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PARA QUÊ?
DINALIVRO
CONTENTS
Introdução
1. O sentido da vida
2. O sentido da vida
3. Poderá o propósito de Deus ser a fonte do sentido da vida?
4. O absurdo
5. Felicidade e sentido: dois aspectos da vida boa
6. Despromoção e sentido na vida
Origem dos ensaios
Leitura complementar
Sobre o organizador
INTRODUÇÃO
DESIDÉRIO MURCHO
Quem não conhece a filosofia poderá pensar que procurar o sentido da vida é a tarefa central dos
filósofos. Isto é historicamente falso; na sua maior parte, os filósofos não abordaram o problema do
sentido da vida, e os que o abordaram não fizeram geralmente disso o tema principal das suas
investigações.
O leitor comum poderá igualmente esperar que os filósofos se pronunciem um pouco como gurus,
declarando do alto da sua inacessível montanha qual é o sentido da vida. E a nós, meros mortais,
restar-nos-ia então seguir tais oráculos, ainda que nem os compreendamos muito bem. Esta
concepção resulta talvez da dificuldade em compreender a natureza da filosofia. A filosofia não é
religião, nem uma prática iniciática de vida; ao invés, é o lugar crítico da razão, como por vezes se
diz. Estudar filosofia é aprender a ser crítico, que é precisamente o que os gurus não podem dar-se
ao luxo de permitir aos seus acéfalos discípulos. A ideia de que Platão, por exemplo, era discípulo de
Sócrates, nessa acepção iniciática, é falsa, tal como é falso que Aristóteles tenha sido discípulo de
Platão nessa acepção. Estudaram uns com os outros, sem dúvida, mas porque foram estudantes de
filosofia criticaram, divergiram e discutiram argumentos com os seus professores — e fazer filosofia
é precisamente isso.
A filosofia não é um corpo de conhecimentos que nos baste assimilar acriticamente, mas antes a
actividade crítica de estudar ideias e argumentos minuciosamente, para ver se serão plausíveis ou
não. Por isso, não se encontra nos melhores filósofos um conjunto de instruções esotéricas para dar
sentido às nossas vidas. O que se encontra são estudos cuidadosos de diferentes ideias e
argumentos sobre o problema. Isto não significa que não existam conclusões consensuais, entre os
filósofos actuais, sobre o sentido da vida. Significa apenas que o trabalho filosófico é
fundamentalmente a discussão minuciosa e paciente dessas conclusões e dos argumentos que as
sustentam.
Os ensaios
O estudo contemporâneo do problema filosófico do sentido da vida começa praticamente com o
artigo «O Absurdo» (1971) de Thomas Nagel, incluído nesta antologia. Apesar de haver alguns
artigos anteriores, Nagel mostrou que um filósofo muitíssimo influente podia tratar este tema sem
cair no ridículo e que esse trabalho podia ser publicado numa das mais prestigiadas revistas
académicas de filosofia: The Journal of Philosophy.
O trabalho mais influente sobre o sentido da vida nas últimas décadas do séc. XX, sobretudo nos
EUA, foi o último capítulo do livro Good and Evil (1970), de Richard Taylor, incluído nesta antologia,
publicado quase em simultâneo com o artigo de Nagel. O registo escrito da conferência de Kurt
Baier proferida em 1957 sobre o tema, também incluída nesta antologia, circulava desde há
bastante tempo entre estudantes e professores; este trabalho, contudo, só viria a circular
amplamente a partir de 2000, quando foi publicado na antologia de textos sobre o sentido da vida
organizada por Klemke para a Oxford University Press. Por esta altura, já o problema do sentido da
vida era insistentemente abordado nas revistas académicas, surgindo também cada vez mais livros
inteiramente dedicados ao tema.
Esta antologia põe o leitor em contacto com esses e outros importantes ensaios filosóficos
contemporâneos sobre o sentido da vida. Os ensaios foram dispostos por ordem parcialmente
cronológica e parcialmente temática.
O ensaio de Taylor é o primeiro desta antologia e apresenta uma resposta subjectivista ao
problema do sentido da vida. Esta posição baseia-se na convicção de que, objectivamente, a vida não
tem sentido; contudo, tem sentido para nós desde que sejamos felizes e estejamos imersos na
própria vida. Esta é uma resposta muito comum entre pessoas que não são religiosas e que
desconhecem a bibliografia sobre o tema — em parte, talvez, porque hoje em dia é comum pensar
que «os valores» são relativos ou subjectivos. Será uma surpresa para o leitor descobrir que os
filósofos actuais aceitam quase todos, como observa Levy no último ensaio desta antologia, a tese
objectivista sobre os valores e o sentido da vida, defendida por Susan Wolf (cujo influente artigo se
inclui nesta antologia) e David Wiggins. A noção objectivista de sentido e de valor que está aqui em
causa será explicada depois da apresentação dos restantes artigos desta antologia.
O segundo ensaio da antologia é a referida conferência de Baier, que defende três ideias centrais:
1. A concepção que hoje temos do problema do sentido da vida está fortemente influenciada
pela mundividência medieval judaico-cristã, segundo a qual a vida terrena é vista como
meramente instrumental para a vida depois da morte.
2. A convicção contemporânea de que sem Deus a vida não tem sentido resulta precisamente
de se juntar a descrença na existência de Deus com a concepção medieval de sentido. Mal se
abandona a concepção medieval de sentido, a inexistência de Deus não põe em causa o
sentido da vida. O leitor pode averiguar por si em que medida este diagnóstico de Baier se
aplica ou não às ideias de Taylor.
3. Ao contrário do que é comum pensar por influência da mundividência judaico-cristã, só se
Deus não existir é que a vida pode ter sentido. Baier defende assim uma posição sobre o
sentido da vida antagónica à religião.
O ensaio de Baier oferece ainda um estudo importante sobre a natureza das explicações, para
clarificar a famosa pergunta de Leibniz (1646–1716): por que há algo e não o nada?
A Baier segue-se um artigo de Thaddeus Metz, que procura mostrar que algumas das críticas de
Baier à teoria medieval do sentido da vida, concebida em termos de um propósito divino, são
improcedentes. Contudo, apresenta outras críticas que no seu entender são suficientes para
derrotar qualquer teoria do sentido baseada no propósito divino. Metz apresenta então um novo tipo
de teoria do sentido da vida centrada em Deus, que não padece dos defeitos da teoria medieval do
propósito. A sua conclusão é que este novo tipo de teoria, apesar de ser a mais plausível, apresenta
sérias dificuldades.
O quarto ensaio desta antologia é o referido artigo de Nagel. Na primeira parte, Nagel apresenta
algumas refutações hoje praticamente canónicas de algumas ideias erradas sobre o sentido da vida.
A ideia de que a nossa vida não tem sentido porque somos seres minúsculos, que habitam um
minúsculo planeta num vastíssimo universo, é refutada fazendo notar que se a nossa vida não tem
sentido por sermos pequenos, não se percebe por que razão ganharia sentido se fôssemos
muitíssimo maiores. Nagel refuta também a ideia de que a vida não tem sentido porque somos
efémeros e porque daqui a um milhão de anos ninguém se importará com o que fizermos hoje. Nagel
defende que se a vida não tem realmente sentido, não se percebe como o adquiriria se a nossa
existência fosse eterna; e que se o que hoje fazemos não terá importância daqui a um milhão de
anos, então também não tem importância hoje que não tenha importância daqui a um milhão de
anos.
Na segunda parte do seu ensaio, contudo, Nagel defende que a nossa vida é absurda apesar de
ser subjectivamente valorizada. Nagel considera que a nossa vida é absurda precisamente porque
há uma dessintonia entre o valor que damos à nossa vida, subjectivamente, e o reconhecimento de
que objectivamente a nossa vida não tem tal valor. A posição de Nagel parece depender de uma
concepção anti-objectivista do valor, nomeadamente do valor moral, e essa poderá ser a sua maior
fraqueza.
O quinto ensaio desta antologia, de Susan Wolf, marca uma fronteira importante nas discussões
contemporâneas sobre o sentido da vida. Wolf defende uma concepção objectivista do sentido da
vida, e uma subtil ligação entre a felicidade e o sentido, objectivamente concebido. Sem apresentar
uma concepção objectivista do valor, problema que extravasa o tema do sentido da vida, Wolf
defende que uma vida tem sentido quando consiste na entrega activa a projectos de valor.
O último ensaio desta antologia é também o mais recente. Neil Levy procura resolver um
problema que fica aparentemente em aberto na concepção objectivista de sentido de Wolf e de
outros filósofos. Se a vida tem sentido quando nos entregamos activamente a projectos de valor, o
que acontece à nossa vida quando atingimos os objectivos de tais projectos? Concordando com a
intuição comum, manifestada por Taylor e vivida por John Stuart Mill (1806–1873), de que o sentido
da nossa vida cessa mal os nossos projectos chegam a bom porto, Levy defende a existência de um
certo tipo de projectos que são constitutivamente abertos; a entrega a projectos deste tipo garante
aquilo a que chama o «sentido superlativo».
Mapa de posições
Ter uma noção clara das famílias de posições conceptualmente possíveis quanto ao problema do
sentido da vida é um auxiliar precioso à reflexão. Vejamos um mapa dessas famílias de posições.
Preliminarmente, pode-se defender que se trata apenas de um pseudoproblema, um falso
problema sem qualquer conteúdo real, um mero erro categorial — um pouco como perguntar se as
ideias tristes serão mais ou menos azuis do que as alegres. Deste ponto de vista, o problema do
sentido da vida não pode ser resolvido, mas antes dissolvido. Apesar de esta posição ter sido popular
entre os filósofos influenciados pelo positivismo lógico, foi mais vagamente sugerida do que
realmente defendida explicitamente. 1 Nenhum ensaio desta antologia aborda esta perspectiva
porque hoje nenhum ou quase nenhum filósofo a defende (talvez por ser mais difícil tornar plausível
a ideia de que o problema do sentido da vida é um erro categorial do que admitir que temos uma
concepção razoável do problema e tentar responder-lhe).
Caso se concorde que o sentido da vida não é um erro categorial, pode-se responder afirmativa
ou negativamente à pergunta «Pode uma vida humana ter objectivamente sentido?». A resposta
negativa ou pessimista declara que não; a resposta positiva ou optimista declara que sim.
O pessimista quanto ao sentido objectivo da vida pode evidentemente defender que a vida pode
ter subjectivamente sentido. Aliás, é difícil defender que a vida não pode ter subjectivamente
sentido, desde que nos corra bem. É evidente que muitas coisas têm subjectivamente sentido,
porque nos fazem felizes: a amizade, o amor, um trabalho que nos realiza, as artes, o conhecimento
— e o simples gosto de estar vivo e passear descontraidamente de mãos nos bolsos numa manhã
fria. A questão é saber se estas actividades têm sentido para lá do sentido que têm para nós. O
pessimista declara que não têm. O ensaio de Taylor aqui publicado defende uma perspectiva
subjectivista: só subjectivamente pode a vida ter sentido.
Apesar de ser algo fantasioso, pode-se defender que a vida nem subjectivamente pode ter
sentido. É o caso de Arthur Schopenhauer (1788–1860):
«[…] não temos qualquer prazer na existência excepto quando lutamos por algo — caso em que a distância e
as dificuldades fazem o nosso objectivo parecer algo que nos satisfaria (uma ilusão que desaparece quando
o alcançamos) — ou quando nos entregamos à actividade puramente intelectual, caso em que estamos na
realidade a sair da vida como que para a olharmos a partir do exterior, como espectadores numa peça de
teatro. Mesmo o próprio prazer sensual consiste numa luta contínua e cessa mal o seu objectivo foi atingido.
Sempre que não estamos envolvidos numa ou noutra destas coisas, mas antes damos atenção à própria
existência somos assaltados pela sua ausência de valor e fatuidade e esta é a sensação a que se chama
«tédio». (Schopenhauer, «On the Vanity of Existence», in The Meaning of Life, org. por E. D. Klemke,
Oxford, Oxford University Press, 2000, p. 69)
«Vi tudo o que se faz debaixo do Sol e achei que tudo é ilusão e correr atrás do vento. […] Eu disse em meu
coração: “Vem! Quero fazer-te experimentar a alegria; saboreia a felicidade.” E eis que também isto é
ilusão. Do riso eu disse: “Loucura!”» e da alegria: “Para que serve?”» (Eclesiastes 1: 14, 2: 1,2)
Esta perspectiva caracteriza-se por procurar afastar como ilusório qualquer sentido da vida que
não seja o sentido superlativo que só poderá ser atingido no paraíso. Os filósofos existencialistas
ateus, como Albert Camus (1913–1960) ou Jean-Paul Sartre (1905–1980) parecem aceitar
involuntariamente esta perspectiva; a sua defesa do absurdo intrínseco da vida humana baseia-se no
pressuposto cristão de que nenhum sentido é possível sem um deus que garanta uma vida eterna no
paraíso.
Quem defende que a vida tem objectivamente sentido pode defender uma posição naturalista ou
religiosa. Leão Tolstoi (1828–1910), como se verá na secção seguinte, defende uma posição
religiosa: Deus é a fonte do sentido objectivo da vida. Baier defende que nenhuma posição religiosa
pode conceber um sentido objectivo adequado da nossa vida. Wolf apresenta uma posição
objectivista sem referência a Deus, e Metz procura mostrar que a mais plausível das teorias
religiosas sobre o sentido da vida enfrenta dificuldades talvez insuperáveis.
Feita a apresentação dos ensaios escolhidos para esta antologia e feito o mapa conceptual das
posições possíveis, resta esclarecer um pouco o problema e discutir alguns dos seus aspectos
centrais. É o que faremos no que resta desta introdução. O leitor, contudo, ganha talvez em avançar
já para a leitura dos ensaios, deixando o resto desta introdução para leitura posterior.
«Muito bem, serás mais famoso do que Gogol, Pushkin, Shakespeare, Molière, mais famoso do que todos os
escritores do mundo — e depois?»
E nenhuma resposta absolutamente eu encontrava.
[…]
E isto estava a acontecer-me quando tudo indicava que se devia considerar que eu era um homem
completamente feliz; isto aconteceu-me quando não tinha ainda cinquenta anos. Tinha uma mulher bondosa
e dedicada que eu amava, bons filhos e bens que cresciam sem qualquer esforço da minha parte. Era mais
do que nunca respeitado por amigos e conhecidos, elogiado por estranhos, e podia dizer sem qualquer
ilusão que gozava de uma certa celebridade. (Tolstoi, «Confissão», in Textos e Problemas de Filosofia, org.
Aires Almeida e Desidério Murcho, Lisboa, Plátano, 2006)
Tolstoi tinha todas as condições para se sentir feliz, por ser um romancista prestigiado e por ter
uma vida familiar compensadora, e no entanto levantava o problema do sentido da sua vida. O
mesmo acontece sem dúvida a muitas outras pessoas e estes são os casos filosoficamente
relevantes. Isto porque levantar o problema do sentido da vida quando a vida nos corre mal pode
não ser uma interrogação filosófica genuína; pode ser apenas a expressão da frustração, que
desaparecerá mal voltamos a sentir-nos bem.
O problema filosófico do sentido da vida emerge não quando não damos valor à vida por estarmos
deprimidos ou infelizes, ou porque a vida nos corre mal, mas quando se faz a pergunta radical: «Sou
feliz, mas que sentido tem isso?» Tentemos compreender melhor o que está em causa nesta
pergunta.
Meios e fins
Para compreender o que poderá ser uma vida com sentido é iluminante começar por pensar no que
queremos dizer com «sentido», quando pensamos em actividades tipicamente com ou sem sentido.
Um primeiro significado é o seguinte: dizemos que uma actividade tem sentido, ou faz sentido,
quando é um meio adequado para uma dada finalidade. Por exemplo, faz sentido ir ao supermercado
porque isso é um meio para, entre outras coisas, comprar a comida que queremos. Seria absurdo ou
destituído de sentido dirigirmo-nos a uma sapataria quando queremos comprar comida.
Assim, numa primeira acepção, uma actividade tem ou faz sentido quando é um meio adequado
para uma finalidade. A expressão portuguesa «fazer sentido» usa-se precisamente na acepção de ser
racionalmente defensável ou inteligível: uma actividade não faz sentido quando é um meio
desadequado para a finalidade em vista, como ir à sapataria à procura de comida.
Contudo, esta acepção não capta tudo o que queremos dizer quando dizemos que uma actividade
tem ou não sentido. Isto porque é razoável afirmar que uma dada actividade é um meio adequado
para uma determinada finalidade, ao mesmo tempo que consideramos que a finalidade é, em si,
destituída de sentido. Por exemplo, podemos reconhecer que são adequadas as actividades que
permitem a um casal casar-se debaixo de água, mas considerar que a finalidade de casar debaixo de
água é, em si, destituída de sentido. Analogamente, podemos reconhecer que faz sentido comer e
procurar conforto, porque isso permite ter uma vida melhor — mas a questão de fundo permanece:
qual é a finalidade da vida?
Nesta acepção, a ideia de sentido está ligada à ideia de destino. Perguntar pelo sentido de uma
actividade é perguntar pela finalidade dessa actividade, e aplicar isso ao sentido da vida é perguntar
pelo destino ou finalidade da vida.
Há assim uma acepção de «sentido» directamente relacionada com o que em filosofia
tradicionalmente se chama «finalidades últimas». Uma finalidade é última quando é uma finalidade
em si, não sendo apenas uma finalidade instrumental. Saber que finalidades são realmente últimas é
uma das tarefas centrais da ética, pelo menos desde que Aristóteles (384–322 a.C.) anunciou na
Ética a Nicómaco a importância de encontrar a finalidade de tudo o que fazemos.
Uma finalidade instrumental não tem de ser meramente instrumental. Em 1705 Bach caminhou
mais de trezentos quilómetros para conhecer a música e a interpretação de Buxtehude. A sua
caminhada foi com certeza instrumental e, se não fosse a intenção de conhecer a música e a
interpretação de Buxtehude, talvez Bach nunca tivesse empreendido tal caminhada. Mas Bach pode
muito bem ter acabado por apreciar os trezentos quilómetros de caminhos severos, mas talvez
também sublimes, em contacto profundo com a natureza. Podemos, pois, fazer algo
instrumentalmente mas ao mesmo tempo gostar da actividade em si.
Diferentes filósofos, tanto da antiguidade grega como posteriormente, elaboraram diferentes
concepções das finalidades últimas. O que está em causa não é apenas saber que finalidade são
últimas, mas também a questão mais radical de saber se há, de todo em todo, finalidades últimas;
em caso afirmativo, se há mais de uma; e se houver mais de uma, como se articulam entre si. Está
também em causa a questão, muito importante para a discussão do problema do sentido da vida, da
conexão entre as finalidades últimas, a realidade e a racionalidade.
Realidade e racionalidade
Faz parte da mentalidade contemporânea considerar óbvio que as finalidades últimas não têm
qualquer conexão com a realidade nem com a racionalidade, sendo fundamentalmente subjectivas e
arbitrárias. Ou seja, é hoje em dia comum pensar que a única finalidade última legítima é a
felicidade pessoal, concebida de modo subjectivista: «Desde que eu seja feliz», poderá alguém dizer,
«o resto não me interessa». A ideia muito comum hoje em dia de que a felicidade está «em nós», no
nosso «interior», alimenta muitos livros de auto-ajuda.
Uma concepção oposta, no que respeita à conexão entre a felicidade e a realidade, foi defendida
por diversos filósofos, entre os quais o referido Aristóteles, cuja noção de eudemonia (a palavra de
origem grega para felicidade) é objectivista: um ser humano, deste ponto de vista, não pode ser
genuinamente feliz se a sua felicidade estiver desconectada da realidade mais vasta que o rodeia.
Também a concepção de felicidade de John Stuart Mill (1806–1873), que se baseou nas tradições
éticas gregas, é explicitamente anti-subjectivista, privilegiando igualmente, numa interpretação
razoável dos seus escritos, uma forte conexão com a realidade. Já no séc. XX, o filósofo australiano
Peter Singer (n. 1946) defende também ideias objectivistas sobre o sentido da vida, na obra Como
Havemos de Viver? (Lisboa: Dinalivro, 2006).
Quanto à conexão entre a racionalidade e as finalidades últimas, a grande oposição entre
filósofos é exemplificada por Immanuel Kant (1724–1804) e David Hume (1711–1776). Este último
defendeu que os princípios morais fundamentais não podem ser imperativos da racionalidade, por
considerar que esta não tem poder motivador. Os princípios morais fundamentais têm por isso de
ser apenas um reflexo da nossa natureza humana, com as suas paixões e desejos. Aplicado à questão
das finalidades últimas, Hume defenderia então que nenhumas finalidades últimas podem ser
racionais, tendo todas de ser passionais. Assim, a razão última pela qual fazemos o que fazemos é
sempre uma paixão ou desejo — não necessariamente algo irracional, mas algo arracional, que nada
tem a ver com a racionalidade. Por outras palavras, Hume concebe a racionalidade como mera
racionalidade instrumental, que pode estabelecer os meios mais adequados para as nossas
finalidades últimas, mas não as próprias finalidades últimas.
Kant defendeu uma posição oposta a esta, considerando que a racionalidade estabelece as suas
próprias finalidades últimas. O argumento central no qual Kant se apoia é a ideia de que é
contraditório, e por isso irracional, negar os princípios morais. Assim, Kant pensa que ser imoral é
ser irracional, ao passo que Hume pensa que ser imoral é apenas ser imoral, nada mais. A
perspectiva de Hume é hoje muito mais influente não só no pensamento popular, mas também no
pensamento científico e económico. Hoje em dia, os filósofos morais mais influentes que continuam
este debate são Thomas Nagel, que defende uma posição kantiana, e Bernard Williams (1929–2003),
que defende uma posição humiana.
A noção de finalidade última levanta, pois, problemas filosóficos complexos. Contudo, podemos
ganhar terreno na compreensão do problema do sentido da vida mesmo sem dispor de uma teoria da
finalidade última. Intuitivamente, uma finalidade é última e não meramente instrumental quando a
sua razão de ser é ela mesma. Saímos de casa, fazemos uma caminhada, apanhamos até um pouco
de frio, gastamos dinheiro num bilhete de cinema — tudo isto são meios para a nossa finalidade de
ver um dado filme. Podemos ver o filme por várias razões instrumentais — temos de escrever uma
crítica para o jornal, temos de fazer um trabalho escolar sobre o filme, etc. — mas podemos também
querer ver o filme só porque gostamos de o ver. Assim, a nossa felicidade ou satisfação torna-se
rapidamente uma finalidade última óbvia.
Porque a nossa felicidade pode rapidamente ser vista como uma finalidade última, pode-se ser
levado a adoptar uma perspectiva subjectivista das finalidades últimas, que seriam então seja o que
for que nos faz feliz, sem que a nossa felicidade tenha qualquer conexão com a realidade nem com a
racionalidade.
Contudo, é uma ilusão pensar que uma coisa se segue facilmente da outra. Podemos
perfeitamente defender que a nossa felicidade é uma finalidade última, ou a única finalidade última,
mas ao mesmo tempo reconhecer que, por seremos agentes racionais e por estarmos inseridos
numa realidade, a nossa felicidade mantém uma conexão essencial com a racionalidade e a
realidade. Ou seja, podemos recusar que no que respeita à nossa felicidade tudo conta; podemos
defender que a nossa felicidade depende crucialmente da conexão da nossa vida com a realidade e
da capacidade que temos para justificar as nossas opções.
Acresce que é muito difícil aceitar que a nossa própria felicidade é uma finalidade última e não
aceitar que a felicidade alheia seja igualmente uma finalidade última. Seja qual for o argumento a
favor da ideia de que a nossa felicidade é uma finalidade última, esse mesmíssimo argumento estará
disponível para qualquer outro ser capaz de ser feliz.
Uma breve reflexão é assim suficiente para chegar a uma concepção de felicidade que não seja
subjectivista, mas antes intimamente relacionada com a realidade e a racionalidade; nem
individualista, mas antes intimamente relacionada com os outros seres que nos rodeiam. Esta
concepção ética da felicidade foi defendida por vários filósofos clássicos, assim como por filósofos
contemporâneos. Contudo, hoje pode parecer estranha, a quem não tem formação filosófica, porque
a mentalidade contemporânea é profundamente individualista e subjectivista, de um modo quase
onanístico. Todavia, estudos empíricos sobre a felicidade 2 mostram que a concepção ética de
felicidade é factualmente verdadeira, ao passo que a concepção individualista e subjectivista é
ilusória.
O que está em causa nestas sombrias reflexões, contudo, não pode ser o valor subjectivo da nossa
felicidade, pois é contraditório que a nossa felicidade não seja importante para nós mesmos. O que
está em causa é o valor objectivo da nossa felicidade e da nossa vida.
Podemos distinguir simplificadamente o valor subjectivo do valor objectivo recorrendo a um
exemplo. Imaginemos que alguém vê o que lhe parece um ser humano a morrer afogado num rio
revolto. Dado o valor que essa pessoa atribui a um ser humano, estará provavelmente disposta a
molhar-se e a arriscar-se para a salvar. Contudo, sem que o saiba, trata-se de um boneco
extremamente realista, criado para o cinema. Este exemplo mostra o contraste entre o valor
objectivo e o valor subjectivo, pois antes de essa pessoa saber a verdade acerca do boneco que
estava no rio atribuía-lhe um valor que descobriu mais tarde não ter. Assim, algo tem valor
subjectivo quando é valorizado por alguém; mas para que algo tenha valor objectivo não basta ser
valorizado por alguém. O que será preciso mais?
O grande obstáculo a uma concepção objectivista de valor é a convicção positivista de que a
objectividade resulta exclusivamente da observação de factos. Dado que ao mesmo tempo há a
noção de que o domínio dos factos e o domínio dos valores são inteiramente opostos e sem qualquer
relação entre si, nenhum valor poderia ser objectivo porque nenhum valor poderia ser um facto.
Esta concepção factualista de objectividade, contudo, não só não é a única possível, como é
defensavelmente um mito. Uma concepção alternativa concebe a objectividade, na ciência ou na
ética, como algo que depende crucialmente da justificação e não dos factos, sejam estes o que
forem. 3 Isto compreende-se melhor quando pensamos na diferença crucial entre a agricultura
empírica, intuitiva, levada a cabo pela humanidade ao longo de milénios, e a agricultura científica
actual. Tanto num caso como no outro se trata de práticas que se baseiam fortemente na observação
de factos. Mas a diferença crucial é que um agricultor científico sabe explicar exactamente por que
razão plantar algo num local cresce e noutro não, ao passo que um agricultor empírico sabe apenas
que naquele local cresce e no outro não. O agricultor empírico carece de justificação para a sua
convicção, que pode até ser verdadeira, de que plantar naquele local cresce, ao passo que isso é
precisamente o que tem o agricultor científico. O que faz a diferença é a justificação e não os factos
ou a observação de factos.
O mesmo acontece com o valor. No caso da ética, por exemplo, o tipo de justificação que
podemos invocar num caso mas não no outro é o que faz a diferença crucial entre a convicção de
que é moralmente aceitável discriminar negros ou mulheres e a convicção de que não o é: não é
possível justificar adequadamente a primeira convicção, mas é fácil justificar adequadamente a
segunda. E é porque podemos justificar pública e abertamente a segunda convicção que podemos
afirmar que capta um valor objectivo e não meramente subjectivo. Em suma, um valor é objectivo
quando podemos justificá-lo adequadamente e não o é quando não podemos fazê-lo.
Aplicado ao problema do sentido da vida, trata-se então de saber se a nossa felicidade tem algum
valor objectivo: será o valor da nossa felicidade adequadamente justificável? Como justificaríamos
tal coisa? Tolstoi exprime a ideia intuitiva de que o universo é indiferente à nossa felicidade ou
infelicidade, o que seria um sinal de que não haveria qualquer justificação adequada do seu valor;
teria apenas valor para nós, nada mais.
Esta intuição, contudo, parece resultar de uma ilusão importante sobre a natureza do próprio
valor. O valor é uma propriedade relacional, e não intrínseca, que ocorre sempre que um agente
cognitivo, como um ser humano, valora algo. O valor não é uma propriedade intrínseca como a
constituição química, mas antes uma propriedade relacional como a cor: esta é o modo como os
agentes cognitivos que têm um aparato visual captam certos comprimentos de onda de luz.
Perguntar como é a «cor em si», para lá do que vemos, revela uma incompreensão crucial da
natureza da cor, porque para lá do que vemos não há cor, pura e simplesmente. Certamente que
havia cores antes de haver seres humanos, porque já havia outros agentes cognitivos que viam
cores. Mas não havia cores antes de haver vida — havia apenas os mesmos comprimentos de onda
de luz a serem reflectidos pelas mesmas superfícies, mas nenhum agente cognitivo estava lá para
essas ondas de luz serem vistas como cores. Analogamente, perguntar se a nossa felicidade é
importante para o universo revela uma incompreensão crucial da natureza do valor, dado que o
universo nada valora porque o universo não é um agente cognitivo capaz de valorar seja o que for.
Para a nossa felicidade ter valor objectivo tudo o que temos de defender é que qualquer agente
capaz de reconhecer o valor poderá reconhecer o valor da nossa felicidade. Mas isso parece
evidente, tal como parece evidente que nós reconhecemos o valor da felicidade de qualquer agente
capaz de ser feliz, ainda que tenha desaparecido há milhões de anos. A efemeridade não parece
afectar o valor.
É argumentável que há uma ilusão interessante associada à ideia de que do ponto de vista do
universo a nossa felicidade é irrelevante. A ilusão seria a seguinte: estamos habituados a calibrar as
nossas valorações, assim como as nossas restantes crenças, pelos outros agentes cognitivos que nos
rodeiam, dado que a racionalidade é em grande parte racionalidade distribuída. Ou seja, quando um
de nós valoriza algo ou tem uma certa crença, dificilmente poderá ficar como se nada fosse se
descobrir que nenhum outro ser humano o valoriza nem tem essa crença. Não somos omniscientes
— além disso, erramos muito — e temos o saudável hábito de tentar limitar os nossos erros
cognitivos coordenando as nossas ideias com as das outras pessoas. Mill defendeu a ideia plausível
de que
«As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar senão um
convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento» (J. S. Mill, Sobre a
Liberdade, trad. Pedro Madeira, Lisboa, Edições 70, 2006, p. 55).
É assim argumentável que a ilusão consiste em pensar que todas as nossas valorações são
ilusórias porque não são confirmadas pelo universo inteiro. Mas é tão despropositado pedir ao
universo inteiro que me confirme o valor da minha felicidade como é despropositado pedir a uma
formiga que me confirme a física quântica: nem o universo é o tipo de entidade que possa valorar
coisas, nem a formiga é o tipo de entidade que possa estudar física quântica. Mas tal como a teoria
da física quântica não fica menos justificada por isso, também o valor da nossa felicidade não fica
ameaçado com a «indiferença» do universo (rigorosamente falando, o universo não é nem deixa de
ser indiferente à nossa felicidade — é adiferente — dado não ser o tipo de entidade que possa ter
atitudes).
Assim, a nossa felicidade terá valor objectivo se nós, ou qualquer agente cognitivo capaz de
valorar coisas, puder justificar adequadamente o seu valor. Seja qual for essa justificação, não
dependerá de o universo a valorizar ou não, nem de os valores terem ou não uma base factual.
O propósito da vida
Outra maneira defensavelmente deficiente de compreender o valor objectivo da nossa vida é
entendê-la como meramente instrumental. Deste ponto de vista, a nossa vida estaria ao serviço de
um qualquer propósito que ultrapassa a nossa própria vida.
Esta maneira de pensar é uma forma de não enfrentar a dificuldade de conceber a nossa própria
felicidade como uma finalidade última. Assim, a nossa vida não teria como finalidade última a nossa
própria felicidade, mas antes qualquer outro desígnio — dado por um deus, por exemplo. Este tipo
de perspectiva pode ter a vantagem inegável de extirpar um certo ensimesmamento que poderá
ocorrer em pessoas que se preocupam com o sentido das suas vidas. Contudo, parece limitar-se a
adiar o problema; pois se a nossa vida for um mero instrumento para uma certa finalidade, tal
finalidade só pode dar valor à nossa vida se tiver em si valor. Mas que outra finalidade poderá ter
um valor que a nossa felicidade não possa ter? Sem dúvida que a felicidade individual de uma
pessoa pode ser muitíssimo menos importante do que acabar com a fome no mundo, por exemplo —
mas isso é apenas porque acabar com a fome no mundo é contribuir para a felicidade de milhões de
pessoas que agora morrem à fome, o que significa que continuamos a conceber a felicidade como
uma finalidade última.
Assim, se concebermos o problema do sentido da vida como uma questão de saber qual é o
propósito da nossa vida, esse propósito, seja ele qual for, só poderá dar sentido à vida se tiver valor.
O que significa que esse valor poderá ser outra vez meramente subjectivo ou objectivo, e tem de ser
objectivo para poder dar sentido objectivo à vida — mas nesse caso voltamos ao problema anterior
de saber como poderemos justificar o valor objectivo da nossa felicidade.
Em conclusão, a ideia de propósito não permite evitar o problema central do sentido da vida: há
ou não valores objectivos?
Existencialismo
Poderá ser surpreendente a ausência de autores existencialistas, nomeadamente ateus, nesta
antologia. Contudo, isso acontece porque a reflexão existencialista ateia não é fortemente relevante
nesta área, e a única relevância que tem é apresentada e discutida por Nagel no final do seu ensaio.
O existencialismo ateu foi uma corrente filosófica e cultural sobretudo francesa que defendia, entre
outras coisas, que a vida é absurda e que não há valores. Estas duas ideias, contudo, resultam da
aceitação da ideia de que sem Deus a vida não faz sentido nem há valores objectivos.
Comecemos pela segunda ideia. A ideia de que sem Deus não há valores objectivos foi refutada
tão definitivamente quanto isso é possível em filosofia há dois mil e quinhentos anos por Platão (c.
428–347 a.C.), no diálogo Êutífron. 4 Neste diálogo, Sócrates (470–399 a.C.) pergunta a Êutífron se o
que é piedoso o é porque os deuses o amam, ou se os deuses amam o que é piedoso por ser piedoso.
Substituindo o termo «piedoso» pelo mais contemporâneo «ético» (que capta, em qualquer caso, o
que Platão parecia ter em mente: saber se o que faz uma acção correcta é o facto de os deuses
preferirem essa acção), a pergunta de Sócrates mostra a implausibilidade da ideia de que os valores
éticos se fundamentam nos deuses. O dilema de Êutífron, como esta situação é conhecida, consiste
em ter de optar por uma das alternativas. Mas uma delas é claramente errada: defender que uma
acção é ética apenas porque os deuses a amam é inaceitável porque torna a ética arbitrária; não
pode ser verdadeiro que é imoral violar crianças porque os deuses condenam tais actos. Ao invés,
terá de ser verdadeiro que os deuses condenam tais actos porque são imorais. Mas isto significa que
a imoralidade ou moralidade dos actos não depende dos deuses. Assim, o existencialismo ateu não é
muito relevante porque parte da premissa errada de que sem deuses para condenarem umas acções
e amarem outras não há, objectivamente, moralidade.
Quanto à primeira ideia, de que sem Deus a vida não tem sentido, o existencialismo ateu aceita
surpreendentemente a mundividência medieval dissecada no ensaio de Baier incluído nesta
antologia. Segundo essa mundividência, a vida terrena é um vale de lágrimas, que só tem sentido
instrumental enquanto preparação para a vida depois da morte, no paraíso. Segundo esta
mundividência, a inexistência de Deus cancela qualquer possibilidade de sentido da vida. Mas não
só não temos de aceitar esta mundividência, como se trata de uma mundividência que os
existencialistas ateus pensavam que não aceitavam. Sem o saber, contudo, aceitavam realmente a
sua tese central. Afinal, tanto do ponto de vista da mundividência medieval como do ponto de vista
dos existencialistas, a seguinte afirmação é tomada como verdadeira:
Esta posição é defendida, precisamente, por Baier. Na verdade, este filósofo defende uma posição
ainda mais radicalmente oposta à mundividência medieval, e portanto também radicalmente oposta
ao existencialismo ateu; defende a seguinte afirmação:
1 Leia-se, contudo, o ensaio de Schlick, «O Sentido da Vida», trad. Pedro Galvão, Intelectu 5 (2001): sendo o
fundador do positivismo lógico, está contudo longe de considerar o tema do sentido da vida como pura fantasia. Os
positivistas lógicos não pensavam todos o mesmo sobre todos os assuntos.
2 Veja-se Jonathan Haidt, A Conquista da Felicidade, Lisboa: Sinais de Fogo, 2007. Este é também o ponto de vista
defendido por Peter Singer, na obra referida: que a via da felicidade é a vida ética, e não a vida onanística.
3 Cf. Nagel, A Última Palavra, trad. de Desidério Murcho, Lisboa: Gradiva, 1999, cap. 6; Rachels, Elementos de
Filosofia Moral, trad. de F. J. Azevedo Gonçalves, Lisboa: Gradiva, 2004, cap. 3; e também Rachels, «A Questão da
Objectividade em Ética», trad. de Ismael Carvalho, Crítica, 2004.
4 Platão, Êutífron, Apologia de Sócrates, Críton, trad. José Trindade Santos, Lisboa: INCM, 1993.
5 Agradeço a Pedro Galvão e a Matheus Martins Silva as preciosas e generosas correcções e sugestões feitas a
esta introdução, assim como à tradução. A Thaddeus Metz, e também a Pedro Galvão, agradeço a generosa ajuda
na escolha dos ensaios. Aos meus alunos da Universidade Federal de Ouro Preto, onde tive oportunidade de usar
estes ensaios numa disciplina dedicada ao tema, agradeço o entusiasmo, as críticas e as discussões que me
ajudaram a compreender aspectos fundamentais que de outro modo não me teriam ocorrido.
1
O SENTIDO DA VIDA
RICHARD TAYLOR
A questão de saber se a vida tem algum sentido é difícil de interpretar, e quanto mais
concentramos nela a nossa capacidade crítica mais parece escapar-nos, ou evaporar-se
como questão inteligível. Queremos afastá-la por ser uma fonte de embaraço, por ser algo
que, se não podemos abolir, devemos pelo menos esconder por pudor. E, contudo, penso que
qualquer pessoa dada à reflexão reconhece que a questão que se levanta é importante, e que devia
ter uma resposta significativa.
Se a ideia de sentido é difícil de apreender neste contexto, de modo que ficamos na dúvida sobre
que tipo de coisa poderia constituir uma resposta à questão, a ideia da ausência de sentido talvez o
seja menos. Se, portanto, pudermos invocar uma imagem clara de uma existência destituída de
sentido, então talvez possamos dar um passo na direcção de conseguir lidar com a nossa questão
original, vendo em que medida as nossas vidas, tal como realmente são, se assemelham a essa
imagem, e tirando as lições que conseguirmos dessa comparação.
O sentido da vida
Vimos que a existência de Sísifo teria sentido se os seus trabalhos tivessem algum objectivo, se os
seus esforços culminassem alguma vez em algo que não fosse apenas uma ocasião para outros
trabalhos do mesmo tipo. Mas esse é precisamente o sentido de que carece. E a existência humana é
parecida com a sua neste aspecto. Alcançamos realmente coisas — subimos às nossas torres e
carregamos as nossas pedras para o cimo dos montes — mas todas essas realizações se
desvanecem, proporcionando apenas uma ocasião para outros trabalhos do mesmo tipo.
Mas aqui precisamos de reparar noutra coisa que foi mencionada, e cuja importância não foi
explorada: o estado mental e emocional com que nos entregamos a tais trabalhos. Vimos que, se
Sísifo tivesse um desejo profundo e insaciável de fazer precisamente o que fazia, então, apesar de a
sua vida em nada mudar, teria contudo um sentido para ele. Seria irracional, sem dúvida, porque o
próprio desejo seria apenas o produto da substância presente nas suas veias, e não o que a razão
poderia descobrir, mas teria mesmo assim um sentido.
Na verdade, não seria um sentido incomparavelmente melhor do que o outro? Pois examinemos
uma vez mais o primeiro tipo de sentido que teria. Suponhamos que, sem ter qualquer interesse em
carregar pedras enquanto tal, e considerando esta labuta um opróbrio, Sísifo tinha mesmo assim um
interesse profundo em erigir um templo que fosse belo e duradouro. E suponhamos que era bem-
sucedido, que depois de eras de labuta medonha, sempre tendo em vista este resultado final, Sísifo
acabava por fim o seu templo, de modo que poderia agora dizer que o seu trabalho terminara, e que
poderia descansar e usufruir para sempre do resultado. E agora? Que imagem se apresenta agora
aos nossos espíritos? É precisamente a imagem do tédio sem fim! De Sísifo sem nada fazer jamais,
contemplando o que já fez e ao qual nada pode acrescentar, e contemplando-o eternamente! Ora,
nesta imagem temos um sentido para a existência de Sísifo, um objectivo para a sua labuta
prodigiosa, porque o pusemos lá; contudo, ao mesmo tempo, o que vale realmente a pena parece ter
desaparecido completamente. Ao passo que antes tínhamos o pesadelo da actividade eterna e
despropositada, agora temos o inferno da sua ausência eterna.
Assim, a segunda imagem, em que imaginámos Sísifo vítima do desejo irracional de fazer
exactamente o que fazia, não deveria ter sido tão abruptamente desqualificada. O sentido que
faltava nessa imagem não era o sentido que Sísifo ou qualquer pessoa poderia desejar
ardentemente, e o estranho sentido que tinha era talvez precisamente o que procurávamos.
Neste ponto podemos então reintroduzir o que até agora, esperemos, foi resolutamente posto de
lado, numa tentativa de ver as nossas vidas e a existência humana com objectividade;
nomeadamente, as nossas próprias vontades, o nosso profundo interesse no que fazemos. Se o
fizermos, vemos que as nossas vidas parecem-se realmente ainda com a de Sísifo, mas que o sentido
que por isso não têm é precisamente o sentido do tédio infinito. Ao mesmo tempo, o estranho
sentido que têm é o da compulsão interna para fazer o que fomos postos aqui para fazer, e para o
fazer para sempre. Isto é o mais próximo de ir para o Céu a que podemos almejar, mas o aspecto
redentor desse facto é que com isso evitamos um inferno genuíno.
Se os edificadores de uma civilização antiga grandiosa e florescente pudessem de algum modo
regressar e ver os arqueólogos desenterrando os restos triviais do que eles conseguiram fazer com
tanto esforço — fragmentos de potes e vasos, umas quantas estátuas partidas e outros indícios de
outra era e de outra grandiosidade — poderiam realmente perguntar-se qual era o propósito de tudo
aquilo, dado ser este o seu resultado. Contudo, na altura não viam as coisas dessa maneira, pois era
apenas o construir que dava sentido à sua vida, e não o facto de estar finalmente construído.
Analogamente, se os edificadores do lar e quinta em ruínas que descrevi há pouco pudessem ser
trazidos para ver o que resta, sentiriam o mesmo. O que formamos nas nossas imaginações quando
vemos aqueles pedaços ferrugentos e em decomposição formar-se-ia nas suas próprias memórias, e
certamente que com uma tristeza indizível. O pedaço de trenó no chão reavivaria as memórias de
um Natal aconchegante. E que memórias abundantes existiriam num berço partido? E os restos
cobertos de erva de uma vedação reproduziriam a cena de uma grande manada de gado, tão
laboriosamente conquistada ao longo de tantos anos. De que valeu tudo isso, se este é o resultado
final? Contudo, uma vez mais, na altura não lhes parecia não valer a pena, ao longo de todos aqueles
anos de labuta e trabalhos, e nunca pensaram que estavam a construir um Gibraltar. As coisas que
os obrigavam a vergar as costas dia após dia, realizando um a um os seus planos efémeros, eram
precisamente as coisas em que tinham interesse, e não havia então qualquer necessidade de fazer
perguntas. Não há maior necessidade de fazer perguntas agora — o dia foi suficiente para si, e
também a vida o foi.
Esta é certamente a maneira de ver toda a vida — a nossa própria vida, e cada dia e momento
que contém; a vida de uma nação; da espécie; da vida no mundo; e de tudo o que respira. Mesmo os
vermes luminosos que descrevi, cujos ciclos de existência ao longo dos milhões de anos parecem tão
despropositados quando os observamos, parecer-nos-ão inteiramente diferentes se conseguirmos de
algum modo tentar ver a sua existência a partir de dentro. A sua actividade sem fim, que conduz a
nenhures, é precisamente o que querem fazer. Esta é toda a sua justificação e sentido. Nem seria
uma salvação para as aves que percorrem o globo todos os anos, para trás e para a frente, ter um
abrigo feito para eles numa gaiola com muita comida e protecção, para que não tivessem mais de
migrar. Seria a sua condenação, pois para elas o que conta é o fazer, e não o que esperam obter ao
fazê-lo. Voar tais distâncias prodigiosas, nunca parar, é o que lhes corre nas veias, tal como corria
nas veias de Sísifo o carregar pedras, sem fim, depois de os deuses se terem feito misericordiosos,
implantando nele tal desejo.
Mal respiramos pela primeira vez respondemos à vontade que tínhamos em nós de viver. Como os
vermes e as aves, não perguntamos se valerá a pena, ou se algo importante resultará da nossa vida.
O propósito da vida é simplesmente viver, do modo como for natural viver. Passamos pela vida
construindo os nossos castelos, começando cada um deles a desaparecer no tempo à medida que
começa o seguinte; contudo, não seria uma salvação descansar de tudo isto. Seria uma condenação,
que não seria redimida mesmo que pudéssemos contemplar as coisas que fizemos, ainda que fossem
belas e absolutamente permanentes, coisa que nunca são. O que conta é que devemos poder
começar uma nova tarefa, um novo castelo, uma nova bolha. Só conta porque existe para ser feita e
temos vontade de a fazer. O mesmo será a vida dos nossos filhos, e dos deles; e se o filósofo tem
tendência para ver nisto um padrão semelhante aos ciclos sem fim da existência de Sísifo, e para
ficar desesperado, então é porque realmente o sentido e propósito que procura não está aí —
felizmente. O sentido da vida está no nosso interior, não é atribuído do exterior, e excede em muito,
tanto em beleza como em permanência, qualquer Céu que alguma vez tenha sido sonhado e
almejado pelos homens.
1 Um hino cristão popular, cantado por vezes em funerais e típico de muitos hinos, expressa este pensamento: «O
pequeno dia da vida desvanece-se célere; As alegrias da Terra empalidecem e desaparecem as suas glórias; Tudo o
que vejo é mudança e decadência: / Tu, que mudança não conheces, protege-me.»
2
O SENTIDO DA VIDA
KURT BAIER
T olstoi, na sua obra autobiográfica, Confissão, conta como, quando tinha cinquenta anos e
estava no auge do seu sucesso literário, ficou obcecado pelo medo de a vida ser destituída de
sentido:
«Primeiro vivi momentos de perplexidade e inquietação vital, como se não soubesse o que fazer ou como
viver; e sentime perdido e fiquei abatido. Mas isto passou, e continuei a viver como antes. Depois estes
momentos de perplexidade começaram a ser cada vez mais recorrentes, e sempre da mesma forma. Eram
sempre expressos pelas questões: Para que é isto? A que conduz? Primeiro parecia-me que estas eram
questões irrelevantes e sem qualquer finalidade. Pensava que tudo era perfeitamente conhecido e que se eu
alguma vez quisesse lidar com a solução, isso não me seria muito difícil; acontecia apenas que no momento
não tinha tempo para isso, mas quando quisesse seria capaz de encontrar a resposta. Contudo, as questões
começaram a repetir-se com frequência, e a exigir respostas cada vez mais insistentemente; e como gotas
de tinta sempre a cair num lugar, correram todas para uma mancha negra.» 1
Um cristão que vivesse na idade média não teria tido dúvidas sérias quanto às questões de
Tolstoi. Para ele, teria parecido perfeitamente certo que a vida tinha um sentido e seria muito claro
que sentido era esse. A imagem cristã medieval do mundo atribuía ao homem um papel muitíssimo
significativo — central, na verdade — na grandiosa ordem das coisas. O universo fora feito
expressamente com o propósito de fornecer um palco no qual se desenrolaria o drama com o
Homem no papel principal.
Para ser preciso, o mundo fora criado por Deus no ano de 4004 a.C. O Homem era a última das
suas criações, e o seu coroar, feito à semelhança de Deus, colocado no Jardim do Éden na Terra, o
centro fixo do universo, em torno do qual orbitavam os nove céus do Sol, da Lua, dos planetas e das
estrelas fixas, produzindo a harmonia celeste das esferas à medida que percorriam as suas órbitas.
E este universo gigantesco fora criado para usufruto do homem, que foi posto originalmente em
posição de controlo. A dor e a morte eram desconhecidas no paraíso. Mas este estado de bem-
aventurança não iria continuar. Adão e Eva comeram da árvore proibida do conhecimento, e a vida
nesta terra tornou-se uma marcha de morte num vale de lágrimas. Então, com o nascimento de
Jesus, chegou ao mundo uma nova esperança. Depois de ele morrer na cruz, tornou-se pelo menos
possível lavar com a água purificadora do baptismo alguns dos efeitos do Pecado Original e atingir a
salvação. Isto é, sob a condição de obediência à lei de Deus, o homem podia agora entrar no Céu e
ganhar de novo o estado de bem-aventurança perpétua e imortal, da qual tinha sido excluído por
causa do pecado de Adão e Eva.
Para o cristão medieval o sentido da vida humana era, portanto, perfeitamente claro. O trecho em
que estamos na Terra é apenas um curto interlúdio, um encarceramento temporário da alma na
prisão do corpo, uma prova e teste breves, destinados a acabar na morte: a libertação da dor e do
sofrimento. O que realmente importa é a vida depois da morte do corpo. A nossa existência adquire
sentido não ao obter o que esta vida pode oferecer, mas salvando a nossa alma imortal da morte e da
tortura eterna, obtendo a vida eterna e a bem-aventurança perpétua.
A imagem científica do mundo, que tem tido cada vez mais aceitação geral desde o início da era
moderna, está em conflito profundo com tudo isto. Primeiro, descobriu-se que a concepção cristã do
mundo estava errada em vários pormenores importantes. A teoria copernicana mostrou que a Terra
era apenas um entre vários planetas orbitando o Sol, e mais tarde viu-se que o próprio Sol era
apenas uma das muitas estrelas fixas, cada uma das quais é em si o núcleo de um sistema solar
similar ao nosso. Verificou-se que o homem, em vez de ocupar o centro da criação, era meramente o
habitante de um corpo celeste que não era diferente de milhões de outros. Além disso, as
investigações geológicas revelaram que o universo não foi criado há poucos milhares de anos, tendo
ao invés provavelmente milhões de anos.
Os desacordos quanto aos pormenores da imagem do mundo, contudo, são apenas aspectos
superficiais de um conflito muito mais profundo. O que está em causa é saber se a perspectiva cristã
é apropriada, no seu todo. Para o cristianismo, o mundo tem de ser encarado como a «criação» de
uma espécie de Super-homem, uma pessoa que tem todas as excelências humanas num grau infinito
e nenhuma das fraquezas humanas. Que fez o homem à Sua imagem — uma cópia débil, mortal e
tola de Si. Ao criar o universo, Deus actua como uma espécie de dramaturgo-legislador-juiz-
executor. Na sua capacidade de dramaturgo, cria o processo mundial histórico, incluindo o homem.
Ergue o palco e escreve, sob a forma de esboço, a trama. Cria as dramatis personae e toma conta
delas com o olhar em parte de um pai, e em parte da lei. Enquanto estão no palco, os actores têm a
liberdade de improvisar, mas se infringirem os mandamentos divinos, terão mais tarde de enfrentar
o seu criador, desempenhando o papel de juiz e executor.
Num tal quadro de referência, as atitudes cristãs em relação ao mundo são naturais e acertadas:
é natural e acertado pensar que tudo está planeado da melhor maneira, mesmo que as aparências
enganem; que o melhor é resignarmo-nos alegremente à nossa sorte, ficar cheio de temor e
veneração com respeito a seja o que for que acontece, e ficar de joelhos venerando e louvando o
Senhor. Estas são atitudes totalmente adequadas no quadro de referência da mundividência que
acabámos de esboçar. E esta mundividência deve ter parecido completamente sólida e aceitável
porque oferecia a melhor explicação disponível na altura de todos os fenómenos observados da
natureza.
À medida que as ciências da natureza se desenvolveram, contudo, mais e mais coisas no universo
acabaram por ser explicadas sem o pressuposto de um criador sobrenatural. Além disso, a ciência
podia explicá-las melhor, isto é, de modo mais preciso e fidedigno. A hipótese cristã de um criador
sobrenatural, fossem quais fossem as outras necessidades que podia satisfazer, já não era, em
qualquer caso, indispensável para o propósito de explicar a existência ou ocorrência do que quer
que fosse. De facto, as explicações científicas não parecem deixar qualquer espaço para esta
hipótese. A abordagem científica exige que procuremos uma explicação natural de tudo e mais
alguma coisa. A maneira científica de observar e explicar as coisas teve como resultado uma
compreensão e controlo muitíssimo maiores do universo do que qualquer outra. E quando olhamos
para o mundo desta maneira científica, não parece haver espaço para uma relação pessoal entre os
seres humanos e um ser perfeito sobrenatural que rege e guia os homens. Daí que muitos cientistas
e homens instruídos acabassem por sentir que as atitudes cristãs perante o mundo e a existência
humana são inapropriadas. Convenceram-se de que o universo e a existência humana que há nele
não têm propósito e são por isso destituídas de sentido. 2
1. A explicação do universo
Tais crenças são desanimadoras e implausíveis. É natural procurar incessantemente o erro que terá
de se ter insinuado nos nossos argumentos. E caso um erro se tenha insinuado, então é muitíssimo
provável que se tenha insinuado com a ciência. Pois antes da ascensão da ciência as pessoas não
tinham tais crenças melancólicas, ao passo que a imagem científica do mundo parece obrigar-nos
literalmente a aceitá-las.
Há um argumento que parece oferecer a desejada saída. É mais ou menos como se segue. A
ciência e a religião não estão realmente em conflito. São, pelo contrário, mutuamente
complementares, cada uma desempenhando um papel inteiramente diferente. A ciência fornece
explicações provisórias, ainda que precisas, de pequenas partes do universo, e a religião fornece
explicações finais e abrangentes, ainda que comparativamente vagas, do universo como um todo. A
conclusão objectável — que a existência humana é destituída de sentido — só se segue se usarmos
explicações científicas onde estas não se aplicam, nomeadamente, quando estão em causa
explicações totais do universo como um todo. 3
Afinal, continua o argumento, a imagem científica do mundo é o resultado inevitável de uma
adesão rígida ao método e explicação científicos, mas as explicações científicas, isto é, causais, são
incapazes, dada a sua própria natureza, de ser realmente iluminantes. Na melhor das hipóteses,
podem dizer-nos como as coisas são, ou como vieram a ser, mas nunca porquê. São incapazes de
tornar o universo inteligível, compreensível, significativo para nós. Representam o universo como
destituído de sentido não por ser destituído de sentido, mas porque as explicações científicas não
foram concebidas para facultar respostas a investigações sobre o porquê e a razão de ser, sobre o
sentido, propósito ou objectivo das coisas. As explicações científicas (continua o argumento)
começam, de modo bastante inócuo, como explicações parciais e provisórias do movimento dos
corpos materiais, em particular dos planetas, no interior do quadro de referência geral da imagem
medieval do mundo. Newton concebia o universo como um relógio feito por Deus, que originalmente
o pôs a trabalhar e ocasionalmente o acerta. As suas leis do movimento mais não faziam do que
revelar as maneiras de funcionar da maquinaria celeste. Explicar o movimento dos planetas
recorrendo a estas leis era análogo a explicar a maquinaria de um relógio. Tais explicações
mostravam como as coisas funcionavam, mas não para que serviam ou por que existiam. Tal como a
explicação de como um relógio trabalha só pode ajudar a nossa compreensão do relógio se, além
disso, pressupusermos que há um relojoeiro que o concebeu com um propósito em vista, o fez e o
pôs a trabalhar, também a explicação newtoniana do sistema solar só nos ajuda a compreendê-lo sob
o pressuposto análogo de que há um artífice divino que concebeu e fez este relógio celeste com
algum propósito em vista, o pôs a trabalhar e talvez ocasionalmente o acerte, quando se avaria.
Sócrates afirmou no Fédon que só as explicações de uma coisa que mostrassem o bem ou
propósito em função do qual isso existia poderiam oferecer uma verdadeira explicação dela. Rejeitou
o tipo de explicação a que agora chamamos «causal» como algo que mais não faz do que mencionar
«aquilo sem o qual uma causa não poderia ser uma causa», isto é, meramente como uma condição
necessária, mas não a verdadeira causa, a verdadeira explicação. 4 Por outras palavras, Sócrates
defendia que todas as coisas podem ser explicadas de duas maneiras diferentes: ou mencionando
apenas uma condição necessária, ou apresentando uma verdadeira causa. A primeira não é uma
elucidação do explicandum, não ajuda verdadeiramente a compreendê-la, a apreender o seu
«porquê» e a sua «razão de ser».
Esta perspectiva socrática, contudo, está errada. Não há dois tipos de explicação para tudo, uma
parcial, preliminar e que não é realmente clarificadora, e a outra total, final e iluminante. A verdade
é que estes dois tipos de explicação são igualmente explicativos, igualmente iluminantes e
igualmente totais e finais, mas são apropriados para tipos diferentes de explicanda.
Quando estamos numa floresta inabitada e encontramos o que parecem casas, ruas
pavimentadas, templos, utensílios e coisas semelhantes, não é muito arriscado dizer que estas coisas
são as ruínas de uma cidade abandonada, ou seja, de algo feito pelo homem. Nesse caso, a
explicação apropriada é teleológica, isto é, em termos dos propósitos dos construtores dessa cidade.
Por outro lado, quando um cometa se aproxima da Terra, é analogamente uma aposta segura que, ao
contrário da cidade na floresta, não foi manufacturado por criaturas inteligentes e que, portanto,
uma explicação teleológica seria deslocada, ao passo que uma explicação causal é adequada.
É fácil ver que as explicações causais são apropriadas em alguns casos e as explicações
teleológicas noutros. Um pequeno satélite orbitando a Terra pode ter sido ou não feito pelo homem.
Podemos nunca saber qual é a explicação verdadeira, mas qualquer hipótese é igualmente
explicativa. Seria errado dizer que só uma explicação teleológica pode verdadeiramente explicá-lo.
Qualquer das explicações forneceria completa claridade apesar de, é claro, só uma delas poder ser
verdadeira. A explicação teleológica é apenas uma de várias possíveis.
Na realidade, pode ser rigorosamente correcto dizer que a questão «Por que há um satélite a
orbitar a Terra?» só pode responder-se com uma explicação teleológica. Pode ser verdadeiro que as
perguntas «Porquê?» só podem na verdade ser apropriadamente usadas para obter as razões que
alguém tem para fazer algo. Se isto for assim, explicaria a nossa insatisfação com respostas causais
a perguntas «Porquê?». Mas mesmo que isto seja assim, não mostra que tem de se responder com
uma explicação teleológica à pergunta «Por que está o satélite ali?». Mostra apenas que ou tem de
se responder desse modo ou não se pode perguntar. A pergunta «Por que deixaste de bater na tua
esposa?» só pode ser respondida com uma explicação teleológica mas, se nunca lhe batemos, é uma
pergunta imprópria. Do mesmo modo, se o satélite não é feito pelo homem, «Por que há um
satélite?» é imprópria dado que indica uma origem que não teve. A ciência natural só pode
realmente dizer-nos como as coisas na natureza surgiram e não porquê, mas isto não é assim por
haver outra coisa que possa dizer-nos o porquê e a razão de ser, mas antes porque nenhuma há.
Contudo, há outro aspecto a que ainda não se respondeu. A objecção que acabámos de
apresentar era que as explicações causais não se propunham sequer responder à pergunta crucial.
Fazemos a pergunta «Porquê?» mas a ciência devolve-nos uma resposta à pergunta «Como?». Pode-
se conceder agora que isto não é razão para protestar, mas talvez se diga em vez disso que as
explicações causais não dão respostas completas ou totais nem mesmo à segunda pergunta. Nas
explicações causais, objectar-se-á, a existência de uma coisa é explicada por referência à sua causa,
mas isto envolve perguntar pela causa dessa causa, e assim por diante, ad infinitum. Não há um
ponto final que não precise tanto de explicação quanto o que se acabou de explicar. Nada é alguma
vez total e completamente explicado por este tipo de explicação.
Leibniz sublinhou este aspecto muito persuasivamente:
«Suponhamos que um livro dos elementos de geometria era eterno, fazendo-se sempre uma cópia de uma
anterior; é evidente que, apesar de se poder dar uma razão para o livro actual com base no anterior,
contudo, dado um qualquer número de livros, tomados por ordem, e recuando sempre, nunca chegaremos a
uma razão completa; apesar de podermos muito bem perguntarmo-nos por que haveria de haver tais livros
desde sempre — por que há realmente livros, e por que foram escritos desta maneira. O que se aplica aos
livros aplica-se aos diferentes estados do mundo; pois o que se segue é de algum modo copiado do que o
precede […] E portanto, por mais que se recue, nunca se encontra nesses estados uma razão completa da
existência de um mundo em vez de nenhum, e por que haverá de ser como é.» 5
Contudo, basta um momento de reflexão para se ver que, se há um tipo de explicação meramente
preliminar e provisória, é a teleológica, pois pressupõe um pano de fundo que carece, ele próprio, de
explicação. Se eu explicar a existência do satélite feito pelo homem dizendo que foi feito por alguns
cientistas com um certo propósito, então tal explicação só pode clarificar a existência do satélite se
eu pressupuser que havia materiais, com base nos quais se fez o satélite, e cientistas, que o fizeram
com um propósito. Logo, não importa que tipo de explicação damos, seja causal ou teleológica: uma
ou outra, ou qualquer tipo de explicação, indicará a existência de algo com referência ao qual o
explicandum pode ser explicado. E isto por sua vez tem de ser explicado de algum modo, e assim por
diante para sempre.
Mas não é Deus um ser necessário? Não evitamos a regressão infinita mal chegamos a Deus?
Sustenta-se muitas vezes que, ao contrário de seres inteligentes comuns, Deus é eterno e
necessário; logo, a sua existência, ao contrário da deles, não precisa de explicação. Pois o que gera a
regressão viciosa que acabámos de mencionar? O que a gera é que, se aceitarmos o princípio da
razão suficiente (que tem de haver uma explicação para a existência de seja o que for e de tudo o
que não for logicamente necessário mas meramente contingente 6), a própria existência das coisas
referidas em qualquer explicação tem de ser explicada. Contudo, se Deus é um ser logicamente
necessário, então a Sua existência não requer explicação. Logo, a regressão viciosa chega ao fim
com Deus.
Ora, não é preciso negar que Deus é um ser necessário num qualquer sentido dessa expressão.
Num desses sentidos, eu, por exemplo, sou um ser necessário: é impossível que eu não exista
porque é auto-refutante dizer «Não existo». O mesmo se aplica à língua portuguesa e ao universo. É
auto-refutante dizer «A língua portuguesa não existe» porque esta frase está em português, ou «O
universo não existe» porque seja o que for que exista, isso é o universo. É impossível que estas
coisas não existam de facto porque é impossível que estejamos enganados ao pensar que existem.
Pois que ocorrência possível poderia sequer levantar dúvidas quanto a termos razão quanto a isso,
para não falar em mostrar que estamos enganados? Eu, a língua portuguesa e o universo, somos
seres necessários simplesmente no sentido em que é necessariamente verdadeiro tudo o que se
provou que é verdadeiro. A ocorrência de elocuções como «Eu existo», «A língua portuguesa existe»
e «O universo existe» é em si prova suficiente da sua verdade. Estes comentários são portanto
necessariamente verdadeiros, e assim as coisas que se afirma existir são seres necessários.
Mas este tipo de necessidade não irá satisfazer o princípio da razão suficiente, porque se trata
apenas de necessidade hipotética ou consequencial. 7 Dado alguém que diga «Eu existo», é
logicamente impossível que ela não exista. Dados os indícios que temos, a língua portuguesa e o
universo existem de certeza. Mas não há qualquer necessidade com respeito aos indícios. Segundo o
princípio da razão suficiente, temos de explicar a existência dos indícios, pois a sua existência não é
logicamente necessária.
Por outras palavras, o único sentido de «ser necessário» capaz de acabar com a regressão infinita
é «ser logicamente necessário», mas já não se duvida seriamente que a noção de um ser
logicamente necessário é autocontraditória. 8 Seja o que for que se possa conceber como existindo,
poderá igualmente conceber-se como não existindo.
Contudo, mesmo que houvesse algo como um ser logicamente necessário, ainda que per
impossibile, continuaríamos sem conseguir defender a superioridade da explicação teleológica
relativamente à causal. Não se pode explicar a existência do universo recorrendo ao modelo bem
conhecido de manufactura por um artesão. Pois esse modelo pressupõe a existência de materiais
com base nos quais se faz o produto. Deus, por outro lado, tem também de criar os materiais. Além
disso, apesar de termos um modelo simples de «criação a partir do nada», pois os compositores
compõem melodias a partir do nada, há uma grande diferença entre criar algo para se cantar e fazer
os sons que constituem um cantar, ou produzir o piano em que podemos tocar. Afastemos, contudo,
todas estas objecções e admitamos, por amor à discussão, que a criação a partir do nada é
concebível. Certamente que, mesmo nesse caso, ninguém pode afirmar que isto é o tipo de
explicação que proporciona a compreensão mais clara e completa. Certamente que nada acrescenta
à nossa compreensão encerrar as explicações científicas da origem do universo com a criação a
partir do nada. Poderá haver algum tipo de mérito nesta maneira de falar mas, seja ele qual for, não
é a maior clareza nem o maior poder explicativo. 9
Que significa tudo isto, então? Significa que as explicações científicas não são piores do que
quaisquer outras. Tudo o que se mostrou foi que todas as explicações sofrem do mesmo defeito:
todas envolvem uma regressão viciosa infinita. Por outras palavras, nenhum tipo de explicação
humana pode ajudar-nos a deslindar o mistério último e irrespondível. Os modos cristãos de ver as
coisas podem ser incapazes de tornar o mundo mais lúcido do que a ciência, mas pelo menos não
fingem que não há mistérios impenetráveis. Pelo contrário, sublinham sem cessar que são vazias as
afirmações de que a ciência consegue elucidar tudo. Não nos deixam esquecer que a ciência não só
se limita à exploração de um minúsculo canto do universo como, por mais longe a que os
instrumentos possam chegar, nunca podemos sequer aproximar-nos das respostas às perguntas
últimas: «Por que há um mundo em vez de nada?» e «Por que é o mundo como é e não diferente?».
Aqui o nosso intelecto humano finito bate nas suas próprias paredes limítrofes.
Será verdadeiro que as explicações científicas envolvem uma regressão infinita viciosa? Serão
realmente as explicações científicas apenas provisórias e incompletas? O aspecto crucial será este:
será que todas as verdades contingentes exigem explicação? É o princípio da razão suficiente
sólido? Podem as explicações científicas nunca chegar a um fim definitivo? Veremos que com uma
compreensão clara da natureza e propósito da explicação podemos responder a estas perguntas. 10
Explicar algo a uma pessoa é fazê-la compreender esse algo. Isto envolve tornar presente à sua
mente duas coisas: um modelo que é previamente aceite como simples e claro, e o que há para
explicar, o explicandum, que não o é. Compreender o explicandum é ver que pertence a um domínio
de coisas que seriam legitimamente de esperar por qualquer pessoa que estivesse familiarizada com
o modelo e com certos factos.
Contudo, uma pessoa pode encontrar-se em duas posições fundamentalmente diferentes
relativamente a um explicandum. Pode não conhecer qualquer modelo capaz de a levar a esperar o
fenómeno a explicar. A maior parte de nós, por exemplo, encontra-se nessa posição em relação aos
fenómenos que ocorrem numa boa sessão espírita. Com respeito a outras coisas as pessoas diferem.
Alguém que sabe jogar xadrez já compreende o xadrez, já tem um tal modelo. Alguém que nunca viu
um jogo de xadrez não o tem. Vê as jogadas no tabuleiro mas não pode compreender, não pode
seguir, não pode dar sentido ao que está a acontecer. Explicar-lhe o jogo é dar-lhe uma explicação, é
fazê-lo compreender. Essa pessoa só pode compreender ou seguir as jogadas do xadrez se as puder
ver como coisas que obedecem a um modelo de jogo de xadrez. Para adquirir tal modelo, precisará,
é claro, de conhecer as regras constitutivas do xadrez, ou seja, as jogadas permitidas. Mas não basta
isso. Tem de saber que um jogo normal de xadrez é uma competição entre duas pessoas (nem todos
os jogos o são), cada uma delas tentando ganhar, e tem de saber o que é ganhar no xadrez:
manobrar o rei do oponente de maneira a ficar em posição de xeque-mate. Finalmente, tem de
adquirir algum conhecimento do que conduz e do que não conduz à vitória: as regras tácticas ou
cânones do jogo.
Uma pessoa a quem se deu tal explicação e que a dominou — o que pode demorar muito tempo —
chegou agora à compreensão, no sentido da competência para seguir cada jogada. Uma pessoa não
pode, nesse sentido, compreender apenas uma jogada de xadrez e mais nenhuma. Se não
compreende quaisquer outras jogadas, temos de dizer que ainda não dominou a explicação, que
também não compreende realmente essa jogada isolada. Se dominou a explicação, compreende
todas aquelas jogadas que pode ver que estão de acordo com o modelo do jogo que lhe foi inculcado
durante a explicação.
Contudo, apesar de uma pessoa que tenha dominado tal explicação compreender muitas das
jogadas de qualquer jogo de xadrez a que queira assistir, talvez a maior parte, não compreenderá
necessariamente todas, pois algumas jogadas de um jogador poderão não estar de acordo com o seu
modelo do jogo. As brancas, digamos, na sua décima quinta jogada, dão a rainha para troca ao
cavalo negro. Apesar de estar de acordo com as regras constitutivas do jogo, esta jogada levanta
contudo perplexidades e exige uma explicação, pois não conduz ao que tem de se pressupor que é o
objectivo das brancas: ganhar o jogo. A rainha é uma peça muito mais valiosa do que o cavalo com o
qual se está a fazer a troca.
Um observador que tenha dominado o xadrez pode não compreender esta jogada, ficar perplexo
e desejar uma explicação. Claro que pode não ficar perplexo pois, se for um jogador muito
inexperiente, pode não ver a desvantagem da jogada. Mas é preciso uma explicação, quer alguém o
veja quer não. A jogada exige uma explicação porque, a qualquer pessoa que conheça o jogo, tem de
parecer incompatível com o modelo que aprendemos na explicação do jogo, e com referência ao qual
todos explicamos e compreendemos os jogos normais.
Contudo, a explicação exigida da décima quinta jogada das brancas é de um tipo muito diferente.
O que agora é preciso não é uma aquisição de um modelo explicativo, mas a eliminação da
incompatibilidade real ou aparente entre a jogada do jogador e o modelo de explicação que
adquirimos. Em tal caso, a perplexidade só pode ser eliminada sob a suposição de que a
incompatibilidade entre o modelo e o jogo é meramente aparente. Como o nosso modelo inclui um
objectivo que presumimos comum aos dois jogadores, temos as seguintes três possibilidades:
a) O jogador das brancas enganou-se: não viu a ameaça à sua rainha. Nesse caso, a explicação é que
o jogador pensou que a sua jogada conduzia ao seu fim, mas não conduzia.
b) O jogador das pretas enganou-se: o jogador das brancas preparou-lhe uma armadilha. Nesse
caso, a explicação é que o jogador das pretas pensou que a jogada das brancas não conduzia aos fins
das brancas, mas conduzia.
c) O jogador das brancas não tem por fim o que se presume que todo o jogador de xadrez tem por
fim; não está a tentar ganhar o jogo. Nesse caso, a explicação é que o jogador das brancas jogou de
uma maneira que ele mesmo sabe que não conduz ao fim de ganhar o jogo porque, digamos, quer
agradar ao seu chefe, que é o jogador das pretas.
Contudo, levanta-se a seguinte perplexidade a quem defender a primeira teoria: como pode ser
que, quando viajamos o suficiente em direcção ao horizonte numa direcção qualquer, acabamos por
regressar ao ponto de partida sem alguma vez chegar à orla da Terra? Podemos começar por tentar
«salvar» o modelo dizendo que a contradição é apenas aparente. Podemos dizer ou que o modelo
não exige que cheguemos a uma orla, pois pode só ser possível caminhar em círculos na superfície
plana. Ou podemos dizer que a pessoa terá de ter caminhado para lá da orla sem reparar, ou talvez
que todos os viajantes mentem. Alternativamente, o facto de o nosso modelo ser «construído», e não
inventado ou estabelecido, permite-nos dizer, o que não poderíamos fazer no caso do xadrez, que o
modelo é inadequado ou inapropriado. Podemos escolher outro modelo que se coadune a todos os
factos — por exemplo, que a Terra é redonda. É claro que então teremos de dar uma explicação
desvexatória da razão pela qual parece plana, mas consegue-se fazer isso.
Podemos agora regressar à nossa questão original: «São as explicações científicas genuínas e
completas, ou envolvem uma regressão infinita, sendo sempre incompletas?»
A nossa distinção entre explicações-modelo e explicações desvexatórias dá-nos uma ajuda. É
óbvio que só as coisas que levantam perplexidades exigem explicações desvexatórias, e só elas
podem ser explicadas desse modo. Já vimos que ao livrarmo-nos de uma perplexidade não
levantamos necessariamente outra. Pelo contrário, as explicações desvexatórias explicam genuína e
completamente o que se propõem explicar, nomeadamente, como é possível algo que, no nosso
modelo explicativo, parecia impossível. Logo, pode não haver aqui qualquer regressão infinita. As
explicações desvexatórias são explicações genuínas e completas.
Poderá haver uma regressão infinita, então, no caso de explicações-modelo? Tomemos o seguinte
exemplo: as crianças europeias ficam perplexas pelo facto de as suas contrapartes dos antípodas
não caírem no espaço vazio. Esta perplexidade pode ser eliminada substituindo o seu modelo
explicativo por outro. As crianças europeias imaginam que ao longo de todo o espaço há uma força
omnipresente que opera na mesma direcção da força que as puxa para o chão. No nosso modelo
revisto, temos de substituir esta força por outra, que actua em todo o lado na direcção do centro da
Terra. Tendo assim eliminado a sua perplexidade ao dar-lhes um modelo adequado, podemos,
contudo, insistir em perguntar por que há-de haver tal força, a força da gravidade, por que hão-de
os corpos, na ausência de forças que actuem neles, comportar-se «naturalmente» do modo como as
leis de Newton determinam. E podemos conseguir explicá-lo. Podemos, por exemplo, construir um
modelo do espaço que exiba como algo que deriva de si o que na teoria de Newton são «factos
brutos». Temos aqui um caso em que os factos brutos de uma teoria são explicados no quadro de
referência de outra teoria, mais geral. E continuar a procurar teorias cada vez mais gerais é um
princípio metodológico sólido.
Note-se dois aspectos, contudo. O primeiro é que temos de distinguir, como vimos, entre a
possibilidade e a necessidade de dar uma explicação. Pode-se explicar ocorrências particulares
apresentando-as como casos de regularidades, e as regularidades podem ser explicadas
apresentando-as como casos de regularidades mais gerais. Tais explicações tornam as coisas mais
claras. Organizam o que temos perante nós. Introduzem ordem onde previamente havia desordem.
Mas a ausência deste género de explicação (explicação-modelo) não nos deixa com um enigma ou
uma perplexidade, com uma inquietação ou agitação intelectual. As coisas inexplicadas não são
ininteligíveis, incompreensíveis ou irracionais. Algumas coisas, por outro lado, exigem, requerem,
solicitam uma explicação. Enquanto não temos tal explicação, estamos perplexos, atónitos,
intelectualmente perturbados. Precisamos de uma explicação desvexatória.
Ora bem, é necessário admitir que podemos conseguir construir uma teoria mais geral da qual,
digamos, a teoria de Newton se possa derivar. Isto clarificaria ainda mais os fenómenos do
movimento e seria intelectualmente satisfatória. Mas se o tentarmos em vão não ficamos com uma
agitação intelectual. Os factos apresentados na teoria de Newton não exigem explicações
desvexatórias nem precisam delas. Só poderiam exigir ou precisar de tal coisa se já tivéssemos
outra teoria ou modelo com o qual a teoria de Newton fosse incompatível. Não poderiam fazê-lo, por
si mesmas, antes de se ter estabelecido esse outro modelo.
O segundo aspecto é que há um limite objectivo para o qual tendem tais explicações, e para lá do
qual são despropositadas. Há uma razão muito boa para desejar explicar uma teoria menos geral
recorrendo a uma mais geral. Habitualmente, tal unificação anda de mãos dadas com a maior
precisão na medição dos fenómenos explicados pelas duas teorias. Além disso, a teoria mais geral,
devido à sua maior generalidade, pode explicar um domínio mais vasto de fenómenos, incluindo não
apenas os fenómenos já explicados por outras teorias, mas também novos fenómenos recentemente
descobertos, que a teoria menos geral não pode explicar. Ora bem, o limite ideal para o qual essas
expansões das teorias tendem é uma teoria que tudo abrange e que unifica todas as teorias e explica
todos os fenómenos. Claro que tal limite nunca pode ser alcançado, dado que se descobre
constantemente fenómenos novos. Contudo, as teorias podem tender para esse limite. Recorde-se
que a crítica feita às teorias científicas era que não há tal limite porque envolvem uma regressão
infinita. Desse ponto de vista, que rejeito, não há um ponto concebível no qual se poderia dizer que
as teorias científicas explicaram todo o universo. Da perspectiva que defendo há tal limite, e é o
limite para o qual as teorias científicas tendem efectivamente. Defendo que quanto mais perto
chegarmos deste limite, mais perto estamos de uma explicação total e completa de tudo. Pois se
chegássemos a tal limite então, apesar de podermos, é claro, ficar com um modelo que em si não é
explicado e que poderia ainda ser explicado derivando-o de outro modelo, não haveria necessidade
de tal explicação complementar, que seria despropositada. Não haveria necessidade porque
qualquer modelo claramente definido que nos permita esperar que ocorram os fenómenos que o
modelo foi concebido para explicar oferece explicações totais e completas destes fenómenos, por
mais reduzido que seja o seu âmbito. E enquanto nos níveis menores de generalidade há uma boa
razão para fornecer mais modelos gerais, dado que simplificam, sistematizam e organizam mais os
fenómenos, isto, que é a única razão para construir teorias mais gerais, deixa de se aplicar quando
chegamos ao limite ideal de uma explicação que abranja tudo.
Poderia dizer-se que há outra razão para usar modelos diferentes: que estes poderiam permitir-
nos descobrir novos fenómenos. As teorias não são apenas instrumentos de explicação, mas também
de descoberta. Concordo com isto, mas é irrelevante para a tese principal que defendo: que as
necessidades de explicação não exigem que continuemos para sempre a derivar um modelo
explicativo de outro.
Tem de se admitir, então, que no caso das explicações-modelo há uma regressão, mas que não é
viciosa nem infinita. Não é viciosa porque, para explicar um grupo de explicanda, uma explicação-
modelo não precisa, ela mesma, de ser derivada de outra mais geral; fornece por si uma explicação
perfeitamente completa e consistente. E a regressão não é infinita, pois há um limite natural, um
modelo que tudo abrange, que pode explicar todos os fenómenos, para lá do qual seria
despropositado derivar explicações-modelo de outras explicações-modelo.
E quanto à nossa pergunta mais séria? «Por que há realmente algo?» Por vezes, quando
pensamos como uma coisa se desenvolveu a partir de outra, e essa a partir de uma terceira, e assim
sempre, recuando por todo o tempo, somos levados a fazer a mesma pergunta sobre o universo
como um todo. Queremos somar todas as coisas e referi-las pelo nome «o mundo», e queremos
saber por que razão existe o mundo e por que razão não há nada em seu lugar. Em tais momentos, o
mundo parece-nos uma espécie de bolha que flutua num oceano de nada. Por que razão haverá tal
destroço de estar a flutuar no espaço vazio? Certamente que a sua emergência das vagas hialinas do
nada é mais misteriosa até do que a emergência de Afrodite do mar. Wittgenstein expressou nestas
palavras a mistificação que todos sentimos: «Não é como é o mundo que é o místico, mas que é. A
contemplação do mundo sub specie aeterni é a contemplação dele como um todo limitado. Sentir o
mundo como um todo limitado é o sentimento místico.» 12
O professor J. J. C. Smart expressa a sua própria mistificação nestas palavras tocantes:
«Que algo exista realmente parece-me uma questão do mais profundo pasmo. Mas se as outras pessoas
sentem este tipo de pasmo, ou se elas ou eu devemos senti-lo, é outra questão. Penso que devemos senti-lo.
Se for assim, levanta-se a questão: se «Por que haverá de existir realmente algo?» não pode ser
interpretada à maneira do argumento cosmológico, isto é, como um pedido absurdo para se aceitar o
postulado destituído de sentido de um ser logicamente necessário, que género de pergunta é esta? Que
género de pergunta é a pergunta «Por que haverá de existir realmente algo?»? Tudo o que posso dizer é que
ainda não sei.» 13
1. A aceitação da imagem científica do mundo não pode ser a nossa razão para a crença de que
o universo é ininteligível e consequentemente destituído de sentido, apesar de a sua
aceitação, depois de nos terem transmitido a imagem cristã do mundo, poder muito bem ter
sido, no caso de muitos indivíduos, a única causa ou a causa principal da sua crença de que
o universo e a existência humana são destituídos de sentido.
2. Não está de acordo com a razão a rejeição desta crença pessimista com base na ideia de que
as explicações científicas são apenas provisórias e incompletas e têm de ser
complementadas pelas religiosas.
«[…] a história é o cenário de um propósito divino, no qual se inclui toda a história, e Jesus de Nazaré é o
centro de tal propósito, tanto enquanto revelação como realização, enquanto cumprimento de tudo o que foi
passado, e promessa de tudo o que será. […] Se Deus é Deus, e se Ele fez todas estas coisas, por que o fez?
[…] Deus criou um universo, limitado pelas categorias do tempo, espaço, matéria e causalidade porque
desejava desfrutar para sempre da sociedade de uma irmandade de espíritos finitos e redimidos que ao Seu
amor responderam com o amor e o serviço livres e voluntários.» 18
Isto não pode estar certo. Poderia um Deus ser tido como omnisciente, omnipotente e sumamente
bom se, para satisfazer o seu desejo de ser amado e servido, impõe (ou tem de impor) às suas
criaturas a quantidade de sofrimento imerecido que encontramos no mundo?
Contudo, há uma dificuldade ainda mais grave: o propósito de Deus em fazer o universo tem de
ser formulado em termos de uma história dramática em que muitos dos incidentes cruciais
simbolizam concepções e práticas religiosas que já não nos parecem moralmente aceitáveis: a
imposição de um tabu no que respeita aos frutos de uma determinada árvore, o pecado e a culpa em
que Adão e Eva incorreram ao violar o tabu, a ira de Deus, 19 a maldição imposta a Adão e Eva e a
todos os seus descendentes, a expulsão do paraíso, a Expiação pelo sacrifício sangrento de Cristo na
cruz que disponibiliza, por via dos sacramentos, a Graça de Deus, a única maneira de os homens
serem salvos (estabelecendo desse modo, a propósito, o valioso poder dos sacerdotes para perdoar
pecados, sendo assim a única possibilidade que um homem tem de entrar no Céu 20), o Dia do Juízo
Final, no qual os cordeiros serão separados dos chibos e os últimos condenados ao tormento eterno
no fogo do inferno.
É obviamente muito mais difícil formular um propósito para criar o universo e o homem que
justifique a imensa quantidade de sofrimento imerecido que encontramos à nossa volta, para que tal
história se encaixe. Pois agora temos de explicar não apenas por que razão um Deus omnipotente,
omnisciente e sumamente bom haveria de criar tal universo e tal homem, mas também por que
razão, prevendo cada gesto da criatura débil, sem força de vontade, ignorante e avara por Si criada,
haveria mesmo assim de a criar e, tendo-o feito, por que razão haveria de ficar encolerizado e
ultrajado pelos pecados do homem, e por que razão haveria de achar necessário sacrificar o seu
próprio filho na cruz para expiar tal pecado que foi apenas, no final de contas, uma desobediência a
um dos seus mandamentos, e por que razão esta expiação e subsequente redenção não poderia ter
sido seguida pelo regresso do homem ao Paraíso — em especial as crianças inocentes que ainda não
pecaram — e por que razão, no Dia do Juízo Final, este deus misericordioso irá condenar algumas
pessoas ao tormento eterno. 21 Não é surpreendente que perante estas e outras dificuldades
encontremos, uma vez e outra, um regresso à primeira perspectiva: que o propósito supremo de
Deus não pode ser formulado de modo a fazer sentido.
Objectar-se-á talvez que nenhum cristão hoje acredita na história dramática do mundo tal como a
apresentei. Mas isto não é verdadeiro. É a doutrina oficial da Igreja Católica Romana, da Igreja
Ortodoxa Grega e de uma grande parte da Igreja Anglicana. 22 Nem o protestantismo muda
substancialmente esta imagem. De facto, ao insistir na «Justificação Unicamente pela Fé» e ao
rejeitar o carácter ritualista e mágico da interpretação católica medieval de certos elementos da
religião cristã, como as indulgências, os sacramentos e a oração, ao mesmo tempo que insiste na
necessidade da graça, o protestantismo tirou a sustentação do elemento moral do cristianismo
medieval expresso pela ênfase dos católicos no mérito pessoal. 23 O protestantismo, ao repisar S.
Agostinho, que tinha perfeita consciência da incompatibilidade entre a graça e o mérito pessoal, 24
abriu caminho à doutrina da Predestinação de Calvino (doutrina que pertence à família intelectual
dessa forma de determinismo rígido de que habitualmente se culpa a ciência) e à Salvação ou
Condenação desde toda a eternidade. 25 Dado que os católicos romanos, os luteranos, os calvinistas,
os presbiterianos e os baptistas subscrevem oficialmente as perspectivas esboçadas, pode-se afirmar
justificadamente que a esmagadora maioria de cristãos professos as sustentam ou deviam sustentar.
Poderá ainda objectar-se que as perspectivas melhores e mais modernas são totalmente
diferentes. Não tenho o conhecimento necessário para me pronunciar sobre quão fidedigna é tal
afirmação. Pode muito bem ser verdadeiro que as perspectivas melhores e mais modernas são como
as do Professor Braithwaite, que sustenta que o cristianismo é, grosso modo, «moralidade mais
histórias», em que as histórias não têm outra intenção que não tornar os ensinamentos morais
estritos tanto mais fáceis de compreender como mais digeríveis. 26 Ou pode ser que uma ou outra
das perspectivas modernas quanto à natureza e importância da história dramática contada nas
Escrituras Sagradas seja a melhor. A minha resposta é que mesmo que tal seja verdadeiro não prova
o que quero refutar: que podemos extrair uma resposta sensata à nossa pergunta «Qual é o sentido
da vida?» do tipo de história subscrita pela maioria esmagadora dos cristãos que, além do mais,
rejeitariam tais interpretações modernistas com pelo menos tanta indignação como rejeitam as
explicações científicas. Acresce que, apesar de tais perspectivas poderem talvez evitar alguns dos
piores absurdos da história tradicional, dificilmente estão em melhor posição para formular o
propósito com que Deus criou o universo e o homem, pois não podem ultrapassar a dificuldade de
encontrar um propósito suficientemente grandioso e nobre para justificar a enorme quantidade de
sofrimento imerecido no mundo.
Por amor à discussão, contudo, afastemos todas estas objecções. Resta um óbice fundamental
que nenhuma forma de cristianismo pode ultrapassar: o facto de exigir do homem uma atitude
moralmente repugnante relativamente ao universo. Sustenta-se hoje quase unanimemente 27 que o
elemento básico da religião cristã é uma atitude de veneração em relação a um ser supremamente
merecedor de ser venerado e que são os sentimentos e experiências religiosas que fazem quem os
tem ficar ciente de tal ser e que lhe inspiram o conhecimento ou sentimento de completa
dependência, temor, veneração, mistério e auto-humilhação. Há, por outras palavras, uma
bipolaridade (a famosa «relação Eu-Tu») em que o objecto, «o totalmente outro», é exaltado,
enquanto o sujeito é humilhado até ao limite. Rudolf Otto chamou a isto o «sentimento criatural» 28 e
cita, como expressão disso, as palavras de Abraão quando se atreveu a defender os homens de
Sodoma: «Vede, decidi-me a falar na presença do Senhor, eu que nada sou senão pó e cinzas»
(Génesis XVIII.27). Assim, o cristianismo exige do homem uma atitude inconsistente com um dos
pressupostos da moralidade: que o homem não esteja totalmente dependente de outra coisa, que
tenha livre-arbítrio, que o homem possa em princípio ser responsável. Vimos que o conceito de
graça é a tentativa cristã de reconciliar a afirmação de total dependência com a afirmação da
responsabilidade individual (independência parcial), e é óbvio que tais tentativas não podem ser
bem-sucedidas. Podemos afastar como extravagâncias periféricas certas doutrinas, como a do
pecado original ou a do fogo eterno do inferno ou a de que não pode haver salvação fora da Igreja,
mas não podemos rejeitar a doutrina da dependência total sem rejeitar a atitude
caracteristicamente cristã enquanto tal.
3. O sentido da vida
Talvez haja quem tenha sentido que tenho fugido ao verdadeiro problema. Para muitas pessoas, o
ponto capital da questão é aparentemente o seguinte: Como pode a nossa vida ter qualquer sentido
se acaba na morte? Que sentido pode haver nela que a nossa morte inevitável não destrua? Como
pode a nossa existência ser significativa se não há uma vida depois da morte na qual a justiça
perfeita seja alcançada? Como pode a vida ter qualquer sentido se tudo o que nos dá é alguns
prazeres terrenos miseráveis e mesmo estes só raramente desfrutados e por um período de tempo
deploravelmente curto?
Penso que este é o aspecto que absorve a maior parte das pessoas mais profundamente. No
romance Os Possessos, de Dostoievski, mesmo antes de se suicidar, Kirilov afirma que mal nos
damos conta de que não há Deus não podemos mais viver, temos de pôr fim às nossas vidas. Uma
das razões que Kirilov dá é que quando descobrimos que não há paraíso, nada temos para que viver:
«[…] houve um dia na Terra e no meio da Terra havia três cruzes. Um dos que estavam nas cruzes tinha tal
fé que disse ao outro: «Hoje ainda entrarás comigo no paraíso». O dia chegou ao fim, morreram os dois, e
foram-se, mas não encontraram o paraíso nem a ressurreição. O que se afirmou não se tornou verdadeiro.
Ouve: esse homem era o maior de todos os homens na Terra. […] Nunca houve outra pessoa como ele, nem
antes nem depois, e nunca haverá. […] E se isso é assim, se as leis da natureza nem a Ele o pouparam, se
até a ele o fizeram viver no meio de mentiras e morrer por uma mentira, então todo o planeta é uma
mentira e baseia-se numa mentira e numa zombaria estúpida. Assim, as próprias leis do planeta são uma
mentira e uma farsa do diabo. O que há então, pelo que viver?» 29
Também Tolstoi foi quase conduzido ao suicídio quando acabou por duvidar da existência de Deus
e da vida depois da morte. 30 E isto é verdadeiro com respeito a muitas pessoas.
O que nos leva então a pensar que para a vida ter sentido terá de haver uma vida além da morte?
É o facto de a mundividência cristã do mundo conter as seguintes três proposições:
1. A primeira é que desde a Queda, a maldição de Adão e Eva por parte de Deus e a expulsão
do Paraíso, a vida na Terra não tem valido a pena para a humanidade, tem sido antes um
vale de lágrimas, uma longa sequência de miséria, sofrimento, infelicidade e injustiça.
2. A segunda é que nos espera uma além-vida perfeita depois da morte do corpo.
3. A terceira é que só podemos entrar nessa vida perfeita obedecendo a certas condições, entre
as quais está também a condição de suportar a nossa existência terrena até ao seu amargo
fim. Deste modo, a nossa existência terrena que, em si, não valeria a pena viver (pelo menos
para muitas pessoas), ganha sentido e importância: só se a suportarmos poderemos ganhar
admissão no reino dos abençoados.
Poderá duvidar-se de que esta perspectiva ainda seja sustentada hoje em dia. Contudo, não pode
haver dúvida que mesmo hoje todos absorvemos boa parte desta perspectiva na nossa educação
mais precoce. Nos sermões, salienta-se frequentemente o contraste entre a vida perfeita dos
abençoados e a nossa vida de sofrimento e labuta, e ouvimos vezes sem conta que o cristianismo
tem uma mensagem de esperança e consolo para todas as pessoas «que estão abatidas e
oprimidas». 31
Não é pois surpreendente que fiquemos amargamente desapontados quando começamos a
interiorizar as implicações da imagem científica do mundo e a ter dúvidas quanto à existência de
Deus e da outra vida. Pois se não há uma vida depois da morte, então resta-nos apenas a vida
terrena que nos habituámos a encarar como um mal necessário, a dolorosa taxa de admissão na
terra da bem-aventurança eterna. Mas se a bem-aventurança eterna não virá e se este inferno na
Terra é tudo o que há, porquê continuar até ao fim horrível?
O nosso desapontamento surge, portanto, destas duas proposições: que a vida na Terra não vale a
pena, e que há outra vida perfeita de felicidade e júbilo eternos na qual poderemos entrar se
satisfizermos certas condições. Podemos ver as nossas vidas como dotadas de sentido se
acreditarmos em ambas. Não podemos encará-las como dotadas de sentido se nos limitarmos a
acreditar na primeira. Parece-me inevitável que quem aprende algo da história da ciência terá sérias
dúvidas quanto à segunda. Se não conseguir ultrapassá-las, como acontecerá a muitas pessoas,
então essa pessoa terá ou de aceitar a triste perspectiva de que a sua vida é destituída de sentido,
ou de abandonar a primeira proposição: que esta vida terrena não vale a pena. Terá de encontrar o
sentido da sua vida nesta existência terrena. Mas será isso possível?
Basta um momento de reflexão para mostrar que a avaliação cristã da nossa vida terrena como
algo destituído de valor, que aceitamos nos nossos momentos de pessimismo e insatisfação, não é a
que aceitamos normalmente. Considere-se apenas a questão do homicídio e do suicídio. Da
perspectiva cristã, sendo tudo o resto igual, a coisa mais bondosa a fazer seria cada um de nós
matar todos os nossos amigos e entes queridos que ainda têm o infortúnio de estar vivos, cometendo
depois suicídio sem demora, pois cada momento passado nesta vida é um desperdício. Do ponto de
vista cristão, Deus não nos facilitou as coisas de modo algum. Proibiu-nos de apressar a nossa
passagem para a outra vida, ou a dos outros. Os nossos corpos são sua propriedade privada e temos
de permitir que se gastem do modo como Ele decidiu, por mais doloroso e horrível que isso possa
ser. É como se estivéssemos a conduzir um carro a arder. Só há uma saída, que é saltar e deixá-lo
precipitar-se e destruir-se. Mas o dono do carro proibiu-nos de o fazer, sob pena de torturas eternas
piores do que morrer queimado. E assim é melhor morrer queimado dentro do carro.
Desta perspectiva, o homicídio é um mal menos sério do que o suicídio. Pois podemos confessar-
nos e arrepender-nos do homicídio, que assim pode ser perdoado, ao passo que não podemos fazer o
mesmo relativamente ao suicídio — a menos que nos permitamos a saída engenhosa escolhida pela
heroína da peça de Graham Greene, The Living Room, que bebe um veneno de acção lenta mas
mortal e, enquanto espera que faça efeito, arrepende-se de o ter bebido. O homicídio, por outro
lado, não é tão sério porque, para começar, nada tem de roubar à vítima excepto a última volta da
sua marcha pelo vale de lágrimas e, em segundo lugar, pode sempre ser perdoado. Hamlet, não
devemos esquecer, abstém-se de matar o seu tio enquanto este reza porque, como verdadeiro
cristão, pensa que matar o seu tio naquele momento, depois de este ter purificado a sua alma ao
arrepender-se, só lhe traria vantagens, pois o homicídio nesse momento limitar-se-ia a enviá-lo para
uma imerecida felicidade eterna.
Estas perspectivas parecem-nos estranhas, no mínimo. São a consequência lógica da avaliação
medieval oficial desta nossa existência terrena. Se esta vida não vale a pena, então tirá-la não é
roubar grande coisa à pessoa em causa. A única coisa errada no homicídio é prejudicar a
propriedade de Deus, que é o mesmo tanto no caso do homicídio como no caso do suicídio. Não
partilhamos de modo algum esta perspectiva. A nossa perspectiva, pelo contrário, é que o homicídio
é o mal mais sério porque consiste em tirar de alguém e contra a sua vontade a sua possessão mais
preciosa: a sua vida. Por esta razão, quando uma pessoa que sofre de uma doença incurável pede
para ser morta, matá-la misericordiosamente é encarado como um crime muitíssimo menos sério do
que o homicídio porque, em tal caso, quem mata não está a roubar à outra um bem contra a sua
vontade. O suicídio não é encarado de modo algum como um verdadeiro crime, pois da nossa
perspectiva uma pessoa pode fazer o que quiser com as suas possessões.
Contudo, do facto de estas serem as nossas opiniões normais, nada podemos inferir quanto à sua
verdade. Afinal, podemos facilmente estar enganados. É um juízo de valor determinar se a vida vale
a pena ou não. Talvez tudo isto seja apenas uma questão de opinião ou gosto. Talvez não se possa
dar qualquer resposta objectiva. Felizmente, não temos de entrar profundamente nestas questões
difíceis e controversas. É muito fácil mostrar que a avaliação medieval da vida terrena se baseia
num procedimento insensato.
Recordemos por momentos como fazemos os nossos juízos de valor. Quando determinamos os
méritos de estudantes, refeições, tenistas, touros ou misses praia, fazemo-lo com base em alguns
critérios e algum padrão ou norma. Os critérios e padrões variam manifestamente de área para área
e até de caso para caso. Mas isso não significa que não temos qualquer ideia sobre quais são os
critérios ou padrões apropriados a usar. Não seria adequado aplicar os critérios para ajuizar touros
ao ajuizar estudantes ou misses praia. Estes são pontuados relativamente a aspectos muito
diferentes. E até quando os mesmos critérios são adequados, como ao ajuizar estudantes de escolas
e universidades diferentes, os padrões irão variar entre instituições. Os estudantes que seriam
apenas aprovados numa seriam bem classificados noutra. Quanto mais alto for o padrão que se
aplica, mais baixas serão as classificações, isto é, o mérito atribuído ao candidato.
Aplica-se o mesmo procedimento na avaliação de uma vida. Examinamo-la com base em certos
critérios e padrões. A perspectiva cristã medieval usa os critérios do homem comum: ajuíza-se uma
vida pelo que a pessoa em causa pode ganhar com ela; pela medida relativa entre a felicidade e a
infelicidade, o prazer e a dor, a bem-aventurança e o sofrimento. Ajuíza-se que a nossa vida terrestre
não vale a pena porque contém muita infelicidade, dor e sofrimento, pouca felicidade, prazer e bem-
aventurança. Ajuíza-se que a vida seguinte vale a pena porque proporciona bem-aventurança eterna
e nenhum sofrimento.
Armados destes critérios, podemos comparar a vida de diferentes homens, e ajuizar qual vale
mais a pena, qual tem comparativamente mais bem-aventurança relativamente ao sofrimento. Mas
os critérios, só por si, permitem-nos apenas fazer juízos comparativos de valor, e não juízos
absolutos. Podemos dizer qual vale mais e qual vale menos a pena, mas não podemos dizer qual vale
e qual não vale a pena. Para o determinar, temos de introduzir um padrão. Mas que padrão devemos
escolher?
Comummente, o padrão que usamos é a média da categoria em causa. Dizemos que um homem e
uma árvore são altos se ultrapassam bastante a média da sua categoria. Não dizemos que Jones é
um homem baixo por ser mais baixo do que uma árvore. Não ajuizamos um rapaz como mau
estudante por a sua resposta a uma pergunta num exame da escola primária ser muito pior do que a
resposta à mesma pergunta dada por um jovem nos exames finais da faculdade.
Os mesmos princípios têm de se aplicar quando ajuizamos vidas. Quando perguntamos se uma
dada vida vale ou não a pena, temos de ter em consideração o domínio de coisas que valem a pena
que as vidas comuns normalmente abrangem. Os extremos da nossa escala têm de ser a vida melhor
e a vida pior possível que podemos encontrar. Uma vida boa e que vale a pena é a que está bem
acima da média. Uma má está muito abaixo.
A avaliação cristã das vidas terrenas é insensata porque adopta um padrão injustificadamente
alto. O cristianismo destaca as maiores imperfeições da nossa existência terrena: não há suficiente
felicidade; há demasiado sofrimento; os aspectos bons e maus estão distribuídos de modo
muitíssimo desigual e injusto; os desprivilegiados e desfavorecidos não têm compensações
adequadas; dura pouco tempo. Descreve depois muito bem a vida perfeita ou ideal: uma vida sem
qualquer uma destas imperfeições. O seu próximo passo é prometer ao crente que mais tarde
poderá usufruir desta vida perfeita. E depois adopta como padrão de juízo a vida perfeita,
desqualificando como inadequado seja o que for que não esteja à sua altura. Tendo desqualificado a
vida terrena por ser miserável, torna-a ainda pior ao caracterizar a maior parte dos prazeres que a
existência terrena permite como bestiais, ordinários, vis e pecaminosos, ou alternativamente como
não sendo realmente agradáveis.
Este procedimento é tão ilegítimo como se eu me recusasse a chamar «alto» a seja o que for a
menos que fosse infinitamente alto, ou «belo» a seja o que for a menos que fosse perfeitamente
imaculado, ou «forte» a seja quem for a menos que fosse omnipotente. Mesmo que fosse verdadeiro
que temos à nossa disposição uma vida depois da morte, imaculada e perfeita, não seria legítimo
ajuizar as vidas terrenas por este padrão. Não reprovamos todo o candidato que não seja um
Einstein. E se não acreditamos numa vida depois da morte, temos, é claro, de usar padrões terrenos
comuns.
Até agora falei apenas do que vale a pena, do que uma pessoa pode ganhar da vida. Há outros
tipos de avaliação. Avaliamos claramente as vidas das pessoas não apenas do ponto de vista do que
essas vidas proporcionam às pessoas que as vivem, mas também do ponto de vista de outros homens
que essas vidas afectaram. Ajuizamos uma vida como mais significativa se a pessoa contribuiu para
a felicidade dos outros, seja directamente pelo que fez a outros, seja pelos planos, descobertas,
invenções e trabalho que realizou. Muitas vidas que pouco têm em termos de prazer ou felicidade
para quem as viveu são muitíssimo significativas e valiosas, merecem admiração e respeito devido
às suas contribuições.
É agora completamente claro que a morte é simplesmente irrelevante. Se a vida pode realmente
valer a pena, então pode valer a pena mesmo que seja curta. E se não vale de modo algum a pena,
então uma eternidade disso é pura e simplesmente um pesadelo. Pode ser triste que tenhamos de
deixar este belo mundo, mas só o é se for belo e porque é belo. E não é menos belo por chegar ao
fim. Suspeito, pelo contrário, que uma eternidade dele poderia fazer-nos apreciá-lo menos, e no fim
seria um tédio.
Objectar-se-á talvez, neste momento, que não demonstrei realmente que a vida tem um sentido,
mas apenas que pode valer a pena ou ter valor. Tem de se admitir que há uma interpretação
perfeitamente natural da pergunta «Qual é o sentido da vida?» segundo o qual a minha perspectiva
prova efectivamente que a vida não tem sentido. Refiro-me à interpretação discutida na Secção 2
desta prelecção, na qual tentei mostrar que, se aceitarmos as explicações das ciências da natureza,
não podemos acreditar que os organismos vivos apareceram na Terra de acordo com o plano
deliberado de um ser inteligente. Por isso, segundo esta perspectiva, não se pode dizer que a vida
tem um propósito, na acepção em que as coisas feitas pelo homem têm um propósito. Por isso, não
se pode dizer que tem um sentido ou que é significativa nessa acepção.
Contudo, esta conclusão é inócua. As pessoas só ficam desconcertadas pelo pensamento de que a
vida não tem sentido nessa acepção porque pensam muito naturalmente que isso implica que
nenhuma vida individual pode igualmente ter sentido. Presumem naturalmente que esta ou aquela
vida só pode ter sentido se a vida como tal tem sentido. Mas já deveria ser claro que a sua vida e a
minha podem ter sentido ou não (numa acepção) mesmo que a vida como tal não tenha sentido (na
outra acepção). É claro que se segue disto que a sua vida pode ter sentido enquanto a minha não. A
perspectiva cristã garante um sentido (numa acepção) a todas as vidas, a perspectiva científica não
(em qualquer acepção). Ao relacionar a questão do sentido da vida com as circunstâncias
particulares da existência de um indivíduo, a perspectiva científica deixa em aberto a questão de
saber se a vida de um indivíduo tem sentido ou não. Contudo, é claro que esta última é a acepção
importante de «ter um sentido». Também os cristãos têm de sentir que a sua vida foi um desperdício
e é destituída de sentido se não alcançarem a salvação. Saber que mesmo tais vidas perdidas têm
um sentido noutra acepção não é um consolo para eles: o que conta não é que a vida tenha um
sentido garantido, independentemente do que acontecer aqui ou no além, mas que, por sorte
(Graça) ou por ter o temperamento e atitude certos (Fé) ou uma vida judiciosa (Obras) uma pessoa
aproveite ao máximo a sua vida.
«Mas é aqui que está o busílis», poderá dizer-se. «Certamente que faz toda a diferença haver ou
não uma vida depois da morte. É aqui que entra a moralidade.» Seria um erro pensar tal coisa. A
moralidade não é a distribuição de castigos e recompensas. Ser moral é abster-se de fazer aos
outros o que, se eles seguissem a razão, não fariam a si mesmos, e fazer aos outros o que, se eles
seguissem a razão, quereriam fazer. É, grosso modo, reconhecer que também os outros têm direito a
uma vida que valha a pena. Ser moral não faz a nossa própria vida valer a pena; ajuda os outros a
fazer a vida deles valer a pena.
4. Conclusão
Tentei estabelecer três ideias principais:
Com base nestas três ideias principais tentei explicar por que razão tantas pessoas chegam à
conclusão de que a existência humana é destituída de sentido e mostrar que esta conclusão é falsa.
Na minha opinião, este pessimismo baseia-se numa combinação de duas crenças, ambas
parcialmente verdadeiras e parcialmente falsas: a crença de que o sentido da vida depende da
satisfação de pelo menos três condições, e a crença de que este universo nenhuma satisfaz. As
condições são, primeiro, que o universo é inteligível, segundo, que a vida tem um propósito, e
terceiro, que todas as esperanças e desejos dos homens podem em última análise ser satisfeitos.
Parecia aos cristãos medievais, e parece a muitos cristãos hoje, que o cristianismo oferece uma
imagem do mundo que pode responder a estas condições. Tanto a muitos cristãos como a muitos
que não são cristãos parece que a imagem científica do mundo é incompatível com a do
cristianismo, e consequentemente com a perspectiva de que a vida tem um sentido. Daí que se
sintam confrontados pelo dilema de aceitar uma imagem do mundo incompatível com as descobertas
da ciência ou aceitar a perspectiva de que a vida é destituída de sentido.
Tentei mostrar que o dilema é irreal porque a vida pode ter sentido mesmo que nem todas estas
condições sejam satisfeitas. A minha conclusão principal, consequentemente, é que a aceitação da
imagem científica do mundo não fornece qualquer razão para dizer que a vida é destituída de
sentido, fornecendo pelo contrário todas as razões para dizer que há muitas vidas que têm sentido e
importância. A minha conclusão subsidiária é que uma das razões que frequentemente se apresenta
para manter a imagem cristã do mundo, nomeadamente, que a sua aceitação nos dá uma garantia
de um sentido para a existência humana, não é sólida. É visível que as nossas vidas podem ter um
sentido mesmo que a abandonemos e adoptemos em seu lugar a imagem científica do mundo. Além
disso, mencionei várias razões para rejeitar a imagem cristã do mundo:
1. As explicações bíblicas dos pormenores do nosso universo são muitas vezes simplesmente
falsas;
2. As chamadas explicações da totalidade do universo são incompreensíveis ou absurdas;
3. A baixa valoração cristã da existência humana (que é a causa principal da crença no sem
sentido da vida) baseia-se no uso de um padrão de juízo injustificadamente elevado.
1 Conde Leão Tolstoi, «Confissão», reimpresso em A Confession: The Gospel in Brief, and What I Believe, N.º 229,
The World’s Classics (Londres: Geoffrey Cumberlege, 1940). Trad. port. “Confissão”, in Textos e Problemas de
Filosofia, org. Aires Almeida e Desidério Murcho (Lisboa: Plátano, 2006).
2 Veja-se, por exemplo, Edwyn Bevan, Christianity, pp. 211-227. Veja-se também H. J. Paton, The Modern
Predicament (Londres: George Allen and Unwin Ltd., 1955), pp. 103-116, 374.
3 Veja-se, por exemplo, L. E. Elliott-Binns, The Development of English Theology in the Later Nineteenth Century
(Londres: Longmans, Green & Co., 1952).
4 Veja-se Fédon (Five Dialogues by Plato, Everyman’s Library N.º 456), § 99, p. 189. Trad. port. de M. T. Schiappa
de Azevedo (Coimbra: Livraria Minerva, 2001).
5 «Da Origem Última das Coisas» (The Philosophical Writings of Leibniz, Everyman’s Library N.º 905), p. 32.
6 Veja-se «Monadologia» (The Philosophical Writtings of Leibniz, Everyman’s Library N.º 905), §§ 32–38, pp. 8–10.
7 Para usar um termo útil introduzido pelo Professor D. A. T. Gaskin da Universidade de Melbourne.
8 Veja-se, por exemplo, J. J. C. Smart, «The Existence of God», reimpresso em New Essays in Philosophical
Theology, org. por A. Flew e A. MacIntyre (Londres: S. C. M. Press, 1957), pp. 35–39.
9 Que a criação a partir do nada não é uma noção clarificadora torna-se óbvio quando vemos que «no sentido
filosófico» não implica que a criação tenha ocorrido num momento particular. O universo poderia ser considerado
uma criação a partir do nada mesmo que não tivesse começo. Veja-se, por exemplo, E. Gilson, The Christian
Philosophy of St. Thomas Aquinas (Londres: Victor Gollancz Lda. 1957), pp. 147–155 e E. L. Mascall, Via Media
(Londres: Longman, Green & Co., 1956), pp. 28 et seq.
10 No que se segue apoiei-me fortemente no trabalho de Ryle e Toulmin. Veja-se, por exemplo, G. Ryle, The
Concept of Mind (Londres: Hutshinson’s University Library, 1949), pp. 56–60 etc. e o seu artigo «If, So, and
Because», in Philosophical Analysis, org. por Max Black, e S. E. Toulmin, Introduction to the Philosophy of Science
(Londres: Hutchinson’s University Library, 1953).
11 Veja-se acima, pontos a–c.
12 L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus (Londres: Routledge & Kegan Paul Ltd., 1992), Sec. 6.44–6.45.
Trad. port. de M. S. Lourenço (Lisboa: Gulbenkian, 1987).
13 Op. Cit., p. 46. Veja-se também Rudolf Otto, The Idea of the Holy (Londres: Geoffrey Cumberlege, 1952), esp.
pp. 9-29.
14 Os teólogos contemporâneos admitiriam que não se pode provar que o universo tem de ter tido um começo.
Admitiriam que o sabemos apenas através da revelação (veja-se a nota 9). Tomo mais ou menos como garantido
que é inválida a prova que Kant tentou da Tese na sua Primeira Antinomia da Razão (Crítica da Razão Pura, de
Immanuel Kant, trad. Norman Kemp Smith (Londres: Macmillan and Co. Ltd., 1950), pp. 396–402; trad. port. de M.
P. dos Santos et al. (Lisboa: Gulbenkian, 1985)). Depende de uma premissa falsa: que completar a série infinita de
estados sucessivos, que terá de preceder o estado presente se o mundo não teve começo, é logicamente
impossível. Podemos persuadir-nos a pensar que esta série infinita é logicamente impossível se insistirmos que é
uma série que tem, literalmente, de ser completada. Pois o verbo «completar», tal como normalmente o usamos,
implica uma actividade que, por sua vez, implica um agente que terá de ter começado a actividade num dado
momento. Se uma série infinita é um todo que tem de ser completado, então, de facto, o mundo terá de ter tido um
começo. Mas isso é precisamente o que está em causa. Se dissermos, como Kant começa por dizer, «que passou
uma eternidade», não sentimos a mesma impossibilidade. Só quando levamos a sério as palavras «síntese» e
«completar», e porque ambas sugerem ou implicam «trabalho» ou «actividade» e consequentemente «começo», é
que parece necessário que uma infinidade de estados sucessivos não pode ter decorrido. (Veja-se também R.
Crawshay-Williams, Methods and Criteria of Reasoning (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1957), Ap. iv.)
15 Veja-se, por exemplo, «Is Life Worth Living?», Comunicação da BBC pelo Reverendo John Sutherland Bonnell in
Asking Them Questions, terceira série, org. por R. S. Wright (Londres: Geoffrey Cumberlege, 1950).
16 Veja-se, por exemplo, Rudolf Otto, The Idea of the Holy, pp. 9–11. Veja-se também C. A. Campbell, On Selfhood
and Godhood (Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1957), p. 246, e H. J. Paton, The Modern Predicament, pp. 69–
71.
17 Para uma discussão deste tema, veja-se a controvérsia setecentista entre deístas e teístas, por exemplo, em Sir
Leslie Stephen, History of English Thought in the Eighteenth Century (Londres: Smith, Elder & Co., 1902), pp.
112–119 e pp. 134–163. Veja-se também os ataques de Toland e Tindal ao «misterioso» em Christianity not
Mysterious e Christianity as Old as the Creation, or the Gospel: A Republication of the Religion of Nature,
respectivamente, partes dos quais foram reimpressos em Henry Betteson, Doctrines of the Christian Church, pp.
426–431. Para perspectivas modernas que defendem que o mistério é um elemento essencial da religião, veja-se
Rudolf Otto, The Idea of the Holy, especialmente pp. 25–40, e mais recentemente M. B. Foster, Mystery and
Philosophy (Londres: S. C. M. Press, 1957), especialmente os capítulos IV e VI. Para a perspectiva de que as
afirmações acerca de Deus têm de ser destituídas de sentido ou absurdas, veja-se, por exemplo, H. J. Paton, op.
cit., pp. 119–120, 367–369. Veja-se também «Theology and Falsification» em New Essays in Philosophical
Theology, org. por A. Flew e A. MacIntyre (Londres: S. C. M. Press, 1955), pp. 96–131; e também N. McPherson,
«Religion as the Inexpressible», ibid., especialmente pp. 137–143.
18 Stephen Neill, Christian Faith To-day (Londres: Penguin Books, 1955), pp. 240–241.
19 É difícil sentir a magnitude deste primeiro pecado caso não se leve a sério as palavras «Olhai, o homem comeu
do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, e tornou-se como um de nós; e agora não poderá ele
estender a sua mão e tirar também da árvore da vida, e comer, e viver para sempre?» Génesis iii, 22.
20 Veja-se a propósito disto a carta pastoral de 2 de Fevereiro de 1905 de Johannes Katschtaler, bispo-princípe de
Salzburgo, a respeito das honrarias devidas aos sacerdotes, que se encontra em Quellen zur Geschichte des
Papsttums, de Mirbt, pp. 497–499, traduzido e reimpresso em The Protestant Tradition, por J. S. Whale
(Cambridge: Cambridge University Press, 1955), pp. 259–262.
21 Quão impossível é dar sentido a esta história foi demonstrado para lá de qualquer dúvida por Tolstoi na sua
famosa «Conclusão de Uma Crítica da Teologia Dogmática», reimpressa em A Confession: The Gospel in Brief, and
What I Believe.
22 Veja-se «The Nicene Creed», «The Tridentine Profession of Faith», «The Syllabus of Errors», reimpresso em
Documents of the Christian Church, pp. 34, 373 e 380, respectivamente.
23 Veja-se, por exemplo, J. S. Whale, The Protestant Tradition, Cap. IV, especialmente pp. 48–56.
24 Veja-se ibid., pp. 61 et seq.
25 Veja-se «The Confession of Augsburg», especialmente os artigos II, IV, XVIII, XIX, XX; «Christianae Religionis
Institutio», «The Westminster Confession of Faith», especialmente os artigos III, VI, IX, X, XI, XVI, XVII; «The
Baptist Confession of Faith», especialmente os artigos III, XXI, XXIII, reimpressos em Documents of the Christian
Church, pp. 294 et seq., 298 et seq., 344 et seq., 349 et seq.
26 Veja-se, por exemplo, o seu An Empiricist’s View of the Nature of Religious Belief (Eddington Memorial
Lecture).
27 Veja-se, por exemplo, as duas séries de Palestras Gifford de publicação mais recente: The Modern Predicament,
de H. J. Paton (Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1955), pp. 69 et seq., e On Selfhood and Godhood, de C. A.
Campbell (Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1957), pp. 231–250.
28 Rudolf Otto, The Idea of the Holy, p. 9.
29 Fiodor Dostoievski, The Devils (Londres: The Penguin Classics, 1953), pp. 613–614.
30 Leo Tolstoy, A Confession, The Gospel in Brief, and What I Believe, The World’s Classics, p. 24. Trad. port. in
Textos e Problemas de Filosofia, org. por Aires Almeida e Desidério Murcho (Lisboa: Plátano, 2006).
31 Veja-se, por exemplo, J. S. Whale, Christian Doctrine, pp. 171, 176–178, etc. Veja-se também Stephen Neill,
Christian Faith To-day, p. 241.
3
N este ensaio, exploro a teoria tradicional centrada em Deus sobre o que pode dar sentido a
uma vida humana. Tomo a questão de saber o que pode dar sentido à vida como a questão
de saber o que há nas nossas vidas (além da mera sobrevivência) que possa ser digno de
grande estima. 1 Uma teoria centrada em Deus, tal como a interpreto aqui, responde que a vida de
alguém é digna de grande estima unicamente na medida em que essa pessoa tiver uma relação
adequada com um ser espiritual que fundamenta o universo natural. E a perspectiva tradicional
centrada em Deus sustenta que pelo menos uma relação adequada a ter com Deus é cumprir o Seu
propósito. Chame-se a esta perspectiva «teoria do propósito». 2
A teoria do propósito é uma explicação à partida atraente do que poderá dar sentido à vida.
Explicita o que significa «ter uma razão para existir» ou «ter um objectivo na vida». Acomoda-se ao
facto de «propósito» ser um dos sinónimos de «sentido». Explica a intuição de que o que confere
sentido à vida de alguém é uma questão objectiva, isto é, que o sentido não é meramente uma
função de satisfazer quaisquer desejos que uma pessoa por acaso tenha. Fornece um candidato
plausível para o que poderá conferir importância às nossas vidas, nomeadamente um ser sagrado.
Finalmente, adequa-se ao juízo de que a maior parte das pessoas (se não todas) são capazes de viver
uma vida com sentido, mas que nem todas vivem de facto uma vida com sentido.
Apesar destas vantagens, vários teorizadores defenderam que realizar o plano de Deus não
poderia dar sentido às nossas vidas. De facto, muitos defendem que a teoria do propósito, quando
combinada com teses muito plausíveis, implica contradições lógicas. Há argumentos importantes na
bibliografia que pretendem mostrar que a teoria do propósito implica os absurdos de que Deus não é
sumamente bom, que não é omnipotente e que não é eterno.
Neste ensaio, argumentarei que há versões da teoria do propósito que não implicam estes
absurdos. Mostrar-se-á que os três argumentos principais por reductio contra a teoria do propósito
são improcedentes. Contudo, a discussão crítica destes argumentos irá levar-nos a uma objecção
mais eficaz à teoria do propósito. Argumentarei também que a reflexão sobre a razão pela qual Deus
poderá ser a chave para uma vida com sentido indica que a teoria do propósito tem de ser falsa. A
explicação mais promissora da razão pela qual uma relação com Deus poderia ser a única fonte de
importância sugere que o que constitui tal fonte terá de ser algo que não o alcançar de uma
finalidade atribuída por Deus. Em suma, a melhor razão de ser para uma teoria centrada em Deus
em geral é incompatível com a versão particular da teoria centrada em Deus que dominou o
pensamento religioso sobre o sentido da vida. Não tenho a certeza de que esta nova objecção seja
sólida; avanço-a como algo a que é preciso dar resposta para que a crença na teoria do propósito
seja plausível.
Começarei por explicar a teoria do propósito com algum pormenor, diferenciando o que é
meramente compatível com a perspectiva do que lhe é essencial. Ao fazê-lo, responderei também a
objecções que se baseiam em incompreensões da teoria do propósito, limpando o terreno para uma
discussão de críticas mais substanciais. Nas três secções seguintes refutarei as acusações de que a
teoria do propósito implica estranhamente que Deus nos trataria imoralmente, não seria
omnipotente nem eterno. Depois, levanto um problema novo à teoria do propósito: que não se
acomoda à melhor explicação da teoria centrada em Deus. Depois de rejeitar várias explicações da
razão pela qual uma relação com Deus poderá ser necessária para a vida ter sentido, apresentarei o
que me parece a melhor explicação — explicação que mostrarei que contradiz a teoria do propósito.
Assim, concluirei a título de hipótese que a realização do propósito de Deus não pode ser o que faz a
relação com Deus dar sentido às nossas vidas. Terminarei o ensaio apontando tanto para maneiras
de responder a esta objecção que os defensores da teoria do propósito poderão explorar, como para
vias de investigação disponíveis a pensadores religiosos que ponham em causa a teoria do propósito.
Coerção
Porquê sustentar que ao atribuir-nos um fim Deus estaria a ser desrespeitador? Primeiro, restringir
a escolha de uma pessoa fazendo ameaças é uma forma de desrespeito por excelência, e parece que
Deus estaria a ameaçar-nos ao tornar a danação eterna a consequência de não realizarmos o Seu
fim. 10
Para começar, note-se que uma ameaça não é necessariamente desrespeitadora; depende da
razão pela qual foi feita a ameaça. Especificamente, no contexto de um sistema penal retributivo
uma ameaça não é desrespeitosa. Para clarificar as coisas, suponha-se que uma sociedade humana
institui um sistema penal para castigar merecidamente quem viola leis justas. Apesar de com este
sistema penal não se ter em vista a dissuasão do crime, a sociedade estaria mesmo assim a ameaçar
quem violasse as leis justas. Independentemente do seu propósito, a mera existência de um sistema
penal ameaça os cidadãos ao dizer «Se violar a lei, será intencionalmente prejudicado». Não parece
que tais ameaças seriam desrespeitadoras, sob o pressuposto plausível de que a pena retributiva é
respeitadora.
Logo, se não seria desrespeitador que um estado fizesse ameaças no contexto de um sistema
penal retributivo, não seria desrespeitador que Deus fizesse ameaças ao fazer o mesmo. Se o
propósito de Deus fosse que fôssemos morais, então não cumprir tal propósito justificaria o castigo,
e quaisquer ameaças que Deus fizesse ao impor tal castigo seriam respeitadoras.
Infelizmente, não podemos ficar satisfeitos com esta resposta, pois parece não ser possível que
um ser humano mereça a danação eterna. Nenhuma acção finita pode merecer uma reacção infinita.
Se isto for assim, então mesmo monstruosidades como Hitler ou Estaline não merecem ficar no
inferno para sempre. Daí que eu acredite que o teorizador do propósito tenha de rejeitar a ideia de
que Deus iria impor a danação eterna a quem não cumprisse o propósito que Ele lhes atribui. O
defensor da teoria do propósito pode aceitar que temos almas que vivem para sempre. Pode também
sustentar que Deus iria impor um castigo finito às almas que tivessem rejeitado o Seu fim (moral).
Contudo, para evitar a acusação de que, ao atribuir-nos um propósito, Deus estaria a ser
desrespeitadoramente coercivo, suspeito que o defensor da teoria do propósito terá de rejeitar o
postulado de que Deus enviaria os recalcitrantes para o inferno para sempre. Se eu estiver
enganado quanto a isto, tanto melhor para o defensor da teoria do propósito que for entusiástico
quanto à perspectiva da danação eterna para os perversos. O ponto importante é que a teoria do
propósito pode evitar a acusação de que implica que Deus seria imoralmente coercivo ao atribuir-
nos um propósito.
Exploração
Mesmo que o defensor da teoria do propósito rejeite a noção de danação eterna, podem mesmo
assim surgir acusações de desrespeito. De facto, pode parecer desrespeitador que Deus ofereça o
Céu em troca de realizarmos o Seu fim. Poder-se-á ver isto como uma «oferta coerciva» ou, em
termos que me parecem mais aplicáveis, uma forma de exploração. Parece uma exploração, e
consequentemente um desrespeito, oferecer comida a um faminto em troca de ele fazer o que
quisermos. Que escolha teria ele se não conformar-se à nossa vontade? Por analogia, o crítico pode
sustentar que seria explorador da parte de Deus oferecer a criaturas finitas uma eternidade de bem-
aventurança em troca do cumprimento dos seus pedidos. O Padrinho estaria a fazer uma oferta que
não poderíamos recusar.
É claro que uma opção para o defensor da teoria do propósito seria rejeitar a recompensa do Céu
eterno, do mesmo modo que, como argumentei, terá de rejeitar o castigo do inferno eterno. O
defensor poderia sustentar que Deus não forneceria recompensa por realizarmos o Seu fim, ou que
forneceria uma recompensa moderada.
Contudo, penso que o teorizador do propósito pode plausivelmente sustentar que Deus poderia
recompensar-nos com a bem-aventurança eterna por agir de acordo com a Sua vontade. A acusação
de «exploração» emerge mais naturalmente quando o propósito da pessoa que faz a oferta envolve a
degradação ou prejuízo do outro. As pessoas não hesitariam, na sua maior parte, em chamar
«exploração» à oferta de comida a um faminto em troca de sexo ou de um rim. Contudo, não é claro
que seja uma exploração oferecer comida a tal pessoa em troca da manutenção do seu agir racional
ou de trabalho em tempo parcial numa cozinha de alimentação de pobres. Se isto não seria uma
exploração, então também não seria também uma exploração Deus oferecer-nos o Céu para sempre
em troca do cumprimento do Seu fim de que ajamos moralmente.
Condescendência
Há uma terceira versão do Argumento do Desrespeito, nomeadamente, a de Kurt Baier. A sua versão
é interessante porque não depende de Deus impor qualquer esquema de punição ou recompensa.
Dado que as observações de Baier são importantes e influentes, cito completamente a passagem
relevante:
«Não depreciamos um cão quando dizemos que não tem qualquer propósito, não é um cão pastor nem um
cão polícia […] Contudo, o homem pertence a uma categoria completamente diferente. Atribuir a um ser
humano um propósito nesta acepção não é neutro, nem sequer lisonjeiro: é ofensivo. É degradante que um
homem seja encarado meramente como algo que serve um propósito. Se, numa festa, eu perguntar a um
empregado «Qual é o seu propósito?», estarei a insultá-lo. Poderia igualmente ter-lhe perguntado «Para que
serve você?». Tais questões reduzem-no ao nível de uma geringonça, um animal doméstico, ou talvez um
escravo. Estaria a sugerir que nós lhe atribuímos as tarefas, os objectivos, os fins que ele deve procurar
alcançar; que as suas aspirações e desejos e propósitos pouco ou nada contam. Estaríamos a tratá-lo, na
expressão de Kant, meramente como um meio para os nossos fins, e não como um fim em si. […] [A teoria
do propósito] encara o homem como uma criatura, um artefacto divino, algo a meio caminho entre um robô
(manufacturado) e um animal (vivo), um homúnculo, ou talvez um Frankenstein, feito no laboratório divino,
com um propósito, ou tarefa, que lhe foi atribuído pelo seu Criador.» 11
A afirmação de Baier não é que o propósito de Deus seria «egoísta», isto é, que seria do seu
interesse mas não do nosso. Logo, não é suficiente observar que o propósito de Deus seria do nosso
interesse objectivo. 12 A apreensão de Baier quanto à atribuição por parte de Deus de um propósito
aos seres humanos é que isso nos degradaria, e não que nos prejudicaria. Baier objecta que quando
nos é atribuído um propósito a nossa capacidade de escolha racional é tratada como um mero
instrumento a ser usado para a realização de um propósito que não partilhamos. É irrelevante que
realizar o propósito seja bom para nós; isso apenas acrescenta um aspecto paternalista à
degradação.
Vale também a pena observar que a afirmação de Baier não é que é sempre desrespeitador ver
alguém como útil. Daí que não se possa responder a Baier apresentando casos nos quais não é
desrespeitador atribuir valor de uso a pessoas. Quando perguntamos a um estranho qual é a sua
profissão, estamos de facto a perguntar como contribui ele para a sociedade, e nada há de
desrespeitador nisto. 13 Um caso deste género não é contrário a Baier, pois perguntar pela profissão
de alguém não tem de envolver tratar a pessoa meramente como um meio, que é a apreensão de
Baier.
Para que Deus nos atribuísse um propósito, teria claramente de nos encarar como um meio, isto
é, como úteis para a realização do seu fim. A questão é saber se por isso Deus tem de nos encarar
unicamente como um meio, e isso não é assim tão claro. Se Deus não coagiu, explorou ou enganou
os seres humanos para que cumprissem um propósito, então não usou essa forma central de tratar
uma pessoa meramente como um meio que é a manipulação. Contudo, o exemplo de Baier não
envolve o uso da força ou de fraude para obrigar um agente a fazer algo. No caso de Baier, o agente
é insultado, e não manipulado. Ao perguntar a uma pessoa para que serve ela, exprime-se
ofensivamente o juízo de que uma pessoa não existe para si mesma. Terá Deus analogamente de nos
insultar na medida em que nos atribui um propósito? Poderá parecer que sim. Se Deus tem um
propósito que quer que cumpramos, parece que nos teria de dizer que propósito é esse. Assim, se
Deus nos atribuiu um propósito, teria de algum modo de dizer a cada um de nós «Há algo que
gostaria que fizesses com a tua vida, e esta é a razão da tua existência». Posta assim, esta afirmação
parece realmente um pouco condescendente.
Contudo, se reflectirmos mais sobre o que poderá ser o propósito de Deus e como Deus poderá
procurar promovê-lo, a afirmação pode fazer parte de uma elocução respeitosa. Por exemplo,
suponha-se que o fim que Deus nos atribui é o exercício do nosso livre-arbítrio de um modo moral.
Informar-nos de um fim deste género não tem de ser condescendente. Suponha-se que completamos
a afirmação de Deus do seguinte modo: «Há algo que gostaria que fizesses com a tua vida, e esta é a
razão da tua existência. Especificamente, gostaria que fosses uma pessoa moral. O teu livre-arbítrio
não me permite adular-te para que uses o livre-arbítrio moralmente, e a tua escolha moral só será
valiosa se for livre. Logo, tenho de te pedir que te entregues ao fim fundamental de te entregares a
fins morais.» Podemos até imaginar que poderia incluir-se um «por favor».
Em suma, atribuir-nos um propósito poderá ser uma questão de pedido divino em vez de
mandamento divino. Se atribuir-nos um fim pode ser uma questão de nos ser pedido que adoptemos
o fim voluntariamente, então nada tem de haver de insultuoso ao ser-nos atribuído um fim. Podemos
muito bem imaginar um pai ou uma mãe a dizer à sua filha adulta que a criou para que houvesse
outra pessoa boa no planeta, um fim que ele espera que ela decida livremente partilhar com ele.
Não tem de haver aqui condescendência.
[…] falar deste modo é presumir que se pode referir uma intencionalidade fora do tempo e do espaço
comparável ao que ocorre no tempo e no espaço. Essa é a deficiência básica na analogia […]. Não é uma
questão de determinar se podemos apreender o plano cósmico, ou provar que há um arquitecto cósmico, ou
conseguir cumprir o seu programa intencional. É uma questão de saber se a nossa mente consegue
formular estas noções com algum grau de clareza. 16
Passo 1
Ao procurar uma explicação aceitável da razão pela qual só Deus poderia tornar as nossas vidas
significativas, temos de apelar para características que não se podem encontrar em qualquer outro
lado além de Deus. Uma vez mais, se as nossas vidas adquirem importância na exacta medida em
que temos uma relação apropriada com Deus, então para explicar por que razão Deus é central para
o sentido da vida temos de apelar a características que só Deus pode manifestar. Tendo isto em
mente, esbocemos rapidamente algumas concepções comuns da razão pela qual a vida poderia ser
destituída de sentido sem Deus.
Em primeiro lugar, muitas pessoas sustentam que Deus impediria que as nossas vidas fossem
acidentais. 20 A ideia é que sem Deus como nossa fonte e destino, as nossas vidas seriam
contingentes e aleatórias, o que as tornaria destituídas de sentido. Ora, não é inteiramente claro o
que quer dizer uma vida «contingente» ou «acidental». Parece compreender-se bem, contudo, como
uma vida cuja existência ou curso não está bem fundamentada na textura da realidade. Uma vida
que poderia não se ter originado, ou que perecerá numa mão cheia de anos, parece acidental a este
respeito. Em contraste, uma vida que tem origem e que regressa a uma fonte espiritual do mundo
físico pareceria não ser acidental.
Há dois problemas nesta concepção. Primeiro, se, como muitos teístas acreditam, a natureza de
Deus não o obrigou a criar-nos, então é argumentável que Deus não fundamenta a necessidade das
nossas vidas; teria sido a sua escolha contingente que nos criou. Segundo, mesmo que a natureza de
Deus tenha exigido que nos criasse (ou mesmo que a sua escolha contingente de nos criar impedisse
que as nossas vidas fossem «contingentes» no sentido relevante), não é claro que só Deus poderia
evitar a contingência. Para se ver porquê, suponha-se que o universo é sempiterno. Além disso,
admita-se que as leis fundamentais da física ditam apenas um caminho ao universo, um caminho que
teve como resultado necessário o facto de termos surgido. Por fim, imagine-se que éramos mais ou
menos como os vampiros, capazes de viver indefinidamente. Dado que sob estas condições
naturalistas as nossas vidas estariam firmemente enraizadas na estrutura da realidade, parece que
Deus não é necessário para evitar a contingência. Assim, o facto de Deus poder impedir que as
nossas vidas sejam contingentes não pode explicar por que razão uma relação com Ele é necessária
para o sentido.
O mesmo se aplica à sugestão de que Deus poderia tornar as nossas vidas parte de um plano
grandioso, que abrange todo o universo. Há quem sugira que, de um ponto de vista extremamente
objectivo, as nossas vidas ficariam sem sentido se não tivessem um qualquer grande impacto no
universo ou se não desempenhassem um papel crucial no seu desenvolvimento. 21 Se Deus não
existisse, segundo este argumento, seríamos apenas seres de curta duração que existem na terceira
rocha de uma estrela num imenso mar de estrelas.
Contudo, a existência de Deus não é necessária para evitar esta condição, como uma breve
reflexão sobre a série de televisão Star Trek poderá sugerir. Se pudermos viajar à velocidade da luz
ou perto disso, poderíamos então efectivar um plano de imenso alcance. Logo, não pode ser o mero
âmbito que explica como poderá Deus ser a única fonte do que a vida tem de significativo.
Considere-se agora a teoria da justiça, a versão relevante que sustenta que não poderia existir
justiça, ou mais em geral moralidade, se Deus não existisse. A versão mais famosa da teoria da
justiça é a teoria dos mandamentos divinos, a perspectiva de que a vontade de Deus é a fonte das
razões morais para a acção, mas podemos também incluir aqui a posição tomista de que o ser de
Deus é o arquétipo da bondade. Um mundo sem Deus seria talvez destituído de sentido porque seria
destituído de valor moral.
Os filósofos tiveram muita dificuldade em fornecer uma explicação convincente da razão pela
qual a moralidade se deverá identificar com a vontade ou o ser de Deus. Muitos pensaram que a
moralidade poderia ser uma propriedade natural. Não me compete discutir as respostas que os
pensadores religiosos deram aos seus rivais. O que quero fazer notar é que há uma maneira muito
mais auspiciosa de explicar a razão pela qual a existência de Deus e uma relação com Ele poderão
ser necessárias para que a vida se torne significativa.
Explorei a possibilidade de que uma relação com Deus poderia ser necessária para que as nossas
vidas fossem significativas por Deus impedir que as nossas vidas fossem contingentes, a
possibilidade de tornar as nossas vidas parte de um plano grandioso e a possibilidade de
fundamentar a moralidade. Contra as três possibilidades, sugeri que a natureza, independentemente
de Deus, poderia desempenhar estas funções. Assim, sugiro que procuremos algo completamente
sobrenatural para explicar por que a existência de Deus seria necessária para o sentido. Em
particular, a teoria da perfeição fornece a melhor concepção desta condição. A teoria da perfeição é
a posição de que uma vida tem sentido apenas na medida em que se oriente em direcção a uma
natureza superior. Deste ponto de vista, só Deus poderia ser a fonte do sentido, dado que tem uma
essência absoluta, única e sobrenatural, só ela tendo o tipo de valor intrínseco em direcção ao qual
valeria a pena adaptar a nossa vida.
O que tem Deus que possa fazer a Sua natureza mais valiosa e qualitativamente diferente de tudo
o que há no mundo natural? Não penso que Deus ser sumamente bom, omnipotente ou omnisciente
sejam candidatos plausíveis. No nosso mundo há benevolência, poder e conhecimento em certa
medida. Sem dúvida que Deus teria estas propriedades num grau superior, mas isto parece mais
uma diferença quantitativa relativamente aos seres humanos do que qualitativa. Faria todo o sentido
procurar características de Deus que outros seres, como os seres humanos e os anjos, não têm; tais
características indicariam do modo mais claro a que respeito a natureza e valor de Deus seriam
únicas. Há quatro propriedades que rapidamente vêm à memória: atemporalidade, imutabilidade,
simplicidade e infinitude. Chamemos-lhes «propriedades qualitativas». Se só Deus tiver uma
qualquer combinação das propriedades qualitativas, se um ser com uma combinação destas
propriedades tiver uma excelência excepcional, e se ganharmos sentido ao adaptar as nossas vidas
na direcção de tal ser, então teremos uma explicação satisfatória de como só Deus pode ser a fonte
do sentido.
Ora, é claro que os seres humanos não podem ter as propriedades qualitativas. Somos
essencialmente espácio-temporais, mutáveis, susceptíveis de ser decompostos e limitados. Também
os anjos são tipicamente entendidos como seres limitados e susceptíveis de serem decompostos
(pelo menos em pensamento). Além disso, há boas razões para pensar que há géneros importantes
de valor intrínseco que são sobrevenientes relativamente às propriedades qualitativas. Os teístas
clássicos forneceram muitos argumentos que procuram mostrar que os valores da unidade e da
independência são (parcialmente) constituídos pelas propriedades qualitativas. 22
Considere-se primeiro o valor da independência, que é uma questão de não estar confinado por
coisa alguma, ou não depender de coisa alguma. As quatro propriedades qualitativas podem ser
encaradas como exemplares da independência por excelência. Um ser para lá do espaço e do tempo
não estaria submetido aos limites destas formas. Tal ser não só não estaria submetido ao declínio e à
morte, como não estaria submetido a um ponto de vista restrito ao aqui e agora. Um ser imutável
seria analogamente algo que determinaria inteiramente a sua própria natureza; se um ser que existe
de um certo modo não pode ter começado a existir nem pode ter deixado de existir nesse modo,
então não sofre quaisquer influências excepto de si mesmo. Um ser simples, viz., sem partes, não
dependeria destas partes para existir. Um tal ser seria completamente para si ou a se. Finalmente,
um ser ilimitado não teria por definição quaisquer limites.
Pense-se agora no valor da unidade. A integridade e a unicidade são melhores do que a
desintegração e a fragmentação, e as propriedades qualitativas são plausivelmente manifestações
das primeiras. Um ser para lá do espaço e do tempo não teria extensão nem a «debilidade da
divisão» (Anselmo). Um ser simples, não tendo partes, forma a unidade última na acepção em que
nem se pode conceber a sua dissolução. Um ser imutável não pode deixar de ser o que é. Por fim,
um ser ilimitado seria totalmente total.
Estes são mais esboços de argumentos do que argumentos completos; poderíamos passar todo o
ensaio a desenvolver só um deles. O meu objectivo não é verdadeiramente persuadir o leitor de que
a unidade e a independência são valores sobrevenientes relativamente às propriedades qualitativas.
O meu objectivo é, mais modestamente, mostrar que a explicação mais promissora da razão pela
qual uma relação com Deus é essencial para ter uma vida significativa é que Deus tem certas
características que não se encontram no mundo físico e que estas características têm um valor
superior que nos confere significado quando orientamos a nossa vida na sua direcção. Mesmo sem
uma análise completa das propriedades qualitativas e dos valores da unidade e da independência, a
minha esperança é que o leitor concorde que, especialmente tendo em vista os problemas que uma
ética sobrenaturalista enfrenta, é razoável dizer que esta teoria da perfeição é a melhor razão de ser
da teoria centrada em Deus. Uma vez mais, a explicação mais natural da razão pela qual é
necessária uma relação com Deus para que a nossa vida tenha significado é defender que Deus tem
uma qualquer combinação das propriedades qualitativas e que as nossas vidas podem tornar-se
significativas quando as adaptamos em direcção a uma entidade que tem estas características
excepcionalmente valiosas. Tal adaptação pode assumir a forma de glorificar Deus nesta vida ou
comungar com Ele numa vida depois da morte, mas, como argumentarei agora, não pode ser uma
questão de realizar o propósito de Deus.
Passo 2
No Passo 1, argumentei que se só Deus pode conferir sentido à vida, isto tem de ser porque Deus
tem características absolutamente únicas de valor superior, viz., as propriedades qualitativas. No
Passo 2, preciso mostrar que a posse de tais qualidades por parte de Deus é incompatível com
aspectos centrais da teoria do propósito.
É difícil ver como um ser com as propriedades qualitativas poderia desempenhar o papel que a
teoria do propósito exige. De facto, esta é uma preocupação comum entre os teístas; o meu objectivo
não é acrescentar qualquer coisa nova a esta questão particular, mas antes articulá-la. Assim, para
começar, como poderia existir um ser imutável, e para lá do tempo, que tem propósitos? A
preocupação não é a dificuldade de conceptualizar um ser imutável e atemporal. Apesar de difícil,
não é impossível, pois, como vários filósofos fizeram notar recentemente, os estados e as disposições
não parecem essencialmente temporais nem envolver essencialmente a mudança. A preocupação é
antes que, na medida em que podemos conceber um ser imutável e para lá do tempo, tal ser parece
incapaz de se entregar a actividades direccionadas a objectivos. Especificamente, o problema é que
as actividades são acontecimentos, e os acontecimentos parecem envolver fundamentalmente a
mudança e o tempo. Para que Deus adopte um fim para os seres humanos parece ter de deliberar, e
a deliberação parece um acontecimento temporal que envolve alteração em Deus. E mesmo que
Deus adoptasse um fim sem uma deliberação anterior, a simples adopção parece algo que demora
um certo tempo e que forma algo novo em Deus. Além disso, criar um mundo de acordo com um
plano parece difícil de compreender como algo que não ocupa um período de tempo. Por fim, os
teorizadores do propósito sustentam habitualmente que Deus nos informa do fim que estabeleceu e
que reage às nossas decisões livres de o cumprir ou não. Uma vez mais, estas são actividades que
parecem irredutivelmente demorar um certo tempo a executar e envolver mudança da parte de
Deus.
Eis outro exemplo do problema: como poderia existir um ser absolutamente simples com
múltiplos fins, um para os seres humanos e outro para os animais? Presumivelmente, Deus criou as
abelhas com um propósito que elas não podem deixar de cumprir. Para evitar a implicação contra-
intuitiva de que as vidas dos animais podem ser tão significativas como as humanas, o teorizador do
propósito tem de sustentar que nos seria atribuído um propósito diferente e melhor do que o
atribuído aos animais. 23 Ora bem, ainda que os propósitos dos seres humanos e dos animais sejam
componentes de um só plano para o universo, o facto de haver componentes parece implicar
ausência de simplicidade. O mesmo se pode dizer quanto aos diferentes actos mencionados acima;
mais de um acto parece pôr em causa a simplicidade absoluta de Deus, e é difícil ver como um acto
único e grandioso poderia fundamentar a concepção que a teoria do propósito tem do que Deus faz.
Por fim, como poderia um ser que é ilimitado ser o género de entidade que tem um propósito?
Como Nozick escreve,
«Ser de um modo e não de outro é ter limites. Parece, pois, que nenhuns termos podem descrever algo
ilimitado, nenhuns termos humanos podem verdadeiramente aplicar-se-lhe.» 24
O raciocínio analógico não leva muito longe o defensor da teoria do propósito. Apesar de eu ter
argumentado acima que a teoria do propósito não tem de fornecer muita orientação prática para ser
viável, tem pelo menos de ser teoricamente compreensível.
Claro que há respostas a estas preocupações na bibliografia. Não tenho aqui espaço para as
explorar. Em vez disso, o meu objectivo nesta fase foi sublinhar a dificuldade prima facie de
reconciliar uma perspectiva de Deus como atemporal, imutável, simples e ilimitado com uma
perspectiva de Deus como um ser com propósitos. Em suma: se de facto um deus com as
propriedades qualitativas não pode ter propósitos (Passo 2), e se Deus tem de ter as propriedades
qualitativas para ser a única fonte de sentido (Passo 1), então segue-se que não podemos adquirir
sentido nas nossas vidas em virtude de realizarmos um propósito que Deus nos atribui. Sustento que
este é o problema mais significativo que a teoria do propósito enfrenta.
Antes de considerar estratégias para responder a esta objecção, quero clarificá-la.
Evidentemente que há uma tradição substancial de nos interrogarmos se a alteridade de Deus é
consistente com a sua pessoalidade, e como poderá sê-lo. Não estou apenas a reiterar pontos de
vista desta tradição, pois não estou a afirmar algo sobre a inconsistência do conceito de Deus. Além
disso, a minha posição não é sequer que a teoria do propósito é inconsistente com o conceito de
Deus (isto pode seguir-se ou não da concepção de perfeição aqui sugerida). 25 Ao invés, a minha tese
é que a razão mais plausível para sustentar uma teoria do sentido da vida centrada em Deus não é
consistente com a versão tradicional da teoria centrada em Deus. Deus só pode ser a fonte de
significado na medida em que tiver alguma combinação das propriedades qualitativas, e é difícil
conceber um agente com propósitos que não tem limites, é absolutamente simples, não pode mudar
e não age no tempo. Este argumento não põe em causa a teoria centrada em Deus enquanto tal.
Sugere, ao invés, que se tivermos simpatia pela teoria centrada em Deus, devemos rejeitar a versão
que tem sido central no pensamento religioso ocidental sobre o sentido da vida. Em vez de sustentar
a teoria do propósito, os teólogos deveriam adoptar a posição de que uma vida significativa consiste,
digamos, em venerar Deus nesta vida ou fundirmo-nos com ele na vida depois da morte.
1 Nenhuns argumentos neste ensaio dependem desta caracterização algo controversa da questão do sentido da
vida. Defendo esta caracterização em «The Concept of a Meaningful Life», artigo a publicar em breve que constitui
o primeiro capítulo de um livro em que estou a trabalhar, Meaningful Lives and Politics. Este ensaio constitui o
núcleo do segundo capítulo desta monografia.
2 Defensores explícitos da teoria do propósito incluem Paul Althaus, «The Meaning and Purpose of History in the
Christian View», Universitas: A German Review of the Arts and Sciences, 7 (1965), pp. 197–204; os ensaios
monoteístas em R. C. Chalmers e John Irving (orgs.) The Meaning of Life in Five Great Religions (Filadélfia, PA:
Westminster Press, 1965), caps. 4–6; Delwin Brown, «Process Philosophy and the Question of Life’s Meaning»,
Religious Studies, 7 (1971), pp. 13–29; Michael Levine, «What Does Death Have to do With the Meaning of Life?»,
Religious Studies, 23 (1987), pp. 475–465; Lois Hope Walker, «Religion and the Meaning of Life and Death», in
Louis Pojman (org.), Philosophy: The Quest for Truth (Belmont, CA: Wadsworth Publishing Company, 1989), cap.
16; Philip Quinn, «How Christianity Secures Life’s Meanings», in Joseph Runzo e Nancy Martin (orgs.) The
Meaning of Life in the World Religions (Oxford: Oneworld Publications, 2000), cap. 3.
3 Para esta objecção veja-se Kurt Baier, «O Sentido da Vida», p. 60 et seq. deste volume. Norman Dahl, «Morality
and the Meaning of Life: Some First Thoughts», Canadian Journal of Philosophy, 17 (1987), pp. 11–12 n.; e Oswald
Hanfling, The Quest for Meaning (Nova Iorque, NY: Basil Blackwell Inc., 1987), p. 50.
4 Para versões da teoria do propósito explicitamente deste mundo, veja-se Brown, «Process Philosophy and the
Question of Life’s Meaning», especialmente pp. 24–25; e Levine, «What Does Death Have to do with the Meaning
of Life?».
5 Baier, «O Sentido da Vida», p. 59; e Joseph Ellin, Morality and the Meaning of Life (Fort Worth, TX: Harcourt
Brace, 1995), p. 322
6 Baier afirma incorrectamente que a teoria do propósito implica o seguinte: «Nenhuma vida humana, por mais
que pareça despropositada, é destituída de sentido porque ao fazer parte do plano de Deus, toda a vida é
asseguradamente significativa» (Baier, «O Sentido da Vida», p. 58; ver também pp. 59, 68).
7 A. J. Ayer tende a pressupor que não poderíamos evitar realizar o plano de Deus. Veja-se o seu «The Claims of
Philosophy», in Maurice Natanson (org.), Philosophy of the Social Sciences (Nova Iorque, NY: Random House,
1963), pp. 475–477.
8 Jean-Paul Sartre, Existencialism and Humanism, trad. Philip Mairet (Londres: Methuen & Co., 1948), p. 45.
Trad. port. de Vergílio Ferreira, O Existencialismo é um Humanismo (Lisboa: Editorial Presença, 1978).
9 Para um exemplo deste argumento, veja-se Hanfling, The Quest for Meaning, pp. 45–46.
10 Baier, «O Sentido da Vida», p. 59; e Paul Kurtz, «The Meaning of Life», em The Fullness of Life (Nova Iorque,
NY: Horizon Press, 1974), p. 86.
11 Baier, «O Sentido da Vida», p. 56. Para influências de Baier, veja-se W. D. Joske, «Philosophy and the Meaning
of Life», em Klemke, The Meaning of Life, p. 259; e Irvin Singer, Meaning in Life, vol. 1: The Creation of Value
(Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1996), p. 29.
12 Para esta resposta a Baier veja-se Levine «What Does Death Have to do with the Meaning of Life?», p. 461 n.
13 Brown responde deste modo a Baier em «Process Philosophy and the Question of Life’s Meaning», p. 20.
14 Compare-se o comentário de Singer: «Se a humanidade, ou a vida em geral, foi criada para servir um propósito
para lá de si mesma, o nosso ser seria análogo ao de um artefacto manufacturado» (Singer, Meaning in Life, 29).
15 Para discussões que me levaram a considerar esta objecção, veja-se Karl Britton, Philosophy and the Meaning
of Life (Nova Iorque, NY: Cambridge University Press, 1969), pp. 31, 34–35; e Hanfling, The Quest for Meaning, p.
48.
16 Singer, Meaning in Life, pp. 31, 32. Para o mesmo aspecto veja-se R. W. Hepburn, «Questions About the
Meaning of Life», em Klemke, The Meaning of Life, pp. 9–19.
17 Veja-se o extracto em Aires Almeida e Desidério Murcho (orgs.), Textos e Problemas de Filosofia (Lisboa:
Plátano, 2006), pp. 158–161.
18 Veja-se, por exemplo, «Training in Christianity», em Robert Bretall (org.), A Kierkegaard Anthology (Princeton,
NJ: Princeton University Press, 1946), p. 414.
19 Os argumentos principais são estes: uma vida que se relacionasse com Deus seria degradante e
consequentemente destituída de sentido; e alcançar os nossos fins subjectivos é a única coisa que confere sentido.
Para sugestões de ambas as afirmações, veja-se Baier, «O Sentido da Vida».
20 Para esta perspectiva, veja-se Tolstoi, «Confissão» (Textos e Problemas de Filosofia, org. por Aires Almeida e
Desidério Murcho, Lisboa: Plátano, 2006); Albert Camus, O Mito de Sísifo (Carnaxide: Livros do Brasil, 2005); e
William Davis, «The Meaning of Life», Metaphilosphy, 18 (1987), pp. 288–305.
21 Thomas Nagel, apesar de não ser um sobrenaturalista, exprimiu esta ideia de um modo convincente. Veja-se o
seu «O Absurdo», nesta antologia, e «Nascimento, Morte e o Sentido da Vida», em Visão a Partir de Lugar
Nenhum, trad. Silvana Vieira (São Paulo: Martins Fontes, 2004), cap. 11.
22 Pode-se encontrar muitos dos argumentos seguintes em Plotino, As Eneidas; Anselmo, Monologion e
Proslogion; e Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios e Suma Teológica.
23 Para mais discussão do sentido humano e dos animais no contexto da teoria do propósito, veja-se Robert
Nozick, «Philosophy and the Meaning of Life», em Philosophical Explanations (Cambridge: Harvard University
Press, 1981), pp. 586–587; e Hanfling, The Quest for Meaning, pp. 48–49.
24 Apresentando um argumento muitíssimo diferente, Nozick responde também à questão de saber por que razão
realizar o propósito de Deus poderá ser uma fonte de sentido apelando ao facto de Deus ser ilimitado («Philosophy
and the Meaning of Life», pp. 593–609). A dado momento, Nozick não reconhece a tensão entre afirmar que Deus
é ilimitado e que tem um propósito (p. 606), apesar de noutro momento sublinhar que seria difícil predicar algo de
um ser ilimitado (p. 608). Para outras exposições recentes da tensão entre a pessoalidade de Deus e algumas das
propriedades qualitativas, veja-se Richard Gale, On the Nature and Existence of God (Nova Iorque, NY: Cambridge
University Press, 1991), cap. 2; e Richard Swinburne, The Coherence of Theism, ed. revista (Oxford: Oxford
University Press, 1993), cap. 12.
25 O argumento que apresento no texto é que se só Deus pode ser a fonte do sentido, isto tem de ser porque Deus
tem propriedades qualitativas, perfeições que são incompatíveis com o propósito. Darrell Moellendorf e Graeme
McLean perguntaram-se se o meu argumento poderia acabar por se reduzir à posição mais comum de que Deus,
qua perfeito, tem por definição as propriedades qualitativas e consequentemente não pode ter propósitos. Não me
parece que se possa reduzir o meu argumento facilmente a esta explicação dado que Deus não tem, meramente
qua um ser perfeito, todas as perfeições. Para se ver porquê, imagine-se um ser de muito valor que criou o
universo mas que não é «aquilo maior do que o qual nada pode ser concebido» de Anselmo. Seria sensato chamar
«Deus» a tal entidade. Assim, na medida em que o conceito de Deus (ou um conceito comum de Deus) não inclui
ter todas as perfeições, Deus não tem por definição as propriedades qualitativas (ou não é óbvio que as tenha).
26 Para trabalhos interessantes nesta direcção, veja-se Norman Kretzmann e Eleanore Stump, «Eternity», The
Journal of Philosophy, 78 (1981), pp. 429–458, e «Absolute Simplicity», Faith and Philosophy, 2 (1985), pp. 353–
382; Katherin Rogers, «The Traditional Doctrine of Divine Simplicity», Religious Studies, 32 (1996), pp. 165–186; e
Don Lodzinski, «The Eternal Act», Religious Studies, 34 (1998), pp. 325–352.
27 Escrevi este ensaio quando era Investigador Visitante na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo,
África do Sul. Agradeço aos membros do Departamento de Filosofia de Wits por me proporcionarem
generosamente um ambiente de cooperação e por participarem activamente num colóquio baseado neste ensaio.
Gostaria também de agradecer os comentários escritos de um árbitro anónimo de Religious Studies. Por fim, tenho
de exprimir gratidão ao Conselho de Investigação da Universidade do Missouri pelo salário de Verão e pela bolsa
de investigação que me deram a liberdade para escrever este ensaio.
4
O ABSURDO
THOMAS NAGEL
N a sua maior parte, as pessoas sentem ocasionalmente que a vida é absurda, e algumas
sentem-no vívida e continuamente. Contudo, as razões avançadas em defesa desta
convicção são patentemente desadequadas: não poderiam explicar realmente por que
razão a vida é absurda. Por que constituem então uma expressão natural da impressão de que o é?
I
Considere-se alguns exemplos. Afirma-se por vezes que nada do que fazemos agora terá importância
daqui a um milhão de anos. Mas se isso for verdadeiro, então, pela mesma ordem de ideias, nada do
que acontecer daqui a um milhão de anos tem importância agora. Em particular, não importa agora
que daqui a um milhão de anos nada do que fazemos agora terá importância. Além disso, mesmo
que tivesse importância daqui a um milhão de anos o que agora fazemos, como poderia isso impedir
que os nossos interesses actuais fossem absurdos? Se o facto de serem importantes agora não é
suficiente para o conseguir, como poderia fazer alguma diferença se fossem importantes daqui a um
milhão de anos?
A importância que terá daqui a um milhão o que agora fazemos só poderá fazer toda a diferença
se o facto de ter importância daqui a um milhão de anos depender de ter importância, sem mais
qualificações. Mas, então, negar que seja o que for que agora acontece terá importância daqui a um
milhão de anos é uma petição de princípio com respeito à sua importância, sem mais qualificações;
pois nessa acepção não podemos saber que não terá importância daqui a um milhão de anos se (por
exemplo) alguém agora é feliz ou miserável, se não soubermos que não tem importância, sem mais
qualificações.
O que dizemos para exprimir o absurdo das nossas vidas tem muitas vezes a ver com o espaço e o
tempo: somos partículas minúsculas na vastidão infinita do universo; as nossas vidas são meros
instantes até numa escala geológica, quanto mais numa escala cósmica; estaremos todos mortos em
breve. Mas é claro que não pode ser qualquer destes factos evidentes que faz a vida ser absurda, se
for absurda. Pois suponha-se que vivíamos para sempre; uma vida que é absurda se durar setenta
anos não será infinitamente absurda se durar toda a eternidade? E se as nossas vidas são absurdas
dado o nosso tamanho actual, por que seriam menos absurdas se ocupássemos todo o universo (ou
por sermos maiores ou por o universo ser mais pequeno)? A reflexão sobre a nossa pequenez e
brevidade parece intimamente ligada à sensação de que a nossa vida não tem sentido; mas não é
claro qual é a ligação.
Outro argumento inadequado é o seguinte: porque vamos morrer, todas as cadeias de justificação
têm de ser interrompidas no vazio; estudamos e trabalhamos para ganhar dinheiro para pagar
vestuário, casa, diversão, comida e para nos sustentarmos ano após ano, talvez para sustentar uma
família e ter uma carreira — mas com que fim último? Tudo isto é uma viagem elaborada que não
conduz a lado algum. (Teremos também algum efeito sobre as vidas das outras pessoas, mas isso
limita-se a reproduzir o problema, pois também elas irão morrer.)
Há várias respostas a este argumento. Em primeiro lugar, a vida não é uma série de sequências
de actividades em que cada uma delas tem como propósito outro membro qualquer da sequência. As
cadeias de justificação chegam repetidamente ao fim no seio da vida, e a questão de saber se o
processo como um todo pode ter justificação não tem qualquer influência na finalidade destas
pontas finais. Não é preciso qualquer justificação complementar para que seja razoável tomar uma
aspirina contra a dor de cabeça, visitar uma exposição de um pintor que admiramos ou impedir uma
criança de colocar a mão num fogão quente. Não precisamos de um contexto mais vasto nem de um
propósito complementar para que estes actos não sejam despropositados.
Mesmo que alguém desejasse fornecer uma justificação complementar para fazer todas as coisas
na vida que habitualmente encaramos como coisas que se justificam a si mesmas, também essa
justificação complementar teria de parar algures. Se nada pode justificar a não ser que tenha
justificação em termos de algo fora de si, que também tenha justificação, temos como resultado uma
regressão infinita e nenhuma cadeia de justificação pode ser completa. Além disso, se uma cadeia
finita de razões não pode justificar coisa alguma, o que ganharíamos com uma cadeia infinita, em
que cada elo tem de ter justificação em algo exterior a si?
Dado que as justificações têm de chegar ao fim algures, nada ganhamos em negar que acabam
onde parecem acabar, no seio da vida — nem ganhamos seja o que for ao tentar subsumir as
múltiplas e muitas vezes triviais justificações comuns da acção sob um esquema de vida único e
controlador. Satisfazemo-nos com menos. De facto, por representar erradamente o processo de
justificação, o argumento faz uma exigência vácua. Insiste que as razões disponíveis no seio da vida
são incompletas, mas sugere desse modo que todas as razões que chegam ao fim são incompletas.
Isto torna impossível fornecer quaisquer razões.
Os argumentos canónicos a favor do absurdo parecem consequentemente improcedentes.
Contudo, penso que tentam exprimir algo que é difícil de formular, mas que está fundamentalmente
correcto.
II
Na vida comum, uma situação é absurda quando inclui uma discrepância óbvia entre a pretensão ou
aspiração e a realidade: uma pessoa faz um complicado discurso a favor de uma moção que já foi
aprovada; um conhecido criminoso é eleito presidente de uma importante fundação filantrópica;
alguém declara pelo telefone o seu amor a uma voz gravada; no momento em que alguém é
proclamado cavaleiro as calças caem-lhe.
Quando uma pessoa se vê numa situação absurda, tentará habitualmente mudá-la, quer mudando
as suas aspirações, quer tentando fazer a realidade harmonizar-se-lhe melhor, quer afastando-se
completamente da situação. Nem sempre podemos ou estamos dispostos a desembaraçar-nos de
uma posição cujo absurdo se nos tenha tornado claro. Contudo, é habitualmente possível imaginar
alguma mudança que removeria o absurdo — quer a efectivemos quer não, ou quer possamos
efectivá-la quer não. A impressão de que a vida como um todo é absurda emerge quando nos damos
conta, talvez indistintamente, de uma pretensão ou aspiração inflacionada que é inseparável da
prossecução da vida humana e que torna o seu absurdo inevitável, a menos que abandonemos a
própria vida.
As vidas de muitas pessoas são absurdas, temporária ou permanentemente, por razões comuns
que têm a ver com as suas ambições, circunstâncias e relações pessoais. Se há uma acepção
filosófica de absurdo, contudo, tem de emergir da percepção de algo universal — um qualquer
aspecto no qual a pretensão e a realidade inevitavelmente colidam, seja qual for a pessoa.
Argumentarei que esta condição é fornecida pela colisão entre a seriedade com que encaramos a
nossa vida e a possibilidade perpétua de encarar como arbitrário, ou sujeito à dúvida, tudo o que
encaramos com seriedade.
Não podemos viver vidas humanas sem energia e atenção, nem sem fazer escolhas que mostram
que levamos algumas coisas mais a sério do que outras. Contudo, temos sempre à nossa disposição
um ponto de vista exterior à forma particular das nossas vidas, a partir do qual a seriedade parece
gratuita. Estes dois pontos de vista inevitáveis colidem em nós, e é isso que faz a vida absurda. É
absurda porque ignoramos as dúvidas que sabemos não poderem ser apaziguadas, continuando a
viver praticamente com a mesma seriedade, apesar dessas dúvidas.
Esta análise exige uma defesa quanto a dois aspectos: primeiro, quanto à inevitabilidade da
seriedade; segundo, quanto à inevitabilidade da dúvida.
Levamo-nos a sério quer cultivemos vidas sérias quer não e quer nos entreguemos sobretudo à
fama, prazer, virtudes, luxo, triunfo, beleza, justiça, conhecimento, salvação ou à mera
sobrevivência. Se levarmos as outras pessoas a sério e nos dedicarmos a elas, isso só multiplica o
problema. A vida humana é plena de esforço, planos, cálculos, sucesso e fracasso: conduzimos as
nossas vidas, com diferentes graus de indolência e energia.
As coisas seriam diferentes se não pudéssemos dar um passo atrás e reflectir no processo, se ao
invés fôssemos meramente conduzidos de impulso para impulso sem autoconsciência. Mas os seres
humanos não agem apenas por impulso. São prudentes, reflectem, pesam consequências,
perguntam se vale a pena o que estão a fazer. Não só estão as suas vidas cheias de escolhas
particulares que se combinam em actividades maiores com uma estrutura temporal, como decidem
também nos termos mais latos o que procurar e o que evitar, quais devem ser as prioridades entre
os seus vários objectivos, e que tipo de pessoas querem ser ou em que tipo de pessoas querem
tornar-se. Alguns homens enfrentam este tipo de escolhas por causa de decisões desmedidas que
tomam de tempos a tempos; alguns meramente por reflectirem no rumo que as suas vidas estão a
tomar por força de incontáveis pequenas decisões. Decidem com quem casar, que profissão
desempenhar, se aderem ao Clube de Golfe ou à Resistência; ou podem apenas perguntar-se por que
continuam a ser vendedores ou académicos ou taxistas, e depois deixam de pensar nisso após um
certo período de reflexão inconclusiva.
Apesar de as necessidades imediatas que a vida lhes apresenta os poderem motivar a agir a cada
passo, permitem que o processo continue ao aderir ao sistema geral de hábitos e à forma de vida no
seio da qual tais motivações têm lugar — ou talvez apenas ao agarrarem-se à própria vida.
Despendem enormes quantidades de energia, risco e cálculo nos pormenores. Considere-se como
um indivíduo comum dedica esforços à sua aparência, saúde, vida sexual, honestidade emocional,
utilidade social, conhecimento de si, qualidade dos seus laços com familiares, colegas e amigos,
qualidade do seu trabalho, e se compreende o mundo e o que acontece no mundo. Conduzir uma
vida humana é uma ocupação a tempo inteiro, à qual toda a gente dedica décadas de cuidado
intenso.
Este facto é tão óbvio que é difícil achar que é extraordinário e importante. Cada um de nós vive
a sua própria vida — vive consigo vinte e quatro horas por dia. Que mais haveria de fazer? Viver a
vida de outra pessoa? Contudo, os seres humanos têm uma capacidade especial para dar um passo
atrás e inspeccionar-se a si mesmos e às vidas a que se entregam, com o espanto distanciado com
que observam uma formiga que se esforça para subir um monte de areia. Sem desenvolver a ilusão
de que conseguem escapar da sua posição profundamente específica e idiossincrática, podem vê-la
sub specie aeternitatis — e o que vêem é a um tempo deprimente e cómico.
O passo atrás crucial não é dado exigindo mais uma justificação, que não existe, na cadeia de
justificações. As objecções a esta linha de ataque foram já formuladas; as justificações chegam ao
fim. Mas é precisamente isto que alimenta a dúvida universal. Damos um passo atrás e descobrimos
que todo o sistema de justificação e crítica, que controla as nossas escolhas e sustenta o nosso
direito à racionalidade, se apoia em respostas e hábitos que nunca pomos em questão, que não
sabemos como defender sem circularidade, e aos quais continuaremos a aderir mesmo depois de
serem postos em questão.
As coisas que fazemos ou queremos sem razões, e sem que exijam razões — as coisas que
definem o que é e o que não é uma razão para nós — são os pontos de partida do nosso cepticismo.
Vemo-nos a partir do exterior, e toda a contingência e especificidade dos nossos objectivos e
ocupações tornam-se claras. Contudo, quando adoptamos esta perspectiva e reconhecemos a
arbitrariedade do que fazemos, isso não nos descompromete com a vida, e nisso repousa o nosso
absurdo: não no facto de se poder ter essa perspectiva externa de nós mesmos, mas no facto de nós
próprios a podermos ter, sem deixarmos de ser as pessoas cujos cuidados últimos são tão friamente
encarados.
III
Pode-se tentar fugir da posição procurando cuidados últimos mais latos, dos quais seja impossível
dar um passo atrás — sendo que a ideia é que o absurdo resultaria de levarmos a sério algo que é
pequeno, insignificante e individual. Quem procura dar sentido à sua vida congemina habitualmente
desempenhar um papel ou função em algo maior do que si próprio. Procura consequentemente
realizar-se pondo-se ao serviço da sociedade, do estado, da revolução, do progresso da história, da
promoção da ciência, ou da religião e da glória de Deus.
Mas um papel num empreendimento mais vasto não pode tornar a vida significativa a menos que
tal empreendimento seja em si significativo. E o que nele houver de significativo tem de voltar ao
que podemos compreender, ou então nem sequer parecerá dar-nos o que procuramos. Se
descobrirmos que fomos criados para fornecer comida a outras criaturas que gostam de carne
humana, que planearam transformar-nos em costeletas antes de ficarmos demasiado duros —
mesmo que descobríssemos que o género humano foi desenvolvido por criadores de animais
precisamente com este propósito — isso continuaria a não dar sentido às nossas vidas, por duas
razões. Primeiro, porque continuaríamos sem saber se as vidas de tais seres eram significativas;
segundo porque, ainda que pudéssemos aceitar que este papel culinário tornaria as nossas vidas
significativas para eles, não é claro como as tornaria significativas para nós.
Tem de se admitir que a forma habitual de prestar serviço a um ser superior é diferente disto.
Supostamente, trata-se de contemplarmos a glória de Deus, e participar nela, diferentemente das
galinhas, que não são parte da glória do coq au vin. O mesmo se aplica ao serviço prestado a um
estado, um movimento ou uma revolução. As pessoas podem acabar por sentir, quando são parte de
algo mais vasto, que isso é também parte delas. Preocupam-se menos com o que lhes é peculiar, mas
identificam-se suficientemente com o empreendimento mais vasto para se sentirem realizadas ao
desempenhar o seu papel.
Contudo, qualquer propósito mais vasto desse género pode ser posto em dúvida do mesmo modo
que pomos em dúvida uma vida individual, e pelas mesmas razões. É tão legítimo encontrar a
justificação última aí como antes, entre os pormenores de uma vida individual. Mas isto não muda o
facto de as justificações chegarem ao fim quando o seu fim nos satisfaz — quando não achamos que
é necessário olhar mais além. Se podemos dar um passo atrás relativamente aos propósitos da vida
individual e duvidar do seu objectivo, podemos também dar um passo atrás relativamente ao
progresso da história humana, ou da ciência, ou do sucesso de uma sociedade, ou do reino, poder e
glória de Deus, e pôr em questão todas estas coisas do mesmo modo. O que nos parece conferir
sentido ou justificação ou tornar significativo fá-lo em virtude do facto de não precisarmos de mais
razões a partir de certo ponto.
O que torna a dúvida inevitável com respeito aos objectivos limitados da vida individual torna-a
também inevitável com respeito a qualquer propósito mais vasto que encoraje a impressão de que a
vida é significativa. Uma vez iniciada a dúvida fundamental, não pode ser abandonada.
Camus sustenta em O Mito de Sísifo que o absurdo emerge porque o mundo não obedece às
nossas exigências de sentido. Isto sugere que o mundo poderia satisfazer tais exigências se fosse
diferente. Mas agora podemos ver que isto não é assim. Não parece haver qualquer mundo
concebível (que nos contenha) acerca do qual não possam levantar-se dúvidas inapaziguáveis.
Consequentemente, o absurdo da nossa situação não deriva de uma colisão entre as nossas
expectativas e o mundo, mas de uma colisão no nosso seio.
IV
Poderá objectar-se que o ponto de vista no qual estas dúvidas supostamente se sentem não existe —
que se dermos o recomendado passo atrás acabaremos suspensos no vazio, sem qualquer base para
ajuizar as respostas naturais que estamos supostamente a inspeccionar. Se mantivermos os nossos
padrões habituais do que é importante, poderemos responder da maneira habitual às questões sobre
a importância do que estamos a fazer com as nossas vidas. Mas se não os mantivermos, então essas
questões não podem ter qualquer significado para nós, dado que a ideia do que conta não tem já
qualquer conteúdo; consequentemente, a ideia de que nada conta não tem também conteúdo.
Mas esta objecção concebe mal a natureza do passo atrás. Este não tem a missão de nos dar uma
compreensão do que é realmente importante, de modo a que vejamos por contraste que as nossas
vidas são insignificantes. No decurso destas reflexões nunca abandonamos os padrões comuns que
orientam as nossas vidas. Limitamo-nos a vê-los operar, e reconhecemos que se forem postos em
questão só podemos justificá-los por referência a si mesmos, debalde. Entregamo-nos a eles por
causa do modo como somos constituídos; o que nos parece importante ou sério ou de valor não o
pareceria se tivéssemos uma constituição diferente.
Sem dúvida que na vida comum não ajuizamos uma situação como absurda a menos que
tenhamos em mente padrões de seriedade, sentido ou harmonia com os quais o absurdo possa
contrastar. Este contraste não é sugerido pelo juízo filosófico do absurdo, e pode-se pensar que isso
torna o conceito impróprio para exprimir tais juízos. Isto não é assim, contudo, pois o juízo filosófico
depende de outro contraste que o torna uma extensão natural de casos mais comuns. Afasta-se deles
unicamente ao contrastar as pretensões da vida com um contexto mais vasto no qual nenhuns
padrões se podem descobrir, em vez de ser com um contexto a partir do qual se possam aplicar
padrões alternativos e dominantes.
V
Neste aspecto, como noutros, a percepção filosófica do absurdo é semelhante ao cepticismo
epistemológico. Em ambos os casos, não se contrasta a dúvida final, filosófica, com quaisquer
certezas que não sejam postas em causa, apesar de se chegar a ela por extrapolação a partir de
exemplos de dúvida no seio do sistema indiciário ou de justificação, no qual está efectivamente
implícito um contraste com outras certezas. Nos dois casos as nossas limitações combinam-se com
uma capacidade para transcender essas limitações em pensamento (vendo-as assim como
limitações, e como inevitáveis).
O cepticismo começa quando nos incluímos no mundo acerca do qual reivindicamos
conhecimento. Vemos que certos tipos de indícios nos convencem, que não temos problemas em
permitir que as justificações das crenças cheguem ao fim em certos pontos, que sentimos saber
muitas coisas mesmo sem conhecer a negação de outras ou ter fundamentos para acreditar na
negação de outras que, se fossem verdadeiras, tornariam falso o que afirmamos saber.
Por exemplo, sei que estou a olhar para um pedaço de papel, apesar de não ter fundamentos
adequados para afirmar que sei que não estou a sonhar; e se estou a sonhar, então não estou a olhar
para um pedaço de papel. Aqui usa-se uma concepção comum de como a aparência pode divergir da
realidade para mostrar que tomamos o nosso mundo em grande parte como garantido; a certeza de
não estarmos a sonhar não pode justificar-se excepto circularmente, em termos das mesmíssimas
aparências que estão a ser postas em causa. É de algum modo rebuscado sugerir que posso estar a
sonhar; mas a possibilidade é apenas ilustrativa. Revela que o nosso direito ao conhecimento
depende de não sentirmos necessidade de excluir certas alternativas incompatíveis, e a
possibilidade do sonho ou a possibilidade da alucinação total são apenas casos representativos de
inúmeras possibilidades, a maior parte das quais nem podemos conceber. 1
Uma vez dado o passo atrás para ver abstractamente todo o nosso sistema de crenças, indícios e
justificação, e vendo-se que, apesar das suas pretensões, tal sistema só funciona tomando o mundo
em grande parte como garantido, não estamos em posição de contrastar todas estas aparências com
uma realidade alternativa. Não podemos abdicar das nossas respostas comuns, e se pudéssemos
fazê-lo isso deixar-nos-ia sem meios para conceber uma realidade de qualquer tipo.
É o mesmo no domínio prático. Não saímos das nossas vidas adoptando um novo ponto de vista
do qual vemos o que é realmente, objectivamente, significativo. Continuamos a tomar a vida em
grande parte como garantida, ao mesmo tempo que vemos que as nossas decisões e certezas só são
possíveis porque há muitas coisas que não nos damos ao incómodo de excluir.
Tanto o cepticismo epistemológico como a percepção do absurdo podem ser alcançados por via
de dúvidas iniciais levantadas no seio de sistemas indiciários e de justificação que aceitamos, e
podem ser formulados sem forçar os nossos conceitos comuns. Podemos perguntar não apenas por
que havemos de acreditar que o chão sob nós existe, mas também por que havemos de acreditar de
todo em todo nos indícios dos nossos sentidos — e a certo ponto as perguntas formuláveis terão
ultrapassado as respostas. Do mesmo modo, podemos não apenas perguntar por que razão havemos
de tomar aspirina, mas também por que razão havemos de nos incomodar de todo em todo com o
nosso conforto. O facto de que tomaremos a aspirina sem ficar à espera de uma resposta a esta
última pergunta não mostra que é uma pergunta irreal. Continuaremos também a acreditar que há
um chão sob nós sem ficar à espera de uma resposta à outra pergunta. Em ambos os casos, é esta
confiança natural insustentada que gera dúvidas cépticas; por isso não pode ser usada para as
aplacar.
O cepticismo filosófico não nos faz abandonar as nossas crenças comuns, mas dá-lhes um sabor
peculiar. Depois de reconhecer que a sua verdade é incompatível com possibilidades que não temos
fundamentos — à parte as mesmíssimas crenças que pusemos em questão — para acreditar que não
se verificam, regressamos às nossas convicções familiares com uma certa ironia e resignação.
Incapazes de abandonar as respostas naturais de que tais convicções dependem, aceitamo-las outra
vez, como um cônjuge que fugiu com outra pessoa e depois decide regressar; mas encaramo-las de
modo diferente (não que a nova atitude seja necessariamente inferior à antiga, em qualquer dos
casos).
Verifica-se a mesma situação depois de termos posto em questão a seriedade com que encaramos
as nossas vidas e a vida humana em geral e depois de termos olhado para nós mesmos sem
pressupostos. Regressamos depois às nossas vidas, porque temos de o fazer, mas a nossa seriedade
ficou enlaçada com a ironia. Não que a ironia nos permita fugir ao absurdo. É inútil murmurar «A
vida é destituída de sentido; a vida é destituída de sentido…» como um acompanhamento de tudo o
que fazemos. Ao continuar a viver e a trabalhar e a labutar, levamo-nos a sério ao agir,
independentemente do que dissermos.
O que nos ampara, tanto na crença como ao agir, não é a razão ou a justificação, mas algo mais
básico — pois continuamos do mesmo modo mesmo depois de nos convencermos que as razões
deram de si. 2 Se tentássemos apoiar-nos inteiramente na razão, e nisso insistíssemos, as nossas
vidas e crenças ruiriam — uma forma de loucura que pode realmente ocorrer caso se perca de
algum modo a força inercial de tomar como garantidos o mundo e a vida. Se isso nos fugir, a razão
não nos devolve tal coisa.
VI
Ao vermo-nos a nós mesmos de uma perspectiva mais lata do que podemos realmente ocupar,
tornamo-nos espectadores das nossas próprias vidas. Não podemos fazer grande coisa como
espectadores puros das nossas próprias vidas, e por isso continuamos a vivê-las, e dedicamo-nos ao
que ao mesmo tempo conseguimos ver que não passa de uma curiosidade, como o ritual de uma
religião alienígena.
Isto explica por que razão a sensação de absurdo encontra a sua expressão natural nos maus
argumentos com os quais começou a discussão. Referências à nossa pequenez e à curta duração da
vida e ao facto de que toda a humanidade acabará por desaparecer sem deixar traços são metáforas
do passo atrás que nos permite encararmo-nos a partir do exterior e achar curiosa e ligeiramente
surpreendente a forma particular das nossas vidas. Simulando um ponto de vista de uma nebulosa,
ilustramos a capacidade para nos vermos sem pressupostos, como ocupantes arbitrários,
idiossincráticos e muitíssimo específicos do mundo, uma forma de vida entre incontáveis formas de
vida possíveis.
Antes de voltar à questão de saber se o absurdo das nossas vidas é de lamentar e algo de que
fugir se possível, considere-se o que teria de ser abandonado para o evitar.
Por que não é absurda a vida de um rato? A órbita da Lua também não é absurda, mas não
envolve quaisquer labutas ou objectivos. Um rato, contudo, tem de labutar para viver. Contudo, não
é absurdo porque não tem as capacidades de consciência de si e autotranscendência que lhe
permitiriam ver que é apenas um rato. Se isso acontecesse, a sua vida tornar-se-ia absurda, dado
que a consciência de si não o faria deixar de ser um rato e não lhe permitiria elevar-se acima das
suas labutas de rato. Trazendo a sua nova consciência de si, teria de retomar a sua vida árida mas
frenética, cheio de dúvidas a que não conseguiria responder, mas também cheio de propósitos que
seria incapaz de abandonar.
Dado que o passo transcendental é natural para os seres humanos, poderemos evitar o absurdo
recusando dar esse passo e permanecendo inteiramente no seio das nossas vidas sublunares? Bem,
não podemos recusar conscientemente, pois para o fazer teríamos de estar cientes do ponto de vista
que estaríamos a recusar. A única maneira de recusar a consciência de si relevante seria nunca a ter
ou esquecê-la — nenhuma das quais é alcançável pela vontade.
Por outro lado, é possível esforçarmo-nos para tentar destruir a outra componente do absurdo —
abandonando a nossa vida humana, terrena e individual para nos identificarmos tão completamente
quanto possível com o ponto de vista a partir do qual a vida humana parece arbitrária e trivial. (Este
parece o ideal de certas religiões orientais.) Se formos bem-sucedidos, não teremos de carregar a
consciência superior ao longo de uma vida mundana árdua, e o absurdo diminuirá.
Contudo, na medida em que este auto-estiolamento resulta de esforço, força de vontade,
ascetismo e assim por diante, exige que nos levemos a sério como indivíduos — exige que estejamos
dispostos a dar-nos a muito incómodo para evitarmos ser criaturais e absurdos. Assim, o objectivo
de não sermos mundanos pode ser arruinado se o procurarmos com demasiado vigor. Ainda assim,
se alguém permitisse simplesmente que a sua natureza individual, animal, ficasse entregue a si
mesma, reagindo a impulsos, sem fazer da procura das suas necessidades um objectivo central e
consciente, então essa pessoa poderia, com um custo dissociativo considerável, obter uma vida
menos absurda do que a maior parte das pessoas. Também não seria uma vida significativa, é claro;
mas não envolveria a activação de uma consciência transcendente na entrega assídua a objectivos
mundanos. E essa é a condição principal do absurdo — obrigar uma consciência transcendente
inconvencida a ficar ao serviço desse empreendimento imanente e limitado que é uma vida humana.
A escapatória final é o suicídio; mas antes de se adoptar soluções apressadas, seria avisado ver
cuidadosamente se o absurdo da nossa existência nos põe realmente um problema, para o qual seja
necessário encontrar uma solução — uma maneira de lidar com o desastre prima facie. Esta é
certamente a atitude com a qual Camus aborda a questão, e ganha força do facto de que todos
ficamos ansiosos por nos livrarmos de situações absurdas, a uma escala menor.
Camus — não com fundamentos uniformemente bons — rejeita o suicídio e as outras soluções
que considera escapistas. O que recomenda é o despique ou o desdém. Podemos salvar a nossa
dignidade, parece Camus pensar, ameaçando com o punho o mundo que é surdo aos nossos apelos, e
continuando a viver apesar disso. Isto não elimina o absurdo das nossas vidas, mas dar-lhes-á uma
certa nobreza. 3
Isto parece-me romântico e levemente lamuriento. O nosso absurdo não justifica tanta aflição
nem tanto despique. Correndo o risco de cair no romantismo por outra via, eu argumentaria que o
absurdo é uma das nossas coisas mais humanas: uma manifestação das nossas características mais
avançadas e interessantes. Como o cepticismo na epistemologia, só é possível porque temos um
certo tipo de perspicácia — a capacidade para nos transcendermos em pensamento.
Se a sensação do absurdo é uma maneira de ver a nossa verdadeira situação (ainda que a
situação não seja absurda até a vermos), então que razão podemos ter para ficarmos ressentidos
com ela, ou para lhe querermos fugir? Tal como a capacidade para o cepticismo epistemológico, a
sensação do absurdo resulta da nossa capacidade para compreender as nossas limitações humanas.
Não tem de ser uma razão para ficarmos atormentados, a não ser que o façamos ser tal coisa. Nem
tem de invocar um desdém desafiador pelo destino que nos permita sentirmo-nos corajosos ou
orgulhosos. Tais dramatismos, ainda que adoptados em privado, traem uma incapacidade para ver a
irrelevância cósmica da situação. Se sub specie aeternitate não há razão para acreditar que coisa
alguma importa, então isso também não importa, e podemos abordar as nossas vidas absurdas com
ironia em vez de heroísmo ou desespero.
Notas
1 Estou ciente de que o cepticismo sobre o mundo exterior é esmagadoramente tido como refutado, mas fiquei
convencido da sua irrefutabilidade desde que fui exposto em Berkeley às ideias em grande parte inéditas de
Thompson Clarke sobre o tema.
2 Como Hume afirma numa passagem famosa do Tratado: «Felizmente acontece que, como a razão é incapaz de
afastar estas nuvens, a própria natureza é suficiente para isso, e cura-me desta melancolia e delírio filosóficos,
quer enfraquecendo esta inclinação mental, quer por uma qualquer distracção e impressão vívida dos meus
sentidos, que oblitera todas estas quimeras. Janto, jogo gamão, converso e sou alegre com os meus amigos; e
quando regresso a estas especulações, depois de três ou quatro horas de diversão, parecem-me tão frias e
forçadas e ridículas que não consigo obrigar-me a voltar a elas.» (Livro I, parte IV, secção 7; Selby-Bigge, p. 269)
3 «Sísifo, proletário dos deuses, destituído de poder e rebelde, tem um conhecimento completo da sua condição
miserável: é nisso que pensa ao descer o monte. A lucidez destinada a ser a sua tortura coroa ao mesmo tempo a
sua vitória. Não há destino que não possa ser vencido pelo desdém.» (O Mito de Sísifo, Livros do Brasil, Lisboa,
2005; primeira edição, Paris: Gallimard, 1942.)
5
O tópico do interesse próprio levanta questões filosóficas vastas e intratáveis — a mais óbvia
das quais a questão «Em que consiste o interesse próprio?». Contudo, o conceito de
interesse próprio, diferentemente do seu conteúdo, parece suficientemente claro. O
interesse próprio é o interesse pelo nosso próprio bem. Agir por interesse próprio é agir motivado
pela promoção do nosso próprio bem. O que fazemos é realmente do nosso interesse próprio se
promover realmente o nosso próprio bem, ou se pelo menos minimizar o seu declínio. Apesar de
poder ser difícil dizer se uma pessoa está motivada pelo interesse próprio num caso particular, e
apesar de ser também difícil determinar se um dado acto ou decisão é realmente do nosso interesse
próprio, o sentido das afirmações em questão não parece problemático.
Neste ensaio, o meu interesse principal é defender uma ideia sobre o conteúdo do interesse
próprio. 1 Especificamente, defenderei a perspectiva de que o sentido, numa acepção que elaborarei,
é um elemento importante de uma vida boa. Segue-se, então, que faz parte de um interesse próprio
esclarecido querer assegurar o sentido da nossa vida ou, pelo menos, permitir e promover
actividades com sentido na nossa vida. Contudo, aceitar esta concepção substancial de interesse
próprio acarreta uma consequência curiosa: o conceito de interesse próprio que anteriormente
parecia tão claro começa a tornar-se difuso. Felizmente, acaba por parecer também menos
importante.
Em Reasons and Persons, 2 Derek Parfit distingue três géneros de teorias sobre o interesse próprio:
teorias hedonistas, teorias das preferências e aquilo a que chama «teorias de listas objectivas». As
teorias hedonistas sustentam que o nosso bem é uma questão de qualidade sentida das nossas
experiências. A teoria mais popular do interesse próprio, que o identifica com a felicidade, e a
felicidade com o prazer e a ausência de dor, é um óptimo exemplo de uma teoria hedonista. O
reconhecimento de que algumas pessoas não se importam assim tanto com a sua própria felicidade,
contudo — e, o que é muito importante, que nem sequer encaram a sua própria felicidade como o
elemento exclusivo do seu próprio bem — levou alguns filósofos a propor uma teoria das
preferências do interesse próprio, que identificaria o bem de uma pessoa com o que a pessoa mais
quer para si. Assim, por exemplo, se uma pessoa dá mais importância à fama, ainda que póstuma, do
que à felicidade, então uma teoria das preferências atribuiria à fama um peso proporcional na
identificação do seu interesse próprio. Se uma pessoa dá mais importância ao conhecimento da
verdade do que a crenças agradáveis ou confortáveis, então é do seu interesse próprio conhecer a
verdade, por mais desagradável que seja.
Contudo, as preferências de alguém relativamente a si mesmo podem ser autodestrutivas, ou
bizarras por qualquer outra razão, e pode acontecer que algumas coisas (incluindo o prazer) sejam
boas para uma pessoa quer ela as prefira quer não. Não é absurdo pensar que ser enganado é mau
para uma pessoa (e, portanto, que não ser enganado é bom para uma pessoa) independentemente
de a pessoa em questão valorizar conscientemente este estado. A amizade e o amor podem também
parecer coisas cujo bem explica as preferências da pessoas por elas, ao invés de resultar dessas
preferências. A plausibilidade destes últimos pensamentos explica o que há de apelativo nas teorias
de listas objectivas, de acordo com as quais o bem de uma pessoa inclui pelo menos alguns
elementos que são independentes das suas preferências e do efeito que têm na qualidade sentida da
sua experiência, ou anteriores a tais preferências e a tal efeito. Deste ponto de vista, há alguns
itens, idealmente especificáveis numa «lista objectiva», cuja relevância para uma vida integralmente
de sucesso não depende das escolhas do sujeito.
A perspectiva que defenderei, que o sentido é um ingrediente da vida boa, compromete-nos com
uma versão deste último tipo de teoria, pois defendo que o sentido é um aspecto não derivado da
vida boa — o seu bem não resulta de nos fazer felizes ou de satisfazer as preferências da pessoa que
é o sujeito dessa vida. Assim, segue-se que tem de ser inadequada qualquer teoria que tome o
interesse próprio como uma questão inteiramente subjectiva, quer numa acepção que identifique o
interesse próprio com a qualidade subjectiva das experiências de uma pessoa, quer numa acepção
que permita que os padrões do interesse próprio sejam estabelecidos pelas preferências subjectivas
de uma pessoa. Ao mesmo tempo, seria um erro pensar que o bem objectivo de uma vida com
sentido é totalmente independente da experiência ou das preferências do sujeito, como se pudesse
ser um bem para uma pessoa viver uma vida com sentido independentemente de isso a fazer feliz ou
de satisfazer as suas preferências. Na verdade, como veremos, a própria ideia de actividades que
possam dar sentido a uma vida sem a adesão do sujeito é dúbia.
1 A perspectiva que descrevo e defendo é claramente influenciada pelas perspectivas de Aristóteles e John Stuart
Mill, com que simpatizo. Não posso individuar as minhas dívidas para com eles; são ubíquas.
2 Derek Parfit, Reasons and Persons (Oxford: Oxford University Press, 1984).
3 Isto é defendido por David Wiggins no seu brilhante mas difícil ensaio «Truth, Invention, and the Meaning of
Life», Proceedings of the British Academy, 62 (1976).
4 Woody Allen parece ter uma perspectiva diferente. A sua lista das coisas que fazem a vida valer a pena, no fim
de Manhattan, incluem, por exemplo, «os caranguejos do Sam Woo» — algo que parece estar ao nível dos
chocolates. Por outro lado, talvez os caranguejos surjam na lista para mostrar que Allen encara o prato como uma
realização que merece apreciação estética, sendo tal apreciação uma actividade que vale a pena em si; assim, os
caranguejos podem ser análogos a outros itens da sua lista, como o segundo andamento da Sinfonia Júpiter, a
gravação de «Potatohead Blues» de Louis Armstrong, e «aquelas maçãs e peras do Cézanne». Em rigor, a
apreciação de chocolate excelente poderá também considerar-se uma dessas actividades.
5 Veja-se Wiggins, «Truth, Invention, and the Meaning of Life», p. 342.
6 Trata-se de um jogo infantil britânico, popular nos séculos XVI e XVII, mas entretanto caído em desuso. N. do T.
7 John Stuart Mill tornou este comentário famoso, citando-o no seu ensaio sobre Bentham. Veja-se J. M. Robson,
org., Collected Works of John Stuart Mill, vol. 10 (Toronto: University of Toronto Press, 1969), p. 113.
8 Veja-se Leão Tolstoi, «Confissão», em Aires Almeida e Desidério Murcho, Textos e Problemas de Filosofia
(Lisboa: Plátano, 2006).
9 Albert Camus, O Mito de Sísifo (Lisboa: Livros do Brasil, 2005).
10 Thomas Nagel, «O Absurdo», nesta mesma antologia.
11 Discuto isto no meu manuscrito inédito «Meaninful Lifes in a Meaningless Universe».
12 Richard Taylor, «O Sentido da Vida», nesta antologia.
13 Veja-se Joel Feinberg, Freedom and Fulfillment (Princeton: Princeton University Press, 1992), cap. 13.
14 Robert Nozick sugere algo de semelhante em The Examined Life (Nova Iorque: Simon and Schuster, 1989).
Além de querermos a felicidade, escreve Nozick, «queremos também que esta emoção de felicidade seja
adequada» (p. 112).
15 Sitcom norte-americana dos finais dos anos cinquenta do séc. XX. N. do T.
16 Exploro isto em «Meaningful Lives in a Meaningless World».
17 A escala relevante de valor, contudo, será em si uma questão de disputa. Como os meus exemplos
provavelmente tornaram claro, não há razão para identificar aqui o tipo relevante de valor com o valor moral.
6
N o Ocidente, somos muito ricos e estamos a ficar mais ricos. Mas a elevação dos nossos
níveis de vida não foi acompanhada por um aumento da nossa felicidade. 1 Cada vez mais as
pessoas têm reagido a este «paradoxo» (como Easterbrook lhe chama) procurando o valor na vida
noutro lado. Talvez não se possa encontrar a satisfação profunda na procura do conforto material,
mas em actividades intrinsecamente com sentido. Assim, muitas pessoas estão a reorientar as suas
vidas, afastando-se da procura de riqueza e dedicando-se à procura de sentido. Estão a reduzir as
horas de trabalho, mudando de emprego, trabalhando em casa ou deixando completamente de
trabalhar. Em cada caso, estão a trocar os proventos por tempo para se dedicarem a bens que
consideram que valem a pena.
Este movimento da simplicidade ou da despromoção voluntárias está a ganhar força quase a cada
dia. 2 Contudo, os filósofos nada disseram sobre isso. Na verdade, não é um exagero muito grande
dizer que os filósofos nada têm a dizer sobre isso. Não parecemos um grupo de gente mais
habilitada do que os sociólogos, os psicólogos ou até o público em geral para avaliar ou comentar as
escolhas dos membros deste movimento, e talvez até pareçamos pessoas menos habilitadas.
Em certos aspectos, a nossa aparente incapacidade para dar aqui uma contribuição é deveras
surpreendente. Quem se despromove procura vidas com mais sentido; quem, a não ser os filósofos,
devia estar mais habilitado para lhes dizer onde se encontra o sentido? Afinal, fora da academia, a
filosofia é frequentemente identificada com a procura do sentido da vida. Claro que nós, que somos
filósofos, sabemos que isso não é verdadeiro. Sabemos que poucos filósofos levam a sério a questão
do sentido da vida; na verdade, talvez como ressaca dos dias do positivismo lógico, muitos nem
encaram a questão como inteligível. Contudo, ao que parece, não há razão para pensar que esta
deva revelar-se mais intratável do que questões como «Porquê ser moral?» ou «O que podemos
saber?». Também estas questões precisam de ser analisadas e aperfeiçoadas antes de lhes
podermos responder, mas isto não nos impediu de gastar muitos litros de tinta para destrinçar as
subquestões em que cada uma delas se pode dividir e ao mesmo tempo defender respostas para
todas. Se dedicarmos um tempo e energia intelectual semelhantes à questão do sentido da vida, não
há razão para não ter a esperança de que alcançaremos um sucesso semelhante.
Neste artigo, tentarei começar a responder à questão do sentido da vida, no que diz respeito às
preocupações práticas de quem se despromove. Não terei a presunção de apresentar uma teoria
completa e final sobre o sentido da vida, mas argumentarei a favor de algo quase igualmente
ambicioso: uma concepção da estrutura que as actividades centrais da nossa vida têm de ter para
serem idealmente dotadas de sentido. Com base nesta concepção, argumentarei que quem se
despromove está meio certo. Procura mais sentido na sua vida, e muitas vezes encontra-o. Mas na
medida em que procura sentido superlativo, o tipo de sentido mais elevado, mais satisfatório, a que
pode ter acesso, está a procurar no lugar errado. Apesar de não podermos comprar o sentido
superlativo, e consequentemente não podermos atingi-lo através da procura de riqueza, atingimo-lo
paradigmaticamente por meio do trabalho: não qualquer tipo de trabalho, mas o trabalho que tiver
uma determinada estrutura.
I
Uma maneira potencialmente frutuosa de abordar a questão do sentido da vida é esboçar vidas
paradigmaticamente sem sentido, esperando-se assim descobrir o que lhes falta. Richard Taylor
sugere que Sísifo, condenado pelos deuses a uma eternidade de labuta, representa a vida
arquetipicamente sem sentido. 3 A tarefa de Sísifo é carregar uma enorme pedra até ao cume de um
monte, momento em que a pedra volta a cair. A sua vida é a epítome da ausência de sentido por ser
tão destituída de razão de ser; Sísifo nada alcança, nada muda, nada tem para mostrar em resultado
dos seus trabalhos sem fim. Porque a sua vida não tem uma razão de ser, não tem sentido.
É muito plausível pensar que este é o núcleo da questão do sentido da vida: quando as pessoas
perguntam pelo sentido da vida, perguntam pela sua razão de ser. E podemos ter a esperança de
compreender «razão de ser», como usamos aqui a expressão, em termos dos objectivos que se
procuram e se alcançam numa vida. A vida de Sísifo não tem razão de ser porque as suas labutas
nada concretizam. Mas as vidas não adquirem sentido unicamente no caso de alcançarem
objectivos. Permita-se que Sísifo alcance o seu objectivo, conseguindo depositar a pedra no cume do
monte; a sua vida não adquire desse modo uma razão de ser. Um Sísifo condenado a amontoar
pedras atrás de pedras no cume de uma montanha de pedras em crescimento contínuo dificilmente
daria menos dó.
Assim, os resultados concretos não são suficientes para dar às nossas vidas uma razão de ser.
Como David Wiggins sugere, a vida do lavrador que cultiva mais milho para alimentar mais porcos
para comprar mais terras para cultivar mais milho para alimentar mais porcos dificilmente é menos
destituída de razão de ser pelo facto de alcançar resultados concretos. 4 Na verdade, este parece
precisamente o tipo de intuição que motiva muitos do que optam pela despromoção. Podem ser
pessoas muitíssimo bem-sucedidas, no sentido em que têm empregos de prestígio e acumulam
grandes riquezas. Contudo, sentem que as suas vidas carecem de razão de ser, do tipo requerido.
Mas então que tipo de razão de ser têm as vidas de ter para terem sentido?
Wiggins sugere que as vidas carecem de sentido quando não se conectam com interesses para lá
da mera vida animal do organismo individual. 5 Uma vida tem razão de ser quando se orienta por
objectivos que transcendem os limites do indivíduo, objectivos que têm mais valor do que os
interesses subjectivos de qualquer pessoa individual. É este tipo de razão de ser que está ausente da
vida de Sísifo, do lavrador de Wiggins e da vida do executivo rico cuja vida parece vazia de
significado.
Poder-se-ia por isso sugerir que uma vida tem sentido unicamente no caso de se dedicar à
procura de bens que transcendem as limitações dos indivíduos (ou no caso de ganhar unidade em
torno dessa procura). Na verdade, os (poucos) filósofos que escrevem hoje sobre a questão do
sentido da vida tendem a convergir para algo mais ou menos como esta concepção. 6 Para John
Kekes, por exemplo, uma vida com sentido é (inter alia) uma vida devotada ao desenvolvimento de
projectos com os quais o agente se identifica, e que não são destituídos de razão de ser nem são
triviais. 7 Para Robert Nozick, o sentido na vida resulta de transcender os limites do eu: uma vida
com sentido conecta-se com valores que ultrapassam o eu. 8 Susan Wolf condensa esta concepção
consensual de sentido: «as vidas com sentido são vidas de entrega activa a projectos de valor». 9
Esta definição é muito recomendável. Na verdade, parece que é esta definição de sentido que
melhor permite compreender as queixas, de quem se despromove, de que a sua vida era destituída
de sentido. Tal pessoa entregava-se a actividades que tinham uma razão de ser — acumulava bens,
fazia a diferença no mundo —, mas a razão de ser não era suficiente para dar sentido. As suas
actividades eram essencialmente «regressivas e circulares», para usar a expressão de Wiggins: 10
não tinham uma razão de ser além de si mesmas. Quem se despromove muda a sua vida para lhe
restituir sentido; fá-lo precisamente ao entregar-se a bens além de si.
Uma vida com sentido é, consequentemente, uma vida devotada a (promover) bens além do eu.
Esta definição é apoiada pelo facto de oferecer uma explicação cogente da razão pela qual as
pessoas afirmam muitas vezes que encontram sentido em certas actividades, mas não noutras.
Encontra-se sentido na actividade científica e na arte, na família e na comunidade, no activismo
político e na filosofia, no desporto e na religião. Em cada caso, entregamo-nos a algo que nos
transcende, entregamo-nos a bens que não são meramente subjectivos, mas são (pelo menos)
intersubjectivos. Estes bens assumem muitas formas: morais, estéticas, científicas, culturais e assim
por diante. Todos têm em comum o facto de serem verdadeiros bens (tendo pelo menos o que
Wiggins chama «objectividade antropocêntrica comum») em prol dos quais os seres humanos podem
sensatamente trabalhar. 11
O facto de tantos filósofos ponderados e talentosos terem convergido para esta concepção do
sentido da vida humana, juntamente com o facto de ser precisamente o sentido deste género que
satisfaz a demanda de quem se despromove e de outras pessoas que procuram o sentido, exige que
aceitemos a sua adequação. O sentido está realmente ao nosso alcance por meio da entrega a bens
para lá das nossas vidas individuais. Contudo, esta concepção do sentido na vida não parece
inteiramente satisfatória a muitas pessoas ponderadas. Anseiam por algo mais. Pode acontecer,
claro, que procurem algo que os seres humanos não podem ter; este pode ser um anseio que é
melhor deixar à terapia, filosófica ou psicológica. Mas, se eu tiver razão, os seres humanos têm à
sua disposição um tipo mais satisfatório de sentido. Além disso, num enquadramento inteiramente
naturalista.
Por que razão algumas pessoas consideram que não é satisfatória esta concepção de sentido, que
resulta da entrega a actividades de valor para lá do eu? Penso que há duas razões. A primeira é que
pode parecer, de certos pontos de vista, que a solução se limita a reproduzir o problema. Como
vimos, uma maneira de as vidas serem destituídas de sentido é centrarem-se em actividades que
são, na expressão de Wiggins, «regressivas e circulares». A entrega a bens para lá do eu fornece-nos
supostamente uma maneira de quebrar o círculo do eu. Mas esta concepção do sentido parece
limitar-se a substituir um círculo menor por um maior. Opõe o lavrador, que cultiva mais milho para
alimentar mais porcos para comprar mais terra para cultivar mais milho, ao progenitor que adquire
sentido tendo filhos que adquirirão sentido tornando-se por sua vez progenitores. Por que há-de este
género de círculo ser mais significativo do que o primeiro? Entregando-nos a este género de
actividade, estamos a dedicar-nos a uma vida que é tão destituída de razão de ser — na medida em
que não tem uma razão de ser fora de si — como a de Sísifo. Como afirma Taylor ao dar voz a esta
objecção, a única diferença entre nós e Sísifo é que, enquanto ele volta a descer o monte para pôr
mais uma pedra às costas, nós deixamos esta tarefa aos nossos filhos. 12
Uma vida circular, uma vida que não tem qualquer razão de ser além de si, é uma vida sem razão
de ser, por maior que seja o seu círculo. Esta é uma objecção à concepção de sentido que
esboçámos. Os comentários de Taylor sobre Sísifo sugerem uma segunda razão para se ficar
insatisfeito com essa concepção. Imagine-se que se permitia que Sísifo se entregasse a bens para lá
de si mesmo. Como vimos, permitir-lhe apenas que empilhe pedra em cima de pedra não é suficiente
para dar razão de ser à sua vida, dado que não lhe permitiria entregar-se a um verdadeiro bem. Mas
permita-se que Sísifo use as pedras que recolhe para construir um «templo belo e duradouro» e a
sua vida ganha sentido. 13 É plausível pensar que a construção de templos é uma actividade de valor,
um valor que transcende as nossas vidas individuais. Quer a valorizemos pelo seu significado
religioso, quer pela afirmação simbólica do empenho humano num universo sem deus, quer pela
beleza arquitectónica, é claro que a entrega a esta actividade é paradigmaticamente dotada de
sentido. Sísifo, o construtor de templos, dedica-se a um projecto de valor e ao fazê-lo transcende-se.
Contudo, há um problema sério nesta solução sisifiana. Talvez a vida de Sísifo pareça ter sentido
enquanto ele estiver absorvido na construção do tempo. Mas agora imagine-se o templo acabado. E
agora? — pergunta Taylor. «Que imagem se apresenta agora aos nossos espíritos? É precisamente a
imagem do tédio sem fim!» 14 Logo, atingir os nossos objectivos não pode de facto dar sentido às
nossas vidas. Mas que vantagem terá empenharmo-nos num objectivo, com a esperança de isso nos
dar sentido, se reconhecemos que atingi-lo é destituído de sentido? Um objectivo sem sentido não
pode certamente transmitir sentido, de algum modo, às actividades que lhes são dedicadas.
Algumas pessoas podem ser tentadas a argumentar que as coisas são mesmo assim; que o
sentido da vida se encontra na actividade, e não na realização. Temos de devotar-nos a objectivos de
valor, para que as nossas vidas tenham sentido, mas não têm de ser objectivos que continuariam a
dar sentido às nossas vidas se os realizarmos. Há algo de correcto nesta resposta — na verdade,
como veremos, há muito de correcto nesta resposta —, mas há também qualquer coisa de estranho.
Desde logo, como vários filósofos sublinharam, o sentido relaciona-se com o resultado. 15 Se não
ganharmos terreno ou não pudermos ganhar terreno em direcção à realização dos nossos projectos,
estes não poderão dar sentido às nossas vidas. Logo, se atingir os nossos objectivos ameaçar o
sentido dos nossos projectos, ficaremos numa posição curiosa: precisamos simultaneamente de
ganhar terreno e, contudo, estamos sempre cientes de que o sucesso será garantia de fracasso.
Além disso, o próprio facto de estarmos cientes de que temos de fracassar nos nossos projectos
mais significativos ameaça o seu valor. Pense-se nos objectivos mais nobres e com mais sentido que
podemos cultivar, como combater a pobreza e a opressão. Deveremos dizer que temos sorte porque
não atingiremos estes objectivos? A reflexão sobre a ideia de que as nossas vidas só têm sentido
porque os nossos objectivos mais importantes são inalcançáveis, e enquanto o forem, parece retirar-
lhes o sentido.
Considere-se, neste contexto, uma crise famosa de sentido: a que John Stuart Mill viveu. Mill
tinha devotado a sua vida a boas obras, como nos conta, e durante algum tempo sentiu-se
suficientemente realizado com essas actividades. Contudo, num estado de depressão, fez a si mesmo
a pergunta fatídica com que nos temos vindo a debater:
Ocorreu-me fazer a pergunta directamente a mim mesmo: «Supõe que todos os objectos da tua vida se
realizavam; que todas as mudanças nas instituições e nas opiniões pelas quais anseias poderiam ser
efectivadas neste mesmo instante; seria isto uma grande alegria e felicidade para ti?» E uma
autoconsciência irreprimível respondeu distintamente «Não!» Com isto, o coração afundou-se-me; toda a
fundação na qual a minha vida estava assente caiu. A minha felicidade encontrava-se toda na procura
contínua deste fim. O fim já não me cativava, e como poderia alguma vez voltar a haver qualquer interesse
no meio? Parecia que nenhuma razão mais tinha para viver.» 16
Como Mill viu, a sua crise pessoal tinha uma importância que o ultrapassava. Era, pensou, uma
«deficiência na própria vida»: 17 se a importância na vida exige a privação, então os pessimistas
sobre o sentido têm razão. A vida tem uma estrutura trágica, na qual a infelicidade de muitas
pessoas é necessária para a felicidade completa e mais elevada de qualquer pessoa. Chamemos a
isto «teste de Mill». Uma actividade não passa o teste de sentido superlativo de Mill se pudermos a)
imaginar que a concluímos e b) se concluí-la destituiria de sentido uma vida a ela devotada.
Apesar de Mill se reconciliar com a sua situação embaraçosa, parece nunca a ter resolvido
adequadamente. A sua solução, que vale o que vale, parece ter consistido em recusar enfrentá-la
directamente. Os deleites da vida, diz-nos, «não suportam um exame escrutinador»:
Pergunte-se se é feliz, e deixará de o ser. A única alternativa é não encarar a felicidade, mas antes qualquer
fim que lhe seja externo, como o propósito da vida. E que a autoconsciência, o escrutínio, a interrogação de
si se esgotem nisso; e se a sorte lhe sorrir, irá respirar felicidade sem se deter ou pensar nela, sem a
antecipar em imaginação nem a fazer fugir com questionamentos fatais. 18
Mill sugere que questionar nos impede de encontrar propósito na vida. Temos de nos atirar tão
entusiasticamente a actividades que não possamos perguntar-nos se realmente valem a pena.
Adquiriremos então sentido, ainda que a condição para o fazermos seja o facto de os nossos
projectos acabarem por fracassar.
Assim, a concepção de sentido que esboçámos é vulnerável em dois aspectos. Primeiro,
muitíssimas das actividades através das quais se defende nessa concepção (correctamente) que se
ganha sentido dificilmente são menos circulares do que as actividades paradigmaticamente
destituídas de sentido. Segundo, localiza o sentido na procura de fins que, se forem atingidos,
deixam de dar sentido às nossas vidas. Além disso, estas duas vulnerabilidades, entre si, ameaçam
ser suficientes para viciar todos os nossos projectos: para que um projecto não fracasse devido à
circularidade, tem de ter um fim exterior. Mas se tem um fim exterior, e esse fim é atingível (o que é
em si uma condição para que a sua procura dê sentido), então arriscamo-nos a ficar no segundo
ramo do dilema do sentido ameaçado.
II
Podemos fazer melhor? Estaremos condenados a só encontrar sentido calando as nossas faculdades
críticas? Uma fonte de sentido que satisfaça Taylor e desfaça as dúvidas de Mill terá de ter as
seguintes características:
1. Não pode ser circular, no sentido em que tem de ter uma razão de ser além de si. Mas:
2. Apesar de termos de conseguir progredir significativamente em direcção ao seu fim, este
fim tem de ser tal que:
3. Ou atingi-lo não o destituiria de sentido;
4. Ou apesar de ser concebível um progresso constante na sua procura, o seu acabamento final
não o é.
Poderá haver actividades com estas características? Sugiro que há. Tanto quanto consigo
compreender, suspeito que se pode pensar que a solução teológica para o problema do sentido da
vida satisfaz estas condições. A comunhão com Deus, ou o advento do Milénio, é (tomado como) um
fim atingível que tem sentido intrinsecamente (de algum modo). O problema que a concepção
teológica enfrenta (além de ter de tornar plausíveis os seus pressupostos essenciais) é esmiuçar a
maneira como estes objectivos têm sentido. O debate sobre a questão de saber até que ponto a
imortalidade, ou o próprio Céu, acabaria por se revelar tão aborrecido como a contemplação de
Sísifo do seu templo concluído é em parte, penso, um debate sobre a questão de saber até que ponto
a concepção teológica poderia sustentar a sua afirmação de que satisfaz esta segunda condição. 19
A solução teológica opta por um objectivo intrinsecamente com sentido. Eu defenderei uma
solução que escolhe o segundo disjunto. Sugerirei que há actividades de valor que são
inerentemente abertas — não por se orientarem por um objectivo que não pode ser alcançado, mas
porque o objectivo que procuram não está determinado antes da própria actividade. Ao invés, o
objectivo é gradualmente definido e especificado mais precisamente à medida que o procuramos
alcançar, de modo que a finalidade da actividade é sempre em si mesma um dos seus prémios.
O tipo de actividade que tenho em mente — a que chamarei «projecto» — é muito análogo ao que
Alasdair MacIntyre chama uma prática. De acordo com MacIntyre, uma prática é (entre outras
coisas) uma forma de actividade que tem padrões de excelência que lhe são internos, e à medida
que os atingimos as nossas «concepções dos fins e bens envolvidos alargam-se sistematicamente». 20
As práticas não são projectos em parte porque os bens cultivados em muitas das práticas de
MacIntyre não são suficientemente importantes. Tanto a agricultura como o desporto são práticas,
para MacIntyre, mas, apesar de serem (pelo menos argumentavelmente) actividades com sentido,
não são actividades com sentido superlativo. Contudo, algumas actividades com sentido com a
estrutura de uma prática classificam-se como projectos: os projectos são práticas em que estão em
causa bens de valor supremo.
Considere-se, por exemplo, a actividade da filosofia ou, mais em geral, a procura da verdade em
qualquer área da investigação. Como é evidente, trata-se de uma actividade paradigmaticamente de
valor, na medida em que a verdade, assim como a justiça e o bem, é um dos valores mais elevados
que podemos conceber. Além disso, é uma investigação constitutivamente aberta, no seguinte
sentido: não é sequer concebível (desde que compreendamos o que é a investigação intelectual) que
não possa passar o teste de Mill. A ideia de um sistema de conhecimento acabado e inteiramente
verdadeiro é literalmente inconcebível de antemão, ao contrário de um templo. Podemos ter uma
ideia clara da aparência de um templo acabado, mas não podemos compreender o que poderia ser
um sistema concluído de conhecimento. Certamente que podemos imaginar uma enciclopédia muito
grande, mas os seus conteúdos permanecem obscuros. Desenvolvemos os instrumentos para
compreender o conhecimento que poderemos desenvolver à medida que procuramos esse
conhecimento, de maneira que as futuras direcções que a nossa compreensão pode assumir são, em
princípio, inapreensíveis para nós de um modo mais preciso que o mais indistinto esboço. Dado que
não podemos saber o que poderá ser o objectivo final, não podemos imaginar que completamos o
nosso projecto e, por isso, não podemos ficar abalados com a imagem do seu acabamento. 21
Contudo, poderá objectar-se que o conhecimento é um caso especial. Muitos outros bens de valor
supremo, como a justiça e o bem, são previamente concebíveis. Sabemos (aproximadamente, pelo
menos) como seria uma sociedade perfeitamente justa, e consequentemente o projecto de procurar
alcançar a justiça não passa o teste de Mill. A minha resposta é simplesmente negar que tenhamos
uma compreensão clara do que seria uma sociedade idealmente justa. Apesar de podermos
certamente ver quantas das injustiças flagrantes do nosso mundo poderiam ser eliminadas, não
podemos ver o que precisaríamos de fazer a partir daí. Por exemplo, não podemos ver, previamente
(pelo menos em pormenor), como reconciliar as diferenças culturais com a igualdade. Uma vez mais,
a dificuldade é uma questão de princípio: só faremos os instrumentos com os quais
compreenderemos os pormenores da noção de justiça que se aplicam a estas questões à medida que
as enfrentarmos. Procurar alcançar a justiça é uma prática, na acepção de MacIntyre: à medida que
a atingirmos, tornar-se-á mais claro qual é exactamente o nosso objectivo.
Analogamente, muitos outros bens de valor supremo são inerentemente abertos. A prática da
criatividade artística, quando é conduzida ao mais elevado nível, é paradigmática desse tipo de
actividade aberta. Basta pensar como o movimento avant-garde do séc. XX teria sido visto pelas
gerações anteriores de artistas para compreender como os próprios fins da arte evoluem juntamente
com as actividades que têm por objectivo atingi-los. Como a procura do bem e da correcção moral, e
como a procura da verdade, a arte é uma actividade inerentemente aberta na medida em que os
seus fins estão em causa no seio da própria actividade. Os fins das actividades superlativamente
com sentido não podem ser alcançados porque à medida que as actividades evoluem também os fins
que visam se alteram e se aperfeiçoam. O conhecimento não é de modo algum um caso especial,
pela simples razão de que procurar alcançar qualquer um dos nossos objectivos com mais sentido é,
inter alia, uma actividade cognitiva: uma actividade que exige a descoberta e invenção de novos
instrumentos conceptuais e teorias novas e melhores. Porque as actividades superlativamente com
sentido têm este tipo de abertura, não podem senão passar o teste de Mill. Podemos progredir em
direcção a estes fins, com a certeza de que este progresso não põe em causa o sentido dos nossos
projectos. 22
É típico dos projectos o serem difíceis: exigem um esforço concertado, intelectual e físico.
Frequentemente, exigem também grande coragem. Entregarmo-nos a um projecto é trabalho, numa
acepção clara da palavra. Por isso, quem se despromove só tem razão em parte. Pode-se cultivar o
sentido na vida precisamente do modo como sugerem aqueles que se despromovem. Trabalhando
menos, deixando assim mais tempo para a família, para os amigos, para as alegrias simples de uma
vida com menos pressões e mais em contacto com a beleza e o ambiente natural, podemos
realmente dar mais sentido às nossas vidas. Mas não podemos atingir o sentido superlativo desse
modo. Tal sentido, o sentido que pode ser encarado olhos nos olhos pela pessoa mais dada à reflexão
sem medo ou sem vacilar, só se encontra no trabalho. Não necessariamente, é claro, no trabalho
pago. Quem, como os filósofos e (alguns) artistas profissionais, é pago para se entregar à procura do
sentido superlativo é especialmente privilegiado. Mas a procura do sentido superlativo é
necessariamente trabalho, dado que exigirá um esforço contínuo, concentração, atenção, labuta e,
talvez mais frequentemente do que o contrário, fracasso, pelo menos temporário. Só a entrega
activa a projectos dá sentido superlativo às nossas vidas.
Poderá objectar-se, contudo, que o próprio facto de as actividades com sentido superlativo serem
tão difíceis as exclui como um locus de sentido. Pelo menos, imagino que John Cottingham
argumentaria assim. Para Cottingham, as actividades que podem fracassar não podem dar sentido.
Saber que é em parte uma questão de sorte conseguir ou não garantir o sentido é, afirma, «ao
mesmo tempo psicologicamente indigesto e eticamente repugnante». 23 É psicologicamente
indigesto porque não podemos ter a esperança de embarcar nessa tão árdua viagem com uma
esperança razoável de que será bem-sucedida; é eticamente repugnante porque não é igualitária,
exigindo que admitamos que só uma elite pode alguma vez ter a esperança de ter as vidas com mais
sentido.
Tomo a segunda objecção como mais importante do que a primeira. Na verdade, tomo como uma
vantagem positiva da minha concepção o facto de as actividades que dão sentido serem difíceis e
arriscadas. É um lugar-comum, mas não menos verdadeiro, que as tarefas que valem a pena são
habitualmente, ou talvez sempre, difíceis de executar. Uma vida com sentido é uma vida de esforço e
labuta, dirigidas para fins que só parcialmente estão sob o nosso controlo. A realização que podemos
obter por meio dos nossos sucessos parciais ao desempenhar estas tarefas é maior na medida em
que tivermos plena consciência de que poderíamos ter fracassado absolutamente.
Cottingham vê a segunda objecção como um ataque a qualquer concepção secular da vida com
sentido, mas parece ter uma relevância especial para a concepção que defendi. Quase todas as
concepções do sentido da vida, incluindo a maior parte das concepções teológicas, serão algo
inigualitárias, na medida em que estabelecem certas condições para o sentido que são sociais e que,
consequentemente, estão para lá do controlo de qualquer indivíduo. Se o sentido da vida depende da
aceitação de um deus particular, por exemplo, estabelece condições sociais e nessa medida é
inigualitário. Mesmo que dependa de aceitar o Bem, algumas pessoas estarão em melhores
condições, devido a circunstâncias que não controlam, para compreender e dar valor ao Bem do que
outras: quem teve uma infância particularmente brutal numa sociedade depravada será quase
certamente menos susceptível de dar valor ao Bem do que quem teve melhor sorte.
Contudo, parece haver poucas dúvidas de que as concepções do sentido da vida podem ser mais
ou menos igualitárias, na acepção de Cottingham, e que a concepção que apresentei é menos
igualitária do que a maioria. Defendi que apesar de o sentido comum estar disponível para quase
todos nós, por meio da participação nos bens da família e da apreciação da arte, por meio da
amizade e da interacção com o mundo natural, o sentido superlativo exige muito mais: entrega
activa a projectos. Mas a entrega a um projecto, a um nível que possa garantir realizações
suficientes para conferir sentido superlativo, é acessível a poucos. Por exemplo, só pouquíssimos de
nós podem participar (em vez de serem apenas espectadores interessados) no projecto de procurar
alcançar conhecimento (que, como é óbvio, tem de ser muito mais do que a acumulação aleatória de
factos para que possa constituir um projecto).
Contudo, apesar de parecer verdadeiro que a proporção de qualquer população que se pode
entregar a este projecto é necessariamente restrita, porque a entrega exige (entre outras coisas)
capacidades cognitivas de um tipo especial, que não são apenas extremamente sofisticadas, mas
também (e esta é a condição que torna a participação necessariamente restrita) extremamente
sofisticadas relativamente à norma da população, não parece haver em princípio um qualquer limite
desses à participação em muitos outros projectos. Em particular, quase todas as pessoas poderiam
participar activamente no projecto de procurar alcançar a justiça, pelo menos se a sociedade fosse
organizada de modo a terem o tempo, a educação e os outros pré-requisitos da participação. Apesar
de parecer que uma proporção enorme da população mundial está apartada dos projectos que
poderiam assegurar o sentido superlativo, incluindo quase todas as pessoas no terceiro mundo, isto
não parece uma limitação na própria natureza das coisas. Num mundo mais justo, no qual os
recursos, materiais e intelectuais, estivessem mais justamente distribuídos, muitas mais pessoas
poderiam participar em projectos, e desse modo assegurar o sentido superlativo que só esses
projectos podem dar. 24
O sentido encontra-se, como reconhece quem se despromove, em muitos aspectos da vida
humana. A sua estratégia, abandonar empregos que provocam tensão e não valem a pena, é muitas
vezes bem-sucedida em assegurar o que poderíamos chamar sentido comum. Mas o sentido
superlativo não se encontra no abandono do mundo do trabalho, concebido como uma entrega que
requer grande esforço a práticas difíceis. Pelo contrário, só no trabalho, do tipo adequado e com a
estrutura adequada, é que se encontra o sentido superlativo. No nosso mundo, um dos projectos
com mais sentido a que nos podemos entregar é procurar alcançar a justiça, que é também procurar
alcançar condições sob as quais o sentido superlativo possa ser acessível a todos.
1 Gregg Easterbrook, The Progress Paradox: How Life Gets Better While People Feel Worse (Nova Iorque: Random
House, 2003).
2 Sobre a despromoção, veja-se Juliet B. Schor, The Overspent American: Uscaling, Downshifting, and the New
Consumer (Nova Iorque: Basic Books, 1998), e Robert H. Frank, Luxury Fever: Why Money Fails to Satisfy in an
Era of Excess (Nova Iorque: The Free Press, 1999). Frank cita um inquérito de 1995 no qual 25% dos que
responderam afirmam ter optado pela despromoção.
3 Richard Taylor, «O Sentido da Vida», nesta antologia.
4 David Wiggins, «Truth, Invention, and the Meaning of Life», in Needs, Values, Truth, 3.ª ed. (Oxford: Clarendon
Press, 1998), p. 100.
5 Wiggins, «Truth, Invention, and the Meaning of Life», p. 102.
6 Quer dizer, os filósofos naturalistas tenderam a convergir para esta concepção. Como seria de esperar, Deus
desempenha um papel essencial nas concepções de sentido defendidas por muitos filósofos religiosos. Concepções
teístas do sentido da vida são defendidas por John Cottingham, On the Meaning of Life (Londres: Routledge, 2003),
e William Lane Craig, «The Absurdity of Life Without God», em E. D. Klemke (org.) The Meaning of Life (Nova
Iorque: Oxford University Press, 2000), pp. 40–56. Terei pouco a dizer sobre estas concepções, excepto para fazer
notar que não explicam satisfatoriamente como poderá o facto de nos conectarmos com os propósitos de Deus dar
sentido às nossas vidas. Se vamos desempenhar um papel no plano que Deus preparou para nós, e que Ele poderia
levar a cabo sem a nossa ajuda, como dá isso sentido às nossas vidas? As vidas das crianças não ganham sentido
quando desempenham um papel em projectos cuidadosamente pré-estabelecidos para eles pelos adultos.
7 John Kekes, «The Meaning of Life», Midwest Studies in Philosophy, XXIV (2000), pp. 17–34.
8 Robert Nozick, Philosophical Explanations (Oxford: Clarendon Press, 1981), pp. 549 et seq.
9 Susan Wolf, «Felicidade e Sentido: Dois Aspectos da Vida Boa», p. 112 desta antologia. Note-se que para
articular um critério de sentido Wolf e Kekes combinam um elemento subjectivo, na forma de entrega ou
identificação activa, com o elemento objectivo do significado. O elemento subjectivo parece essencial, em qualquer
concepção, mas não é controverso e eu deixo-o aqui de lado.
10 Wiggins, «Truth, Invention, and the Meaning of Life», p. 100.
11 Wiggins, «Truth, Invention, and the Meaning of Life», p. 137. Um árbitro anónimo chamou-me a atenção para a
recente objecção de Thaddeus Metz a esta concepção de sentido. Metz defende que as concepções que sustentam
que o sentido consiste na conexão com valores além do eu animal sugerem que a resposta subjectivista de Taylor, a
discussão mais amplamente lida da questão, não é apenas falsa, mas não chega sequer a ser uma teoria do sentido
(Metz, «The Concept of a Meaningful Life», American Philosophical Quarterly, 38 (2001), pp. 146–147). Esta é uma
consequência que estou disposto a aceitar: por vezes, uma resposta a uma questão está tão errada que parece
melhor encará-la não como simplesmente falsa, mas como uma ausência de resposta.
12 Taylor, «O Sentido da Vida», p. 25.
13 Taylor, «O Sentido da Vida», p. 22.
14 Taylor, «O Sentido da Vida», p. 28.
15 Veja-se, por exemplo, Wiggins, «Truth, Invention, and the Meaning of Life», p. 98; Cottingham, On the Meaning
of Life, p. 67.
16 John Stuart Mill, Autobiography (Londres: Oxford University Press, 1971), p. 81.
17 Mill, Autobiography, p. 88.
18 Mill, Autobiography, p. 86.
19 Sobre esta questão, veja-se Thaddeus Metz, «Recent Work on the Meaning of Life», Ethics, 112 (2002), p. 791.
20 Alasdair MacIntyre, After Virtue (2.ª ed.) (Londres: Duckworth, 1985), p. 187.
21 Além disso, a verdade pode ser constitutivamente aberta. Na medida em que um sistema completo de
conhecimento tem de incluir quem conhece e a sua actividade, pode dar-se o caso de não poder ser completado em
princípio.
22 Porque os projectos não têm objectivos fixos, mas antes fins que evoluem à medida que se progride em
direcção à sua realização, podem satisfazer outro desideratum de uma concepção de uma vida com sentido. As
pessoas que perguntam pelo sentido da vida querem por vezes saber que diferença faz que elas vivam. Como
afirma Nozick, queremos deixar marcas, de modo a que as nossas vidas façam diferença (Philosophical
Explanations, p. 582). Além disso, queremos que estes traços sejam individuais, de modo que se não tivéssemos
vivido, estes traços particulares não existiriam. Ora, se pudermos participar num projecto e se ajudarmos a
inflectir os seus fins por meio da nossa participação, então podemos deixar este tipo de traço. Se os fins não são
fixos mas (algo) abertos, então a nossa contribuição individual não é inteiramente substituível pela de qualquer
outra pessoa. A arte tem paradigmaticamente sentido em parte porque o grau de diferença insubstituível
introduzida pelos indivíduos na actividade artística é particularmente elevado.
23 Cottingham, On the Meaning of Life, p. 69.
24 Um árbitro anónimo sugeriu outro problema com a minha concepção: não poderia a minha objecção às
concepções teológicas de sentido, segundo a qual a vida eterna seria aborrecida, ser usada contra mim? Se evitar
o aborrecimento é uma condição suficiente para o sentido superlativo, então que garantia há de que alguém que se
entregue a um projecto conseguirá adquiri-lo? Por outro lado, não deveríamos reconhecer que as vidas comuns
com sentido são muitas vezes suficientemente entusiasmantes para evitar o aborrecimento? Esta objecção
interpreta mal a importância do aborrecimento na minha concepção. A minha tese é que as concepções teológicas
que sustentam que a vida eterna tem intrinsecamente sentido parecem abertas à objecção de que tais vidas se
tornariam necessariamente aborrecidas. Mas da tese de que é uma objecção a X, enquanto concepção de sentido,
que X seria necessariamente aborrecido não se segue que qualquer concepção adequada do sentido tem de se
vincular a actividades que não podem possivelmente ser aborrecidas. Em qualquer caso, evitar o aborrecimento é
necessário para o sentido, mas está longe de ser suficiente.
ORIGEM DOS ENSAIOS
1. «O Sentido da Vida», de Richard Taylor, foi publicado originalmente no seu livro Good And
Evil (1970; reedição: Prometheus Books, 2000, pp. 319–334).
2. «O Sentido da Vida, de Kurt Baier, foi publicado originalmente em The Meaning of Life, org.
por E. D. Klemke (Oxford: Oxford University Press, 2000). A conferência foi originalmente
proferida numa Lição Inaugural na University College de Camberra, Austrália, em 1957.
3. «Poderá o Propósito de Deus ser a Fonte do Sentido da Vida?», de Thaddeus Metz, foi
publicado originalmente em Religious Studies, 36 (2000), pp. 293–313.
4. «O Absurdo», de Thomas Nagel, foi publicado originalmente em Journal of Philosophy, 68
(1971), pp. 716–727 e reimpresso no livro Mortal Questions (Cambridge: Cambridge
University Press, 1979), pp. 11–23.
5. «Felicidade e Sentido: Dois Aspectos da Vida Boa», de Susan Wolf, foi publicado
originalmente em Social Philosophy & Policy, 14 (1997), pp. 207–225.
6. «Despromoção e Sentido da Vida», de Neil Levy, foi publicado originalmente em Ratio (New
Series), 18 (2005), pp. 176–189.
LEITURA COMPLEMENTAR
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Wolf, Susan (2007) «Os Sentidos das Vidas», trad. de Desidério Murcho, Crítica, 22 de
Março de 2009.
Copyright © Desidério Murcho e Dinalivro, 2009 (tradução e organização) © Richard Taylor, 1970
© Kurt Baier, 1957
© Thaddeus Metz, 2000
© Thomas Nagel, 1971
© Susan Wolf, 1997
© Neil Levy, 2005
Todos os direitos desta antologia reservados para a língua portuguesa por Dinalivro.
Esta edição Kindle foi preparada pelo organizador em Julho de 2016.
ISBN: 978-972-576-526-5
SOBRE O ORGANIZADOR
Desidério Murcho é professor de filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto (Brasil). É autor de vários livros,
destacando-se Essencialismo Naturalizado (2002), O Lugar da Lógica na Filosofia (2003), Filosofia em Directo
(2011), Sete Ideias Filosóficas que Toda a Gente Deveria Conhecer (2011) e Todos os Sonhos do Mundo e Outros
Ensaios (2016). Traduziu vários artigos e livros, incluindo obras de George Orwell, Thomas Nagel, Bertrand
Russell, Alvin Plantinga, Susan Wolf, W. O. Quine, Nelson Goodman e Simon Blackburn. Fundou a revista Crítica e
escreveu para o jornal Público.
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