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20/04/2021 Folha de S.

Paulo - Autores - Jacques Rancière: Uma coisa que se chamava política - 16/05/1999

São Paulo, Domingo, 16 de Maio de 1999

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AUTORES

Uma coisa que se chamava política


JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

"A Guerra do Golfo não terá lugar", previu no início de 1991


um intelectual francês. Segundo ele, a máquina militar de
dissuasão obedeceria, dali em diante, à lei genérica de um
mundo em que a realidade cederia lugar à simulação. Em
matéria de guerra, assim como em toda outra matéria, a
lógica do poder consistia em simular os acontecimentos para
impedir que eles se realizassem. Uma guerra "real" não
poderia eclodir porque contradiria o exercício dissuasivo do
poderio militar. Os acontecimentos empíricos pareceram
contradizer essa bela dedução. O pensador apressou-se em
mostrar que pouco importava: a Guerra do Golfo, reafirmou,
não poderia ter lugar. E, de fato, ela não teve lugar. Suas
operações não foram decididas senão por cálculos de
computadores, e seus efeitos não nos foram transmitidos
senão por telas de televisão. Entre uma tela de computador e
uma tela de televisão, o único espaço em que os
acontecimentos em geral e a guerra em particular podem
alojar-se é nas quatro linhas de uma tela, o espaço da
realidade virtual. O que não poderia ter lugar não teve lugar
senão nas telas da simulação.
Afirmar que o não-ser não pode ser sempre foi o passatempo
favorito dos sofistas. Porém não se deve ter demasiada
pressa em imputar esse tipo de raciocínio à incorrigível
propensão dos intelectuais a negar a realidade por amor às
palavras. Os intelectuais são mais observadores e mais
realistas do que se diz. Eles sabem que as palavras não são o
oposto da realidade. Elas são, ao contrário, o que lhe dá
consistência. Se os sofistas têm hoje tanta facilidade em
declarar o não-ser de qualquer realidade, é porque, de fato,
os artífices dessa "realidade" a abandonam a eles, incapazes
de dar um nome ao que fazem. Aqui os computadores e o
mundo virtual são de pouca ajuda. Hoje ninguém mais se
arrisca a dizer que a guerra em Kosovo não terá, não tem ou
não teve lugar. Mas quem será capaz de dar nome às
operações militares comandadas pela Otan? Intervenção
numa guerra? Que tipo de guerra, afinal? Não uma guerra
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externa: as potências aliadas não reconhecem a Kosovo a


realidade de uma nação agredida por outra. Guerra civil,
então? Mas quem poderia outorgar às nações aliadas o
mandado para intervir nos assuntos internos, por mais
violentos que sejam, de uma outra nação? Resta assim um
terceiro tipo de guerra, na qual os termos antagônicos não
são mais duas nações ou dois partidos de uma nação, mas a
humanidade e a anti-humanidade.
Em linhas gerais, reteve-se o esquema: a intervenção foi
realizada para segurança da humanidade, sob a efígie dos
albaneses de Kosovo, vítimas de uma empreitada genocida,
contra o fautor desse genocídio, a anti-humanidade
encarnada por um ditador sanguinário. Entre a anti-
humanidade e a humanidade não há fronteira territorial, não
há limite ao direito de ingerência. Mas a contradição só é
eliminada do princípio da guerra por ser radicalizada em sua
conduta. A guerra movida em nome de uma humanidade a
ser salva é por definição uma guerra total, uma guerra
inteiramente determinada por seu objetivo de fazer respeitar
os direitos da humanidade e que não reconhece nenhuma
limitação quanto aos meios de assegurar tal propósito. Como
pensar, então, uma guerra humanitária restrita, uma guerra
em que os bombardeios seletivos devem levar o criminoso
anti-humanitário à mesa de negociações, enquanto o terreno
é deixado livre para as operações de suas tropas, livre para a
empreitada de liquidação em massa do povo representativo
da humanidade ferida em seus direitos? Tudo ocorre como se
a guerra humanitária se cindisse em duas operações, situadas
aquém e além do território abandonado à purificação étnica:
de um lado, operações militares que, a um só tempo, visam a
dissuadir e a punir o mentor do crime; de outro, operações
humanitárias de amparo a centenas de milhares de vítimas do
crime.
Essas aparentes contradições levaram alguns a suspeitar de
desígnios obscuros ou de transações secretas, ocultas por trás
da ostentação humanitária. Mas é possível que não haja
contradição, que haja uma convergência, mais profunda e
inquietante do que todas as tratativas camufladas, entre a
lógica da purificação étnica e a da guerra humanitária. Uma
e outra têm o mesmo princípio, a negação da política. O
etnicismo revoga o próprio espaço da política ao identificar o
povo à raça e o território de exercício da cidadania à terra
dos ancestrais. A purificação étnica não consiste
simplesmente em expulsar de um território a etnia
indesejável, mas em torná-la um rebanho indiferenciado,
negando tanto a realidade coletiva de um povo dotado de
vida pública quanto a singularidade dos indivíduos que a
compõem. A guerra humanitária pretende opor a esse
processo de dupla eliminação o respeito aos direitos
humanos. Mas o ser humano que ela defende possui traços
bem específicos. Ele tem, precisamente, o rosto do produto
da empreitada purificadora, o rosto da vítima. É o núcleo
dessa estranha configuração, o "humanitarismo", que não
pára de proliferar nos "no man's lands" que se estendem
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entre a política que deixou de sê-lo e a guerra que não é mais


guerra. A guerra, dizia-se outrora, é a continuação da política
por outros meios. A guerra humanitária é a continuação da
supressão da política.
Há duas formas de supressão da política. Há a identificação
própria do governo do povo à auto-regulação das populações
pelos automatismos da distribuição das riquezas: trata-se da
supressão indolor da política que se pratica onde as riquezas
o permitem, onde reina o que se chama de consenso. E há a
supressão ao alcance dos pobres, supressão violenta que
identifica o governo do povo à lei do sangue, da terra e dos
ancestrais. O "humanitarismo" é então esse duplo sistema,
indissociavelmente militar e assistencial, por meio do qual o
consenso dos ricos contém os excessos da guerra dos pobres.
Os povos desfeitos, os indivíduos negados são tratados pelo
humanitarismo tal como o etnicismo os constituíra, como
vítimas, como massa. Que os kosovares ou os bósnios (mas
também os sérvios) sejam a um tempo indivíduos tão
singulares e diferentes entre si como nós supomos sê-lo,
participantes de uma vida intelectual e artística capaz de
tanta sofisticação quanto a nossa e atores de uma vida
pública marcada por antagonismos análogos, é isso que ele
não se preocupa em saber. Há uma lógica de anonimato
comum à purificação étnica, à guerra dissuasiva e à
assistência humanitária.
Essa lógica é ilustrada pelos chamados "erros de cálculo"
que causaram a morte de viajantes sérvios ou de refugiados
albaneses, igualmente confundidos com alvos militares.
Vistos do avião e do computador, uns e outros, de fato,
distinguem-se a custo. Mas o problema não diz respeito às
relações entre o real e o virtual. Diz respeito às relações entre
duas humanidades, entre duas maneiras de perceber e de
contar, por indivíduos ou por massas. A guerra de cunho
aéreo é a guerra que pretende não pôr em risco a vida
daqueles que a movem. Que nenhuma vida de soldado
americano seja posta em perigo. Esse é o contrato implícito
que, supostamente, torna a guerra americana nos Bálcãs
aceitável para o povo americano.
A obediência a esse contrato, do lado em que as bombas são
lançadas, pode provocar alguns erros de cálculo do lado em
que elas são recebidas. Mas isso, precisamente, porque o
cálculo não é o mesmo: a vida de um militar americano e a
de 20 civis, sérvios ou albaneses, não se comparam. A guerra
humanitária que "os democratas", como se denominam
nossos Estados, movem nos Bálcãs é uma guerra na fronteira
de duas humanidades: uma humanidade de indivíduos e uma
humanidade de massas. Combater pela humanidade dos
kosovares de etnia albanesa contra a desumanidade dos
genocidas sérvios é também separar essas duas humanidades.
E, desse ponto de vista, a lógica por vezes cega dos
bombardeios tem um olhar aguçado: do céu dos indivíduos
ocidentais, confundem-se as massas de soldados de
Milosevic, os civis sérvios e as colônias de refugiados.
Agressor e agredidos estão do mesmo lado (mau) da
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fronteira: no mundo terrestre de bandos arcaicos, aos quais


se opõe o mundo celeste moderno, rico e democrático das
populações de indivíduos. Se a guerra aérea da Otan não é de
fato uma guerra, isso é porque ela nega aquilo que toda a
guerra pressupõe, a existência de um terreno comum às duas
partes.
É por isso que os erros de cálculo, os alvos mal identificados
não impedem a adesão a essa guerra não-guerra. Eles
confirmam, de fato, a geografia imaginária que a sustenta.
As bombas temíveis, para essa lógica, não são as que abatem
os aviadores americanos. São as que explodem, digamos
assim, pelas suas costas, no território de onde eles vêm. Um
dia as imagens das vítimas de Kosovo desapareceram das
telas da CNN. Outros corpos dilacerados, outras mulheres e
crianças aos prantos haviam tomado o seu lugar, vítimas do
arsenal caseiro de dois colegiais do Colorado. Dois jovens
americanos haviam disparado contra a vida de inúmeros
outros americanos, confundindo-os num mesmo grupo de
vítimas, em nome de um "hitlerismo" apolítico, assimilado a
uma certa sensibilidade, uma certa maneira de vestir, de
afirmar sua diferença individual e a identidade de seu
pequeno grupo. E isso foi o bastante para lançar pelos ares a
geografia imaginária da própria guerra, para apagar a
fronteira traçada pelas outras bombas entre um mundo de
indivíduos e um mundo de multidões. A fúria assassina de
Eric Harris e Dylan Klebold trazia à memória o seguinte
fato: entre os gostos que singularizam os indivíduos das
sociedades avançadas e as paixões e os sofrimentos das
massas étnicas arcaicas, nenhuma guerra, mas também
nenhuma cifra do PIB, pode traçar uma fronteira. A única
capaz de fazê-lo é talvez essa coisa que se tornou
enigmática, cujo nome era política.

Jacques Rancière é filósofo francês, autor de "A Noite dos Proletários"


(Companhia das Letras) e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele
escreve a cada dois meses na seção "Autores", da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo

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