PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos de liberdade: literatos negros,
racismo e cidadania no Brasil oitocentista. Campinas: Editora da UNI- CAMP, 2018. 376p.
Anualmente, o Instituto Brasileiro Nenhuma dessas informações ofe-
de Geografia e Estatística (IBGE) rece novidade, dirão a leitora e o leitor divulga dados a respeito das desi- desta resenha, diante do que parece gualdades por cor no país. Em tem- ser uma ladainha monótona (quando pos de “pós-verdade”, de ataque às divulgada pela imprensa) ou panfle- instituições de pesquisa, de fake news tária (quando ressaltada por militan- divulgadas por fontes duvidosas, de tes). É justamente para isso que quero convicções rápidas e não fundamenta- chamar a atenção. Tais dados têm das, mas que recebem status de verda- sido divulgados anualmente e, de tão des absolutas, é sempre bom lembrar persistentes, costumam ser tomados que a desinformação oculta a forma por banais. É brutal a normalidade como as desigualdades de hoje se vin- com que muitos de nós, brasileiras e culam às de ontem. De acordo com brasileiros, nos acostumamos a enca- os dados disponibilizados pelo IBGE rar essa desigualdade racial explícita em 2019, os negros (soma de pretos e e que não surgiu da noite para o dia. pardos) tornaram-se 55,8% da popu- Nossa habitual indiferença diante lação brasileira. Entretanto, as pes- das posições sociais bem delimita- soas brancas permanecem recebendo das condiciona até mesmo a forma os salários mais elevados, continuam e o conteúdo do que vemos, quando sendo majoritárias entre o ocupantes olhamos para o passado. Não estamos dos cargos gerenciais e seguem tendo acostumados a enxergar negros fora as taxas mais elevadas de frequência do lugar em nenhum momento de escolar em todas as idades.1 nossa longa história nacional. Pois foi buscando romper a nor- 1 Instituto Brasileiro de Geografia e Esta- malidade de nossa cegueira, ou seja, tística, Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Estudos e pesquisas. Infor- mações demográficas e socioeconômicas, Brasília: IGBE, 2019.
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desejando ver além dos fortes víncu- Castro, e centra o foco nos conflitos los estabelecidos entre pele escura por eles vividos após a Lei Áurea, e escravidão, que a historiadora e destacando o associativismo negro, professora da Universidade de Bra- seus vínculos com o movimento sília, Ana Flávia Magalhães Pinto, operário e as divergências políticas publicou em 2019 a obra aqui rese- internas às comunidades de cor, nhada. Resultado de sua tese de dou- especialmente as tensas relações toramento, defendida na UNICAMP entre republicanos e monarquistas. em 2014, trata-se do desfecho de Ao longo do livro, para além de uma pesquisa ampla e demorada, revelar as ações e reações de vários um livro muito bem escrito e farta- outros personagens à distribuição mente documentado. Pude acompa- desigual de direitos, o olhar da nhar pelas mídias sociais o empenho autora recai sobre sete intelectuais da autora em fazer a sua obra cir- negros e as (nem sempre) diferentes cular pelo país, em diálogo com os formas como eles pensaram indivi- movimentos sociais, sobretudo os dualmente, agiram coletivamente e coletivos formados por mulheres e compartilharam identidades raciais homens negros. no Brasil oitocentista. O livro está dividido em três O estudo de Ana Flávia Maga- partes. A primeira aborda as ori- lhães Pinto ataca certos pressupostos gens sociais e familiares de quatro historiográficos persistentes. O pri- letrados negros, as redes de rela- meiro a cair é a miopia a respeito ções nas quais estavam inseridos em do interesse e da participação negra São Paulo e no Rio de Janeiro, bem nas questões mais sensíveis do final como uma parte de suas vidas até a do século XIX, tais como o fim da década de 1880. Alguns mais, outros escravidão, a derrocada do Impé- menos conhecidos pelo público, rio e o direito ao voto. Do início ao são eles José Ferreira de Menezes, fim, o livro se dedica a demonstrar Luiz Gama, José do Patrocínio e o protagonismo dos homens negros Machado de Assis. A segunda parte nos movimentos sociais que condu- dá continuidade à análise da produ- ziram a nação ao 13 de maio e ao 15 ção intelectual deles, agora confe- de novembro. Portanto, abandone-se rindo mais atenção ao tratamento definitivamente a ideia de que abo- literário e jornalístico que aqueles licionistas e republicanos eram todos homens de cor deram às princi- brancos. A autora desenvolve críti- pais transformações sociais de seu cas respeitosas e bastante pertinen- tempo, tais como o movimento abo- tes às interpretações de José Murilo licionista, a reforma eleitoral e os de Carvalho acerca da participação protestos populares. A última parte popular e negra no movimento repu- incorpora à análise novos nomes, blicano e nos processos eleitorais tais como Ignácio de Araújo Lima, (pp. 298-300). Ainda que reconheça Arthur Carlos e Theophilo Dias de as evidentes restrições à cidadania,
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ela contraria não apenas as afirma- como um grupo coeso, unívoco, ções de que os trabalhadores negros consensual. Ana Flávia descorti- e pobres “mantinham-se afastados da nou a diversidade de orientações participação no governo da cidade políticas no interior das comuni- [do Rio de Janeiro] e do país”, como dades formadas por pessoas de cor também as de que a “arraia miúda” naquele período, divididas entre não se considerava membro da Repú- apoiar a Monarquia ou a República. blica ou da Nação (p. 299). Na aná- E mesmo quando concordavam a lise de Ana Flávia, os subalternos respeito dos objetivos, poderiam parecem não se encaixar muito bem discordar acerca da melhor forma na moldura dos bestializados. de alcançá-los. Nem mesmo indi- O segundo pressuposto a ser vidualmente os sete personagens de derrubado é a ideia de isolamento Ana Flávia escaparam à fina detec- e excepcionalidade dos intelectuais ção das suas contradições, já que negros. Longe de atuarem apenas outra qualidade da autora e de seu individualmente, preocupados com o livro é apontar as incoerências de próprio umbigo, os letrados “de cor” cada um deles. não apenas colaboravam uns com os A primeira parte da obra foi outros – vejam-se as cartas trocadas dedicada às trajetórias de Ferreira de entre Ferreira de Menezes e Luiz Menezes, Luiz Gama, José do Patro- Gama (pp. 100-101) ou os elogios cínio e Machado de Assis. A música de Machado de Assis a Ferreira de e o teatro, a literatura e a imprensa Menezes (p. 43.) –, como também despontam como espaços de diá- se preocupavam com os destinos logo, de conexão e de aproximação, de homens e mulheres que ainda ainda que eles vivessem em cidades não haviam saído da escravidão. diferentes. A historiadora demonstra Salta aos olhos a luta incansável e intimidade com a literatura nacional dramática de Luiz Gama, abolicio- produzida no período, além da pro- nista precoce, promovendo ações dução daqueles letrados negros que de liberdade. Ao mesmo tempo, os estuda. Isso lhe permite interpretar a letrados negros fizeram parte do ficção literária com objetivo de com- amplo movimento associativo que preender os autores, que demonstra- caracterizou o final do século XIX, vam identificação com o mundo da período no qual surgiram, em pro- política por meio dos enredos, das fusão, sociedades organizadas em narrativas e dos personagens. Utili- torno da cor e da classe, preocupadas zando muito bem as ferramentas da em oferecer instrução para garantir o história social, ela evidencia que as exercício qualificado da cidadania, ficções literárias estavam fundamen- particularmente o voto, e assim inter- tadas nos contextos sociais em que ferir nos rumos políticos da nação. aqueles negros viviam. O terceiro paradigma a ruir é a De todos os intelectuais anali- visão homogeneizante dos negros sados, a trajetória mais dramática
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parece ter sido a de Luiz Gama. eles tanto para obter acesso ao estudo Filho de um “fidalgo de origem por- quanto para se manter enquanto estu- tuguesa que se tomava por branco”, davam. Nas quatro trajetórias analisa- cuja identidade permanece anônima, das ainda na primeira parte do livro, e da africana Luiza Mahin, Gama a autora reconstitui com maestria as teria sido vendido como escravo complexas redes de relações pes- pelo próprio pai em 1840, aos 10 soais, de afeto, de proteção e de apa- anos de idade (p. 88). Aprendeu a drinhamento necessárias para criar ler na casa senhorial e, desde muito oportunidades de estudo e de traba- cedo, reivindicou direitos de liber- lho, mas também capazes de limitar a dade (p. 89). Foi trabalhando como atuação de sujeitos negros, por meio copista e como amanuense que das expectativas de gratidão nutridas Gama se aproximou das leis. Entre- por pessoas que ocupavam a parte tanto, jamais conseguiu se formar de cima das hierarquias políticas, em Direito, atuando a maior parte de econômicas e raciais. José do Patro- sua vida como rábula (p. 86). Carre- cínio, por exemplo, obteve bolsa de gando no corpo as marcas visíveis estudos, emprego, casa e comida da ascendência africana, Luiz Gama de muita gente. Em determinado foi alvo do racismo institucional na momento da vida, teve de retribuir Faculdade de Ciências Jurídicas de os auxílios que recebera da família São Paulo (p. 87), assim como José chefiada pelo capitão Emiliano Rosa do Patrocínio foi alvo do preconceito de Senna, tornando-se docente dos de cor quando tentou ingressar no filhos do militar. Foi exercendo este curso de Medicina (p. 120). Desde a ofício que Patrocínio enamorou-se década de 1860, Gama esteve envol- da sua futura esposa branca, irmã de vido com a libertação de escravos, seus alunos (pp. 119-121). caracterizando uma atuação que Filho de um vigário de 54 anos exigia dele um amplo trânsito por e de uma jovem escravizada de 13, associações emancipacionistas, par- Patrocínio não herdou a condição tidos políticos, jornais e tribunais materna e cresceu livre desde a pri- (pp. 92-93). A memória coletiva a meira idade (p. 115). Ana Flávia respeito de suas habilidades jurídicas não comete aquele equívoco que e de sua luta pela liberdade alheia Pierre Bourdieu chamou de “ilu- fez com que Luiz Gama se tornasse são biográfica”2 e não explica o um elo entre as experiências negras desenvolvimento posterior de seus anteriores e posteriores ao 13 de personagens em função de suas ori- maio (p. 97). gens, ainda que reconheça o peso O lugar social de onde Menezes, Patrocínio, Gama e Machado se pro- 2 Pierre Bourdieu, “A ilusão biográfica”, in jetaram era instável e precário (p. 33). Marieta de Morais Ferreira e Janaina Ama- do (orgs.), Usos e abusos da história oral Ana Flávia tomou o cuidado de veri- (Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998), ficar as dificuldades enfrentadas por pp. 183-191.
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dos estigmas étnicos e raciais de intelectuais desenvolveram senti- possuir antepassados no cativeiro e mentos de identidade comum, base- pele escura (p. 117). Mesmo quando ados tanto no entendimento político admite a infância como um impor- da raça quanto na percepção de que tante momento de construção indi- pretos e pardos eram os alvos cen- vidual (p. 118), a autora privilegia trais do racismo. Convém lembrar o processo, as ações, as escolhas e que Luiz Gama olhou para os bra- as possibilidades limitadas impostas sileiros que não possuíam todos os àqueles que almejavam ser protago- critérios fenotípicos para figurar nistas a partir “de baixo”. como brancos e registrou: “em todos Todos os sete letrados tiveram há meus parentes” (p. 146). intimidade com os jornais. Machado Não é difícil perceber que, do de Assis acreditava que a imprensa início ao fim do livro, a historiadora era instrumento indispensável para confere maiores atenções àque- o exercício de um debate público les letrados negros que, por conta capaz de transformar a sociedade de sua atuação política e produção (p. 147). E foi por meio da trajetória intelectual, contaram e ainda con- de Patrocínio que a imprensa des- tam com grande reconhecimento pontou como espaço privilegiado junto à memória coletiva nacional: e preferencial de atuação política José do Patrocínio e Machado de e debates raciais executados por Assis. Patrocínio era ovacionado aqueles eruditos de pele escura. Nas por negros e brancos na década de linhas e páginas dos diários e heb- 1880; Machado, por sua vez, sem- domadários, José do Patrocínio e pre teve comportamento reservado, Silvio Romero tiveram longas con- destoando bastante dos outros inte- tendas sobre raça. Ana Flávia traz às lectuais negros. A própria autora não leitoras e leitores do século XXI as esconde seu fascínio pelo bruxo de imbecilidades escritas por Romero Cosme Velho. Nesse ponto, encon- no século XIX, que, além de insis- tro um dos aspectos de que gostei tir na inexistência de civilizações menos deste fascinante livro. Inco- africanas, chegava a afirmar que moda-me a forma como alguns intér- os egípcios eram brancos (p. 127). pretes do autor de Dom Casmurro e Simultaneamente, é por meio Memórias Póstumas de Brás Cubas daquelas mesmas páginas que pode- justificam suas leituras e dialogam mos conhecer o esforço intelectual com seus leitores. Em alguns casos, de José do Patrocínio – bem como o é como se a falta de uma profunda de Luiz Gama, Ferreira de Menezes estima e admiração obrigatória por e Machado de Assis – para contra- Machado, bem como as discordân- riar as teorias raciais importadas da cias interpretativas sobre o escritor, Europa. Por meio de uma análise fossem sinais de pouca inteligência política do vocabulário racial, Ana ou de incapacidade de decifrar as Flávia nos convence de que aqueles geniais mensagens ocultas em seus
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escritos. Fica parecendo que é recu- simultaneamente miscigenada e sado o direito de criticar Machado, racista, poderia ou não fazer com a ainda que o compreenda. E a capa- cor de Machado. cidade de decifrá-lo corretamente Nossa escadaria racial valoriza assume a forma de uma habilidade cada degrau epidérmico em dire- permitida a poucos iluminados. ção ao padrão racial mais claro, ao Vamos, então, à polêmica experiên- mesmo tempo em que costuma recu- cia racial de Machado. sar a inclusão dos pardos no grupo Tendo por pai um pardo e dos brancos. Precisamos entender por mãe uma açoriana (p. 151), mais e melhor a forma como eixos Machado definitivamente não era de vantagem interagem com eixos um negro retinto. Era mestiço. Ana de subordinação, interferindo nas Flávia observa, acertadamente, que experiências de certos homens de não era preciso ostentar uma cor cor que nem sempre eram classifi- azeviche na pele para ser obrigado cados como negros pelos brancos. a lidar com os constrangimentos Soma-se a isso a demanda crescente raciais (p. 149). Mas também é ver- por reflexões a respeito do fato de dade que, no Brasil daqueles dias, que aqueles negros eram homens, não era preciso ter uma aparên- com vantagens sobre as mulhe- cia nórdica, cabelos loiros e olhos res de sua mesma condição racial. azuis para figurar como branco. Talvez Machado de Assis pudesse Além disso, por meio de um diálogo ser reconhecido por outras pessoas com a historiografia, a autora critica como alguém que transitava nos dois com razão o mito de que “Machado lados da linha de cor, independente- de Assis quis se passar por branco” mente de sua vontade. Nem toda intencionalmente (p. 150). Por outro classificação racial é inequívoca, lado, o famoso literato preferia particularmente no que diz respeito a escrever acerca da experiência racial mestiços, e somente Machado sabia alheia, em terceira pessoa, não a res- quais eram as dores e as delícias de peito das suas próprias vivências, ser o que era. Trata-se de afirmação tanto que não revidou as acusações polêmica e que, portanto, não esgota racistas feitas diretamente a ele por o debate; mas insisto que o racismo Silvio Romero (p. 169). Talvez o não condiciona sempre da mesma problema resida justamente nessa forma e nem sempre com a mesma disputa pela atribuição de signifi- intensidade as experiências de todas cados ao comportamento íntimo e as pessoas “de cor” (hoje em dia, subjetivo do autor. Sem importar as mulheres negras, por exemplo, os debates pós-raciais da historio- ganham menos do que os homens grafia norte-americana, convém negros no mercado de trabalho). chamar a atenção, não para o que Por outro lado, exatamente da Machado fez com a própria cor, mas mesma forma como os demais letra- para o que a sociedade brasileira, dos presentes neste estudo, Machado
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precisou de muita ajuda na vida e foi intervir na revolta e “aconselhar o apadrinhado pelo tipógrafo e edi- povo” (p. 199-202). Ou seja, em um tor negro Francisco de Paula Brito momento de tensão política, Mene- (p. 153). Sinal de que sua cor parda zes recorreu a membros das elites não lhe dava grandes vantagens. para intervir sobre o protagonismo Na segunda parte de seu livro, dos “de baixo”. Ana Flávia busca problematizar os Ainda na segunda parte da obra, lugares sociais ocupados por negros Ana Flávia reconstitui as disputas livres e libertos ao longo da última jurídicas levadas a cabo por abolicio- década do escravismo, com destaque nistas negros incansáveis em denun- para a forma como eles elaboraram ciar a escravização ilegal. A análise propostas para resolver os dile- dos argumentos utilizados indica a mas da sociedade em que viviam. forma como a legislação emanci- Destaca-se aí o protagonismo negro pacionista poderia ser interpretada no processo que resultou na Revolta e usada em favor dos escraviza- do Vintém no Rio de Janeiro, em dos: a partir da Lei de 1831, todos 1879. Produto do acúmulo de ten- os escravos eram ilegais; depois da sões sociais, o levante indica que Lei do Ventre Livre, estava proibida transporte, moradia e alimentação já a venda e a separação da família; eram problemas graves na segunda em 1882, ficou proibido o tráfico metade do século XIX (p. 189). interprovincial. Ao mesmo tempo, a Num contexto em que trabalhadores autora identificou diversos casos de negros e pobres não eram reconhe- escravização ilegal durante a década cidos como cidadãos aptos ao exer- de 1880, apontando para a precarie- cício do voto, mas eram obrigados a dade estrutural da liberdade no Bra- pagar impostos, a elevação do preço sil daquele tempo. Em linhas gerais, da passagem do bonde foi a gota ela descreve um cenário em que a d’água que faltava para mobilizar os colaboração entre os abolicionistas estratos subalternos da Corte. Reve- de diferentes províncias, durante a lam-se, então, certas ambiguidades década de 1880, ficou quase sempre dos eruditos de pele escura. Ferreira restrita às cidades de São Paulo e de Menezes era abolicionista con- Rio de Janeiro. Preciso advertir que victo e favorável à ampliação do esta não é uma característica encon- corpo eleitoral, sintonizado com os trada somente no estudo de Ana anseios dos trabalhadores da cidade, Flávia Magalhães Pinto. Trata-se que davam sinais evidentes de que de um hábito historiográfico per- viam a si mesmos como cidadãos sistente, em que as cidades do Rio (p. 193). Contudo, ele organizou de Janeiro e São Paulo são tomadas um grupo de letrados, advogados, como representativas da nação, ver- médicos, membros dos três únicos dadeiros centros definidores de sen- partidos – Republicano, Liberal e tido para a história do Brasil, o que Conservador – com a finalidade de conduz a um escasso diálogo entre
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as pesquisas a respeito do Sudeste negros”, evidenciando sua proxi- e as investigações acerca de outras midade e sua inserção no associa- regiões do país. Nesse sentido, tivismo negro e operário. A autora fazem falta ao estudo de Ana Flávia identifica também certos aspectos maiores apontamentos sobre a inter- religiosos da atuação dos letrados locução estabelecida entre os aboli- negros; Theophilo Dias de Cas- cionistas situados muito além de Rio tro, por exemplo, era integrante da de Janeiro e São Paulo. Há bastante Irmandade de Nossa Senhora do tempo, Silvia Petersen já havia cha- Rosário dos Homens Pretos. Para a mado atenção para a necessidade da autora, “a fé cristã aproximava e história social olhar mais e melhor explicava uma parte daquela união” para os diálogos estabelecidos entre (p. 278). subalternos que viviam em diferen- É praticamente impossível ler tes cidades do país durante o final do uma análise sobre a forma como século XIX e o início do XX.3 homens negros reagiram ao racismo A última parte do livro de Ana sem se perguntar, afinal, onde esta- Flávia volta-se para o pós-aboli- vam as mulheres negras. Olhar para ção, centrando a análise nas formas os embates políticos do final do como os letrados negros reagiram século XIX e enxergar os homens ao racismo e às restrições ao exer- não informa sobre uma escolha da cício da cidadania. Surgem, então, autora de fechar seus olhos para as os nomes de Arthur Carlos, Ignácio experiências de mulheres negras. de Araújo Lima, Theophilo Dias de Informa a respeito da forma como Castro e outros. Por aqueles dias, aqueles homens se relacionavam a imprensa negra de São Paulo com as mulheres da mesma cor. expressava forte senso de identi- Em 2018, durante o II Seminá- dade com base na cor e defendia a rio Internacional Pós-Abolição unidade racial entre pretos e pardos, no Mundo Atlântico, Ana Flávia já colocados em um “mesmo repo- declarou publicamente que foi com sitório de sentidos”, na expressão as mulheres negras que aprendeu a de Ana Flávia (pp. 271-272). O fio pensar. De fato, a autora não dei- condutor da narrativa recai, então, xou de vê-las, já que identificou sobre o trânsito daqueles homens Cecílias, Joanas, Lúcias, Justinas, por espaços urbanos conhecidos Marias, Antônias e Leopoldinas em na historiografia como “territórios uma associação negra do período (p. 312). Além disso, ao analisar 3 Silvia Regina Ferraz Petersen, “Cruzan- uma escola noturna direcionada do fronteiras: as pesquisas regionais e a para “pessoas do sexo masculino”, história operária brasileira”, in Ângela Ana Flávia denunciou “a facili- M. C. Araújo (org.), Trabalho, cultura e dade com que [os homens negros] cidadania: um balanço da história social brasileira (São Paulo: Scritta, 1997), reproduziam as desigualdades pp. 85-103. de gênero”, agindo em favor do
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“empoderamento deles próprios” e pela definição dos seus rumos contribuindo para a “subalterniza- durante os anos anteriores e pos- ção feminina negra” (p. 319). teriores à lei de ouro, mas tam- Se, a partir de 14 de maio de bém para resgatar do silêncio e do 1888, muitos senhores ficaram frus- esquecimento personagens de pele trados, esperando uma indenização escura cuja atuação coletiva bus- que nunca chegou, também é ver- cou derrubar barreiras, diferenças dade que a população de cor estava e desigualdades que, em grande decepcionada. Além dos critérios medida, seguem até hoje (como legais para votar, tais como a exigên- indicam as estatísticas divulgadas cia de uma solicitação por escrito e a anualmente pelo IBGE). A título de assinatura do votante, o exercício da exemplo, cito a mobilidade social cidadania dependia também de boas no Brasil, que permanece muito relações com as autoridades. Ana Flá- mais ampla para os brancos (que via identificou perfeitamente as bre- podem ser encontrados em todos os chas nas leis eleitorais do Império e andares do edifício social), do que da República capazes de serem mani- para os negros (presentes majorita- puladas com o intuito de ampliar ou riamente nos andares mais baixos). restringir o eleitorado, mas também O dramático interesse de mulheres capazes de alimentar as expectativas e homens negros pelas temáticas em relação à participação popular e debates públicos fundamentais nos rumos da política nacional. Sim, daqueles dias – a emancipação e a havia trabalhadores negros e pobres República, o trabalho livre e a ins- reconhecidos como eleitores. Este é trução qualificada, o direito ao voto o momento do livro em que a autora e à vida associativa – desautorizam ressalta várias vezes que a população interpretações que não os levem em negra havia depositado suas esperan- conta como protagonistas funda- ças na Lei Áurea, na República e na mentais, capazes de pensar e atuar ampliação da cidadania. por si mesmos. Contudo, se é ver- Após 376 páginas, o livro de Ana dade que nenhuma sociedade é tão Flávia chega ao fim apresentando opressora que nunca tenha deixado às leitoras e leitores certa metáfora margem de ação para os sujeitos melancólica. “Nem todas as crianças subalternos, também é verdade vingam” é expressão encontrada em que não existem sujeitos tão livres uma crônica de Machado de Assis que nunca tivessem sofrido algum (p. 344), e diz respeito ao fato de que tipo de constrangimento. O tama- nem todas as expectativas acerca da nho das esperanças e expectati- liberdade foram alcançadas. vas nutridas pela multidão de cor Escritos de liberdade é obra de acerca da cidadania e da vida em leitura indispensável não apenas liberdade, aspectos bem ressalta- para nos ajudar a compreender a dos por Ana Flávia em seu estudo, sociedade brasileira e as disputas foram proporcionais ao tamanho
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da frustração diante da realidade Assis concordariam comigo: o pas- política instaurada a partir do 13 de sado pode ser simultaneamente maio e do 15 de novembro. Quero esperançoso e desanimador. Afinal, crer que Ana Flávia e Machado de nem todas as crianças vingam.
Marcus Vinicius de Freitas Rosa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul marcuviniciu@gmail.com