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A justiça do passado
JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha
mortos".
Alguns contestaram as cifras: como cifrar exatamente as
vítimas chinesas da fome? É certo computá-las como vítimas
do comunismo, o mesmo título que os fuzilados ou os mortos
nos campos? Mas esse não é o ponto principal. A função da
cifra é mais judiciária do que estatística. De Volin a
Solzhenitsyn, não faltaram homens para revelar os crimes
dos regimes comunistas. Contudo, eles o faziam
politicamente. Seu testemunho, como vítimas do
comunismo, denunciava o regime em nome de um ideal
político diferente -do anarquismo ou do "verdadeiro"
comunismo ou da restauração da antiga ordem monárquica e
religiosa. Hoje, trata-se de outra coisa: o cômputo dos mortos
identifica-se a um tribunal da história que resolveu o litígio,
que enuncia o veredicto não de um regime, mas de uma
ideologia -quer dizer, de um tempo em que ainda se
acreditava nas ideologias. O tribunal da história soma as
cifras do presente às cifras de outro tempo, o de Volin e
Solzhenitsyn ou de Lênin e Stálin: o tempo da política, em
suma.
Pode-se dizer, de igual forma, que o processo Papon é um
acerto de contas dos franceses com o Estado francês de
Vichy e sua participação na empreitada de extermínio
nazista. Com isso, o processo de um indivíduo transforma-se
no processo do passado. Ele se identifica a um tribunal da
história, encarregado de enunciar uma verdade capaz de, a
uma só vez, afirmar a culpabilidade coletiva e trancafiá-la no
passado, rompendo, enfim, o laço que nos prende à história.
Os dez anos de prisão infligidos a um funcionário de Estado
francês confirmam, de uma vez por todas, a culpa desse
Estado como tal. Eles marcam, ao mesmo tempo, a distância
que o transforma para nós em puro objeto de julgamento.
Mas justamente essa equivalência é enganadora. Converter o
processo de um funcionário em processo de seu Estado é um
ato contraditório: acusá-lo, ao mesmo tempo, pelo que fez
como funcionário desse Estado globalmente culpável e pelo
que não fez, na condição de indivíduo: desobedecer ao
Estado de que era funcionário.
Um funcionário, pela própria definição, serve ao Estado.
Maurice Papon serviu ao Estado colaboracionista. Após o
quê serviu à república do general De Gaulle. O Estado tem
horror ao vazio, e a república gaullista buscou os servidores
do Estado onde foi capaz de encontrá-los: entre os servidores
do Estado que nada mais fizeram senão servir ao Estado em
geral, sem excesso de zelo militante. Maurice Papon tornou-
se, com isso, um servidor exemplar da República francesa,
sobretudo ao comandar, em outubro de 1961, a repressão de
uma manifestação argelina, no correr da qual várias dezenas
de manifestantes foram mortos a pauladas e lançados no
Sena.
Esse último crime de Estado não constava da pauta do
processo; se chegou a ser invocado, ele o foi apenas nos
limites de um silogismo significativo: como ele cometeu esse
crime de nosso Estado republicano, que ninguém cogita em
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs19049806.htm 2/4
20/04/2021 Folha de S.Paulo - A justiça do passado - 19/04/98
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