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Ernst Junger Nos penhascos de marmore Obra-prima do mais controverso Raa eis a ar aco an ag) G (came eMC ERE CN Occ menm Cusine) RO eteare eam te etre aero tae aeocerT Rog ren ace anaT aM sharia [trea To) Nez a uniforme do soldado condecorado, set: POM een iea rat kvertoac erst eNe Moco e bate como fonte da criagao artistica. Seus diarios da Peinete Mento re WV Unite Aw ora r car arrol ees glorificam a experiéncia nas trincheiras e foram sau- PACE eer Ker Secon OTIS Nn yro Pere een Te Cocco acc Toca Btn esa ceo MS TL CY Ue Con CGT LEE Oi PV CerToc EM etate vet mL Uar lec vere iro Moats OMe RNS retirado num eremitério, no alto de um despenha- deiro, Com seu irmio Otho, ele se dedica 4 paciente PUR TEM MS ES ite CeCe rm ve aN Cc Viet sonl TO COKCE) atividade intelectual por exceléncia —, enquanto um Pere TCOM ee ONCOL COM Les re UnLOsH canons HOE CASE VED Porro EMC None CHL Mee mentors EB UILIaEs naria onde a ago se desenrola. A beleza incomum desta narrativa reside numa relagao longamente OTR Te ERCP ITEC MRE MILT te on oN CCON) refiigios de um escritor que, assim como Goethe, foi Pere M ncn Nc Men Nolen nom Or Ueto traduzido no mundo inteiro, Nos penhascos de mar- more, segundo o critico George Steiner, “reconstitui PwneNe Wt Ccorrtorcitie lol (cece sect bunMac ucone ect Some Cea Tenet Convo Lenive (coe Tt eo Me ALLL Xe COR) realidade do terrormoderno” Ernst Jtinger Nos penhascos de marmore Apresentagio Antonio Candido Tiadugao e posficio Tercio Redondo COSACNAIFY A viagem de Jiinger por Antonio Candido, 7 NOS PENHASCOS DE MARMORE, 19 Apéndice Posfacio por Tercio Redondo, 175 Sugestdes de leitura, 193 A viagem de Jiinger por Antonio Candido Além de grande esctitor, Ernst Jiinger, falecido em 1998 com 102 anos, foi naturalista competente e viajante cheio de percepgio. O seu gosto pela forma do diario e pelo registro das experién- cias era adequado para quem gostava de observar e testemunhar. E em tudo 0 que escreveu aparece um senso atilado do porme- nor, 0 prazer que tem o pesquisador de extrair o objeto e o fato da massa das observa¢ées. Muito disso é visivel na sua obra-prima, © curto romance simbélico Sobre os penhascos de marmore (1939), dentincia das tiranias, que suscitou reagdes indignadas por parte de autoridades nazistas, como se elas tivessem posto a carapuga. Parece que Goebbels, por exemplo, quis puni-lo, mas acontece que Hitler era admirador dos seus livros ultranacionalistas do de- cénio de 1920 e admirava a folha corrida desse super-herdéi da guerra de 1914-1918. Por isso, mandou deix4-lo em paz. A esses motivos talvez nio tenha sido estranho outro, isto €, certo sentimento de parentesco ideoldgico, pois Jiinger foi uma espécie de pré-nazista e poderia numa fase inicial ter aderi- do a0 movimento, No primeiro pds-guerra teve contactos com 48 organizacGes paramilitares de extrema direita, os Freikorps, e colaborou com os Capacetes de Ago, milicia patridtica ¢ revan- chista de ex-combatentes, que se incorporou ao nazismo depois que este chegou ao poder em 1932. Doutrinariamente, a partir do decénio de 1930, Jiinger se dizia anarca, segundo ele um Modo de afirmar a singularidade ¢ a independéncia do individuo con- tra a opressio dos governos, mas também contra a Massificagio @ a vulgaridade que ela produz. Foi provavelmente a vulgaridade popularesca que lhe desagradou no nazismo, cujos favores Tecu- sou € ao qual nao apenas deixou de apoiar, mas sempre se ma- nifestou contrario, numa divergéncia de tipo aristocratico, como a dos oficiais nobres comprometidos no atentado contra Hitler em julho de 1944. Jiinger nao participou dele, mas esteve ligado a muitos que participaram, ou estavam de acordo, como os gene- rais Speidel e Stupnagel, seus superiores nas tropas de ocupacio de Paris durante a Segunda Guerra Mundial. Ele combateu nela como capitio e escreveu a respeito trés volumes de um diario, onde narra a sua vida na capital francesa, de um modo que deixa perceber a aversio ao regime hitlerista, Aversio causou-lIhe também a propria guerra, que segundo ele ja no era mais guerra, e sim uma espécie de catéstrofe como as naturais — tipo terremoto ou vulcio — desencadeada pela técnica desumanizadora, que anula o cavalheirismo, essencial a atividade militar. Em suma, era um heterodoxo que se tornou suspeito, tanto assim que foi posto na reserva, enquanto morria em com- bate na Itdlia seu filho Ernst, expressamente antinazista. Findo 0 conflito, foi ameagado por medidas de desnazificagio e esteve proibido de publicar durante quatro anos, mas nada de pior lhe aconteceu, parece que inclusive por influéncia de Bertolt Brecht, que, como Hitler fizera antes, recomendou, no pdlo oposto, que © deixassem em paz. Apesar de muita restrigio por parte de grupos de esquerda, em paz ficou, inclusive admirado e festejado pelos franceses, de cuja literatura foi sempre conhecedor e cultor fervoroso, Produziu muito, continuou a viajar ¢ a pesquisar no campo da botinica e da zoolo- gia, com uma disposi¢ao fisica e mental rarissima até o fim da vida. Isso € dito como introdugio ao objetivo deste escrito: lem- brar que Jiinger veio ao Brasil numa excursio de sessenta dias em 1936 € aqui esteve por todo o més de novembro (naquele tempo, s6 a viagem de ida volta, por navio, tomava um més). O telato é feito sob a forma de diario em Viagem atldntica (publi- cado em Londres em 1947) e denota grande capacidade de ob- servacao, tanto da natureza quanto das cidades e dos tipos apenas vislumbrados. Mas observacio de naturalista, como se as pessoas, os animais, as plantas fossem equivalentes ante o olhar perscru- tador. Da gente, anota sobretudo as tonalidades da pele e registra com simpatia a delicadeza com que foi tratado. A tnica obser- vacio de tipo social é que o escravo vivia provavelmente melhor do que muitos operarios de hoje. No mais, homens, mulheres, borboletas, plantas parecem pertencer ao mesmo universo exéti- co, visto com curiosidade simpatica. E sao notaveis a disposicao ea naturalidade com que circulou pela terra desconhecida, cuja lingua ignorava, entrando pelo mato, tomando bondes e énibus, indo a botequins, almogando por vezes um cacho de bananas re- batido pela cachaga nacional. E sempre registrando com preciso incrivel as cores e os sabores, inclusive os do café e de uma fruta que denomina “laputtilha” e pode ser “sapoti”, talvez o tinico exemplo de erro na grafia dos nomes, sempre escritos de ma- neira correta ou s6 ligeiramente alterada. O primeiro contacto foi com o Para. O vapor contornou a ilha de Marajé e fundeou em Belém, que ele visitou com encanto, tocado pela riqueza natural da Amazénia, lamentando que os turistas preferissem 4 visio mediada pelos aparelhos, em vez de deixar 0 olho livre para contemplar e organizar a contempla¢ao: Estupidez dos passageiros que, da amurada, fotografam e filmam, sobretudo quando o barco passa rente 4 margem, quase rogando nela. No momento que deveria ser consagrado inteiramente 4 unio do olho com as coisas, 0 homem sé pensa nos apetrechos de apanhar sombras, mecanizando a lembranga. [Assim] torna-se rudimentar, fica sendo apéndice ou érgio a servico do aparelho magnifico de que est4 armado. Este trecho mostra que, para ele, mais importante do que registrar & compor os dados da percep¢io segundo uma espécie de inten- cionalidade. E 0 que parece dizer uma anotagio feita no fim da viagem, depois da visita a Las Palma: Um pensamento a ser tratado longamente: passeios como os do Rio parecem composigdes, a mim que vou flanando assim, Estou em veia musical, e quando 0 mundo produz visées mais visdes, ao modo de notas, eu as organizo segundo 0 motivo executado em mim. uma espécie de embriaguez, na qual as imagens sio o vinho. Quanto mais ela aflui, mais colorida fica a sala das imagens que est’ em nés. A luz que vem da janela empalidece ante a que emana de nés € se irradia. $6 entio o mundo assume o seu estilo auténtico. A alma do enunciado é, portanto, um certo estilo, um modo pecu- liar devido & capacidade de orquestrar as impresses segundo um Propésito interior, que permite extrair da experiéncia uma ordem que leva a compreender, no sentido forte da palavra. 10 Foi esse observador privilegiado que viu o Brasil durante quase um més, compondo numa visio expressiva as impressées, tanto da natureza quanto das cidades, com uma objetividade compreensiva que estimula 0 leitor e faz pensar que passamos ao lado das mesmas coisas, sentimos os mesmos cheiros e os mesmos sabores sem lhes dar a importincia e o significado atribuidos pela percepgio finissima de Jiinger. Do Para o navio desceu até Recife e veio para Santos, onde © nosso excursionista desenvolveu uma atividade incrivel, estu- dando as plantas, explorando os arredores até a serra, analisando as casas e os jardins. Um dia veio a Sio Paulo de treme voltou 4 tarde de automével. Aqui, almogou no Hotel Esplanada (0 dni- co de luxo que havia entio na cidade), encontrou um amigo imigrado e se demorou nos dois lugares de visita obrigatéria na- quele tempo, praticamente os tnicos para turista ver: o Butantan € 0 Museu do Ipiranga. Suas observagdes mais completas foram feitas no Rio, onde circulou detidamente pela floresta da Tijuca € percorreu bares e ruas. Dali rumou para a Bahia, que o impres- sionou pelos conventos e as igrejas. Na viagem de volta o navio parou em Las Palmas, Madeira e Casablanca. A tiltima anotacio, feita a bordo na chegada a Hamburgo, deixa clara a aversio ao regime dominante na Alemanha: Hoje a noite ou amanhi, partida para Leisnig e Ueberlingen, no lago Boden. Que me seja concedido passar, nessas paragens en- solaradas, dias, talvez anos, livre, sereno, ativo — apesar de toda a baixa vilania que nos cerca. O meu palpite (ndo mais que um palpite) é que a viagem ao Brasil pode ter sugerido alguns elementos secundirios para 11 Sobre os penascos de ménmore, publicado tr@s anos depois. Feita na primeira pessoa, ¢ssa narrativa deslumbrante mostra uma terra onde se justapdem trés espagos culturalme! tulam no espago o tempo histérico do ho- nte diversos, que de certo modo recapil mem. Separada por um penha: Marina, com cidades, aldeias pacificas sco de mrmore, estende-se a bei- ra-mar a regio civilizada, ntros de saber e de espiritualidade, na paz que de agricultores, ce Paz ameagada, porque para 14 dos sucedeu a uma grande guerra. penhascos ficam regides turbulentas e atrasadas. Primeiro a Cam- panha, zona de pastores rudes e rebeldes, onde hi todavia grupos favoraveis, como 0 liderado pelo velho e duro patriarca Belovar. Depois fica a Mauritania, com florestas primitivas cheias de mis- tério, refiigio de marginais de toda espécie, cenario de opressio e torturas, de organizagdes secretas perigosas dispostas a tudo. Seu Kider € 0 Monteiro-Mor, velho e poderoso tirano, senhor de for- tuna imensa, que tem casas na Marina e é inimigo do trabalho pacifico, da ciéncia e de tudo o que representa a civilizacio. Os seus bandos espalham o terror ¢ parecem estar sempre prontos para o saque € a destruigao. Por isso os civilizados vivem numa expectativa agourenta, que acaba por levar 0 narrador, apoiado pelos pastores amigos da Campanha, 4 decisio de penetrar na floresta para tentar destruf-los. Mas sio derrotados por eles, € tanto a regido dos pastores quanto a Marina acabam submersas no sangue, taladas pelo fogo e a mais desbragada violéncia. O re- sultado € que as artes da paz perecem e triunfam os instintos elementares, apoiados na tirania irracional. A narrativa é relativamente curta. Na tradugio francesa, 180 paginas compostas em corpo grande. A sua marcha é insinuan- te, cheia de elipses, negaceios e subentendidos, num tom de re- lato lendario atravessado por compassada lucidez. A linguage™ 12 mesmo em tradugio, é espléndida, pois Jiinger é desses autores para os quais a palavra tem sempre dois planos: a referencia ¢ 0 peso proprio. Linguagem carnal, correspondendo a um modo de conceber a criagio literaria que j4 encontramos no trecho da Via- gem atlantica escrito depois da visita a Las Palmas e citado acima. No segundo volume dos diétios de guerra, Primeiro didrio parsiense. 1941-1943, ha duas passagens cuja comparacio é esclarecedora a respeito. Comentando a leitura de Sobre a pedra branca, de Anatole France, diz: [Neste livro] as palavras perderam a sua roupagem orginica, por isso se delineam de maneira mais clara, mais sistematica. O estilo passa pelo filtro de todos os sedimentos do cepticismo, 0 que lhe comunica uma limpidez de agua esterilizada. Uma prosa dessas pode ser lida duas vezes mais depressa do que qualquer outra, quando mais nao fosse porque nela cada termo esti no lugar légico. Nisso consiste o seu defeito e também o seu mérito. Compare-se com 0 que escreve noutro lugar sobre Maurice de Guérin: Sob varios pontos de vista ele esti entre os maiores. Por exem- plo, porque nele a linguagem nio é apenas um meio de comunicar sentimentos e sensagdes, mas possui um corpo sensivel e animado, vido até a diltima silaba por alcangar a forma, [Ele] conhece plena- mente sopro livre que transforma o barro em carne e sangue [...] Tocada pela magia que alarga a realidade, a prosa de Sobre os penhascos de marmore tende ao segundo modo e nos leva a pensar no problema da relagio entre 0 conceito e o seu objeto, que 3 cria os diferentes modos do discurso, — desde aquele onde a palavra parece querer identificar-se ao objeto, até as tentativas de libertar-se dele, como se ela tivesse corpo, ou, nas palavras de Jainger, “roupagem orginica”. Dessas tens6es vivem (ou morrem) as obras literarias. Esse privilegiado instrumento expressivo € posto a servico da visio catastr6fica j4 mencionada, desfechando na civilizacio destruida pelas forgas elementares da barbérie, que instauram a tirania. Isso pareceu logo a muitos uma condenagio do nazismo, mas Jiinger afirmou posteriormente que se tratava de atingir um alvo mais amplo, os totalitarismos do século, embora as brutalida- des do regime de Hitler tenham inspirado a sua dendncia, como muitos nazistas perceberam e procuraram reagir pela sua punicio. De fato. Sobre os penhascos de marmore é mais do que um ro- mance 4 clef, ou mesmo um romance politico, pois ¢ simultanea- mente uma admirdvel arquitetura de palavras que se sustentam pela forga da sua corporalidade. E uma representagao terrivel e devastadora dos totalitarismos, que acaba superando as contin- géncias de época para ganhar a forca do simbolo. E a propria visio expressa pelo narrador revela essa posi¢ao. O narrador anénimo e seu irmao Otho vieram do Nor- te e se instalaram em Marina no Eremitério, lugar de trabalho intelectual e meditagio, onde se dedicam A botanica e que fun- ciona no livro como manifestagio da vida do espirito. Inquieto, © narrador sente que a linguagem nfo é capaz de exprimir 0 que deseja nessa fase nova da vida. Certo dia (aqui o persona- gem parece comungar com idéias do autor que ja ficaram men- cionadas), contemplando o mar do alto jardim, tem consciéncia pela primeira vez de que o seu olhar pousa trangiiilamente sobre a8 colsas; entio, percebe quase com angiistia que esta sentindo 14 as palavras se separarem delas. No entanto, a partir dali ocorre nele uma espécie de despertar, pois viu que h4 o mundo real ¢ 0 mundo da palavra, da qual aprende a se servir. ° Portanto, a consciéncia da limitagio da palavra produz 0 sentimento da sua realidade prépria, separada da coisa, abrindo caminho para construir a expresso. Nesse sentido é que ela se torna por assim dizer carnal, habilitando o espirito a compor o mundo a partir do seu peso especifico. Fortalecido por esse paradoxo (palavra separada da coisa que possibilita a expresso da coisa), o narrador constr6i o universo opulento do seu relato, povoado pelo mar, o fogo, a pedra, a flor, os animais, tudo transformado em espago magico. O meu pal- pite é que, na construgao deste universo, algumas experiéncias e lembrangas do Brasil podem ter atuado, desde tracos tao ocasio- nais como a evoca¢io da vitéria-régia, no come¢o do livro, ou a presenga, perto do fim, de uma capela da “Sagrada Familia” (em portugués no texto). Mais importante, porém, é a presenca da floresta violenta, cerrada, como as das regides tropicais, e, sobre- tudo, das serpentes, que so os animais domésticos do Eremitério, inofensivas, passeando em liberdade, convivendo docemente com um menino, acorrendo na hora da comida, obedientes as ordens, — mas podendo transformar-se (no fim do livro) em agressoras ferozes que matam o cio gigantesco e furioso do monteiro-mor e, erguidas verticalmente como estacas vivas, salvam 0 narrador e seu irmio. Ora, antes de vir ao Brasil Jiinger s6 tinha feito viagens a lugares onde nio hi florestas primitivas nem serpentes em quan- tidade e variedade aprecidveis: Sicilia, costa dalmata, Noruega (bem mais tarde ira ao Extremo Oriente e ao Norte da Africa). No Brasil, uma das coisas que mais o atrairam foi o Butantan 15

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