma social; genocídio.
The work of psychology in the struggle for collective rights of indigenous peoples: psychosocial
opinion on the Xavante from Marãiwatsédé
Abstract: The political violence against different indigenous populations during the Brazilian
dictatorship is still very unknown and little publicized. The present article is the presentation and
analysis of the psychological technical input carried out to ascertain the psychosocial effects of the
political violence against the Xavante population of Marãinwatsédé in Mato Grosso. Some days
after the removal, a large number of people began to die. In few weeks 83 indigenous people have
died. Once the studies have been concluded, it has been carried out a report which highlighted the
impacts of the political violence in individual levels as well as in collective levels in the Xavante of
Marãiwatsédé population. The findings that there is an ongoing process of violence against the
Xavante of Marãiwatsédé demand not only the examination of these effects but also the possibility
of psychosocial collective amendments for this population.
Key words: dictatorship; human rights; political violence; social trauma; genocide.

*
BRUNO SIMÕES é psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e
doutor em Serviço Social pela mesma instituição. Pós-doutor em psicologia pela Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pós Doutorando e professor convidado do Instituto de Psicologia - Departamento
de Psicologia Social e do Trabalho na Universidade de São Paulo (USP).
A violência de Estado contra diferentes Marãiwatsédé para a missão salesiana de
populações indígenas durante o período da São Marcos, localizada a mais de 600 95
ditadura militar brasileira (1964-1985) quilômetros dali. Dias após a chegada a
ainda é muito desconhecida e pouco São Marcos, iniciou-se um processo de
difundida. No capítulo dedicado às intensa mortandade entre essa população.
populações indígenas do relatório final da Em algumas semanas morreram 83
Comissão Nacional da Verdade, são pessoas. Esse episódio foi objeto da ação
relatados dezenas de casos em que houve realizada pelo Ministério Público do
violação dos direitos humanos desses Estado do Mato Grosso, que exige que o
povos1. Sobre a violência do Estado Estado brasileiro reconheça as graves
brasileiro contra os indígenas o Ministério violações de direito coletivo desse povo.
Público Federal [MPF] (2015) escreve:
Aspectos estruturais e intersubjetivos
Dois importantes desafios a serem da traumatização psicossocial coletiva
enfrentados pelo Estado brasileiro
são o reconhecimento e a reparação Com base nos estudos realizados pela
das graves violações de direitos Psicologia Social sobre os impactos
humanos dos povos indígenas psicossociais da violência política, em
ocorridas durante a ditadura militar suas diferentes expressões, nas populações
(1964-1985), que por décadas e nos indivíduos atingidos, foi
permaneceram ocultas e que ainda desenvolvida a noção de traumatização
não foram suficientemente reveladas. psicossocial coletiva2.
O pouco que já se sabe não deixa A traumatização psicossocial coletiva
margem a dúvidas: o período envolve dois conjuntos de aspectos que
autoritário foi marcado pelo fazem parte de sua construção: aspectos
extermínio, trabalho forçado, tortura, estruturais e aspectos intersubjetivos.
remoções forçadas e intensa
desagregação social de várias etnias, São os que formam as dinâmicas
provocados pela omissão e pela ação estruturantes da traumatização
direta do Estado (MPF, 2015, p. 3). psicossocial coletiva. São eles: trauma
psicossocial, sequencialidade do trauma
O presente artigo é a apresentação e (traumatização) e transgeneracionalidade.
análise do parecer técnico psicológico
realizado para averiguar os efeitos O trauma psicossocial refere-se à análise
psicossociais da violência política contra a dos sintomas psicossociais da violência
população xavante da Terra Indígena política que se expressam em uma
Marãiwatsédé, localizada na região da determinada população, em um grupo ou
Serra do Roncador, no Estado do Mato em indivíduos. Ele é a “cristalização
Grosso, região Centro-Oeste do Brasil. No traumática nas pessoas e nos grupos das
ano de 1966 foi realizada a remoção de relações desumanizadas” (MARTÍN-
263 indivíduos xavante que viviam em BARÓ 1984a). A sequencialidade é um
1 Segundo o relatório da Comissão Nacional da emblemáticos: Kaiowá, Krenak, Nambikwara,
Verdade em seu capítulo sobre os indígenas, as Aikewara, Avá-Canoeiro, Sateré-Mawé, Xavante,
violações de direitos humanos coletivos dos Xokleng e Cinta Larga. O relatório cita ainda mais
indígenas se dividem em duas ordens de ação: 21 povos e aponta que “muitos outros” passaram
usurpação do trabalho indígena, confinamento e por semelhantes processos.
abuso de poder; expulsão, remoção e intrusão de 2 Utilizamos estudos realizados principalmente a
terras indígenas; desagregação social e extermínio. partir da realidade latino-americana, em especial os
Além dessa descrição geral das modalidades de trabalhos de Ignacio Martín-Baró (1942-1989) e os
violação, o documento se detém mais estudos da Psicologia da libertação.
pormenorizadamente em nove casos considerados
processo histórico no qual diferentes como um conjunto de relações de opressão
experiências traumáticas podem ir se nas relações intersubjetivas originadas 96
acumulando em sequência, intensificando nessas desigualdades.
e tornando mais complexo o próprio No caso dos Xavante de Marãiwatsédé, a
processo de traumatização. Já a humilhação social se conjuga com o
transgeracionalidade refere-se aos efeitos faccionalismo xavante na produção do
do trauma psicossocial nas gerações sofrimento psíquico dessa população.
seguintes àquelas que sofreram Relação social e de organização coletiva, o
diretamente com a violência política. Isso faccionalismo xavante corresponde às
indica que a experiência humana se realiza dinâmicas que regem as relações de poder,
em uma inter-relação social que não está de cooperação e de divisão internas ao
limitada somente ao mundo social da
grupo. Maybury-Lewis, 1984).
geração presente, mas que mantêm
vínculos com acontecimentos vividos por 2. O período anterior à remoção e à
gerações anteriores. morte coletiva

São os aspectos que indicam os padrões O processo de traumatização psicossocial


presentes nas relações intersubjetivas e coletiva dos Xavante de Marãiwatsédé
que possibilitam a permanência e o será apresentado em sua sequencialidade,
desenvolvimento da traumatização desde os eventos anteriores à remoção e à
psicossocial coletiva nos grupos. No caso morte coletiva – episódio desencadeador –
em análise, foram elencados três aspectos até a diáspora desse grupo nas quatro
centrais: desenraizamento, desumanização décadas seguintes.
e humilhação social. 2.1 Violência colonial e frentes de
contato
O desenraizamento trata-se de um
processo de expropriação dos espaços, Os registros mais antigos que mencionam
objetos, símbolos e relações sociais a existência das populações xavante são da
significativos para os sujeitos. Ou seja, ele segunda metade do século XVIII, A
retira as referências nas quais o sujeito descoberta de jazidas de ouro na região
ancora sua subjetividade. Centro-Oeste do Brasil levou até lá
colonizadores brancos, bandeirantes
A desumanização é um processo de atraídos pela mineração. Datam desse
discursos e práticas que operam através de período as primeiras notícias de conflitos
relações de violência e opressão. A entre a população xavante e povoadores
desumanização é uma destituição da brancos.
possibilidade de o outro se constituir como
humano, individual e coletivamente. Um Devido à localização mais ao norte do
aspecto central da desumanização é a país, o povo de Marãiwatsédé foi o último
coisificação, ou seja, a subtração dos grupo xavante a ser contatado pelas frentes
valores, características e significados que de expansão e pelos grupos – empresas,
conferem ao outro sua condição de missões religiosas, posseiros e fazendeiros
constituir-se como humano. – que formavam a franja da sociedade a
entrar em contato com as populações
Humilhação social é um processo de xavante: É nesse contexto que, a partir dos
inferiorização, invisibilidade e maus tratos anos 1950, a região de Marãiwatsédé é
entre indivíduos ou grupos, que está invadida.
condicionada à assimetria de poder dentro
de uma sociedade onde há desigualdade
política e econômica. Ela se estabelece
2.2 O tempo da fome e da escravidão mínimo necessário a alguma
sobrevivência –, a população restante de 97
O período entre a “pacificação” dos
Marãiwatsédé foi simplesmente retirada
Xavante de Marãiwatsédé e sua remoção
do local em que vivia.
em 1966 foi de extrema penúria.
Nunca me esqueci de Marãiwatsédé.
Nesse contexto, os remanescentes do A gente embarcou no avião, é choro
grupo de Marãiwatsédé aceitaram muito grande. E chegando muito
transferir-se para uma aldeia próxima triste (Adulto, Marãiwatsédé).
à sede da fazenda onde trabalharam na
derrubada da vegetação nativa para a Eles estavam muito debilitados,
formação de pistas de pouso de avião, porque a distância pra você calcular
de roças e de pastos para a criação de [...]. Foram jogados tudo no avião,
gado, recebendo apenas comida por trazidos pra cá sem terem uns
esse pesado serviço, o que pode ser cuidados higiênicos, vamos falar
caracterizado como um regime de assim; trazidos pra cá e jogados tudo
trabalho análogo ao trabalho escravo. nessa igreja (Adulto, São Marcos).
(OPAN, 2013). A remoção dos Xavante de Marãiwatsédé
É possível encontrar em diferentes é um ato de desumanização agudo porque
documentos relativos ao caso de desconsidera completamente a história e o
Marãiwatsédé inúmeras evidências de que passado dessa população. É como se ela
há uma tentativa de “adaptação” da pudesse ser transferida do lugar onde vivia
população xavante ao modo de trabalho na dispersa entre muitas aldeias – seguindo
agricultura e na construção. Trata-se de um um conjunto de práticas culturais próprias
processo claro de desumanização via – para um novo local desconhecido e sem
trabalho forçado em condições vínculo com a história do povo.
3. Remoção e morte coletiva: episódio O processo de remoção caracteriza um
desencadeador da traumatização violento e profundo desenraizamento
psicossocial coletiva dessa população, arrancada de sua terra
ancestral, com a qual tinha intenso vínculo
A remoção e a morte coletiva são o evento de pertencimento. Esse aspecto é evidente
que marca a mudança total na vida dos nos depoimentos transcritos ao longo deste
Xavante de Marãiwatsédé. Diante do artigo.
extremo sofrimento e das mudanças que
esses acontecimentos desencadeiam, 3.2 O significado da terra para os
entendemos que eles são o ápice do Xavante de Marãiwatsédé
processo de traumatização da população Espaço de vida, natureza e morte da
xavante de Marãiwatsédé. população que ali vivia, a terra de
3.1 Remoção, desumanização e Marãiwatsédé significava a referência
desenraizamento central da existência social dessa
população. Isso pode ser observado a partir
O processo de remoção da população de de duas dimensões inter-relacionadas e
Marãiwatsédé é um passo a mais no que têm o território como fundamento
histórico contínuo de violência política à central: a visão ético espiritual xavante –
qual os Xavante estavam expostos. sua cosmovisão – e a dimensão política.
Desarticulado o conjunto de aldeias
3.2.1 A terra Marãiwatsédé na
daquele território e devidamente
cosmovisão xavante
“pacificados” seus habitantes – na forma
de escravidão, fome, doença e condições A terra de Marãiwatsédé significava o
extremamente adversas para manter o meio ambiente total de onde os Xavante
retiravam seu alimento, suas moradias e organizar politicamente em relação ao
todo o conjunto de objetos e produtos outro. 98
próprios da cultura xavante. Também era o
lugar de ancoragem de sua vida O território é a base de sustentação
imaginário-simbólica, assim como de sua material desse povo e a garantia de sua
memória social. O universo mítico, o autonomia. Expropriados de sua terra, os
conjunto de símbolos, a presença dos Xavante de Marãiwatsédé foram
espíritos e da vida espiritual própria dos brutalmente fragilizados em sua
Xavante encontravam na terra de capacidade de negociação e afirmação
Marãiwatsédé sua “casa. A divisão dos junto aos diferentes grupos com quem se
Xavante em dois clãs, a complexa relacionam.
organização social por faixas etárias, os 3.3 A morte coletiva
rituais que marcam as diferentes fases da
vida, as práticas rituais da coleta e da caça Juntamente com o episódio da remoção da
coletivas, todas essas práticas estão Terra Indígena Marãiwatsédé, outro
diretamente ligadas à relação com a terra conjunto de acontecimentos complementa
de Marãiwatsédé e ao seu manejo. aquilo que estamos considerando como o
episódio desencadeador da traumatização
Há uma relação intrínseca entre os psicossocial coletiva. A morte coletiva de
Xavante de Marãiwatsédé e seu território. 83 pessoas – entre crianças, velhos,
A lembrança relacionada aos rituais mulheres e homens adultos – das 2633 é o
próprios da cultura e à morada de resultado de uma sequência de ações nas
determinados entes sobrenaturais; os quais a humanidade dos Xavante foi sendo
lugares sagrados, habitados pelos espíritos gradativamente subtraída e expropriada
que formam o panteão xavante; os locais simbólica e fisicamente:
de caça e os da abundância de determinada
fruta, peixe ou pássaro; os diferentes Quando fizeram o contato com o
espaços de encontro na aldeia e fora dela; pessoal de São Marcos, veio essa
os lugares onde conseguir o material para epidemia, vamos dizer,
aproximadamente dois a três dias
confecção dos objetos próprios à
quando eles chegaram aqui veio essa
reprodução cultural xavante: todos esses epidemia de caxumba, onde a nossa
espaços são lugares de imbricação entre o defesa epidemiológica, né, vamos
ser humano e a natureza, espaços da dizer, não tínhamos, sabe? Então,
produção da vida xavante como uma teve a morte de muitas pessoas, por
totalidade social, ancorada em valores onde o próprio trator cavou um
ético-espirituais específicos dessa cultura. túmulo onde, segundo eles relatam,
que a maioria das pessoas que vieram
3.2.2 A dimensão política do território a falecer foram jogadas (Adulto, São
Marãiwatsédé Marcos).
Quando os índios chegavam em São
Outro aspecto fundamental do
Marcos, depois de uns dias, tiveram
desenraizamento efetivado pela remoção sarampo e morreram muita gente;
dos Xavante de Marãiwatsédé é a vendo os parente chorando, assim
expropriação de sua subjetividade e de sua tiveram muita emoção, lembrando a
organicidade política. Ao ser retirada de vivência passada no lugar que eles
sua terra ancestral, essa população foi vivia. Os nossos avós, os nossos
expropriada da possibilidade de se parentes. Foi um velório coletivo de
3 Dados oriundos de OPAN – Comissão da
Verdade (2013).
carreta e foi enterrado de uma coletivo em vala comum são o ápice do
coletiva (Adulto, Marãiwatsédé). processo de violência que desencadeou a 99

A chegada na missão São Marcos também traumatização nessa população.


é muito lembrada nos depoimentos. Então, teve a morte de muitas
Divididos entre crianças e adultos, os pessoas, por onde o próprio trator
Xavante foram “adequados” à lógica da cavou um túmulo onde, segundo eles
catequização salesiana, à qual seriam relatam, que a maioria das pessoas
submetidos dali em diante. que vieram a falecer foram jogadas;
não assim sepultados dignamente,
3.3.1 Os enterros em vala comum mas jogados em cima um do outro. E
até o próprio trator na carreta,
Outro aspecto central para compreender a carretão, teria amontoado aquelas
amplitude dos prejuízos psicossociais da pessoas mortas; foram levadas para o
morte coletiva da população de cemitério onde que o trator cavava
Marãiwatsédé é o modo como foram (Adulto, São Marcos).
tratados os corpos das pessoas que
Então, jogaram a gente em São
morreram no período seguinte à remoção. Marcos. Em um dia. As meninas, as
Como nas mais diversas culturas, entre os moças. O buraco onde as mulheres
Xavante a ocasião da morte é cercada de eram enterradas era grande, todas
cuidados e práticas sociais específicas, os juntas. Isso é certo? Tirar a gente pra
ritos funerários ocupar a terra? Por isso, estou
falando. Lá morremos muito (Adulta,
Os Xavante dividem seu grupo em dois Marãiwatsédé).
grandes subgrupos. A cova é preparada por
membros do subgrupo contrário ao do A morte coletiva dessa magnitude não é
morto. O sepultamento é realizado em uma prevista pela cultura xavante. É um
cova única, tradicionalmente coberta com acontecimento que não pode ser elaborado
madeira fina e terra. Há um período de luto por algum aspecto pré-existente na própria
em que a família daquele que morreu cultura:
permanece em resguardo. [O maior impacto negativo na
O luto termina quando um líder do outro cultura] é o enterro coletivo. Não se
pensou em se enterrar como devia ser.
subgrupo vai até a família do morto e
Tem a nascente, o inicio do céu, lá
realiza um ritual em que é oferecido um tem, devia ter, de colocar ritualmente
pão. Nas palavras de um depoente, o pão como deve ser enterrada a pessoa, e
significa “pare de chorar agora, é preciso não foi reconhecido. É impensável
esquecer”. A partir da relação dual de todo isso pra nós. Se alguém contasse aqui,
o universo xavante, é possível dizer que os mais velhos chorariam na nossa
psicologicamente esse ritual opera como presença (Adulto, São Marcos).
um chamado para o reestabelecimento da
3.4 A transgeneracionalidade do
vida cotidiana. Além da retomada do
trauma
equilíbrio entre as duas metades da vida
social xavante, o ritual completo do luto é Uma expressão desse sofrimento que
muito importante para que, dentro da extrapola o campo do indivíduo é a
cosmovisão xavante, o espírito do morto transgeneracionalidade da traumatização.
consiga chegar até a “aldeia dos mortos” A Chama a atenção a mobilização que essas
imagem dos corpos amontoados nos lembranças causam nas pessoas mais
caminhões sem nenhum cuidado aparece novas, que não presenciaram esses
com frequência nos depoimentos. O acontecimentos. Muitos choraram, se
recolhimento dos corpos e seu enterro recusaram a continuar a falar ou se
levantaram e se afastaram durante esses 4.1 A dispersão em muitas aldeias
relatos. 100
Um dos primeiros desdobramentos da
Uma das formas mais expressivas da remoção e da morte coletiva dos Xavante
transgeneracionalidade do trauma ocorre de Marãiwatsédé foi a dispersão do grupo
com as crianças. É visível a insegurança e em muitas aldeias. Impressionadas com o
o medo das crianças em relação aos não número de mortes que estavam ocorrendo,
indígenas. Um caso especificamente é muitas famílias de Marãiwatsédé
emblemático e explicita essa buscaram lugares distantes de São Marcos
transgeneracionalidade da traumatização para viver.
psicossocial coletiva. Em uma das tardes A mudança forçada das tradições em
de entrevista na aldeia de Aopa, um decorrência de intervenção e da violência
indígena que nos acompanhava para traz como consequência maior fragilidade
realizar a tradução caiu em um choro ritual psíquica e dificuldades de auto-
dentro do carro, durante o translado entre organização socioafetiva, facilitando
aldeias. As pessoas que nós havíamos ido processos de desagregação social,
entrevistar naquela tarde eram, entre conflitos intergeracionais e dificuldades de
outros, seus avós, e ele já tinha se sociabilidade de forma geral.
emocionado muito durante a entrevista,
quase permanecendo na aldeia com seus 4.2. O faccionalismo intensificado
parentes. Só resolveu voltar para sua aldeia Como já foi mencionado, o faccionalismo
após realizar uma série de recomendações é um elemento central na compreensão da
aos moradores de Aopa sobre o cuidado e sociedade xavante. Essa característica foi
a saúde de seus avós. O choro ocorreu um fator agravante do sofrimento dos
pouco tempo depois, quando voltávamos indígenas de Marãiwatsédé. Eles foram
desse encontro. Entoando sons lançados sem nenhuma mediação com
característicos, que envolvem a repetição outras facções em um território que já
ritmada de um mesmo som, o indígena estava nas mãos de outro grupo
chorou durante cerca de quinze minutos
ininterruptamente. Algumas horas depois, 4.3 A diáspora
ele comentou comigo que sempre se O conjunto de relatos sobre o período de
emocionava com encontros como aquele quarenta anos de diáspora do povo de
que tivemos com seus avós. Também Marãiwatsédé demonstra que há uma
comentou que os velhos contam muito continuidade que marca todos os
essas histórias e por vezes há longos diferentes momentos e lugares por onde
períodos de choro coletivo no warã – ele passou. Após a morte coletiva de cerca
centro da aldeia –, lembrando essas de um terço dos indígenas de
experiências. Marãiwatsédé, esse grupo passa a ser
4. O período posterior: o faccionalismo marcado pelos outros povos Xavante
intensificado e a humilhação social como aquele que carrega consigo a aura
dessa tragédia coletiva. Eles passam a ser
Como já indicado, uma das características vistos e tratados como “sem-terra”, povo
da traumatização psicossocial coletiva é marcado pelo acontecimento trágico da
sua sequencialidade. Neste item nos expropriação de seu território e pela
deteremos nos principais aspectos dessa mortandade de sua população.
dinâmica e na maneira como se articulam Apesar de essa característica geral estar
na produção da traumatização psicossocial presente em todos os relatos, os diferentes
coletiva dos Xavante. períodos que constituem a diáspora
xavante são bem definidos e destacados para subsidiar relatórios feitos antes da
nos depoimentos ouvidos. Em cada realização de obras de infraestrutura. 101
período lembrado há acontecimentos que
É importante ressaltar a possibilidade de
marcaram a memória social do grupo
elaboração de relatórios e pareceres
naquele momento. Tais acontecimentos se
coletivos, isto é, que sejam realizados a
fixam como símbolos desse período da
partir de uma metodologia participativa e
história coletiva, são sínteses que
da produção direta dos membros afetados.
expressam o sentido do conjunto de
Metodologias como educação popular,
experiências vividas pelo grupo no
pesquisa ação participativa, teatro do
momento indicado. Nesse sentido, são
oprimido, psicodrama, cartografias
fatos que explicitam a importância
psicossociais, entre outras, podem ser
psíquica dessas experiências, na medida
articuladas na produção desses
em que aglutinam aquilo que ficou
documentos.
gravado como um ancoradouro da
identidade xavante de Marãiwatsédé. São Por fim, podemos usar a realização de
os fatos que gravam, na memória social, pareceres – por perícia técnica individual
aspectos socioafetivos que marcam a ou feita em articulação com a coletividade
construção identitária do grupo dali em – na produção de protocolos a serem
diante. seguidos pelo Estado no caso de
intervenções nas terras e no cotidiano das
Conclusão populações afetadas por grandes projetos.

A realização do parecer psicossocial sobre Por fim, é importante ressaltar como


as populações Xavante de Marãiwatsédé é desdobramento da realização desse
um trabalho que concretiza a participação documento a possibilidade de construção
da ciência psicológica no campo dos de uma ação profissional da Psicologia que
direitos humanos coletivos. O Ministério aponte caminhos de superação e reparação
Público Federal, ao solicitar a averiguação dos efeitos oriundos da violência política.
dos impactos psicossociais da violência de Nesse sentido, com base na realização do
Estado contra essas populações, reconhece parecer psicossocial, é possível apontar
a importância dessa participação. duas diretrizes fundamentais em um
processo de reparação psicossocial
Dados da Comissão Nacional da Verdade coletiva.
(2014) indicam que a violência do Estado a) O conjunto de ações deve ser
atingiu inúmeros povos em todo o país. Ou estabelecido a partir do
seja, há muitos casos de violação de reconhecimento dos diferentes
direitos em que a Psicologia pode níveis que os efeitos psicossociais
contribuir, apontando os efeitos podem tomar: individual, familiar,
psicossociais sobre as populações intergrupal e da comunidade como
atingidas. um todo. As ações devem ser
realizadas tendo como foco as
A realização de pareceres como este relato
distintas dimensões dos efeitos
também pode ser levada adiante com o
coletivos.
conjunto de populações tradicionais,
camponesas e demais grupos humanos b) As medidas tomadas devem
atingidos pela violência política, por levar em conta a memória histórica
crimes ambientais e por grandes obras de e coletiva das populações
infraestrutura. Existe ainda a possibilidade reparadas, assim como o conjunto
de realizar estudos de impacto psicossocial de seus conhecimentos tradicionais
e de manejo técnico do mundo. A FAÚNDEZ, Ximena & CORNEJO, Marcela.
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