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20/04/2021 Folha de S.

Paulo - A justiça do passado - 19/04/98

São Paulo, domingo, 19 de abril de 1998

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Do mesmo modo que afirma a culpa


coletiva, o processo Papon a relega
ao passado

A justiça do passado
JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

Durante seis meses a França oficial parece ter sido dominada


por um único acontecimento: o processo movido contra
Maurice Papon, antigo funcionário de Estado francês do
marechal Pétain, por sua cumplicidade na captura, entre 1942
e 1944, de mulheres, crianças e homens judeus,
desaparecidos nos campos de concentração. Esse processo
teria podido restringir-se a um confronto simples. De um
lado, os parentes dos deportados exigiam uma reparação pelo
crime perpetrado contra seus familiares. De outro, um
funcionário que cumprira sua função num Estado
colaboracionista, sem fervor nem excesso de zelo. Ele
assinara ordens de prisão e deportação que se achavam sob
sua alçada, sem se empenhar pessoalmente em organizar a
caça aos judeus nem saber o que era feito dos deportados.
Uma pena de dez anos de prisão selou essa responsabilidade
inegável e bem circunscrita.
Mas aqui a simplicidade dos fatos começa a turvar-se. Que
relação de comensurabilidade existe entre dez anos de prisão
infligidos -50 anos depois dos fatos- a um homem de 87 anos
e o martírio daqueles que foram assassinados em massa nos
campos de concentração? E por que um processo que não
podia chegar a nenhum veredicto capaz de estabelecer uma
proporção entre um indivíduo e o crime de massas assumiu
tamanha importância?
Essa falta de proporção mostra, de início, a função singular
que hoje desempenha o Poder Judiciário. Todo assunto
político sobre o certo ou o errado, sobre a justiça ou a
injustiça, adota a forma de um processo movido perante um
tribunal, real ou imaginário. Ao mesmo tempo que os
franceses, dia após dia, informavam-se do desenrolar do
processo Papon, eles podiam contemplar nas vitrines das
livrarias o "Livro Negro do Comunismo", envolto numa tira
publicitária vermelha, que anunciava: "85 milhões de
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mortos".
Alguns contestaram as cifras: como cifrar exatamente as
vítimas chinesas da fome? É certo computá-las como vítimas
do comunismo, o mesmo título que os fuzilados ou os mortos
nos campos? Mas esse não é o ponto principal. A função da
cifra é mais judiciária do que estatística. De Volin a
Solzhenitsyn, não faltaram homens para revelar os crimes
dos regimes comunistas. Contudo, eles o faziam
politicamente. Seu testemunho, como vítimas do
comunismo, denunciava o regime em nome de um ideal
político diferente -do anarquismo ou do "verdadeiro"
comunismo ou da restauração da antiga ordem monárquica e
religiosa. Hoje, trata-se de outra coisa: o cômputo dos mortos
identifica-se a um tribunal da história que resolveu o litígio,
que enuncia o veredicto não de um regime, mas de uma
ideologia -quer dizer, de um tempo em que ainda se
acreditava nas ideologias. O tribunal da história soma as
cifras do presente às cifras de outro tempo, o de Volin e
Solzhenitsyn ou de Lênin e Stálin: o tempo da política, em
suma.
Pode-se dizer, de igual forma, que o processo Papon é um
acerto de contas dos franceses com o Estado francês de
Vichy e sua participação na empreitada de extermínio
nazista. Com isso, o processo de um indivíduo transforma-se
no processo do passado. Ele se identifica a um tribunal da
história, encarregado de enunciar uma verdade capaz de, a
uma só vez, afirmar a culpabilidade coletiva e trancafiá-la no
passado, rompendo, enfim, o laço que nos prende à história.
Os dez anos de prisão infligidos a um funcionário de Estado
francês confirmam, de uma vez por todas, a culpa desse
Estado como tal. Eles marcam, ao mesmo tempo, a distância
que o transforma para nós em puro objeto de julgamento.
Mas justamente essa equivalência é enganadora. Converter o
processo de um funcionário em processo de seu Estado é um
ato contraditório: acusá-lo, ao mesmo tempo, pelo que fez
como funcionário desse Estado globalmente culpável e pelo
que não fez, na condição de indivíduo: desobedecer ao
Estado de que era funcionário.
Um funcionário, pela própria definição, serve ao Estado.
Maurice Papon serviu ao Estado colaboracionista. Após o
quê serviu à república do general De Gaulle. O Estado tem
horror ao vazio, e a república gaullista buscou os servidores
do Estado onde foi capaz de encontrá-los: entre os servidores
do Estado que nada mais fizeram senão servir ao Estado em
geral, sem excesso de zelo militante. Maurice Papon tornou-
se, com isso, um servidor exemplar da República francesa,
sobretudo ao comandar, em outubro de 1961, a repressão de
uma manifestação argelina, no correr da qual várias dezenas
de manifestantes foram mortos a pauladas e lançados no
Sena.
Esse último crime de Estado não constava da pauta do
processo; se chegou a ser invocado, ele o foi apenas nos
limites de um silogismo significativo: como ele cometeu esse
crime de nosso Estado republicano, que ninguém cogita em
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levar a juízo, é bem possível que tenha cometido um outro -o


do Estado colaboracionista. O fato de que tenha sido um bom
servidor de nosso Estado republicano prova a sua
incapacidade em geral de não servir ao Estado e, portanto, o
seu envolvimento no crime daquele a que servia em 1942.
Há de se acreditar, então, que o processo movido contra
Papon é o processo do Estado em geral e daqueles que não
logram desobedecê-lo? E o tribunal da história, ao infligir os
dez anos de prisão à razão de Estado, teria decidido em favor
do "direito à desobediência", cuja legitimidade é a cruz dos
filósofos políticos? O fato seria bastante estranho se nos
reportássemos ao que ocorria, no mesmo dia do veredicto,
num aeroporto parisiense: alguns passageiros do vôo Paris-
Bamako recusavam-se a viajar em companhia de
trabalhadores clandestinos, que o Ministério do Interior
francês remetia à força a seu país de origem. O ministro logo
anunciou sua intenção de processar esses passageiros
recalcitrantes, por "entrave à circulação das aeronaves".
É pouco provável, portanto, que o tribunal tenha desejado,
por seu veredicto, consagrar o direito de desobedecer. A
condenação do servidor demasiado fiel do Estado remete, em
vez disso, à obrigação de desobedecer no passado: não
somente no contexto repressivo do Estado de Vichy, mas
num tempo em que obedecer e desobedecer tinham um
sentido. Ela nos diz: naquele tempo, obedecer ou
desobedecer era uma escolha dos indivíduos. Ela nos remete,
em suma, à atmosfera da época existencialista. Naquele
tempo, Sartre era capaz de pronunciar a frase que suscitou
tanto escândalo e tanto alarde: "Jamais fomos tão livres
quanto sob a ocupação alemã". Era o tempo do engajamento
e da responsabilidade, em que cada um decidia "por todos" e
era "responsável de tudo perante todos". A conjunção entre a
condenação (no passado) do tribunal e as ameaças (no
presente) do ministro do Interior rechaçam esse tempo para
seu lugar no passado. Hoje, obedecer ou desobedecer ao
Estado não é mais um problema. Não apenas porque o
Estado é legítimo, mas porque, de forma mais profunda, ele
pretende não desejar mais nada, não ser mais que o humilde
executor de uma necessidade impessoal. No Estado que nada
comanda e só obedece à circulação dos fluxos, que sentido
haveria em desobedecer? No tempo de Platão, o sofista
Antífon contrapusera a justiça da natureza à da lei, segundo
este princípio bem simples: aquele que infringe a lei só será
castigado se for visto. Mas aquele que vai contra a natureza
suportará o castigo em toda sua força. É essa lógica, em
suma, que nossos Estados retomaram sob seus auspícios: eles
nos dizem que as suas regras são apenas a obediência às leis
naturais da circulação bem equilibrada das riquezas e das
populações. Os passageiros que, naquele dia, se recusaram a
seguir para Bamako, tornaram-se culpados, perante o Estado
francês, de uma rebelião que não é nem mais nem menos do
que "um entrave à circulação das aeronaves".
Assim se opera o acerto de contas com o passado: a
desobediência teve seu tempo: aquele em que os indivíduos
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se opunham à vontade de outros indivíduos ou de Estados -o


tempo, enfim, da política e das ideologias. A justiça saúda
esse tempo e nos faz saber que ele passou. De alguma forma,
o veredicto do processo Papon é uma cerimônia de adeus ao
existencialismo.

Jacques Rancière é filósofo francês, autor de "A Noite dos Proletários"


(Companhia das Letras) e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele
é colaborador da Folha, na qual escreve a cada dois meses no
Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.

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