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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ROGERIO FERNANDES DE MACEDO

SINOLOGIA COMPARADA:

As bases da sinologia ocidental e a construção da sinologia chinesa com Wang Li

CAMPINAS
2021
ROGERIO FERNANDES DE MACEDO

SINOLOGIA COMPARADA:

As bases da sinologia ocidental e a construção da sinologia chinesa com Wang Li

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências


Humanas da Universidade Estadual de Campinas, como
parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de
Doutor em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Florentino Neto

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA
PELO ALUNO ROGERIO FERNANDES DE
MACEDO E ORIENTADA PELO PROF. DR.
ANTONIO FLORENTINO NETO

Campinas
2021
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Macedo, Rogerio Fernandes de, 1965-


M151s MacSinologia comparada : as bases da sinologia ocidental e a construção da
sinologia chinesa com Wang Li / Rogerio Fernandes de Macedo. – Campinas,
SP : [s.n.], 2021.

MacOrientador: Antonio Florentino Neto.


MacTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Mac1. Wang, Li, 1900-1986. 2. Leibniz, Gottfried Wilhelm, Freiherr von,


1646-1716. 3. Humboldt, Wilhelm, Freiherr von, 1767-1835. 4. Granet, Marcel,
1884-1940. 5. Jesuítas – Missões. 6. Filosofia. I. Florentino Neto, Antonio. II.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Comparative sinology : the foundations of Western sinology and
the construction of Chinese sinology with Wang Li
Palavras-chave em inglês:
Jesuit - Missions
Philosophy
Área de concentração: Ciências Sociais
Titulação: Doutor em Ciências Sociais
Banca examinadora:
Antonio Florentino Neto [Orientador]
Ho Yeh Chia
Thomas Patrick Dwyer
Markus Volker Lasch
Bruno Martarello de Conti
Data de defesa: 19-03-2021
Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-9459-8952
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/8229885504309137

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 19/03/2021, considerou
o candidato Rogerio Fernandes de Macedo aprovado.

Prof. Dr. Antonio Florentino Neto


Profa. Dra. Ho Yeh Chia
Prof. Dr. Thomas Patrick Dwyer
Prof. Dr. Markus Volker Lasch
Prof. Dr. Bruno Martarello de Conti

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de


Fluxo de Dissertações/Teses e na Coordenadoria do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Dedicatória

Dedico este trabalho aos meus pais, Benedicta


(In memory) e Antônio que, humildemente, me
ensinaram os valores dos estudos.
AGRADECIMENTOS

Eu jamais teria conseguido concluir esta Tese de Doutorado sozinho. Expresso aqui a minha
profunda gratidão àqueles que contribuíram, diretamente, com esta conquista.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Agradeço ao meu orientador, Antonio Florentino Neto, por conduzir de maneira brilhante um
Bacharel em Letras como eu neste Doutorado em Ciências Sociais, apontando as minhas
necessidades e fortalecendo pontos importantes para a realização desta obra. Apresento a minha
sincera admiração e respeito ao Florentino, e honro a grande amizade que surgiu e se
desenvolveu no processo do meu aprendizado.
Ao professor Thomas Patrick Dwyer (UNICAMP), pelas ótimas oportunidades em discutir os
rumos dessa minha pesquisa, recebendo sempre opinião bastante esclarecedora, e também à
professora Ho Yeh Chia (USP), pelo grande apoio nas conquistas e inspiração no meu trabalho.
Aos colegas do Grupo de Estudos das Relações Brasil-China, pelo ambiente sempre acolhedor
e de aproximação acadêmica entre os diversos temas sobre a China, proporcionando uma ampla
perspectiva para a minha escolha de carreira.
Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, especialmente à Beatriz
Tiemi Suyama, pela eficiência e comprometimento no apoio estrutural necessário para a
conclusão deste trabalho.
Ao mestre de Wushu (Arte Marcial Chinesa), Wei Changqing (In Memory), de Shandong,
Qingdao, por me ensinar a dar importância ao fundamental e real sentido de “desbastar uma
barra de ferro até fazer uma agulha” (provérbio chinês).
Finalmente, aos familiares e amigos que me apoiaram e compreenderam os momentos de
ausência, em função do foco e da dedicação exigidos por este trabalho. Sinto-me grato a todos
pelos resultados obtidos.
“Rever o antigo para compreender o atual”
Os Analectos – Sobre a Política, de Confúcio (480-350 a.C)
RESUMO

Este trabalho é um estudo comparado entre alguns autores da sinologia ocidental e da sinologia
chinesa de Wang Li (1900-1986), um dos principais expoentes da sinologia chinesa moderna.
A pesquisa está dividida em duas partes: a primeira aborda inicialmente a sinologia ocidental,
a partir das missões jesuítas na China e seus desdobramentos religiosos e comerciais. Os
missionários Jesuítas foram importantes correspondentes do filósofo Leibniz, destacado aqui
como o principal proto-sinólogo de seu tempo (Séc. XVII-XVIII). Outro momento importante
da sinologia ocidental, abordado neste trabalho, é o da sua origem, a partir de um debate
filosófico-gramatical entre Humboldt e Abel-Rémusat (1821-1831). Esses autores são centrais
para a estruturação da sinologia moderna e para a exclusão do pensamento chinês da filosofia,
enquanto área acadêmica, refletindo diretamente na sinologia como conhecemos atualmente.
Em seguida é analisada a sinologia moderna de Marcel Granet e sua concepção de língua
chinesa e pensamento chinês. A segunda parte tem como fundamento a sinologia chinesa de
Wang Li, que demarca e valoriza os estudos filológicos como principal instrumento de análise.
Este sinólogo chinês teve forte influência do ocidente, principalmente da linguística ocidental,
mas reestrutura a sinologia na China contemporânea a partir de pressupostos especificamente
chineses. Como conclusão é possível observar que a sinologia chinesa de Wang Li toma como
objetos a filosofia e a política presentes nos clássicos chineses e emprega a interpretação textual
e a filologia como instrumento de análise e rompe, desta forma, com a tradicional concepção
de sinologia enquanto área de conhecimento estritamente ocidental, sobre o pensamento chinês.

Palavras-chave: sinologia, linguística chinesa, filosofia, Wang Li (1900-1986), China


ABSTRACT

This study compares some major authors associated with Western sinology and the Chinese
sinologist Wang Li (1990-1986), one of the principal authors of modern Chinese Sinology. This
research is divided in two parts: the first analyses Western sinology, beginning with the Jesuit
missions in China and their religious and commercial ramifications. The Jesuit missionaries
engaged in important correspondence with the philosopher Leibniz, highlighted here as the
principal proto-Sinologist of this period (17th and 18th Centuries). Another important moment
in Western Sinology, examined in this thesis, is that of its origins especially from the
philosophical and gramatical debate that occurred between Humboldt and Abel-Rémusat over
the period 1821-1831. The exchanges of these authors are central for the structuring of modern
Sinology and for the exclusion of Chinese thought from academic Philosophy, which is
reflected in the manner in which Sinology is currently conceived in the West. Following this,
Marcel Granet’s modern Sinology is examined and his conception of the Chinese language and
thought. The second part of the thesis is based on Wang Li’s Chinese Sinology, which defines
and gives value to Philological studies as its principle analytical approach. This Chinese
sinologist had a strong influence from the West, principally from Western Linguistics, but
restructured Sinology in contemporary China on the basis of specifically Chinese assumptions.
In conclusion, the Chinese Sinology of Wang Li takes as its objects of study Philosophy and
Politics found in the Chinese classics and combines the interpretation of texts and Philology as
its instrument of analysis and, in this manner, breaks with the traditional conception of Sinology
as a strictly Western area of knowledge about Chinese thought.

Keyword: sinology, Chinese linguistics, philosophy, Wang Li (1900-1986), China


Sumário
Introdução ............................................................................................................................... 11
Capítulo 1: As missões jesuítas na China e a proto-sinologia ............................................. 30
1.1 Os objetivos das missões na China e a expansão europeia............................................. 30
1.2 O método de acomodação de Matteo Ricci .................................................................... 43
1.3 O figurismo de Joachim Bouvet ..................................................................................... 51
1.3.1 O Clássico das Mutações (Yijing) segundo Bouvet................................................. 57
1.4 A metafísica como base da proto-sinologia de Leibniz .................................................. 64
1.4.1 As contribuições de Leibniz na formação da proto-sinologia ................................. 76
Capítulo 2: A concepção científica da sinologia moderna ................................................... 84
2.1 O método da sociologia de Émile Durkheim na sinologia de Marcel Granet ................ 84
2.1.1 O conceito de fato social para a sinologia de Granet .............................................. 89
2.2 A língua chinesa enquanto fato social ............................................................................ 97
2.2.1 A língua chinesa segundo Granet........................................................................... 102
2.2.2 Uma análise não linguística da língua chinesa ...................................................... 107
2.3 O Clássico das Mutações (Yijing) para a sinologia de Granet ..................................... 111
2.4 Uma visão científica da sinologia................................................................................. 121
Capítulo 3: O uso da linguística na sinologia ocidental .................................................... 139
3.1 A importância da linguística para a sinologia ............................................................... 139
3.1.1 A polêmica em torno dos conceitos em sinologia.................................................. 150
3.2 A exclusão do pensamento chinês da filosofia e o surgimento da sinologia ocidental 158
3.3 A ciência na China antiga e sua relação com a sinologia ............................................. 167
3.3.1 A contestação dos argumentos de Granet .............................................................. 177
3.4 Novas perspectivas dos estudos sobre a China ............................................................. 180
3.4.1 Novas descobertas em sinologia ............................................................................ 188
Capítulo 4: Wang Li e a sinologia na China ....................................................................... 194
4.1 Introdução à sinologia na antiguidade chinesa ............................................................. 194
4.1.1 A filologia e a linguística como base da sinologia chinesa.................................... 200
4.2 A intervenção da sinologia europeia na sinologia chinesa ........................................... 206
4.2.1 A sinologia da dinastia Qing na formação da ciência ocidental ............................ 211
4.3 A concepção chinesa de sinologia em Wang Li ............................................................ 220
4.3.1 Os sinólogos ocidentais em Wang Li e suas relações com a sinologia chinesa .... 225
4.4 A sinologia na China de hoje ........................................................................................ 229
Comentários finais ................................................................................................................ 237
Bibliografia ............................................................................................................................ 243
11

Introdução

Este trabalho1 trata do processo de formação da sinologia, a partir da análise da


obra A História da Linguística Chinesa 2 , de Wang Li (1981), que apresenta elementos
indicativos da existência da sinologia na China desde o Pré-Império3. Graduado no Instituto
de Sinologia de Qinghua, na China, sob orientação de Zhao Yuanren4, com foco no estudo da
gramática do chinês antigo, Wang Li doutorou-se na França com a tese Une prononciation
Chinois de Po-pei (Province de Kouang-di) étudié a l’aide de la Phonétique Expérimentale
(PEVERELLI, 2015, p. 193). Em seus estudos, recebeu forte influência dos intelectuais
europeus, tais como Karl Marx, Lenin, Bernhard Karlgren, Georg von der Gabelentz, Henri
Maspero, dentre outros, tendo aplicado esse conhecimento em suas pesquisas na China5, o que
explica a singular concepção de sinologia por ele apresentada.
O principal tema desta obra versa sobre a história da linguística chinesa, mais
especificamente enfocando-se na rara abordagem de uma história da linguística6, tendo como
objeto inicial de investigação a filologia7 chinesa. Segundo Wang Li (1981, p. 169), um dos

1
Os textos em chinês citados neste trabalho foram traduzidos pelo autor do mesmo para o português, a fim de
propiciar ao leitor uma maior transparência e possibilidade de análise do conteúdo.
2
A área da linguística é muito ampla, composta por diversas subáreas com interesses muito distintos de estudos
sobre a língua. O conceito de linguística adotado neste trabalho se apoia no que é concebido por Wang Li em sua
obra, onde basicamente destaca a filologia e a linguística como áreas inseparáveis e complementares. Nota-se
que o sinólogo chinês teve como base esse modelo para desenvolver a história da linguística chinesa e buscou
determinar um estudo inédito de gramática moderna em seu país, sendo reconhecido por esse mérito, dentre
outros.
3
O Pré-Império corresponde ao período que antecede a dinastia Qin (221 a.C–206 a.C), governada por Qin Shi
Huandi, primeiro Imperador da China. Em chinês, o período é denominado Xianqin, que significa antes de Qin,
mas a tradução padrão e também adotada aqui é “Pré-Império”. No período pré-imperial alternaram-se as
dinastias Xia (21 a.C–16 a.C), Shang (16 a.C–1066 a.C) e Zhou (1066 a.C–221 a.C).
4
Zhao Yuanren foi professor do Instituto de Sinologia de Qinghua e orientador de Wang Li, a partir de 1926.
Professor, linguista, poeta e compositor, contribuiu para o desenvolvimento da gramática chinesa moderna.
Educado nos Estados Unidos, incentivou os estudos de Wang Li na França (PEVERELLI, 2015, p. 28).
5
Na China, no final do séc. XIX e início do séc. XX, as escolas de gramática chinesa desenvolveram-se sob a
influência de teorias da linguagem de estudiosos como Saussure, Vendryés (professor de Wang Li, em Paris),
Jespersen e Bloomfield, trazidas por pesquisadores chineses que buscaram esse conhecimento no Ocidente
(PEVERELLI, 2015, p. 34, 107-108).
6
“Uma coisa é estudar a história de uma ciência, recuperando suas origens e seu desenvolvimento no tempo: é o
que se faz na história da linguística. Outra é estudar as mudanças que ocorrem nas línguas humanas, à medida
que o tempo passa, atividade específica dos estudiosos de linguística histórica. [...] Contudo, fazemos também
um pouco de história da linguística, ao apresentar [...] os momentos mais importantes da construção da
linguística histórica como disciplina científica” (FARACO, 2005, p. 13).
7
A filologia é o ramo da linguística histórica que busca identificar as origens de palavras (etimologia) ou nomes
próprios específicos (onomástica), traçando a história desses itens ao longo do tempo (TRASK, 2011, p. 110).
Para Wang Li trata-se de uma ferramenta de análise de obras clássicas chinesas, por meio da qual é possível
investigar palavras e nomes próprios, e assim interpretar e editar tais obras, – o que não difere da classificação
ocidental de filologia clássica, cuja função é a mesma.
12

limites da filologia chinesa foi ter-se tornado dependente dos clássicos do período Han (206
a.C–220 d.C), já que todos os estudiosos dessa época dedicavam-se ao estudo de Confúcio,
deixando de investigar outras obras e autores de referência no país. Como se pode notar, para
o sinólogo chinês a filologia representa um instrumento de análise da sinologia. Ao selecionar
as obras clássicas e classificá-las por meio de um recorte produtivo para seu tema, ele não só
recorre à filologia como à sinologia chinesa. No quarto capítulo de sua obra utiliza-se do
mesmo recurso, ao selecionar sinólogos ocidentais e abordar suas influências e valores
relevantes ao tema.
O foco da obra de Wang Li concentrou-se nas questões linguísticas, ganhando
posterior importância por sua inserção no âmbito da sinologia, uma vez que destaca o papel
do autor como participante e contribuinte de um período de construção 8 desta área do
conhecimento na China. Este sinólogo chinês valoriza e define os estudos tradicionais de seu
país sobre sinologia – antes entendida como investigação do material classificado em
filologia, mais especificamente dos clássicos Han –, denominando-a hanxue. Wang Li resgata
o sentido original do termo, ao fazer referência de forma enfática à filologia chinesa (WANG
LI, 1981, p. 2), e recorre ainda aos estudiosos antigos e modernos da língua chinesa na
composição da obra em questão, o que indica a busca por reconstruir a sinologia chinesa.
Esta pesquisa buscou apresentar, de forma comparativa, os processos históricos
que envolvem a origem e desenvolvimento da sinologia, a partir do surgimento dessa área no
Ocidente em comparação com o modo com que Wang Li trata do assunto em sua obra. Este
trabalho não tenciona ser uma história comparada, o que exigiria outros caminhos de
investigação, a proposta aqui é colocar lado a lado as bases historiográficas da sinologia
ocidental e chinesa, delimitando e destacando os principais momentos que as definem como
áreas científicas ou não.
A sinologia ocidental parece não ter sido concebida da mesma maneira que na
China, por possuir uma estrutura que não a define como uma ciência independente,
constituída basicamente por um objeto, teoria, método e instrumento de análise dos
fenômenos. Existem polêmicas diretamente relacionadas à fundação da sinologia ocidental
que merecem atenção, e que ainda persistem no meio acadêmico, transparecendo na literatura
produzida e traduzida atualmente.
A necessidade de definição ou exclusão da filosofia chinesa da própria história da

8
O termo “construção” refere-se ao fato de a sinologia ter sido desenvolvida por uma interpretação e
necessidade ocidental de estudos sobre a China. Existem indícios da intervenção de Wang Li enquanto
“construtor” do estudo da China pelos chineses, ou mesmo uma possível descrição da sinologia desenvolvida em
seu país, desde a Antiguidade.
13

filosofia surge nesta pesquisa como indicativo fundamental dos problemas que compõem as
bases da sinologia conhecida até agora. Sendo o pensamento chinês o objeto de análise da
sinologia, tanto ocidental como chinesa, será indispensável analisar e delimitar a sinologia
como conhecida no ocidente, apresentando sua origem e desenvolvimento, e definindo os
processos que participaram da sua história ao destacar os principais sinólogos envolvidos. É
importante ressaltar que Wang Li também cita o método comparado em sua obra, além de
considerar os sinólogos ocidentais que se adequaram ao modelo chinês de sinologia.
A sinologia ocidental – antes da intervenção do sinólogo e sociólogo Marcel
Granet – seguia perfeitamente o método da sinologia chinesa, vide o uso da filologia como
instrumento de análise, embora as evidências historiográficas apontem que a interpretação dos
dados coletados recebia interferências de reflexões religiosas preconcebidas no Ocidente,
comprometendo o material final lido pelos estudiosos europeus. Ademais, a concepção da
filosofia greco-romana como modelo no ambiente acadêmico dificultou a aceitação e
compreensão de um modelo de filosofia chinesa, refletindo diretamente no objeto da
sinologia.
As pesquisas sobre sinologia baseadas no pensamento ocidental revelam uma área
do conhecimento cujo objetivo é a especialização em China, porém sem a metodologia e as
ferramentas definidas para esse fim. No caso da sinologia chinesa, a metodologia não só é
bem definida, como também o são seus limites de abordagem e instrumentos. Diferentemente
do Ocidente, na China esta área já se apoiava na filologia – área denominada na antiguidade
chinesa como xiaoxue 9 –, desde a sua origem (Pré-Império). Além disso, ainda na China
Antiga este ramo de estudo já tinha o apoio de instrumentos como a glossologia, a
paleografia, dentre outras ciências 10 , que buscavam a análise dos textos encontrados e
recuperados, a fim de comprovar sua autenticidade e fundamentação histórica.
Wang Li não teve a pretensão de falar especificamente da sinologia chinesa em
sua obra, mas, ao apresentar a história da linguística chinesa, registrou o que é próprio desta
área na China. Segundo o autor, o estudo em linguística, antes mesmo da Guerra do Ópio11,

9
Termo que tem relação com o que se entende hoje por ensino primário (WANG, 1981), por tratar de análises
fundamentais de textos antigos, principalmente os da dinastia Han, que deu origem à palavra hanxue (sinologia).
10
O conceito de “ciência”, neste trabalho, significa o método de obter conhecimento por meio da observação e
experiência, objetivando a comprovação dos fenômenos. Needham (1991, p. 56-57) comenta a relação
inseparável do conceito de adivinhação com o da ciência, no Taoismo, apoiado no sentido do termo guan
(observar) usado na meditação taoista, indicando que o conhecimento científico dos chineses estava na
observação dos fenômenos da natureza.
11
Trata-se de um conflito armado ocorrido na China, envolvendo os interesses da Grã-Bretanha e com o apoio da
França para o livre comércio do ópio no território chinês, dentre outras exigências. A guerra ocorreu em dois
períodos do século XIX (1839-1842) / (1856-1860).
14

esteve intimamente ligado à filologia, que por sua vez relacionava-se ao desenvolvimento da
escrita, principalmente dos clássicos, e foi a abundância deste material o que gerou a
necessidade de estudos próprios. A paleografia foi um ramo da filologia que auxiliou nas
pesquisas tanto da escrita em bronze da dinastia Song (960 d.C–1279 d.C), como dos
fragmentos de ossos de tartaruga do final da dinastia Qing (1644 d.C–1911 d.C). As pesquisas
em gramática antiga, denominada shengming, tiveram início com a entrada do budismo na
China12, mas os registros de seu desenvolvimento se destacam somente na dinastia Qing.
O que ressalto aqui, com base na obra do referido sinólogo chinês, é o fato de que
a sinologia chinesa tem como propósito apoiar-se nos clássicos Han a fim de compreender o
pensamento chinês. Tal resgate é feito por meio de análises etimológicas com o objetivo de
esclarecer ideologias políticas ou filosóficas dos antepassados. Para Wang Li (1981, 3),
Confúcio, Mêncio e Xun Lifu, por exemplo, não eram filólogos, embora tenham produzido
materiais importantes para tais estudos. Ao destacar o propósito de discutir diferentes teorias,
razão pela qual os referidos filósofos teriam produzido suas obras, o autor tem a intenção de
ressaltar a diferença entre filólogos e filósofos no que concerne ao tratamento de documentos.
Outro exemplo é o de Dong Guoya e Xunzi (ambos do Pré-Império), que também não tinham
qualquer relação com a filologia, ou mesmo com a linguística, mas que em suas obras de
filosofia da linguagem apresentaram teorias próprias da linguística. Esta relação entre as áreas
é muito comum e ocorre devido à necessidade de solucionar problemas através de
instrumentos específicos produzidos por diferentes campos de conhecimento. Wang Li
constrói a sinologia em sua obra, destacando os mecanismos que a compõem, com o objetivo
de descrever os instrumentos por ela utilizados.
A sinologia chinesa é aqui concebida epistemologicamente como uma área
científica que procura inventariar os fenômenos característicos do pensamento da civilização
chinesa antiga, através de interpretações de obras desenvolvidas por estudiosos. Ao produzir A
História da Linguística Chinesa, o intuito de Wang Li foi principalmente analisar, nos
clássicos, as referências sobre os estudos da linguagem, o que não sugere que a sinologia
chinesa se limite a esse assunto. Pelo contrário, com o método aqui aplicado é possível traçar
outras diretrizes e descobrir aspectos da filosofia, da história, da civilização chinesa etc, desde
que o principal apoio seja no estudo dos textos clássicos, com análises criteriosas da escrita,
do léxico e das mudanças dialetais, a fim de evitar o distanciamento das fontes primárias, o

12
A entrada do budismo na China refere-se à dinastia Han do Leste (25-220 d.C), do Imperador Ming. A
linguística chinesa teve a primeira influência na fonologia, a partir dos contatos com o sânscrito dos sutras
budistas trazidos da Índia (WANG LI, 1981, p. 171).
15

que poderia comprometer o resultado desejado. Mais uma vez, isto não implica que a
sinologia chinesa restrinja-se a um estudo filológico. De fato, essa área serve de base para
facilitar as pesquisas de um determinado objeto, assim como a xiaoxue serviu para os
estudiosos da Antiguidade. Por possuírem funções equivalentes, o autor relaciona o termo
com a palavra atual definida como filologia.
Quanto ao conceito de sinologia, compreende-se seu significado a partir de
“China” (sino) e “ciência” ou “estudo” (logia), isto é, o “estudo da China”. Tal significado é
vago e também abrangente, já que não estabelece o que exatamente se estuda sobre a China,
mas busca integrar plenamente o país, em todos os seus aspectos: culturais, históricos,
geográficos, linguísticos, políticos etc. Tal complexidade evidencia um recorte impossível a
uma única área, a menos que dentro de uma grande área se estabeleça subáreas, cujo foco
geral seja a China. Ao analisar as atribuições dadas pelos principais sinólogos ocidentais
modernos sobre o assunto e seu objeto de estudo percebe-se, por exemplo, com base na obra
La Pensée en Chine Aujourd’hui, de Anne Cheng (2007), que a autora aborda aspectos
específicos da filosofia chinesa. Já os colaboradores da referida obra trabalham com as
seguintes áreas: Viviane Alleton (Linguística), Jacques Gernet (Ciências Sociais), Léon
Vandermeersch (História), Karine Chemla (Matemática) etc. Poder-se-ia arrolar uma lista
mais longa de sinólogos e de suas áreas ou temas de estudo correspondentes, o que traria
ainda mais clareza sobre a diversidade de interesses. O ponto em comum entre eles é a busca
pela especialização no tema “China”, cada um com sua respectiva ferramenta de domínio.
Talvez seja esse o motivo pelo qual os chineses costumam chamar esse tipo de pesquisador
ocidental de zhongguotong, o que significa “especialista em China”.
Cito a seguir o que os chineses entendem por sinologia, de acordo com o verbete
extraído do Dicionário de Chinês Contemporâneo (CHENG, 2004, p. 333):

Hanxue (Sinologia) – 1) Nomeação antiga dos estudos dos clássicos, da


história, dos nomes e classificação das coisas, das glosas e análise de textos
literários feitos pelas escolas Han de filologia clássica chinesa. 2) Os
estrangeiros chamam o conhecimento das pesquisas das áreas de cultura,
história, língua e literatura chinesa como Sinologia, o especialista é
conhecido como Sinólogo13.

Nestas acepções, percebe-se a existência de uma aproximação funcional, mas


também uma diferença específica entre as perspectivas chinesas e ocidentais, visto que para

汉学[hanxue] (1) 旧时称研究经、史、名物、训诂、考据之学为汉学。(2) 外国人称研究中国文化、历


13

史、语言、文学等方面的学问为汉学,著名学者称为汉学家.
16

os chineses hanxue (sinologia) é um nome usado por uma escola com propósitos definidos e
caminhos distintos de pesquisas. No caso dos ocidentais, as áreas de interesse parecem, de
certo modo, aproximarem-se dos chineses, pois o termo é uma tentativa de transliteração entre
o prefixo Han do chinês, que se refere a uma das importantes dinastias chinesas, e o termo
latino sino (China). Em relação ao ponto de referência dos estudos há divergências, visto que
o ocidental busca entender a China por meio das áreas de interesse da sinologia, o que não
acontece entre os chineses, que por sua vez indicam algo específico almejado pelas escolas
Han de filologia clássica dentro de sua própria cultura. Fica evidente, num primeiro momento,
que os chineses já utilizavam esse termo, indicando que os ocidentais tomaram-no emprestado
com um sentido mais próprio, ou seja, de quem busca se especializar nos estudos sobre a
China.
Outro termo comumente usado na China como sinônimo de sinologia é guoxue,
palavra que tem como prefixo guo (“nação”, “país”), referindo-se especificamente à China, e
o sufixo xue (“estudo”, “ciência”), da mesma forma que hanxue. Naturalmente, o nome da
instituição onde Wang Li se graduou era Qinghua Guoxueyuan (Instituto (yuan) de Sinologia
(guoxue) de Qinghua), o que confirma a relação entre sua origem e influência acadêmica com
o tema abordado neste trabalho. Porém, a palavra usada em sua obra foi hanxue, o que
caracteriza a sinonímia.
Em vista disso, esta pesquisa trata dos momentos de transição 14 pelos quais
passou a construção da sinologia. Com base em Wang Li (1981) e na coletânea de materiais,
procurou-se mapear as transformações ocorridas nesta ciência, tanto na China como no
Ocidente, o que possibilitou uma análise da atualidade destes estudos em ambas as regiões. Já
que o intuito desta pesquisa foi apresentar a construção desenvolvida por Wang Li em sua
obra, um ponto de transição dos relatos poderia revelar se a sinologia mantém suas antigas
características na China, ou se as influências ocidentais também levaram ao surgimento de
inovações, da mesma forma como ocorre hoje no modelo ocidental, a partir das novas
descobertas arqueológicas e do aperfeiçoamento da metodologia sinológica. Assim, fez-se
necessária também uma análise desta área na China atual, após Wang Li.
É possível que exista uma relação entre a metodologia atual da sinologia chinesa
com os interesses de desenvolvimento e expansão da cultura nacional para o Ocidente, já
expressos pela proposição de Wang Li em relação ao avanço das pesquisas em linguística no

14
Entende-se por “momentos de transição” da sinologia os períodos em que ocorreram mudanças pertinentes aos
estudos sobre a China e que apontam a formação e transformação da sinologia em um determinado espaço e
tempo, com a contribuição de pesquisadores e suas obras.
17

país – apoiado pelas reformas determinadas pelo governo. Tal disposição retoma – de forma
inversa e distante em objetivos – o contexto das missões jesuítas, cujo interesse era a
expansão do cristianismo, além de discutir e contestar as questões referentes ao sinólogo
Marcel Granet, que afirmara a incapacidade da língua chinesa em expressar ideias abstratas.
Atualmente, a China tem crescido e se destacado mundialmente, portanto os interesses em
compartilhar a língua e a cultura nacionais são notáveis. Há ocidentais falantes de chinês em
diversos países, além de instituições que promovem o conhecimento dos aspectos mais
importantes de sua civilização e cultura fora da China, o que indica a realização do
intercâmbio desejado por Leibniz entre a China e a Europa, agora levado a cabo pelos
chineses.
A sinologia ocidental, cujo propósito é aprofundar-se nos estudos sobre a China,
tem origem a partir dos materiais produzidos pelos missionários da Ásia, que por sua vez não
pretendiam criar uma área de estudos, mas expandir a religião a outros povos do mundo,
conforme metas estipuladas pela Igreja católica.
Na China os jesuítas tiveram problemas, já que encontraram ali uma civilização
avançada, com estrutura administrativa desenvolvida, além de idioma e cultura complexos
para os costumes considerados primitivos, como os em geral encontrados em outras missões.
Dessa forma, na China foi preciso reavaliar e modificar as estratégias de contato.
No Ocidente, a sinologia relaciona-se à questão do figurismo 15 de Bouvet
(MUNGELLO, 1989), o que será abordado mais adiante, embora sejam ainda necessárias
pesquisas mais amplas sobre sinologia comparada do que as que se pôde empreender neste
trabalho. Uma pesquisa desse tipo fundamentar-se-ia na investigação de semelhanças e
diferenças da própria sinologia ocidental, contudo, limitei-me aqui à comparação entre a
sinologia no Ocidente e na China, com o intuito de determinar sua constituição, as influências
compartilhadas entre ambas e ainda as características que as distanciam, e dentro do que as
delimitam. O figurismo de Bouvet poderia ser contrastado à visão científica de Leibniz
(FLORENTINO NETO, 2016) em suas correspondências. Ambos eram matemáticos e
contribuíram mutuamente na constituição da chamada proto-sinologia, por meio,
respectivamente, do material produzido com base na filologia, de Bouvet, e da abordagem
científica e diferenciada de Leibniz, o que vai de encontro às interpretações religiosas sobre a
China.
A própria sinologia é atribuída, em certas obras, ao missionário Matteo Ricci,

15
Trata-se basicamente da busca de aspectos contidos no Velho Testamento, em obras produzidas por outras
culturas, como é o caso da análise do Clássico das Mutações (Yijing), realizado por Bouvet, na China.
18

como em Orientalism in Sinology, de Adrian Chan (2010), pelo fato de ter sido ele um dos
que – com o domínio da língua e cultura chinesas – teria logrado estabelecer sólido contato e
conquistar a confiança dos chineses, apoiado em seu método de acomodação 16 . Neste
trabalho, são considerados, portanto, os interesses específicos das missões na China, sem
comprometer o que se deseja delimitar como sinologia, evitando ainda influenciar essa ciência
pelo figurismo, o que a distanciaria de uma comparação em sinologia, por manter-se dentro do
propósito religioso.
Aqui, descreve-se o processo de construção da sinologia no Ocidente, de modo a
apontar a transição de seus aspectos religiosos a científicos. Mesmo com a intervenção dos
estudos científicos de inúmeros missionários, os objetivos limitavam-se às regras e interesses
da Igreja, o que fazia com que tais pesquisas fossem frequentemente influenciadas por ela.
Tamanha foi sua influência que ainda hoje podem ser encontrados seus vestígios, como nos
apontamentos de Adrian Chan (2010), que não faz referência direta ao figurismo, mas
considera os missionários na China como os primeiros sinólogos, e sua visão sobre a
cosmogonia chinesa um exemplo e base do orientalismo na sinologia.
Os maiores responsáveis pelo crescente interesse dos europeus na literatura
chinesa foram Leibniz e Bouvet, por meio de suas discussões sobre o Clássico das Mutações
(Yijing) e a tentativa de produzir argumentos convincentes para as controvérsias levantadas
por Longobardi (FLORENTINO NETO, 2016), que assumiu o posto de responsável pelas
missões na China após a morte de Matteo Ricci. A análise desses estudiosos – especialmente
Leibniz – acerca do conhecimento produzido pelos chineses incitou nos europeus importantes
expectativas em relação à ciência e à tecnologia oriundas daquela civilização.
No momento de transição da sinologia ocidental à ciência moderna, refiro a
introdução do conceito de fato social, por Marcel Granet (1997). O propósito aqui é
determinar a metodologia deste estudioso a fim de compreender se, em comparação com a
sinologia chinesa, há alguma semelhança, como em sua análise do Clássico das Mutações
(Yijing), ou mesmo em sua concepção sobre a língua chinesa. Em suas reflexões, Granet
(1997) não segue um estudo baseado na linguística, porém, suas afirmações sobre o assunto
são categóricas e dão origem a controvérsias a respeito da língua chinesa, as quais buscou-se
delimitar. A posição de Granet é fundamental para este trabalho devido a seu distanciamento
da concepção religiosa, anteriormente em destaque. Seu método conduziu à forma tipicamente
ocidental dos estudos sinológicos, ao desconsiderar uma análise em que a filologia e a história

16
Tal método consistia na busca por apreender o máximo de informações possíveis sobre a civilização chinesa,
que possibilitassem a abertura e a introdução do cristianismo e a evangelização do povo.
19

não encontram utilidade, – o que não tira o seu mérito enquanto precursor de uma sinologia
puramente científica. Além disso, o autor apoia-se em material coletado e produzido
especificamente pela filologia, mesmo declarando não ter utilizado tal área como instrumento
em seus estudos (GRANET, 1997).
Vale ressaltar que Granet não é o criador da sinologia, tendo ele sofrido a
influência das escolas de sinologia existentes em sua época, através das quais, inclusive,
obteve sua formação na disciplina. Seu feito, portanto, foi o de inovar a metodologia,
adicionando o método da sociologia em suas considerações, fato que fez com que seus
estudos sobre a China fossem tidos como modernos, tornando-o o precursor deste sistema. A
origem da sinologia deve-se a um debate filosófico gramatical, importante para as reflexões
sobre a concepção de língua chinesa e sua possível relação com o que sugerem Humboldt e
Abel-Rémusat (1821–1831) em suas cartas 17 , demonstrando a negação da existência do
pensamento chinês na filosofia. O ponto relevante à escolha da ordem dos assuntos foi o fato
de Granet (1997) ter desconsiderado um estudo linguístico e mesmo filológico, evidenciando
uma lacuna na sinologia, ou mesmo desviando-se de uma proposta já existente, na qual
percebeu possíveis falhas metodológicas.
Dito isto, o tema central aqui tem como foco a construção da sinologia chinesa na
obra de Wang Li, através de um estudo comparado com a visão ocidental. Fosse essa uma
comparação da sinologia no Ocidente, teria sido necessário incluir o papel do figurismo, o que
não é o caso. Sobre o uso da linguística na sinologia ocidental, a proposta foi fazer uma
análise a respeito das conclusões apresentadas nas Lettres édifiantes et curieuses sur la langue
chinoise, presentes nas discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat (ROUSSEAU/
THOUARD, 1999). É imprescindível a análise do que certamente serviu de base para a
criação da sinologia ocidental, o que facilita as comparações com a sinologia chinesa
apresentada por Wang Li. O debate entre os referidos estudiosos ocidentais certamente
influenciou a sinologia de Granet, desde seus antecessores. O ponto mais importante neste
tema é perceber justamente o debate entre as ideias filosóficas e a possibilidade da formulação
de uma gramática chinesa pelo sistema de análise ocidental, fato que toca diretamente no
material de Wang Li, quando se refere à história da linguística na China, apresentando a
influência ocidental no surgimento de estudos em gramática em seu país.
Dessa maneira, faz-se necessária uma sinologia comparada a fim de determinar os
pontos em que as sinologias ocidental e chinesa se aproximam ou se distanciam, se

17
Trata-se das corresponências trocadas entre ambos estudiosos, conforme a obra Lettres édifiantes et curieuses
sur la langue chinoise (ROUSSEAU/THOUARD, 1999).
20

influenciam ou negam qualquer semelhança de fundamentação. Afirmar que a sinologia


chinesa seja idêntica à ocidental conduz a um equívoco, embora a garantia de que não exista
aproximações entre ambas as concepções de sinologia também considere um total
distanciamento dos estudos sobre a China, o que poderia gerar resultados completamente
distintos do objeto estudado – como o risco de tornar uma área obsoleta, sem a necessária
fundamentação teórica, ou ainda irrelevante no Ocidente. Tal afirmativa apoia-se na
afirmativa de que a sinologia ocidental possui um leque muito amplo de áreas de interesse,
como a história, a literatura, a língua chinesa etc, o que indica especializações já existentes e
que possuem uma metodologia própria para analisar aspectos relativos à China.
Nesse sentido, retomo as características existentes no método de estudo de
Bouvet, que já usava a filologia nas considerações do Clássico das Mutações (Yijing), o que o
insere dentro do modelo de tratamento dos clássicos Han, comum na sinologia chinesa. Ainda
assim, tal fato não o qualifica como sinólogo, visto que as análises consideradas sofreram
influência do figurismo, e as considerações do pensamento típico dos chineses foram
frequentemente negadas. Por sua vez, Leibniz (FLORENTINO NETO, 2016) fez uma
aproximação consistente ao notar a possibilidade de semelhança entre seu cálculo binário e os
hexagramas contidos na referida obra clássica. Elaborou uma leitura bastante moderna do
clássico dentro de um modelo científico, valorizando a cultura chinesa a ponto de expandir os
interesses da Europa sobre sua literatura, criando assim novas possibilidades de intercâmbio.
No entanto, seus interesses também se limitavam ao material produzido pelos religiosos na
China.
Ademais, outro aspecto referente ao tema da língua chinesa a ser analisado é a
polêmica em torno dos conceitos da sinologia. Este argumento parte das missões religiosas,
com destaque para a leitura e a tradução figuristas, em que uma palavra chinesa ganha outro
sentido, distinto do original, por aproximação ou negação das fontes culturais ou relacionadas
às crenças desse povo. A universalidade do cristianismo e o eurocentrismo foram fortes
correntes de pensamento que filtraram qualquer oposição nos estudos em sinologia. A relação
com os trabalhos de Wang Li é notada ao se considerar os problemas existentes desde a
antiguidade chinesa sobre a real função e sentido dos caracteres no próprio país. Para os
chineses, a filologia (xiaoxue) já era um instrumento necessário a fim de se manter os padrões
mais aceitos da língua escrita, o que é ainda mais difícil na linguagem oral, pois os caracteres
funcionam até hoje como peças de um jogo determinado, em que os jogadores devem estar
em pleno acordo com o propósito de comunicação, memorizando o som, o significado e a
função dessas “peças” dentro de um contexto considerado culto, no caso do Império e,
21

atualmente, na regularidade da norma padrão. A diferença é que hoje existe o sistema


romanizado, cuja proposta é regular também a língua oral, pela ênfase na pronúncia e marca
tonal, fundamentadas no sistema oficializado pelo governo chinês.
A obra de Wang Li (1981) apresenta que, além dos caracteres criados pelos
próprios chineses, existiam outros introduzidos por mongóis e manchus – considerados
estrangeiros pelos chineses, – além do novo léxico trazido pelo budismo e pelo cristianismo.
Os chineses sabiam que poderiam ocorrer problemas se perdessem a regularidade da língua
escrita, o que já era complicado na oralidade, devido às diferentes etnias chinesas. Diante
dessa reflexão, é possível perceber a importância do instrumento filológico como regulador de
incoerências e até como sistema básico de uma regra gramatical, tema também discutido mais
à frente, a fim de elucidar o valor da filologia para a sinologia.
Outrossim, a sinologia moderna no Ocidente tem apontado caminhos de
desenvolvimento e descobertas recentes sobre a China, dentro de uma perspectiva científica.
Nesta pesquisa, considera-se os trabalhos de Granet e compara-se as novidades apresentadas
por ele com as propostas de Needham (1954) sobre a ciência da civilização chinesa antiga;
apresento as principais reflexões de Anne Cheng (2007), que podem indicar rumos dos
estudos em sinologia na atualidade, além das descobertas recentes de Karine Chemla (2004)
sobre a matemática chinesa, que comprovam o pensamento teórico dos antigos, propondo
reformulações sobre as concepções anteriores em sinologia.
Wang Li (1981) apresenta a influência do Império Qing na ciência ocidental por
meio de seu contato com o material e método da filologia produzidos até essa época na China.
Também descreve a influência das teorias linguísticas introduzidas em seu país, que
proporcionaram mudanças na forma de tratamento do assunto.
No mundo contemporâneo, a sinologia ocidental e a chinesa entram em debate
comparativo devido aos processos de construção e de definição enquanto ciências modernas.
Parte-se de Granet (1997) e sua introdução do conceito de fato social na sinologia, até as
novas descobertas sobre a China, considerando-se o início do século XX chinês, final do
Império Qing, – período destacado por Wang Li pelas descobertas e estudos da escrita em
carapaças de tartarugas, e o início dos estudos em gramática chinesa pelos estudiosos
chineses. Este sinólogo comenta que a dinastia Qing foi o “período de ouro” da filologia
(xiaoxue), da caligrafia, da fonologia e da glossologia chinesas; a paleografia também teve
início na dinastia Song e seu auge após a morte de Qing (WANG LI, 1981, p. 90).
A linguística chinesa desenvolveu-se no período Qing, na qual ficou conhecida
como Escola de Pensamento Ganjia (WANG LI, 1981, p. 139). Com o fim da Guerra do Ópio
22

(1840), a população chinesa buscava salvar a nação e acabou por se interessar pelo
conhecimento dos estrangeiros, pois acreditava que as reformas só seriam possíveis com os
estudos das ciências ocidentais (WANG LI, 1981, p. 142). A aproximação entre ocidentais e
chineses, no período entre as dinastias Ming e Qing, fornece vasto material para um estudo
comparado, servindo de base para entender o intercâmbio entre as culturas e os interesses
científicos em questão, o que também define as propostas muito distintas em sinologia, entre
o Ocidente e a China. Tal contato certamente gerou alterações na forma de conceber esta
ciência no país.
Para determinar as possíveis aproximações e distanciamentos entre a sinologia
ocidental e a chinesa, a fundamentação aqui se apoia no método dos Études de Philosophie
Comparée, de Masson-Oursel (2006), cuja obra apresenta a forma de abordagem de estudos
comparados das ideias filosóficas, apontando possíveis analogias entre as filosofias indiana,
chinesa e grega. O autor indica o uso da expressão “comparada”, afirmando ser semelhante ao
que ocorre com a anatomia, a filologia ou a psicologia comparadas. Assim, considerando as
perspectivas ocidental e chinesa sobre a área de estudo, optou-se por denominar a
metodologia aqui empregada de sinologia comparada.
Antes de analisar a construção da sinologia na China, ou seja, o estudo do chinês
pelo chinês, com base na obra de Wang Li (1981), é preciso delimitar o que constitui a área
sinológica ocidental. E foi especialmente a partir dos primeiros contatos e do interesse em
estudar a China e sua civilização que Matteo Ricci (MUNGELLO, 1989), matemático e
astrônomo, membro da Companhia de Jesus, elaborou um método de acomodação. Assim, a
metodologia desenvolvida pelos missionários, que buscavam uma intervenção mais segura e
proveitosa na China, gerou grandes trabalhos de investigação no país, além da produção de
conhecimentos propagados na Europa por cientistas e pela Igreja.
Dessa maneira, a sinologia comparada consiste em cotejar elementos da área
concebidos por outras civilizações, e esta pesquisa especificamente considerou a China e o
Ocidente enquanto espaços de interesse, sem desmembrá-los em regiões. O objetivo foi
analisar os elementos apresentados na obra de Wang Li (1981), no que se refere ao tema, em
comparação com relatos presentes em obras de sinólogos ocidentais, que indicam a origem de
seus estudos de acordo com suas respectivas regiões. Este método buscou descobrir relações
idênticas em condições análogas a fim de extrair um elemento específico do fenômeno
(MASSON-OURSEL, 2006). A seleção de materiais sobre o tema a ser comparado fez-se
necessária ao andamento das investigações, seguindo um recorte equiparável com interesses
que embasem o título proposto, como no caso de Wang Li e da construção da sinologia
23

chinesa. O método comparativo tornou-se fundamental para examinar o processo de


construção da sinologia antiga e moderna e as respectivas ideias e condições relativas a ele,
contrastando a sinologia chinesa e a ocidental. A comparação dos dados pôde revelar dois
sistemas idênticos, ou distintos, mas que possuem pontos em comum, e mesmo aspectos que
sofreram influências mútuas, tendo causado alterações consideráveis nas ideias que
conceberam essas ciências.
A pesquisa está dividida em quatro capítulos. O primeiro deles, a saber “As
missões jesuítas na China e a proto-sinologia”, trata dos objetivos das missões na China e da
expansão europeia, e sua contribuição para uma mudança de estratégias em relação ao método
de acomodação atribuído a Ricci (MUNGELLO, 1989), o que acarretou alterações e conflitos
no meio chinês, como o caso do neoconfucionismo18. A partir de Ricci (MUNGELLO, 1989),
apresento os caminhos e as mudanças estratégicas aplicadas na China, que fizeram parte, de
certo modo, da criação de uma abordagem próxima à proto-sinologia. A análise e a definição
do distanciamento se fazem presentes, visto que o propósito das missões não foi criar uma
área específica de estudos sobre a China, distinguindo-se da perspectiva científica. Além
disso, tencionou-se descrever a continuidade do figurismo – método anteriormente aplicado
em outras missões, mas que ganha uma importante inovação atribuída a Bouvet
(MUNGELLO, 1989), – além das modificações aplicadas por ele à metodologia de Ricci
(MUNGELLO, 1989). A análise do Clássico das Mutações (Yijing) foi o foco dos trabalhos de
Bouvet na China, e a introdução de uma perspectiva matemática em suas considerações, com
o auxílio de Leibniz, foi importante neste momento, já que se aproxima do modelo chinês de
sinologia, ao se valer da ferramenta filológica. Leibniz (FLORENTINO NETO, 2016), por
sua vez, valorizou e incentivou o método de acomodação de Ricci, correspondendo-se com
Bouvet. O principal problema tratado aqui envolve os termos li, qi, taiji e shangdi, discutidos
por Leibniz na carta a Rémond, a respeito das opiniões dos padres Longobardi e Antoine de S.
Marie, que representavam o pensamento cristão sobre a China da época. Neste capítulo,
também se descreve o papel de Leibniz, gerador do fortalecimento de bases científicas para os
estudos sobre a China, com ênfase na matemática, além do surgimento da proposta de
intercâmbio entre a China e a Europa, que se manteve dentro de uma proto-sinologia, visto
ainda existirem conhecimentos limitados sobre a China.
O segundo capítulo, intitulado “A concepção científica da sinologia moderna”,

18
Trata-se de um termo de origem europeia, derivado do período de reforma na fonte de Confúcio, referente ao
termo daotong (transmissão do verdadeiro caminho). Daotong surgiu na dinastia Tang, por intermédio de Han Yu
(768–824), que criticou o budismo enfatizando a transmissão do verdadeiro ensinamento a partir dos antigos,
por meio do que foi determinado por Confúcio, em Mêncio (MUNGELLO, 1989, p. 59-60).
24

trata do papel de Granet enquanto precursor moderno do método de estudos sobre a China, ao
introduzir a sociologia e, especificamente, o conceito de fato social em seus estudos,
apontando uma inovação na área e consolidando-a enquanto ciência ocidental. O autor foi,
assim, precursor de um estudo totalmente científico sobre a China, ao abandonar totalmente as
influências religiosas. Neste ponto, faz-se necessário entender sua opinião sobre a língua
chinesa, dentro da concepção de fato social. Ao afirmar a suposta incapacidade de abstração
da língua chinesa, Granet (1997) influencia os sinólogos modernos, de modo geral. Para ele, a
língua chinesa foi criada para expressar a ação, sem recursos para a expressão abstrata de
ideias que pudessem auxiliar na gramática ou na sintaxe. Suas análises seguem o raciocínio da
sociologia, o que compromete seu trabalho do ponto de vista da sinologia, uma vez que se
abstêm da ferramenta linguística. Assim como Bouvet, Granet (1997) também faz
considerações sobre o Clássico das Mutações, apoiando-se em conceitos sociológicos. Aqui,
faz-se uma contraposição aos argumentos de Bouvet (figurismo) e Leibniz (sistema binário)
ainda que ambos enfatizem a valorização dos estudos dos clássicos chineses – o que, de certo
modo, se aproxima da proposta de Wang Li (1981). Minha análise considera, principalmente,
o método aplicado por Granet (1997) à sinologia, com o intuito de destacar a perspectiva
científica do tema.
Em “O uso da linguística na sinologia ocidental”, terceiro capítulo,
respectivamente, trato da importância do estudo da língua e da literatura chinesas, enquanto
áreas pertencentes à sinologia ocidental, fundamentando-a de acordo com os pensamentos de
Li, para quem linguística e filologia são áreas inseparáveis. É fundamental a compreensão de
que, segundo este autor (1981), a filologia ocupou uma posição importante, tomada como
base dos estudos da linguística chinesa, durante dois mil anos. Por outro lado, como a
sinologia chinesa (hanxue) foca no estudo dos clássicos Han e se fundamenta na filologia, fica
evidente a necessidade de uma investigação que constate os fatos, de modo a facilitar a
análise comparada. Ainda neste trecho, discutem-se os aspectos referentes à polêmica em
torno do léxico utilizado na sinologia, uma vez que constituem a base deste trabalho, além de
estarem presentes desde as missões religiosas até a atualidade, pertencendo, assim, ao campo
da linguística e ao processo tradutório. Ainda com referência à linguística, aponto as propostas
apresentadas nas correspondências entre Humboldt e Abel-Rémusat (ROUSSEAU/
THOUARD, 1999), em um debate filosófico gramatical em relação à língua chinesa,
comprovando a criação da sinologia ocidental. Neste ponto, percebe-se que tanto a linguística
quanto a filosofia têm um papel de destaque na construção da sinologia no Ocidente. Com o
apoio das argumentações de Needham (1954) também apresento, neste capítulo, o modo pelo
25

qual os chineses conceberam a ciência em tempos antigos, e os valores que esta informação
possui para a sinologia moderna. Um outro objetivo foi indicar a superação de controvérsias a
respeito de a China Antiga não ter desenvolvido um método científico, com o intuito de
confirmar os apontamentos de Wang Li (1981) sobre um tipo de estudo científico
desenvolvido na antiguidade chinesa. Tal assunto aproxima-se, de certa forma, das afirmações
de Granet (1997) sobre a suposta não abstração do idioma chinês, e de uma língua desprovida
de recursos necessários ao fazer científico. Para tal apresento fatos que tencionam comprovar
o contrário. Quanto à sinologia moderna, analisaram-se as propostas de desenvolvimento
desta área de estudos e as barreiras ainda existentes em seu recorte, metodologia e subáreas. A
teoria de análise apoia-se nos fundamentos de Anne Cheng (2007) e em uma possível
proposta de avanço nos estudos sinológicos. Ademais, destaco ainda descobertas, como o
“Pitágoras chinês”, a fim de definir e pôr fim às argumentações de que o chinês não produziu
ciência e de que sua língua seria inapropriada para a teorização. A obra de Wang Li apresenta
um conteúdo completo sobre a sinologia dos chineses, já que nela o autor aponta a construção
do método antigo, que provavelmente ainda existe, devido especialmente às suas raízes e
valores culturais.
No capítulo quarto, “Wang Li e a sinologia na China”, a concepção de filologia e
linguística do sinólogo – e sua relação direta com a sinologia chinesa – são enfatizadas.
Apresento, assim, o destaque que o autor dá ao contato dos sinólogos europeus, que
contribuíram para o desenvolvimento da linguística chinesa e, por conseguinte, para a
sinologia chinesa, como um todo. Retomo um ponto da obra analisada, em que a ciência
ocidental nega, indiretamente, a influência da sinologia da dinastia Qing, principalmente em
relação aos estudos desenvolvidos nesta época. Como a obra de Li parte dos antigos estudos
em filologia para o desenvolvimento da linguística chinesa, – ambas, áreas fundamentais para
a sinologia na China –, é importante ressaltar a concepção de sinologia do autor. Destaca-se
aqui a escolha de Wang Li em citar e analisar determinados sinólogos ocidentais, além de
apresentar os aspectos da sinologia na atualidade da China.
Neste processo, pareceu fundamental verificar se ocorreram ou não mudanças no
método da sinologia dos chineses, devido às influências ocidentais. Tendo em vista as
mudanças ocorridas na sinologia chinesa e ocidental, o material produzido nesta análise abre
novos caminhos à investigação, como, por exemplo, uma provável comparação desta área do
conhecimento entre países ocidentais.
Sabe-se que é possível que ainda existam hoje, na China, regiões onde a
valorização do método antigo de estudo em sinologia se mantenha, principalmente em relação
26

a outros locais, onde a modernidade e a atuação ocidental foram mais intensas. Quanto à
filologia enquanto instrumento de análise da sinologia, ela pode estar presente, por exemplo,
no método empregado por Bouvet (FLORENTINO NETO, 2016), em sua análise do Clássico
das Mutações, que produziu o material aproveitado por Leibniz, por meio de suas
correspondências, ou em Granet (1997) por meio da coleta de dados para seus estudos.
Sabe-se, evidentemente, que a coleta de material e de dados é comum em qualquer
campo de estudos, embora o tratamento desse material seja específico em cada área. A
filologia considera prioridade o material escrito, e a importância da evolução da forma e do
significado das palavras, essencial para manter a originalidade do conteúdo. Após rigorosa
seleção de material, e até mesmo recuperação de textos danificados pelo tempo (ou qualquer
fator que tenha atuado sobre eles, causando possíveis danos), o que foi organizado passa a ser
interpretado, para que depois sejam produzidos livros ou textos dignos de aproveitamento. Em
relação a outras áreas do conhecimento, o manuseio do material costuma ser muito diferente
em filologia. Conforme as reflexões apresentadas neste trabalho, pode-se notar que os
chineses davam ênfase ao material escrito por seus antepassados, e o estudo da língua
apoiava-se no que conseguiam conservar e interpretar deste, construindo, assim, o
entendimento sobre o pensamento de seu povo e, comparando-o aos momentos atuais,
recuperando, criticando ou até excluindo argumentos refutados que perderam valor cultural.
Wang Li atua sobre o material citado em sua obra utilizando-se da filologia, embora seu
objetivo de análise seja a história da língua chinesa, que por sua vez inclui a própria filologia,
ele constrói a sinologia (sua área de atuação) em seus relatos, recuperando fatos da história
social chinesa antiga, bem como suas influências na modernidade.
Wang Li atuou como linguista no tempo das reformas do idioma nacional, e suas
pesquisas tiveram não só o objetivo de reunir e estruturar a história, mas também estabelecer
pontos essenciais para a fundamentação da gramática e da linguística chinesas modernas. Pela
grandiosidade de seu projeto, ele construiu a área de estudos na China e, paralelamente, fez o
mesmo com a sinologia chinesa, antiga e moderna, ao produzir a obra em questão. Devido à
importância e ao tema e conteúdo de sua obra, fez-se necessária a tradução do material do
chinês para o português, tendo como objetivo inicial a reunião de informações referentes à
linguística chinesa. Com especial enfoque na sinologia, este estudo destaca portanto aquilo
que tem relação direta com este campo.
A obra de Wang Li (1981) aqui analisada possui temas mais direcionados à
linguística, desde o surgimento da filologia chinesa à preocupação dos chineses com a análise
das glosas, seja referenciando a origem dos estudos da linguagem. O sinólogo chinês inclui
27

em sua obra a citação dos autores antigos e produções que marcaram um período e
contribuíram para a preservação e a evolução dos estudos sobre a língua chinesa. Por meio de
exemplos das principais obras da época, descreve o método de alfabetização das crianças
chinesas desde a Antiguidade, apresentando o interesse dos letrados em transmitir o
conhecimento dos antepassados com rigor e qualidade; destaca os estudos em dialetologia
chinesa; cita os primeiros dicionários produzidos no país. É possível notar que os relatos de Li
(1981) concentram-se nas obras e nos autores, por meio dos quais realiza uma análise
comparativa, ao apontar tanto as falhas quanto os méritos de tais materiais. Esta linha
metodológica é típica de trabalhos na área de filologia, o que comprova sua base acadêmica.
O autor aborda também a origem dos primeiros dicionários de chinês e os problemas que
envolvem sua criação. Por tratar de temas inéditos à sua época, é qualificado como linguista
moderno, mas, ao abordar vários outros temas sobre o contexto chinês, destaca-se como
erudito. Seu grau de conhecimento sobre diversos assuntos aponta um interesse mais amplo
sobre a China, característica que o mantém dentro do modelo de sinologia chinesa.
Para uma sinologia comparada, destaco que os processos de construção da
sinologia ocidental e chinesa possuem pontos bastante distintos, ainda que um fator comum
pareça ser o estudo do pensamento chinês. Os chineses elaboravam suas interpretações a
respeito, desde a Antiguidade, buscando trazer para um determinado momento de sua história
ideias políticas e filosóficas, de modo a representar as reflexões intelectuais dessa civilização
e a permanência da transmissão educacional e da formação dos letrados. No caso dos
ocidentais, vê-se a preocupação de Granet (1997) com o pensamento chinês, que
provavelmente já ganhava valor dentro da proto-sinologia europeia, como demonstram os
missionários por meio do material produzido na China – embora frequentemente interpretado
segundo uma concepção figurista. As pesquisas indicam que os sinólogos atuais, no Ocidente,
buscam determinar e desvendar como o chinês constrói as ideias, como sua cultura pode
refletir o imaginário popular, o que é relevante nos ideogramas chineses que pode dar pistas
sobre a forma de pensar dessa civilização etc. Levando-se em consideração as discussões
entre Bouvet e Leibniz (concepção do universo pelos chineses), Humboldt e Abel-Rémusat
(debate filosófico gramatical da língua chinesa), Granet (pensamento chinês), Anne Cheng (o
pensamento chinês de hoje ou a história do pensamento chinês), dentre outros, pode-se
determinar que esse é exatamente o objeto de interesse da sinologia, tanto chinesa quanto
ocidental.
Conforme explicitado nesta introdução, a presente pesquisa permanece dentro de
seus limites, em que reuniram-se os principais fundamentos da sinologia chinesa e ocidental,
28

comparando-os e dando origem a um estudo que oferece um panorama das ideias


compartilhadas e das motivações desse processo, destacados pelas semelhanças e
desigualdades entre as culturas consideradas. O produto desta pesquisa pode servir como base
para a continuidade de análises, estendendo o foco para outros países, ou ainda dentro de um
mesmo país, considerando as variações e influências existentes na história da origem da
sinologia e de sua fundamentação metodológica.
É preciso ter em mente que um estudo sobre a China não possui caráter universal
e, mesmo supondo sua universalidade ou regularidade, deve-se observar os fatores que
interagem na sinologia, gerando mudanças em suas propostas e em sua metodologia. O desejo
de uma área com regras definidas é sempre bem-vindo e, talvez, a pesquisa aqui empreendida
sirva de modelo não para estabelecer regras, mas para apresentar os problemas realmente
existentes em sua constituição. As concepções de sinologia – ocidental e chinesa –
apresentadas neste trabalho exemplificam as bases das interpretações feitas na história, em
que falhas e imposições de interesses atuaram de forma positiva e negativa para a formulação
e o estabelecimento de uma área que propõe a especialização no estudo da China. Assim, é
inadmissível que se mantenham sem respostas as lacunas deixadas em sua evolução, e que
não seja realizado o mapeamento de sua origem.
Se todos os que estudam a China são sinólogos, resta saber qual a condição de
existência da sinologia, delimitando sua função enquanto ciência. Esta área passaria a não ter
sentido ao se observar um historiador, um geógrafo, um linguista ou especialista em China,
condições não definidoras para a sinologia, já que cada área tem a sua própria metodologia e
estrutura de atuação, o que restaria do termo sinologia se não mero título?
Podemos notar que os chineses reconhecem a diferença de tratamento da sinologia
em seu país e no exterior, ao indicarem o que para eles são os limites das pesquisas na área,
ou apontarem essa perspectiva nos outros países. Mas também pode-se notar que na China a
abordagem metodológica é outra, mesmo utilizando o termo sinologia como equivalente para
traduzir uma forma de estudo dos chineses antigos. Por referirem-se ao mesmo campo do
conhecimento seria comum possuírem as mesmas condições estruturais e modelos
metodológicos, o que na verdade não ocorre.
Como o tratamento do objeto de estudo não é o mesmo e a origem da sinologia parece distinta
na China e no Ocidente, resta saber se essa área de estudos é realmente equivalente ou não.
Talvez os chineses tendam a adaptar a sua concepção ao modelo ocidental, buscando a
aproximação e o compartilhamento de informações. Pode ser também que, em algum outro
país, utilize-se o método chinês para referir-se a esse tipo de pesquisa. Existe ainda a
29

possibilidade de o Ocidente conservar uma metodologia impregnada do citado figurismo, de


Bouvet, mantendo-se em um modelo mais característico à proto-sinologia, tendendo a buscar
na China o que se conhece fora dela, ao trazer uma perspectiva orientalista para a discussão.
30

Capítulo 1: As missões jesuítas na China e a proto-sinologia

1.1 Os objetivos das missões na China e a expansão europeia

Tanto São Francisco Xavier quanto Alessandro Valignano, ambos superiores


religiosos que consideravam a importância do aprendizado das línguas asiáticas com o
objetivo de diminuir as dificuldades das missões nessas regiões e transmitir o cristianismo no
idioma local, buscavam estabelecer contatos com a China. Xavier – já experiente em propagar
a religião cristã no Japão –, em seu leito de morte, declarou ao missionário Antônio– chinês
convertido – que gostaria de ir a Cantão, na China, em sua companhia. Antônio, porém, já
havia se esquecido da língua materna, o que dificultaria o sucesso desta aproximação.
Inicialmente, a aproximação jesuíta de maior duração com a cultura oriental
ocorreu no Colégio de São Paulo, em Goa, na Índia, por meio do contato com dois jovens
chineses, – um deles Antônio. Este ficou conhecido por Valignano, em Macau, onde já
catequizava (WITEK, 2001).
Após a morte de Xavier, os missionários jesuítas tentaram inúmeras vezes, sem
sucesso, adentrar o território chinês. Tais tentativas podem ser observadas, por exemplo, na
ida de Melchior Nunes Barreto a Cantão, com o propósito de libertar marinheiros portugueses,
presos pelo governo local. Em uma de suas viagens à China, Barreto ordenou a um de seus
companheiros que permanecesse no país e aprendesse a língua local. Este, no entanto, partiu
para Goa adoentado e, mesmo mais tarde, com o envio de duas dúzias de missionários
incumbidos da mesma tarefa, tal empreitada não surtiu efeitos, já que quase nenhum deles
conseguiu aprender o chinês. Somente Michele Ruggieri, doutor em Direito Civil e Canônico,
filósofo e teólogo, enviado por Valignano, alcançou a aproximação com os chineses por
intermédio de Matteo Ricci, matemático, astrônomo, geógrafo, teólogo e introdutor do
método de acomodação dos jesuítas (WITEK, 2001).
Considerando a atenção dada por Valignano ao aprendizado do idioma chinês,
enquanto ponto de partida para mudanças estratégicas das missões na China, é possível supor
que aprender a língua e a cultura chinesas era a melhor opção para os missionários no país, já
que não só facilitaria o contato com o povo e a possibilidade de conquistar direitos junto ao
governo local, como também proporcionaria o acesso aos livros clássicos chineses e a
compreensão do pensamento e da cultura deste povo, – tarefa bastante difícil para os que
buscavam apenas impor suas regras e seu sistema religioso (WITEK, 2001). Além disso, se
considerassem apenas a literatura chinesa, sem fazer interpretações baseadas na religião
31

ocidental, provavelmente, criariam uma sinologia análoga a dos chineses.


Valignano foi visitador da ordem dos jesuítas na Ásia, o que lhe permitia
acompanhar a atuação dos missionários e reunir informações dos contatos das missões, que
por sua vez o possibilitava estabelecer melhores rumos a seguir. O missionário incentivou o
desenvolvimento da literatura local na Índia com o objetivo de produzir livros católicos e
estabelecer seminários em línguas estrangeiras, o que caracteriza o distanciamento de uma
proposta de estudos sobre o país de contato. O emprego de tal método objetivava abranger
todo o território da Ásia, fato que pode ser notado nos exemplos de Ruggieri e Ricci que, tão
logo aprenderam o idioma chinês, passaram a dar confissões aos chineses. Uma das ordens de
Valignano para Ruggieri, que esclarece o valor dado ao estudo da língua, foi “que aprendesse
a mais universal das línguas, o mandarim”19 (WITEK, 2001, p. 16, grifos do autor).
O processo de aprendizado da língua chinesa, tanto por Ruggieri como por Ricci,
resume-se na consideração e na atenção aos letrados, portadores do conhecimento literário.
Geralmente, os poucos chineses que se convertiam acabavam servindo como intérpretes aos
comerciantes portugueses, no entanto, não tinham conhecimento avançado nem da língua
chinesa nem da língua portuguesa. O primeiro professor de Ruggieri foi um artista chinês, que
desenhava os caracteres esclarecendo a pronúncia e o significado. Devido à dificuldade de
assimilação da língua, Ruggieri percebeu a necessidade de um companheiro que o auxiliasse
nos estudos, motivo pelo qual Ricci foi enviado à Macau em sete de agosto de 1582.
A partir da aquisição do idioma chinês por Ruggieri, tornam-se incontestáveis
suas conquistas relacionadas às missões na China. Dentre elas, destacam-se o reconhecimento
de Ruggieri como homem letrado, além da demonstração de respeito e obediência por parte
dos portugueses, os quais eram aconselhados por ele a agirem conforme os costumes locais,
embora não necessitasse agir assim, conforme autorização de um funcionário costeiro chinês.
Também era autorizado a ficar na residência para hóspedes vindos de Sião quando iam a
Beijing, além de estabelecer amizade com o comandante regional.
Ruggieri e Ricci foram pioneiros na conquista da missão permanente em
Zhaoqing, mesmo assim, seus companheiros consideravam inútil o aprendizado da língua
chinesa (WITEK, 2001).

19
A palavra “mandarim”, de acordo com Paul Teyssier (2007, p. 71), é de origem “malaia vinda ela mesma do
sânscrito e contaminada pelo português mandar”, normalmente usada no Ocidente para designar a língua chinesa
oficial. No entanto, a classificação dos chineses para esse idioma, atualmente, é putonghua, que significa “língua
comum”. Ricci (1615) afirma que os jesuítas mantinham o foco no aprendizado do guanhua (kuan-hua), que se
refere ao dialeto falado pelos membros ou funcionários da corte imperial, tendo esta se tornado a língua oficial,
de onde certamente veio a designação do termo “mandarim”, ou seja, aquele que manda (RICCI-TRIGAULT,
1615, ch. 1; 6, p 47, apud MUNGELLO, 1989, p. 54).
32

O processo de adaptação dos jesuítas na China ganhou nova perspectiva, com a


aplicação do método de acomodação desenvolvido por Ricci, que com apoio dos eruditos
chineses, pode assimilar a língua e compreender melhor a cultura e os costumes do povo
chinês. Outro ponto favorável ao contato dos jesuítas com a China era o conhecimento
astronômico, assunto fundamental tanto para os jesuítas quanto para os chineses.
Ricci não era perito em astronomia. Sua referência a respeito do assunto era
Christoph Clavius (1537-1612), famoso matemático europeu e reformador do calendário
gregoriano. A discussão em torno das descobertas de Galileu, inventor do telescópio e amigo
de Clavius, e as controvérsias sobre o copernicanismo influenciaram significativamente as
missões na China. Por serem proibidos de explicar os fenômenos planetários por meio da
teoria de Copérnico, os jesuítas matemáticos, como Ricci, foram obrigados a introduzir as
teorias de Tycho Brahe (1546-1601), que defendia as características do geocentrismo, isto é, a
teoria das esferas cristalinas concêntricas com posições definidas no espaço, tendo o globo
terrestre como centro. Tal fato gerou problemas de incompreensão e falta de esclarecimento
aos letrados chineses, que possuíam a concepção cosmológica de movimentos mais fluidos
dos corpos celestes, nomeada xuanye (hsüan yeh) 20 . Nesse período, o geocentrismo era
questionado e foi lentamente abandonado pelos europeus, em favor do modelo de Copérnico,
que apontava a fluidez do movimento dos planetas que circundavam o Sol, – mais próximo ao
sistema dos chineses. Os jesuítas ainda puderam contribuir na China com as previsões de
eclipses, importantes para o Império, além de introduzirem o método de geometria euclidiana
no país (MUNGELLO, 1989).
Os trabalhos de Ricci na China possuíam características da tradição humanista da
Renascença. Seu famoso tratado Chiao Yulun (De amicitia) (RICCI, 1601, apud
MUNGELLO, 1989, p. 28) era uma imitação do estilo de Cícero, e os chineses letrados
recebiam satisfatoriamente este tipo de material, devido à elegância literária e à persuasão
retórica. Pode-se afirmar que a forma de aproximação de Ricci aos letrados chineses apoiou-
se na tradição humanista da época, servindo também como instrumento para o processo de

20
Apesar de citar o termo xuanye (hsüan yeh) para indicar a fluidez deste sistema, em comparação com o
geocentrismo, Mungello (1989) não esclarece se a concepção do movimento dos planetas para os chineses, era a
do Sol como centro. Em nossas pesquisas preliminares, encontramos um modelo chinês, em que a Terra, em
forma de uma massa quadrada e plana, se situa no centro e os planetas, as estrelas e o Sol movimentam-se sob
ela, sem sair do sistema geocêntrico. Needham (2005, p. 210-219) faz apontamentos importantes sobre xuanye
(hsüan yeh), afirmando ser uma das três escolas de astronomia da China Antiga, que se expandiu no século IV,
por Yü Hsi. Segundo este sinólogo, os livros referentes a esta escola foram todos perdidos, mas alguns registros
foram recuperados pelos bibliotecários, de acordo com estes documentos, o Sol, a Lua e as estrelas flutuavam
livremente no Céu, em movimento ou fixas, A partir destas observações é possível concluir que o sistema xuanye
(hsüan yeh) era semelhante ao geocêntrico introduzido e defendido pelos jesuítas nos primeiros contatos.
33

adaptação das missões e como base do método de acomodação desenvolvido por ele. Uma
obra que pode comprovar os objetivos de Ricci e sua base metodológica é O Verdadeiro
Significado do Senhor do Céu (Tianzhu shiyi) (RICCI, 1603, apud MUNGELLO, 1989, p. 28),
já que se trata de um diálogo entre um letrado chinês e um filósofo cristão. Em seu conteúdo é
possível perceber elementos humanistas da Renascença e o pensamento escolástico, que
serviram de base ao propósito de Ricci ao criar a síntese confuciano-cristã (MUNGELLO,
1989).
Ao considerar as informações sobre a origem e objetivos das missões na China e o
conhecimento e influências levados pelos jesuítas para essa nação e utilizados em seus
contatos e adaptações, percebe-se que eles não tinham permissão de agir conforme seus
próprios interesses de pesquisa e nem de aplicar métodos inovadores sem o consentimento
dos superiores da Igreja. Questões fundamentais para um estudo científico sobre a China,
como as teorias de Copérnico, passavam pela avaliação da concepção religiosa da época, o
que tanto limitava a abordagem dos jesuítas para explorar as diferenças na cultura quanto
tornava lento o próprio processo de adaptação. Assuntos considerados polêmicos na Europa
geravam conflitos entre os jesuítas e os letrados chineses, no processo de contato. O
aprendizado da língua chinesa, neste contexto, auxilia na comunicação, mas os problemas
envolvendo as concepções de mundo eram mais complexos, principalmente, quando ocorriam
no país de origem, como nos casos de Galileu e de Copérnico que, vistos como hereges pela
Igreja católica, sofreram duras punições. Diante disso, os missionários não tinham muitas
opções: a proposta de acomodação de Ricci foi um diferencial para as adaptações dos jesuítas
com os chineses, tendo-se mantido, de certa forma, dentro da concepção religiosa, até o
momento em que sofre represália da Igreja.
Outro propósito das missões e do contato com a China era a expansão europeia.
No século XVII, no período em que ocorreram longas guerras, as atividades comerciais e a
exploração de novas fontes de produtos e riquezas em outras partes do mundo estavam
decadentes na Espanha e em Portugal, enquanto a Inglaterra, a Holanda e a França
encontravam-se em ascensão. Na Europa Central, a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), foi
devastadora econômica e politicamente para a Alemanha. Na Inglaterra, a Guerra Civil (1642-
1649) tinha o envolvimento dos puritanos, anglicanos e católicos. O rei Luís XIV (1661-1715)
da França criou um modelo de monarquia, que serviu por vários anos à Europa. Neste período,
tanto a França quanto a Inglaterra produziram modelos históricos de desenvolvimento do
Estado Nacional Moderno (MUNGELLO, 1989).
A expansão europeia do século XVII tinha como destaque os contatos de interesse
34

religioso. Portugal e Espanha já haviam iniciado as explorações no mundo com o


financiamento das viagens missionárias dos jesuítas. Com a intervenção dos franciscanos e
dominicanos, foram surgindo diferenças entre os métodos de contato das missões. A divisão
do mundo em dois meridianos (norte e sul) foi proposta pelo Papa Alexandre VI, após a
chegada de Colombo na América (1492), determinando o território a oeste pertencente à
Espanha e o território a leste a Portugal, ficando estabelecida a base do padroado entre os dois
países, que dava direitos de controle jurídico a ambos. Com a decadência da hegemonia
econômica ibérica, Portugal particularmente passou por dificuldades, devido à escassa
população (cerca de um milhão), e ao sistema de bispados por muito tempo vagos. Esta
situação resultou na criação da Congregação Sagrada para a Propagação da Fé (1622), por
Roma, para atender as atividades missionárias que se encontravam limitadas. Esta instituição
instruía os missionários a adaptarem o cristianismo às culturas indígenas estrangeiras. As
regras eram para que atuassem nestas culturas apenas quando contrariassem a religião e a
moral cristã. A busca pela diminuição das influências de Portugal e Espanha pelo mundo
ganhou força com a fundação da Société des Missions Étrangères de Paris (1663). Com isto,
a Propagação da Fé, apoiada nas leis diretas do Papa, pôs fim à indicação exclusiva de
bispados portugueses e espanhóis (MUNGELLO, 1989).
No contexto das missões jesuítas na China e da expansão europeia, surgem os
proto-sinólogos, que eram totalmente dependentes do material produzido pelos contatos na
China, conforme a perspectiva de Mungello (1989). Também existiam os escritores amadores,
além dos estudiosos (jesuítas em sua maioria) e acadêmicos, que produziam materiais com
base nas informações que eram publicadas no mundo europeu e que necessitavam de
referências consistentes. É impossível desconsiderar as missões jesuítas na China e o material
sobre esta nação produzido neste período, quando se fala na origem da sinologia europeia. O
método de pesquisa aplicado pelos missionários e a teoria que possuíam podem ser vistos
como avançados para os padrões de conhecimento científico da época. As obras escritas por
Ricci, durante sua permanência na China – muitas delas em chinês – demonstram o grau de
desenvolvimento e a influência dos estudos deste jesuíta. Outros estudiosos apoiaram-se em
seu método de acomodação, como os padres Álvaro Semedo (1586-1658), Gabriel de
Magalhães (1610-1677), Martino Martini (1614-1661), Athanasius Kircher (1602-1680) e
Joachim Bouvet (1656-1730).
Ainda que tenham surgido muitos conflitos e mudanças a partir da aplicação da
metodologia de Ricci, a rede de compartilhamento e continuidade de seu método
proporcionou a base para o estabelecimento das missões e contribuiu para os seus objetivos.
35

Os jesuítas Semedo e Magalhães, por exemplo, foram admiradores da cultura chinesa e


adotaram as premissas básicas do método de acomodação, referentes à crença dos chineses
antigos em um ser supremo, semelhante ao Deus do Velho Testamento21.
Estes jesuítas concentraram-se na descrição da língua chinesa, o que enfatizou o
processo de acomodação dos missionários e estimulou o interesse dos europeus pelas
informações e descobertas vindas da China, no século XVII, principalmente por sua
característica exótica e possibilidade de tornar-se língua universal, – perspectiva de base
religiosa, que ganhou considerações fundamentais no âmbito científico, com o filósofo,
matemático e proto-sinólogo22, Gottfried Leibniz. Semedo (1586-1658), em sua obra Imperio
de la China, não alterou tanto o método de acomodação de Ricci, e Magalhães (1610-1677)
contribuiu com a elaboração de Um Sumário da Propagação do Ensinamento Celestial
(T’ien-hsüeh ch’uan-kai). Na época anterior a Bouvet, já existiam discussões de que os
chineses possuíam alguma identidade com os europeus a partir da Bíblia, além da semelhança
dos princípios morais dos antigos chineses com o cristianismo, apontados como vindos do
Velho Testamento (MUNGELLO, 1989).
Desde o tempo das missões na China, enfatizado na obra De Christiana
expeditione apud Sinas (1615), de Ricci e Trigault, a pretensão de descrever a língua, a
filosofia e a religião chinesas foi o foco dos estudos mais detalhados sobre a China. Semedo
também contribuiu com estes estudos, mas com o foco exclusivo nas análises dos Clássicos
Chineses, o que o aproxima do modelo de Bouvet; descreveu ainda o budismo, o taoismo, o
confucionismo e a função dos eunucos na composição da civilização chinesa. Quanto à língua
chinesa, afirmou ser das mais antigas, dentre as 71 no período de destruição da Torre de Babel,
e destacou o uso da língua corrente, chamada de guanhua (língua imperial ou língua oficial),
antes comentada por Ricci (MUNGELLO, 1989). Esta concepção originária da interpretação
religiosa da língua chinesa parece manter-se até a abordagem figurista, de Bouvet.
A religião não era o único propósito da expansão europeia, uma vez que se
buscava também o favorecimento comercial. Um possível problema para os ricos
comerciantes era o da insegurança em arriscar suas fortunas, empenhando-se na busca de
contato com outros povos considerados hostis e incultos para os padrões da Europa. Além
disso, o mercado interno já apresentava declínio, o que resultava em mais prejuízo. Outra
barreira encontrada pelos comerciantes na época era a autorização vinda do rei e da Igreja.

21
Semedo e Magalhães acreditavam que os clássicos atribuídos a Confúcio também continham vestígios que
indicavam a crença no Deus do Velho Testamento (MUNGELLO, 1989, p. 74).
22
Tomando a perspectiva de Mungello (1989), “proto-sinólogo” é todo estudioso, ou não, que se interessava
pelos assuntos da China, principalmente na Europa.
36

Nestas condições, era inevitável a dependência das informações produzidas pelas missões, já
que estas eram beneficiadas pelos recursos da coroa, tal como os propósitos religiosos. Os
resultados obtidos por meio desses contatos eram apreciados pelo comércio, e também
estimulavam os estudiosos, uma vez que auxiliavam nas descobertas científicas e tecnológicas.
No caso das descobertas sobre a China, as informações que chegavam à Europa atraiam a
atenção dos intelectuais, estimulando debates em diversas áreas do conhecimento,
principalmente, por conterem fatos distintos das concepções características do Ocidente e
conhecidas naquele período. Além da descrição sobre a língua chinesa e a religião, a
localização geográfica, os costumes, a cultura e a história da China fascinavam os europeus
do século XVII. Mas, esse material, em sua maioria, chegava influenciado pelas
interpretações dos missionários, o que comprometia os estudos científicos. Mesmo assim,
segundo Mungello (1989), as descrições eram bastante próximas da realidade chinesa.
De acordo com os relatos de Magalhães (1610-1677), em Nouvelle relation de la
Chine, os leitores da Europa receberam uma ideia básica da cultura chinesa e o contato com
alguns fundamentos da cronologia, por meio da obra Tabula chronologica monarchiae Sinicae
(1686), desse mesmo autor. Magalhães apoiava-se na opinião de que a China tinha milhares
de anos; que a maior parte da literatura chinesa havia sido escrita a partir de Fu Xi; e que a
China se originou no reinado de Yao (2357 a.C.), totalizando 4.025 anos de existência.
Defendia ainda que o cristianismo tinha sido barrado na China, motivo pelo qual os jesuítas
seguiram a cronologia Septuaginta 23 e não a cronologia vulgar 24 (MUNGELLO, 1989). A
construção da cronologia chinesa por Magalhães indica a tentativa de conciliar o período de
Fu Xi com a concepção bíblica de Noé e o grande Dilúvio, fato que demonstra uma
interpretação pré-figurista na China. O momento de transição que destaca o figurismo de
Bouvet dentro da expansão europeia foi a consideração e a filologia aplicadas pelo jesuíta aos
clássicos chineses, com foco na obra Clássico das Mutações (Yijing), de Fu Xi. A valorização
dos livros antigos chineses tem início com as traduções de autoria de Ricci, ampliadas,
particularmente, pelos apoiadores do método de acomodação, e se estende à análise de
estudiosos como Leibniz, que fortaleceu as convicções científicas, dando segurança e
aumentando as expectativas do meio acadêmico sobre as informações da China, estimulando,
assim, a expansão europeia para o conhecimento científico e tecnológico desse país, fato que
também favoreceu os assuntos diplomáticos e comerciais.

23
Segundo Mungello (1989, p. 126), na cronologia Septuaginta a “criação” é datada de aproximadamente 5200
a.C. e o Dilúvio, de cerca de 2957 a.C.
24
Segundo Mungello (1989, p. 125), a cronologia vulgar refere-se ao período exato de 4004 a.C. e a ocorrência
do Dilúvio, ao ano de 2349 a.C.
37

Martini foi um dos jesuítas que defendeu as missões na China e apoiou o método
de acomodação de Ricci. Suas contribuições deram-se nas áreas de geografia e história antiga
chinesas, – bastante aceitas pelos proto-sinólogos europeus, – por meio de seu Novus atlas
Sinensis (1655), publicado em Amsterdam. O contato de Martini com os sinólogos europeus
indica sua influência nas pesquisas da área, na época. Publicou ainda Sinicae historiae decas
prima (1655), e De bello tartarico, obra na qual relata a conquista manchu, considerada o
maior evento político da China, no século XVII. A atuação de Martini no meio acadêmico
europeu demonstra o favorecimento das missões para a formação da sinologia ocidental, já
que foi o primeiro a trazer para a Europa o chinês Cheng Ma-no (Emmanuel de Siqueira,
1633-1673), que por sua vez entrou para a Companhia de Jesus e estudou filosofia e teologia
no Collegium Romanum, retornando à China em 1671. Em Roma, Martini incentivou o
estabelecimento de uma rota terrestre com destino à China, a educação de jovens chineses,
além de defender a posição dos jesuítas sobre as controvérsias dos ritos chineses
(MUNGELLO, 1989).
No contexto de Martini, percebe-se a continuidade da proposta do método de
acomodação dos jesuítas e o favorecimento da expansão europeia, com a produção e a
circulação de materiais importantes para o conhecimento a respeito da China. Este período de
transição destaca o avanço da proto-sinologia, que discutia as diferentes concepções sobre a
China. Os primeiros missionários a apresentarem a cartografia chinesa foram Ruggieri e Ricci,
e a partir deles, a descrição do trajeto da China à Europa foi ampliada com os trabalhos de
Michael-Pierre Boym e Martini, parecendo todos derivados do Atlas da Extensão Territorial
(guang yutu), de Chu Siben (1273-1337) (MUNGELLO, 1989).
Com base nestes relatos, pode-se afirmar que a geografia chinesa conhecida na
Europa possuía certo desenvolvimento, devido aos interesses inicialmente compartilhados e
ao material produzido com intenso estudo comparado, além da base apoiada na tradição
chinesa, segundo Mungello (1989), e nas experiências das viagens no país.
Quanto ao aspecto da história da China, de acordo com Mungello (1989), a obra
Sinicae historiae decas prima res à gentis origine ad Christum natum in extrema Asia, sive
Magno Sinarum Imperio gestas complexa (As primeiras dez divisões da história dos chineses,
a partir da origem do povo pelo nascimento de Cristo, na Ásia, ou em torno do surgimento do
grande Império chinês), escrita por Martini (1658), buscou a reconciliação da China
tradicional com a cronologia da Bíblia. O autor deu ênfase à interpretação da escola
confuciana, com base no método de acomodação de Ricci. Neste caso, limitou-se a uma
leitura existente e ao ponto de vista religioso para construir a cronologia chinesa. O interesse
38

por uma descrição detalhada da cronologia, que se mantinha influenciada pela Bíblia, era
marcante na Europa do século XVII, embora essa questão já apresentasse as discussões sobre
a versão grega do Velho Testamento (MUNGELLO, 1989). O problema referente às
concepções cronológicas da história da China, a partir da perspectiva dos jesuítas (cronologia
Septuaginta versus cronologia vulgar), influenciou e causou controvérsias no entendimento de
uma apresentação puramente chinesa sobre o assunto, o que também limitou os estudos em
proto-sinologia da época.
A concepção de Fu Xi enquanto ancestral de Noé e aproximação do grande
Dilúvio ao fato de uma inundação, comentada pelos chineses, que ocorreu durante o reinado
de Yao (2357-2257 a.C), não apenas reforçou a interpretação dos religiosos ocidentais, como
também serviu de fundamentação para as futuras observações de Bouvet, em sua leitura
figurista. Para Martini (1614-1661), a invenção dos trigramas por Fu Xi foi um fato histórico,
e o Clássico das Mutações, de sua autoria, foi considerado o mais antigo da China. Além
disso, Fu Xi afirmou que a escrita existente nesta obra registra a primeira ciência da
matemática chinesa. A consideração da matemática do Clássico das Mutações por Martini e a
descrição inicial da filosofia chinesa antiga referente à origem de todas as coisas, por meio da
interpretação dos fundamentos do yin e yang e do hexagrama apresentado nessa obra, foi um
dos principais fatores de fascinação transmitidos aos europeus no século XVII, inicialmente
pela obra Sinicae historiae decas prima, de Martini (MUNGELLO, 1989). O modelo de
matemática chinesa antiga, apontado por Martini (1614-1661), certamente influenciou a
leitura de Bouvet (1656-1730), que fez uma análise mais detalhada sobre a referida obra e
recebeu o apoio decisivo de Leibniz para as suas comprovações, – fato que apontamos como o
momento de transição dos estudos sobre a China de base religiosa para as considerações de
características científicas, e que definiu o avanço da proto-sinologia, ainda dependente das
produções filológicas dos jesuítas na China.
A expansão europeia na China, frequentemente dependente das informações
enviadas pelos jesuítas, recebeu mais atenção a partir dos dados que satisfaziam os interesses
dos intelectuais. No século XVII, em meio às discussões acadêmicas, surgiu o interesse em
encontrar um idioma universal e as descrições sobre a língua chinesa apontavam-na como
concorrente principal. Os proto-sinólogos eram constantemente influenciados pelas
observações dos jesuítas, com relação ao pressuposto de que Fu Xi foi descendente de Noé e
criador dos caracteres chineses, tendo como matriz os hexagramas do Clássico das Mutações.
Martini (1614-1661), indicou certas semelhanças entre os caracteres chineses e os hieróglifos
egípcios, e juntamente com Kircher, – autor de China illustrata (1667), e que analisou um
39

grande número de informações sobre a língua e cultura chinesas, – contribuiu para a


divulgação desta mescla interpretativa na Europa (MUNGELLO, 1989).
Kircher, segundo Mungello (1989), foi um proto-sinólogo e missionário, cuja
concepção religiosa sobre sinologia influenciou os estudos sobre a China na Europa. Pode-se
afirmar que, para Kircher, a sinologia não se limitava aos intelectuais e curiosos europeus que
viam a China como objeto de estudos, mas estendia-se também aos missionários interessados
em aprofundar-se no assunto. Mungello (1989, p. 135) esclarece a esse respeito que:

The dimensions and scope of China illustrata were ambitious, particularly


given the extent of European knowledge of China in 1667. There has been a
great deal of confusion about authorship, even though Fr. Kircher did
mention a number of people, primarily Jesuits, as sources. Late seventeenth-
century scholarship would be considered careless by today's standards of
crediting authors. We can best begin to sort out the authorship question by
noting that Fr. Kircher, like so many of the proto-sinologists of Europe,
knew very little about China. Yet the works which authors such as Kircher,
Andreas Müller, Christian Mentzel and others wrote contain material whose
accuracy far exceeded their level of knowledge. This is because these proto-
sinologists had knowledgeable sources who can be identified as China
missionaries - primarily, but not exclusively, of the Society of Jesus. (The
proto-sinologists can be distinguished from the missionaries most simply by
the fact that almost none of the former set foot in China while nearly all of
the latter did.)
What this situation amounted to is that the proto-sinologists were primarily
compilers and editors of reports – both oral and written – which originated
with the China missionaries. The essentially editorial and journalistic nature
of much of proto-sinology led to some contradictory results which, in the
case of Kircher, are particularly apparent.

Ao que se refere à sinologia, é importante destacar aqui a definição de proto-


sinologistas ou proto-sinólogos, dada por Mungello (1989), a saber, que se trata de
compiladores e editores de informações orais e escritas originárias das missões na China,
levando em consideração que, em sua maioria, nunca tinham feito qualquer contato direto
com essa nação. Esta definição indica que, para o autor, existe diferença entre missionários e
proto-sinólogos, o que comprova que o objetivo das missões na China não era criar essa área
de estudos, e ainda que a circulação de materiais e informações produzidas pelos jesuítas
levaram à definição de sinologia. Tais estudos tiveram maior relevância no meio acadêmico,
mas também atingiram leigos, que produziram relatos com base no que puderam coletar. A
combinação de todos esses fatores contribuiu de certa forma para a expansão da Europa, visto
que o conhecimento adquirido favorecia o comércio de especiarias, a obtenção de tecnologia e
o intercâmbio cultural e econômico.
40

Kircher (1602-1680), propagou informações a respeito das acomodações


missionárias realizadas na China, embora seu trabalho tenha sido dominado pelo
hermetismo 25 europeu (MUNGELLO, 1989). A abordagem hermética de Kircher, na
perspectiva de Mungello (1989), parece ter servido de modelo de análise interpretativa às
culturas pagãs, aplicando-se também à comparação das religiões chinesas com as egípcias e
gregas. O método de Kircher fundamentou-se nas informações sobre a China vindas de
Martini e Ricci, que acreditavam que a cultura chinesa poderia misturar-se ao cristianismo,
mas dentro de uma base similar ao hermetismo. Kircher rompeu com as interpretações de
acomodação e juntou as informações na perspectiva do hermetismo, dando mais ênfase a este.
A questão do hermetismo com a acomodação continuou ainda a ser difundida pelos
missionários conhecidos como figuristas (MUNGELLO, 1989). Observando-se a relação
entre hermetismo e acomodação, apresentada por Mungello (1989), e analisando Bouvet e sua
leitura figurista do Clássico das Mutações, tem-se o diálogo das interpretações atribuídas aos
autores no século XVII. As explicações de Kircher apontam sua crença em um princípio
universal, que tem relação com o interesse – em ascensão no período – na busca de uma
língua universal. A análise de Kircher sobre a língua chinesa mantém-se de acordo com o
modelo pelo qual foi concebida por Fu Xi, isto é, uma interpretação típica do figurismo de
Bouvet. O Clássico das Mutações também é inserido por Kircher na cronologia baseada na
Bíblia.
A interpretação dos hexagramas, no Clássico das Mutações, como um modelo de
matemática chinesa antiga pode ser apontado como um momento de transição, que progride
com a filologia de Bouvet e sua experiência com a matemática, e que se comprova por meio
das comparações e dos argumentos de Leibniz e seu sistema binário. Tal progresso deve-se
ainda ao momento de expansão europeia, já que envolve o intercâmbio diplomático entre a
China do Império de Kang Xi e a França do Rei Luís XIV. A proto-sinologia, no âmbito
intelectual europeu, envolveu cientistas, como Francis Bacon, John Webb, Kircher, Andreas
Müller, Christian Mentzel e Gottfried Leibniz, que tinham interesse nas pesquisas pela língua
universal, que por sua vez envolvia a língua chinesa. O limite de conhecimento e contato
direto com a China impediu o êxito na aplicação das teorias linguísticas mais avançadas, que
proporcionariam um estudo mais adequado da sinologia a esses estudiosos. Em Berlim, houve
um movimento para o desenvolvimento de uma clavis sinica (chave do chinês) com a

25
Hermetismo significa a mistura de uma filosofia pagã com a cristã. Seu conceito está relacionado à origem de
Hermes Trismegisto, um quase cristão que foi capaz de estabelecer a ponte entre a filosofia pagã e o
cristianismo. O hermetismo de Kircher destaca-se por sua fascinação pelos hieróglifos egípcios (MUNGELLO,
1989).
41

proposta de simplificar e acelerar o aprendizado da língua chinesa, cujos maiores interessados


foram Leibniz e Adam Kochanski (MUNGELLO, 1989).
Muitos cientistas se interessaram pela língua chinesa enquanto modelo de língua
universal, mas nosso foco é o contato entre Joachim Bouvet e Leibniz. A discussão de ambos
sobre o assunto envolve duas questões principais para as considerações de uma língua
universal: a religiosa, no caso de Bouvet, voltada para a língua chinesa no contexto da origem
bíblica e o caso da Torre de Babel; e a científica, da parte de Leibniz, que por meio de debates
no meio acadêmico europeu, concentra-se na busca de uma língua universal que contenha
elementos fundamentais do ato de comunicação humana.
Leibniz menciona o sistema, por meio do termo combinatoriam characteristicam
(característica combinatória), em uma carta de 1675 a Henry Oldenburg – secretário da Royal
Society, em Londres – e sugere que uma linguagem filosófica seria capaz de facilitar a
comunicação e apresentar a verdade, da mesma forma que a matemática e geometria. Seu
método combina uma característica universal e a noção de linguagem, por meio do cálculo.
Tal característica universal resume-se em reduzir todo o conhecimento em ideias simples,
como ocorre com o “alfabeto do pensamento humano” (MUNGELLO, 1989).
O plano de Leibniz é apresentado por Mungello (1989, p. 192), da seguinte
maneira:

If we had some exact language (like the one called Adamitic by some) or at
least a kind of truly philosophic writting, in which the ideas were reduced to
a kind of alphabet of human thought, then all that follows rationally from
what is given could be found by a kind of calculus, Just as arithmetical or
geometrical problems are solved.
Such a language would amount to a Cabala of mystic vocables or to the
Arithmetic of Pythagorean numbers or to the Characteristic language of
magi, that is, of the wise.
I suspected something of such a great Discovery when I was still a boy, and I
inserted a description of it in the little book on the Combinatory Art which I
published in my adolescence.
I can demonstrate with geometrical rigor that such a language is possible,
indeed that its foundation can be easily laid within a few years by a number
of cooperating scholars.

O propósito de Leibniz aliado às informações compartilhadas por Bouvet sobre a


China, nas correspondências entre ambos, estimulou tanto o desenvolvimento da proto-
sinologia, quanto as discussões sobre intercâmbios entre chineses e europeus. Bouvet (1656-
1730) contribuiu com seu estudo filológico do Clássico das Mutações e com as informações
apresentadas sobre os hexagramas a Leibniz, em suas cartas. Possuía posição privilegiada,
42

enquanto um dos “matemáticos do rei”, além de sua aproximação com o Imperador Kang Xi,
enquanto instrutor da concepção de matemática ocidental e intermediador dos interesses entre
França e China.
Os objetivos da expansão europeia são reforçados com os resultados das
investigações apresentados por Bouvet e Leibniz, já que nesse período (século XVII) houve
um crescente interesse dos estudiosos europeus pela literatura chinesa (como se pode notar
pelo volume de traduções de livros chineses pelos missionários enviados a Europa), além da
busca de mais informações sobre a cultura desse povo. Tal valorização dos estudos sobre a
China favoreceu a sinologia, de maneira geral. O aspecto pontual dos assuntos envolvendo as
Controvérsias dos Ritos, os padrões linguísticos do chinês e seu conhecimento filosófico,
enfatizados no século XIX com as discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat (1821-1831), e
o interesse em instruir grupos de chineses sobre a cultura e os costumes europeus demonstram
os efeitos dos propósitos de expansão europeia na China. Mesmo com os problemas que
surgiram junto desses assuntos, os debates no meio acadêmico podem ser indicados como
momentos de transição para o avanço da sinologia ocidental.
Para a sinologia comparada, o fato de as interpretações sobre a cultura chinesa
terem vindo do contexto religioso não se torna um problema no desenvolvimento dos estudos
sobre a China, pois, considerando as necessidades da época, não haveria melhor caminho para
o crescimento dos interesses e do acesso ao conhecimento sobre a China. O método
empregado pelos missionários, como Bouvet, é idêntico ao da sinologia chinesa de Wang Li,
uma vez que se apoia na filologia. A interpretação figurista do material coletado e descrito
pelos missionários poderia caracterizar-se como elemento de atraso das investigações mais
neutras dessas concepções, já que visam à introdução de uma perspectiva particular de mundo
em outra cultura. Leibniz, no entanto, a partir da observação científica e do estudo comparado
com a matemática, em suas análises dos hexagramas, aponta o contrário. Tal fato torna-o, a
nosso ver, um sinólogo, na perspectiva de Wang Li, já que se utilizou das informações
produzidas por Bouvet em suas análises sobre a língua chinesa. Não consideramos, neste
aspecto, a qualidade do material desenvolvido por Bouvet, que comprometeu o resultado do
mesmo com o figurismo. O que ressaltamos, no entanto, é o uso feito por Leibniz da
ferramenta filológica em seus estudos sobre a China.
Na concepção de Mungello (1989), Leibniz foi o cientista que mais reuniu
conhecimento sobre a China sem nunca ter estado lá, o que o caracteriza como proto-sinólogo.
Devido ao seu reconhecimento enquanto cientista e aos diversos trabalhos sobre a área, foi
fundamental para a expansão europeia na China.
43

1.2 O método de acomodação de Matteo Ricci

O propósito da Companhia de Jesus de penetrar o território chinês remonta às


missões jesuítas realizadas no período da dinastia Ming (1368-1644). Tendo em vista que
neste período ocorreram transformações importantes nas metodologias de contato com a
China, Alessandro Valignano (inspirado pelos interesses de São Francisco Xavier), destaca-se
como pioneiro no planejamento do processo de evangelização por meio de um ajustamento
cultural, ao enviar Michele Ruggieri e Matteo Ricci, em meados do século XVI, para
implementar o método de aprendizagem da língua e cultura chinesas. Este período marca o
surgimento de um modelo de estudo sobre a China, mais restrito aos interesses de expansão
religiosa, considerando que no império Yuan (1279-1368) grupos, como os de Marco Polo, já
haviam realizado contato com esse povo, mas sem o interesse significativo de um estudo
detalhado sobre os chineses que fosse além do comércio de mercadorias.
Ruggieri e Ricci deram início ao aprendizado de ferramentas facilitadoras do
contato com a China, como a língua e a cultura, apoiados no objetivo de introduzir a religião
cristã no país. Destaca-se, o método empregado pelos missionários (WITEK, 2001) de
procurarem vestir-se e comportar-se como os chineses, além de buscarem o aprendizado com
professores e mestres indicados por eles, além do método de acomodação dos jesuítas na
China, formulado por Ricci, missionário da Companhia de Jesus, matemático e astrônomo.
Tal método considerava, assim, o comportamento do outro como base de contato. A obra De
Christiana expeditione apud Sinas (1615), de Matteo Ricci e Nicholas Trigault, foi a primeira
a transmitir o método de acomodação de Ricci ao maior número de leitores europeus. Trigault
foi o responsável pela divulgação dos resultados das missões na Europa.
O método de acomodação consistia na assimilação do máximo de conhecimento
sobre a China, por meio do domínio da língua e da cultura, o que não era suficiente para uma
efetiva aproximação. Um dos pontos fundamentais deste método foi a busca pela
compreensão das informações básicas referentes à geografia, à tecnologia e à cultura da
China, objeto de interesse da Europa, que desde Marco Polo possuía dados incorretos sobre
esse país. Ricci buscou combinar seu método com a percepção confuciana da natureza,
contudo, para os cristãos, Confúcio era considerado pagão, o que tornava essa aproximação
perigosa. Uma das diferenças entre o cristianismo e o confucionismo, que dificultava a
compreensão dos chineses sobre os contatos dos missionários, era a posição de Deus enquanto
44

entidade superior à família (MUNGELLO, 1989), já que, para Confúcio, honrar e respeitar os
pais era considerado um dos principais ensinamentos. Ricci buscou evitar comparações entre
Confúcio e Jesus, apresentando o primeiro como filósofo para os antigos chineses e
destacando sua condição de mortal. Também traduziu e comentou os quatro clássicos da
literatura chinesa referentes a Confúcio, e suas observações serviram de base para o
26
neoconfucionismo , porém não foram suficientes para uma aproximação entre o
confucionismo e o cristianismo (MUNGELLO, 1989).
O neoconfucionismo dividia-se em duas vertentes: uma, com base na noção de li
(princípio) e descrita como racionalista, também conhecida como “neoconfucionismo de
Ch’eng-Chu”, outra, cuja busca era o desenvolvimento interior considerado como forma de
idealismo filosófico, também denominada “neoconfucionismo de Lu-Wang”. Ricci (1603)
interessou-se pela escola de Ch’eng-Chu, que considerava a cosmologia mais taoista do que
budista, tendo-a citado em sua obra (RICCI, 1603, p. 20a-21a, apud MUNGELLO, 1989, p.
60). Para ele Deus transcende o mundo, por isso não aceitou o conceito de taiji (supremo,
Deus) como apresentado no neoconfucionismo de Ch’eng-Chu, e enfatizou a ideia de qi
(traduzida, em Mungello (1989), como “matéria-energia”) como complemento de li
(princípio). Questiona o assunto, da seguinte maneira: “you say that li (principle)
encompasses the spirit of the myriad things and transforms and generates the myriad things.
This is really T’ien-chu (Lord of Heaven; God). How can you refer to this li as merely T’ai-
chi? (RICCI, 1603, p. 14b. apud MUNGELLO, 1989, p. 60-62)”.
O que Ricci apresentou na discussão referente ao significado dos termos que
apontavam equivalência com Deus foi retomado por Longobardi (1716, apud FLORENTINO
NETO, 2016, p. 103-153) nas querelas dos ritos e, no final da dinastia Ming, a proposta era
conciliar o neoconfucionismo com o cristianismo, o que também constava do seu método de
acomodação. Ao sintetizar o confucionismo e o catolicismo, Ricci percebeu que o
confucionismo propagava o bom governo e o bem-estar do Império, buscando a ordem e a paz
social, além de cultivar a moral dos indivíduos e a estabilidade econômica da família.
Encontrou semelhanças entre os preceitos do confucionismo e do cristianismo, mas também
notou as diferenças, como no caso do confucionismo, em que eram permitidas a poligamia, a
negligência do celibato e a tolerância a outras religiões. Em síntese, de acordo com Ricci
(1615), o confucionismo foi construído com base na reinterpretação dos clássicos e dos textos

26
O termo “neoconfucionismo” é de origem europeia e apareceu no período de Song, na China, derivado de uma
frase da reforma de Confúcio, que se refere ao termo daotong (transmissão do caminho da verdade)
(MUNGELLO, 1989).
45

antigos, na tentativa de revelar as relações entre o antigo confucionismo e o cristianismo, para


confirmar o monoteísmo dos chineses (RICCI-TRIGAUT, 1615, p. 109, apud MUNGELLO,
1989, p. 62-63).
É possível destacar, no contexto de Ricci, um modelo de perspectiva bastante
característico das missões jesuítas, denominado figurismo por Bouvet. Este missionário
contribuiu com o método de acomodação de Ricci, aproveitando-se de sua proximidade com o
Imperador Kang Xi, – interessado na ciência e na matemática ocidentais –, e concentrando-se
nos antigos clássicos chineses, que acreditava conterem revelações sobre o cristianismo
original. Dessa forma, modificou o método de Ricci, considerando a ancestralidade da
tradição confuciana e, particularmente, o estudo do Clássico das Mutações, no qual buscou
aspectos da teologia antiga. O figurismo de Bouvet serviu, assim, para melhorar o método de
acomodação de Ricci.
O confucionismo de Ricci contribuiu para a integridade social e moral, e o
cristianismo atuou na integridade espiritual. Enquanto Ricci valorizou os elementos dos ritos
ancestrais de Confúcio, comparando-os ao cristianismo, Bouvet destacou a língua escrita e
falada dos antigos como pertencentes ao próprio Enoque, – ancestral de Noé –, apontando
com sua leitura figurista do Clássico das Mutações as bases da religião universal cristã, na
China antiga. Ricci sustentou a ideia de que os rituais anuais aos mortos tinham como
objetivo principal ensinar as crianças e jovens a honrar seus pais. Segundo ele, o costume de
deixar oferendas de comidas nos túmulos poderia ser substituído pela doação da alma aos
pobres, para a salvação, no caso dos chineses convertidos. Sua síntese foi criada para a elite
educada e culta e a aplicação e aceitação desta pelo povo poderia ser problemática
(MUNGELLO, 1989).
Segundo Mungello (1989), Ricci optou pelo confucionismo em detrimento do
budismo ou do taoismo para aproximar-se do cristianismo, pois não percebia o budismo como
algo desenvolvido pela lei natural e que possuía a mesma regra moral do cristianismo, mesmo
destacando semelhanças entre ambos na questão da espiritualidade. Ricci defendia que os
elementos do budismo, semelhantes ao cristianismo, foram introduzidos pelos filósofos
ocidentais e pelo próprio cristianismo, tendo sido interpretados de forma errada
(MUNGELLO, 1989). Ricci (1615) não faz referência a Buda enquanto fundador religioso,
mas concebe suas várias encarnações como fundadoras do budismo, e afirma que essas
morreram antes de chegar à China, parecendo ter fundido a história de Sakyamuni27 (morto no

27
Sakyamuni Buddha ou Amitabha Buddha foi o Buda do paraíso Ocidental (MUNGELLO, 1989, p. 68).
46

século V a.C.) com as várias encarnações de Buda (RICCI-TRIGAUT, 1615, p. 109, apud
MUNGELLO, 1989, p. 68-69). Na perspectiva de Ricci, o budismo era frequentemente
apresentado como doutrina secundária e com inversões de interpretação, que favoreciam a
perspectiva cristã. No momento em que Ricci fez contato com os letrados chineses, já existia
uma retórica antibudista por parte dos confucionistas, pela qual parece ter sido influenciado
(MUNGELLO, 1989).
De acordo com o método de acomodação de Ricci, o que se destaca em relação ao
taoismo e ao budismo é a tendência geral dos missionários cristãos da época a considerar
todas as religiões não judaico-cristãs como uma única categoria pagã. Tal fato também
ocorreu na China com o sincretismo budista e taoista, no período Ming. Para Ricci (1615), o
taoismo origina-se com Laozi, contemporâneo de Confúcio e que não havia deixado escritos
(RICCI-TRIGAUT, 1615, p. 112, apud MUNGELLO, 1989, p. 70). O missionário parece não
ter tido contato com o Clássico da Virtude e do Tao (Daodejing) e nem mesmo com o
Zhuangzi, escrito no século IV pelo filósofo de mesmo nome. Além disso, não demonstrava
conhecer a corrente filosófica do taoismo, já que registrou apenas os aspectos religiosos deste
sistema (MUNGELLO, 1989).
Mungello (1989) afirma que a falta de familiaridade com a corrente filosófica
taoista, baseada em Laozi e Zhuangzi, deve-se ao fato de Ricci enxergar a alquimia chinesa
como obstáculo para a sua síntese. O autor aponta ainda o fato de Ricci apresentar a questão
da alquimia como uma obsessão incurável da sociedade chinesa, comparada a uma doença
mental ou espiritual. Além disso, o tema da imortalidade referida pelos taoistas poderia entrar
em conflito com a imortalidade defendida pela religião cristã. Ricci destaca também o total
envolvimento e possibilidade de harmonia entre as duas doutrinas (MUNGELLO, 1989).
Os limites de compreensão e distanciamento de Ricci com a filosofia taoista
podem ter atrasado o desenvolvimento da sinologia na Europa, devido à dependência de
informações vindas das missões, que passavam pela avaliação religiosa e que não possuíam
permissão de neutralidade. Mesmo com os limites apresentados na forma de conduzir o
método de acomodação, Mungello (1989) afirma que Ricci foi mais flexível com as
considerações feitas pelos chineses no período, muitas vezes descritos como presunçosos e de
cultura superior, por apresentarem a China como “Império do meio”, isto é, como o país do
centro do mundo.
De maneira geral, o método de acomodação de Ricci seguiu os propósitos das
missões, visto que a regra imposta por Roma era a seguinte:
47

In 1659 Propaganda instructed missionaries that they shoud adapt


Christianity to the indigenous cultures of foreign people rather than
imposing European manners and customs. Native cultures were to be
changed only when they contradicted the Christian religion and morality.
(Controversy would later arise not over the principle, but over its
application). Propaganda laid great emphasis upon developing indigenous
clergy as well as introducing more secular clergy to balance off the members
of religious orders (MUNGELLO, 1989, p. 24).

Considerando a data citada, o método de acomodação de Ricci parece ter servido


de base para as regras de aproximação posteriores. Esta afirmação comprova-se não apenas
pela proximidade das regras adotadas por Roma, mas também pelos apoiadores do método de
acomodação, tais como demonstram os trabalhos de Semedo (1586-1658), Magalhães (1610-
1677), Martini (1614-1661), Kircher (1602-1680), Bouvet (1656-1730), e até mesmo pelo
apoio de Leibniz, que não era missionário, mas defendeu os trabalhos dos jesuítas na China
no âmbito acadêmico europeu, afirmando sua posição como proto-sinólogo (MUNGELLO,
1989).
O fato de Ricci ter-se apoiado nos letrados confucionistas para a elaboração de seu
método de acomodação pode ser analisado positivamente, no sentido de ter-se envolvido em
um ambiente linguístico e culto, o que facilitou seu acesso aos clássicos chineses antigos,
além de ter estabelecido contato com o próprio império chinês. Sua proposta de introduzir o
cristianismo aos letrados parece ter criado um importante foco metodológico. A síntese entre
confucionismo e catolicismo, de Ricci, foi aplicada em um período de sincretismo na China
(final do século XVI), cujas principais seitas eram o confucionismo, o budismo e o taoismo,
em seguida, o neoconfucionismo. Após a morte de Ricci, sua síntese continuou atuando por
várias gerações na união das culturas chinesa e europeia (MUNGELLO, 1989). Construir a
imagem de um Confúcio cristão foi muito arriscado para os planos de Ricci, mas ele não
desejava fazer o mesmo nem com o budismo e nem com o taoismo. Segundo Mungello
(1989), a proposta humanista de Ricci poderia ter sido mais bem aceita no budismo, se ele não
tivesse assumido uma posição antibudista.
Ricci concebia o budismo como uma construção por empréstimo de elementos da
filosofia ocidental e do cristianismo. Alguns sinólogos modernos, como Otto Franke e Jacques
Gernet, dentre outros, apontaram as vantagens que Ricci poderia ter conseguido para o seu
método de acomodação com a aproximação entre o cristianismo e o budismo, pois acreditam
que esta crença possui características próprias, equivalentes à religião cristã.
Na época de Ricci, o sistema governamental da China era composto pelas forças
militares e pelos letrados, por isso o método de acomodação de Ricci foi a melhor estratégia
48

para aproximar-se dos letrados, a fim de torná-los cristãos, e conquistar a confiança do


Imperador Ming. Ricci descreveu o sistema de governo chinês como não agressivo e
enfatizou a imagem de um país administrado por filósofos, ou seja, pelos estudiosos oficiais.
Sua perspectiva foi muito apreciada pelos letrados europeus, ainda que o Imperador Wang Li
tenha eliminado os contatos dos jesuítas com estes, mantendo a intermediação apenas por
meio dos eunucos. O próprio Imperador nunca participava das audiências gerais
(MUNGELLO, 1989).
De acordo com registros históricos, os eunucos juravam lealdade ao Imperador, e
os letrados seguiam primeiramente os ensinamentos de Confúcio. Os letrados juravam
lealdade ao Imperador enquanto chefe teórico do sistema ideológico de Confúcio. Neste
contexto, existia certa facilidade de aproximação de Ricci ao Império, e também a fragilidade
do sistema, devido aos inúmeros eunucos corruptos que contribuíram para a queda do Império
Ming (MUNGELLO, 1989). O método de acomodação de Ricci parece ter travado contato
indireto com a corte imperial, considerando os relatos anteriores. Neste caso, ele
possivelmente buscou adaptar-se às condições favoráveis, assumindo também a retórica
antibudista dos confucionistas. Já o taoismo mostrou-se prejudicial para o método de
acomodação, pois a alquimia e a questão da imortalidade tendo atraído o interesse dos
letrados, fez com que muitos chineses acreditassem que os próprios jesuítas possuíssem tais
habilidades. A possibilidade de desenvolvimento da sinologia com os estudos mais detalhados
da alquimia chinesa, na época de Ricci, indica a oposição dos missionários em focar nesse
tipo de estudos, ou seja, não havia a possibilidade da criação de uma área de estudos
avançados sobre a China (MUNGELLO, 1989).
Segundo Mungello (1989), o auge do método de acomodação de Ricci foi a
produção da obra Confucius Sinarum Philosophus (1687), composta pela tradução e
comentário de três dos quatro livros de Confúcio, e que apresentava a influência da
Companhia de Jesus sob os noviços, incentivados a cumprir uma missão considerada divina,
devido às possibilidades de perigo e dificuldades a serem enfrentadas (RICCI, 1687, apud
MUNGELLO, 1989, p. 247). O Confucius Sinarum Philosophus serviu como um meio de
propagação das missões e informações referentes à sociedade, à língua e à cultura chinesas
para a Europa do século XVII – período de destaque para as Controvérsias dos Ritos, obra
que compartilha do mesmo tema. Este trabalho representou a continuação do método de
acomodação de Ricci.
É fundamental compreender que, no final da dinastia Ming, havia um sincretismo
cultural, tido como responsável pela queda da mesma. A síntese do confucionismo e do
49

catolicismo, formulada por Ricci, participou da adaptação ao novo Império de Qing, que
defendia uma cultura mais rígida bem como o confucionismo ortodoxo. No momento em que
os letrados do Império Ming, que serviram de rede de contato para Ricci, foram afastados, o
método de acomodação foi compartilhado com Bouvet, ressaltando a crença de que os
chineses antigos eram monoteístas, a rejeição do neoconfucionismo enquanto distorção da
filosofia original chinesa e a definição da conversão da classe letrada. O método de Bouvet,
no entanto, ignorou este último. A diferença entre os métodos dos dois missionários foi o foco
de Ricci nos Quatro Clássicos confucianos, apresentado no Confucius Sinarum Philosophus
pela moralidade e posição social dos letrados, enquanto Bouvet se concentrou nos clássicos
chineses antigos, principalmente, o Clássico das Mutações. Para ele, a obra poderia apontar
aproximações entre a China e a Europa, pela similaridade entre a filosofia chinesa e o
cristianismo, além de favorecer a compreensão da política do Imperador Kang Xi
(MUNGELLO, 1989). A aproximação ao Imperador Kang Xi foi uma forma de concretizar os
planos de Bouvet.
A abordagem da obra Confucius Sinarum Philosophus (RICCI, 1687, apud
MUNGELLO, 1989) durante a acomodação missionária foi uma tentativa de construir certa
simpatia entre os chineses antigos e a tradição de Confúcio, e foi esse o motivo da escolha dos
Clássicos para a tradução e interpretação pelos missionários. A preservação das tradições
culturais chinesas e a aproximação destas com a tradição judaico-cristã serviram para
apresentar uma ligação histórica para a cultura contemporânea europeia. As missões jesuítas
consideraram pouco favorável uma perspectiva interpretativa envolvendo o taoismo e o
budismo, tratando-os de modo superficial. Mungello (1989) apresenta o contexto histórico da
referida obra e relata o processo de produção e editoração, mas o que nos interessa é o
momento de transição da sinologia, pelo qual a obra se destaca enquanto influência na
formação da área de estudos sobre a China. O papel do Confucius Sinarum Philosophus
(RICCI, 1687, apud MUNGELLO, 1989) para a sinologia ocidental foi o de material
transmissor de informações sobre a China aos europeus, com a interpretação dos missionários.
Destacamos, nesta pesquisa, o contato de Leibniz com esta obra. Em carta a
Landgrave (dezembro de 1687), o proto-sinólogo apresenta seu interesse pelo Analectos
(CONFÚCIO, 551-479 a.C) e pela Tabula chronologica (MAGALHÃES, 1686), indicando a
possível aceitação da cronologia chinesa pelos europeus, por conterem semelhanças com a
cronologia Septuaginta reveladas por Fu Xi e pelo primeiro Imperador chinês Huang Di,
antecessores do grande Dilúvio da Bíblia. Em uma de suas correspondências com Bouvet
(1703?), Leibniz comenta sobre certas distinções entre os diagramas do Confucius Sinarum
50

Philosophus e do Clássico das Mutações (MUNGELLO, 1989). O fato é que o Confucius


Sinarum Philosophus foi frequentemente citado na Europa, influenciando os estudiosos, como
Leibniz. Este material transmitiu as distorções interpretativas dos missionários, ou a visão
inicial do que se caracterizou mais tarde como figurismo, por Bouvet. O objetivo da proposta
de publicação deste livro na Europa foi suscitar debates em defesa das missões jesuítas na
China, aproximando não só os intelectuais ao assunto das acomodações jesuítas, mas também
os interesses do Papa a respeito. Mas, as Controvérsias dos Ritos também foram propagadas
na Europa, e criando discordâncias entre os apoiadores e os opositores das acomodações
missionárias na China (MUNGELLO, 1989). Dentre os defensores do método de acomodação
de Ricci estão Bouvet e Leibniz, duas figuras relevantes no momento de transição da
sinologia ocidental.
A fim de atender aos interesses políticos de uma nação moderna e de aumentar a
influência francesa sobre o monopólio do padroado eclesiástico de Portugal, que se
encontrava enfraquecido, o rei Luís XIV decidiu incentivar o desenvolvimento da Academia
de Ciências juntamente às missões religiosas. Foi escolhido um grupo de seis jovens jesuítas
com habilidades científicas para servir o propósito do rei da França, do qual faziam parte Jean
de Fontaney (1643-1710), Joaquim Bouvet (1656-1730), Jean-François Gerbillon (1647-
1707), Louis-Daniel Le Comte (1655-1728), Guy Tachard (1648-1712) e Claude de Visdelou
(1656-1737) – todos membros do Collège Louis le Grand (MUNGELLO, 1989). Neste
contexto, o método de acomodação de Ricci serviu de importante instrumento para as
aproximações, mas também recebeu apontamentos de falhas. No ano de 1664, o T’ien-hsüeh
ch’uan-kai (Sumário da Propagação dos Ensinamentos Celestiais)28 afirmava, com base na
acomodação de Ricci, que os chineses tinham o sangue dos descendentes bíblicos, mas Ricci
apenas comentou que os chineses eram pagãos virtuosos, cuja moralidade tinham conquistado
através da religião natural (MUNGELLO, 1989). Estas e outras distorções, compartilhadas na
China pelos missionários, geraram sérias discussões até as correspondências trocadas entre
Bouvet e Leibniz, em que, de um lado, notava-se a concepção figurista e, de outro, os
apontamentos científicos. Tanto Bouvet quanto Leibniz defenderam plenamente os métodos
de acomodação de Ricci, contribuindo, assim, para seu aperfeiçoamento e propagação.
Segundo Mungello (1989), mesmo com as tentativas de implementar o método de
acomodação de Ricci com o apoio das modificações de Bouvet, o processo foi rejeitado,
especialmente, pelo Papa. Não apenas a estratégia de Ricci foi negada, mas a de aproximação

28
Tratado redigido por Li Tsu-po (1664) e citado por Mungello (1989), com o título traduzido para o inglês
como A summary of the spread of the Heavenly Teaching (MUNGELLO, 1989, p. 74).
51

intelectual também fracassou. Para Mungello (1989), o que faltou foi um grau de paridade
entre as culturas. Acreditamos que tenha faltado maior flexibilidade no método da Europa, e
que Ricci, ainda que tenha entendido as necessidades da diplomacia, manteve-se focado na
missão e no que ela representava no contexto chinês. Bouvet seguiu o exemplo de Ricci e
tentou mudar o foco nos estudos sobre a China, porém sem perder de vista a concepção
figurista e distante da realidade daquela civilização. Mungello (1989, p. 358) é claro ao
apresentar em sua conclusão uma síntese do que consideramos os limites dos contatos com a
China do século XVII:

Chinese culture was integrated into Biblical experience through its history
(the postulation of common experiences such as in identifying Yao’s flood
with the Noadic flood and the general reconciliation of traditional Chinese
chronology with Septuagint chronology), through its language (disperson of
Tongues at Babel and of structural elements common to Chinese and
European languages) and through its people (common descent of Chinese
and Europeans via Biblical figures Adam, Noah (Yao) and Ham). Jesuit
accommodation also worked among the Chinese to integrate the European
experience into traditional Chinese culture, though with limited success.
When the Chinese studied European learning, it was primarily for utilitarian
reasons.

A proposta de aproximação entre as culturas foi muito válida e, segundo Mungello


(1989), contribuiu para influenciar os proto-sinólogos do século XVII, despertando maior
interesse e resultando em estudos consideráveis produzidos pelos sinólogos modernos. Assim,
o método de Ricci envolveu a acomodação dos jesuítas, que por sua vez influenciou a
sinologia moderna. Concordamos com esta opinião, no que diz respeito ao método de contato
e ao contexto histórico ao qual pertence, considerando as necessidades da época. Contudo, se
considerarmos o contexto dos interesses acadêmicos sobre a China e, mais especificamente, o
método de Leibniz, em relação ao tratamento dado às informações coletadas, destaca-se sua
atuação no processo de transição da busca por construir a realidade chinesa, que parte das
interpretações religiosas ao caráter científico e neutro de perspectivas preconcebidas, com
foco nas comprovações dos fatos e comparações das informações. Tal fato marca a proto-
sinologia ocidental da época, limitada não pelo método de pesquisa, mas pela falta de um
estudo filológico menos influenciado pelo figurismo, que comprometeu seu avanço para a
sinologia.

1.3 O figurismo de Joachim Bouvet


52

Joachim Bouvet – matemático e erudito da Companhia de Jesus – teve grande


aproximação com o império de Kang Xi, o que pode ter contribuído para a estabilidade dos
contatos entre as missões jesuítas e a China, do período. Como podemos notar, Bouvet tornou
acessível e fortaleceu o contato com os chineses, estimulando os europeus a enviarem cerca
de 300 livros chineses à Europa, o que aponta o crescente interesse pelo conhecimento da
literatura deste povo no mundo ocidental. Esta aproximação destacou-se também entre a
China e a França, com o apoio do rei Luís XIV, o que indica uma relação de caráter
diplomático. Além disso, Bouvet desenvolveu um importante estudo ao descrever os traços
físicos e comportamentais dos chineses com os quais teve contato, destacando principalmente
suas habilidades artísticas e sua devoção a um imperador. Tal estudo evidencia a tentativa de
aprofundar-se no conhecimento de determinadas áreas da cultura chinesa. No entanto, a
metodologia de Bouvet parece estar atrelada a um sistema maior, idealizado pela Companhia
de Jesus, cujos princípios caracterizam-se pela aproximação comparativa e pelo uso de
instrumentos intelectuais nas análises e adaptações. Exemplo disso são os trabalhos de Ricci,
anteriores aos de Bouvet, que facilitaram a abertura de caminhos e a renovação de contatos.
Sobre as análises realizadas com foco nos intelectuais chineses destacam-se ainda a descrição
e a comparação das escolas filosóficas existentes no período, com ênfase às de base
confuciana. Com isso, é possível perceber o surgimento do neoconfucionismo e do
confucionismo ortodoxo, apontados como processos de mudança posteriores à época de Ricci.
Em relação ao método empregado pelos jesuítas, para contextualizar as supostas
bases que fundamentaram a sinologia, ressaltam-se os conceitos cristãos estabelecidos na
China bem como a busca do que se reconhecia na religião cristã nos princípios confucionistas.
Como exemplo, citamos a argumentação de Mungello (1989) sobre as forças que atuaram no
final da dinastia Ming e que favoreceram a atuação de Ricci na criação de outra forma de
confucionismo. Neste contexto, Bouvet foi importante para a modificação do programa de
acomodação de Ricci, pois, aproveitando-se de sua proximidade com o trono chinês, observou
a tradição confuciana por meio da espiritualidade ancestral, o que gerou mudanças no
cristianismo chinês da época. Na verdade, Bouvet manteve os princípios básicos da cultura
chinesa aplicados por Ricci e a afabilidade cristã, alterando o conteúdo de acomodação.
O método de comparação de elementos entre qualquer outra cultura e as sagradas
escrituras cristãs era prática comum entre os jesuítas. Na China, tais estudiosos eram
classificados como jing-istas ou yijing-istas, devido ao foco nos jing (clássicos). Também
eram chamados simbolistas, pelo fato de interpretarem os antigos textos chineses
simbolicamente ou figurativamente. Mais tarde, o termo comum usado para definir esses
53

grupos foi figuristas (MUNGELLO, 1989).


Na China, o figurismo de Bouvet e mesmo sua forma de acomodação, diferente da
de Ricci, restringiram-se ao Império, com a responsabilidade de satisfazer o imperador com
seu conhecimento. O método figurista tinha como principal característica a análise crítica do
Clássico das Mutações, na busca de evidências que indicassem os mistérios do cristianismo.
Os figuristas argumentavam que os chineses possuíam uma escrita hieroglífica que continha
os verdadeiros segredos da religião cristã (MUNGELLO, 1989). A partir dessas
interpretações, Bouvet acreditava que tal escrita não somente continha todos os mistérios
dessa religião, mas também de todas as coisas do universo. De acordo com sua interpretação,
os chineses haviam perdido o contato com essa tradição, além de terem alterado muitos
caracteres antigos e seus significados. Precisavam, portanto, resgatar a compreensão dos
antigos sobre seus clássicos, o que facilitaria o entendimento da concepção de Deus difundida
pelos jesuítas na China e na Europa.
O figurismo apoiava-se na visão do Velho Testamento sobre o pecado original,
atribuídos por Deus a Adão e Eva. Desse modo, os figuristas acreditavam que os antigos
imperadores chineses e os heróis da história antiga desse país eram apenas alegorias da
verdadeira passagem do Messias, que teria um outro nome na língua desse povo. Um dos
mais importantes personagens da mitologia chinesa foi Fu Xi, ao qual se atribui a autoria do
Clássico das Mutações, obra que contém as descrições do hexagrama, e material chave para o
auxílio do método figurista na China. Os figuristas também fizeram uso de obras taoistas,
como o Clássico da Virtude e do Tao (Daodejing), e obras relativas ao confucionismo Song
(COLLANI, 2016).
Bouvet desenvolveu seu sistema para auxiliar os chineses a acreditarem nos
preceitos da religião católica, com a pretensão de fundar a própria “Academia Apostólica”, de
maneira que chineses e europeus pudessem estudar e pesquisar as obras chinesas. Além disso,
planejava produzir dicionários figuristas com explicações a respeito destas obras. Acreditava
ainda que as obras chinesas continham traços das revelações primitivas do cristianismo, que
haviam sobrevivido ao tempo e ajudariam na conclusão das escrituras sagradas (COLLANI,
2016).
Com relação ao Clássico das Mutações e mais especificamente à interpretação
dos hexagramas, – descritos nas correspondências entre Bouvet e Leibniz, pelas possíveis
comparações com o sistema binário –, segue-se o exemplo de um trecho da carta de Bouvet
(1701 apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 59) em resposta a Leibniz, na qual se percebe o
grau de importância da referida obra e de seu conteúdo para os interesses de ambos:
54

Mas o que tivestes a bondade de enviar-me em vossa última carta foi muito
mais do que eu esperava, e excitou em mim uma verdadeira paixão de poder
aprendê-lo de vós mesmo toda a economia, não somente para o santo uso,
que aprendestes a fazer em favor da religião, que é o principal motivo pelo
qual deve-se estima-la, sobretudo às pessoas de minha profissão, mas ainda
por causa da maravilhosa relação que acho que vossos princípios possuem
com aqueles sobre os quais penso que estava fundada a ciência dos números
dos antigos Chineses e as outras ciências das quais eles perderam o
conhecimento, entre outras a física ou a ciência que ensina os princípios e as
causas da geração e da corrupção de todas as coisas. Os antigos sábios da
China encontravam nela a mesma analogia presente nos números, dos quais
toda a ciência estava fundada em um sistema que não é em nada diferente de
vossa tabela numerária, que estabeleceis como fundamento de vosso cálculo
numérico. Nele passais como os chineses da geração dos números à
produção das coisas, guardando a mesma analogia na explicação de ambas.

A interpretação figurista de Bouvet sobre o Clássico das Mutações e a explicação


do sistema binário, por Leibniz, como uma representação da criação – correspondendo a
unidade a Deus e o zero, ao nada – indicam o compartilhamento de ideias entre ambos, que
viria a contribuir com os propósitos das missões na conquista de espaço do cristianismo no
império chinês. Dessa forma, o sistema de cálculo numérico de Leibniz serviria para
comprovar a comparação figurista, sugerida por Bouvet, a respeito dos hexagramas. Apoiado
na ideia do figurismo, Bouvet comenta com Leibniz que Fu Xi, autor do Clássico das
Mutações, não era descendente de chineses, mas que poderia ter sido algum ancestral de
Zaratustra, de Hermes Trismegisto, ou de Enoque (MUNGELLO, 1989).
A perspectiva figurista de Bouvet ganhou amplas proporções e valorizou aspectos
da cultura chinesa antiga, apontando caminhos que considerou revelar todo o conhecimento
da humanidade, por meio da interpretação do Clássico das Mutações. Diante da valorização
dos estudos sobre a China, é possível afirmar que Bouvet, por meio de seu método, rompeu
com as propostas anteriores das missões, até então limitadas, introduzindo ou mesmo
aperfeiçoando a metodologia de Ricci em considerar, destacar e valorizar o outro. Porém,
devido ao modelo teórico figurista vigente na época, o objetivo dos estudos ainda não
entendia o “outro como ele se vê”, mas procurava encontrar no “outro” marcas da estrutura
cultural do ocidente. Ainda assim, é possível considerar esse momento como o início das
propostas teóricas que constituíram os materiais enviados da China e lidos pelos proto-
sinologos europeus, especialmente, considerando-se dois pontos que destacamos como
principais para sua constituição, a saber: o reconhecimento e a consideração da sociedade
chinesa, ainda aparentemente em foco, e as apuradas investigações ocidentais sobre os vários
aspectos da China, mais superficiais nesse momento.
55

O método figurista de Bouvet apoiava-se na tradição do hermetismo, também


conhecido como prisca theologia (teologia antiga), que defendia que certos livros pagãos
continham vestígios da verdadeira religião, registrada pelos primeiros padres, como
Lactantius (240-320), Clemente de Alexandria (150-215) e Eusebius (260-340). Segundo
Mungello (1989, p. 307),

By 1650, a list of the Ancient Theologians included: Adam, Ennoch,


Abraham, Zoroaster, Moses, Hermes Trismegistus, the Brahmans,
Druids, David, Orpheus, Pythagoras, Plato and the Sybils. By 1700
the list had grown to include Fu Hsi. The most influential texts of the
Ancient Theologians were attributed to Orpheus and Hermes
Trismegistus. Except for the Asclepius dialogue of the Hermetica (or
Corpus Hermeticum), the fragments which pieced together the
Hermetica and the Orphica were not known in western Europe until
they became part of the Platonic revival initiated in Italy by Marsilio
Ficino’s Latin translations of Plato (1484) and Plotinus (1490). The
sixteenth century widely accepted Ficino’s interpretation of Platonism
as a religious philosophy as well as the Neoplatonic view of Platonism
which drew from a highly mystical and magical environment. There
was a strongly magical element which led Ficino, Giovanni Pico della
Mirandola (1463 – 1494) and Giordano Bruno (1548 – 1600) into
conflict with orthodox Christianity.

A partir desta passagem, é possível entender a fundamentação do figurismo de


Bouvet, e identificar os problemas que enfrentou por seguir tal método. A visão do
hermetismo foi bastante consistente naquela época, e tendo-se influenciado pelas
demonstrações de Martino e Phillipe Couplet sobre a antiga cronologia da China e suas
interpretações históricas dos clássicos chineses antigos, transmitiu confiabilidade. Evidente,
nesse contexto, é a ousadia dos figuristas em unir as revelações da tradição do hermetismo e
as controvérsias referentes aos ritos chineses, que chegou ao auge no século XVII, com as
considerações e condenações, na Sorbonne. Na China, no período anterior a 1700, os jesuítas
eram impedidos de discutir física e matemática, presentes no Clássico das Mutações, com o
Imperador Kang Xi. Mesmo as interpretações figuristas eram limitadas ao latim. Com a
condenação da Sorbonne, a cautela dos jesuítas no ambiente de acomodação chegou ao
extremo. Assim, é compreensível que a comunicação por cartas entre Bouvet e Leibniz tenha
sido a melhor solução para o momento conturbado do figurismo (MUNGELLO, 1989). Pode-
se afirmar que os argumentos figuristas de Bouvet e Prémare, citados por Mungello (1989),
mesmo se apoiando no hermetismo – negado pela história dos cristãos ortodoxos –, receberam
destaque no império de Kang Xi e no reinado de Luís XIV, devido à aproximação entre
56

elementos da cultura chinesa antiga e a verdade cristã dos antepassados, além das
confirmações sobre a matemática e a relação dos hexagramas com o sistema binário de
Leibniz, o que também deu credibilidade ao método figurista.
Segundo Mungello (1989), a teoria figurista de Bouvet foi propagada na Europa
por meio de seu contato com Leibniz, via correspondência. Leibniz já possuía interesse sobre
uma Clavis Sinica – anteriormente enfatizado na troca de correspondências com Andreas
Müller –, o que se aproximava de sua filosofia sobre a característica universal, em um
contexto histórico (século XVII) que ressaltava a busca por caracteres reais e por uma
linguagem universal29. O jesuíta Antonio Verjus (1632-1706) foi o responsável por aproximar
Bouvet e Leibniz. O primeiro contato deu-se pelo envio de cartas dos jesuítas da China
contendo observações sobre a física e a matemática, em outubro de 1692. Em 1695, Verjus
enviou algumas cartas adicionais dos missionários a Leibniz e, uma dessas, cuja citação
informava sobre as línguas do leste da Ásia, referia-se a Bouvet. A partir de tais contatos,
Bouvet passa a se corresponder diretamente com Leibniz. Em carta de 28 de fevereiro de
1698, Bouvet apresenta o figurismo a Leibniz pela primeira vez. Bouvet concentrou-se no
Clássico das Mutações, com o intuito de apresentá-lo como um texto pré-confuciano. Para
informar-se sobre o conteúdo da obra, reinterpretou o material conforme o modelo do chinês
tradicional, tentando restaurar a origem e o significado do texto. Este trabalho atraiu a
curiosidade dos proto-sinólogos de sua época, e Fu Xi foi apresentado como o inventor dos
hexagramas (MUNGELLO, 1989). Tal fato permitiu que Bouvet apontasse aos europeus um
sistema definitivo de Clavis Sinica, cuja proposta defendia a universalidade da filosofia
chinesa antiga, já que revelava o “verdadeiro” conhecimento aos chineses e aos europeus.
A perspectiva figurista de Bouvet foi apresentada com mais detalhes na carta de 8
de novembro de 1700, de Beijing, enviada a Paris ao jesuíta Le Gobien, com pedido de
encaminhamento a Leibniz. Na ocasião, Bouvet cita os hexagramas como a escrita mais
antiga do mundo: “vestígios preciosos dos restos da mais antiga e excelente filosofia ensinada
pelos primeiros patriarcas do mundo aos seus descendentes, e posteriormente corrompidos e
quase completamente obscurecidos pela passagem do tempo”30. Em outra passagem sobre o
figurismo, apresentada por Mungello (1989, p. 314-315), Bouvet enfatiza: “a forma do
sistema de Fu Hsi era como um símbolo universal, inventado por algum extraordinário gênio

.29 Leibniz propôs que a linguagem filosófica fosse facilmente comunicável e pudesse transmitir o conhecimento
com grande precisão, tal como a matemática e a geometria (MUNGELLO, 1989).
30
“precious vestiges from the remains of the most ancient and excellent philosophy taught by the first patriarchs
of the world to their descendants, and afterwards corrupted and almost completely obscured by the passage of
time” (MUNGELLO, 1989).
57

da antiguidade, como Hermes Trismegisto, para representar aos olhos os princípios mais
abstratos de todas as ciências”31.
O contato de Bouvet com Leibniz demonstra uma aproximação de interesses e
abordagens fundamentais que contribuíram para a concepção da proto-sinologia europeia, no
século XVII. O figurismo de Bouvet, – compartilhado com Leibniz e propagado na Europa –,
baseava-se no hermetismo defendido por Kircher, dentre outros jesuítas. O interesse por uma
linguagem universal (lingua universalis), que pudesse sintetizar todas as outras línguas e
transportar o conhecimento da humanidade de forma simples e objetiva, era um dos principais
propósitos das pesquisas dos proto-sinólogos da época, e foi esse ambiente que atraiu a
atenção de Leibniz, colocando-o em contato direto com as informações vindas das missões na
China. No caso da língua chinesa, Leibniz recebeu informações mais detalhadas a partir de
Bouvet, e isso favoreceu o desenvolvimento da proto-sinologia ocidental, de modo geral, por
atender ou mesmo aguçar as expectativas dos estudiosos e curiosos sobre a China. Se
considerarmos as distorções sofridas pelas informações, por meio das interpretações figuristas
de Bouvet, é possível concebermos que os avanços na proto-sinologia não tenham sido
importantes. Mas, se tomarmos o material coletado na China, como exemplares fragmentados
que davam ideias daquela civilização, e que receberam outro tratamento, como no exemplo de
Leibniz, podemos dizer que os avanços tenham partido desse proto-sinólogo, em particular, e
que a contribuição dele tenha sido superior à influência do figurismo. Um dos maiores
exemplos disso, além da comparação dos hexagramas de Fu Xi com o sistema binário de sua
criação, são as trinta questões direcionadas a Grimaldi sobre a China.

1.3.1 O Clássico das Mutações (Yijing) segundo Bouvet

As considerações sobre o Clássico das Mutações, na perspectiva de Bouvet, estão


embasadas na leitura figurista, cujo foco, neste caso, foi encontrar traços que fizessem
referência ao Velho Testamento, comprovando sua autenticidade e relação com a religião
universal. Como demonstra a carta de Bouvet a Bignon (15/09/1704, Beijing), – que destaca a
análise filológica e os interesses envolvidos no estudo desta obra –, buscava-se a compreensão
das obras canônicas relacionadas às ciências chinesas. Segundo Bouvet (1701), as obras
chinesas e os filósofos de seu período não apresentavam o conhecimento central sobre os

31
“the shape of the system of Fu Hsi was like a universal symbol, invented by some extraordinary genius of
antiquity, like Hermes Trismegistus, in order to represent to the eyes the most abstract principles of all the
sciences” (MUNGELLO, 1989).
58

caracteres chineses e as ideias fundamentais e mais confiáveis sobre as tradições dos antigos,
que tratariam claramente dos princípios de suas ciências e da verdadeira religião, cuja base era
a sabedoria do Messias (COLLANI, 1989). Ou seja, os chineses da época das missões
abandonaram a sabedoria de seus antigos conterrâneos e seguiram as tendências da
superstição e da idolatria, devido à ideia do pecado original.
O Clássico das Mutações foi tido como material de referência para as doutrinas de
física e moral e para os principais elementos das obras chinesas antigas, tendo-se tornado base
de todas as outras (COLLANI, 1989). Bouvet (1701 apud COLLANI, 1989, p. 38-39) afirma
em uma de suas cartas:

Au reste nostre dessein dans cete lettre n’est pas tant de combattre cet
endroit du susdit mandement, ne voyant pas jusqu’ici qu’on y ait fait grande
attention; comme de démontrer (ce qui est d’une extreme consequence, pour
l’accroissement de la Religion, et la perfection des sciences) que la doctrine
legitime des livres canoniques de la Chine, renferme veritablement les
principes de toutes les sciences, et tout le systeme theologique de la loy
naturelle, consideré selon les dogmes de foy, selon les maximes de la morale,
et selon les rites et les cérémonies des sacrifices.
Nous nous attacherons sur tout à faire voir, que la loy naturelle selon l’idée
qu’en donnent ces anciens et précieux restes de la plus haute tradition, est
comme une figure universelle de la religion chretienne. Et si nous sommes
un jour assez heureux pour rendre sensible ce que nous avons deja apperçu
avec clarté sur ce sujet depuis quelques années, comme nous esperons avec
l’assistence du ciel, en venir facilement à bout; on sera etonné sans doute, et
on ne pourra s’empescher d’admirer un effet si particulier de la misericorde
et de la providence divine, qui veille à la conversion de cet Orient, quand on
verra que les traditions prophetiques des premiers Patriarches du monde
touchant la personne sacrée du Messie, le mystere de la redemption de genre
humain, et l’etablissement du royaume du Fils de Dieu sur les hommes, se
sont conservées jusques à present chez les Chinois dans les monumens
qu’ills reverent à peu prés, comme nous révérons les divines ecritures. De
sorte qu’on sera obligé d’avoüer, que les livres canoniques de la Chine sont
les monumens les plus anciens de la loy naturelle, qui se trouvent
aujourd’hui parmi les gentils, et mesme parmi les fideles, sans en excepter
mesme le Pentateuque de Moyse, ce qui constera au moins pour ce qui
regarde le livre ye kim, qu’on peut et qu’on doit assurément regarder comme
le plus ancien ouvrage, dont on ait connoissance au monde.

Neste trecho, notam-se a importância e a consideração dadas ao Clássico das


Mutações por Bouvet, bem como a base de sua interpretação sobre a obra. A partir da leitura
desta carta, descreveremos as principais análises filológicas feitas por ele em relação a esse
material. O autor afirmava que esse livro e mesmo a criação dos hieróglifos teriam sido obras
do patriarca Enoque. Conforme ressalta Collani (1989), Deus abriu o caminho que faltava
para o significado misterioso e sagrado dos hieróglifos e do estilo alegórico, que a China tinha
59

acabado por perder, desde mais de dois mil anos. O desejo de Bouvet era esclarecer tanto aos
chineses quanto aos europeus o real sentido dos livros canônicos, principalmente, do Clássico
das Mutações, por meio da apresentação do antigo pensamento filosófico chinês, e sugerir
uma reflexão geral sobre a natureza e a origem da língua, dos caracteres e dos livros deste
povo. Baseado em sua perspectiva figurista, para ele, as línguas, as escritas, as artes, as
ciências, as leis, os costumes e a religião do mundo vinham de uma única família, originada a
partir de Noé e preservada após o Dilúvio. Deste modo, a filologia aplicada na análise da
referida obra teve o figurismo como apoio teórico metodológico.
De acordo com Bouvet (1701), uma reflexão filológica era necessária para
esclarecer o Clássico das Mutações. Sua leitura figurista reconheceu mudanças significativas
na língua falada e escrita durante a história das nações, devido ao castigo aplicado por Deus
aos homens por sua infidelidade religiosa. Na abordagem do autor, a partir de Noé e seus
filhos, únicos sobreviventes do grande Dilúvio que destruiu o mundo antigo, a língua se
conservou única, até um novo castigo atribuído por Deus fazendo com que os homens
deixassem de se entender 32 , o que gerou as variedades de idiomas do mundo, além das
diferentes culturas. Mas, o Clássico das Mutações foi mantido como originário da valiosa
tradição chinesa antiga. Fu Xi foi apontado por Bouvet, em uma das cartas, como o Hermes, o
Mercúrio, o Trismegisto, do Egito e da Grécia, o Toth, de Alexandria, o Edris ou Idris, dos
árabes e o Enoque, dos hebreus (COLLANI, 1989). Bouvet aproxima etimologicamente
alguns caracteres chineses, a fim de confirmar a relação destes com a religião. Afirma, por
exemplo, que Fu, sobrenome chinês de Fu Xi, é composto das partes ren (homem), que
exprime a sagacidade do grande gênio de Hermes, representado pelos antigos egípcios, e quan
(cão) correspondente à pronúncia do grego kyon (COLLANI, 1989).
Por meio da filologia figurista, Bouvet buscava apresentar a importante relação de
Fu Xi com a história da astronomia e da origem da religião tida como universal, de modo a
situar autor e obra no centro das referências literária e teológica. Conforme afirma:

Nous esperons avec l’aide de Dieu faire voir quelque jour que les principales
periodes des mouvemens celestes, que nous decouvertes dans les anciens
livres de la Chine en suivant les principes du livre ye kim, ont esté etablies
sur cete mesme regle, ou sur la periode caniculaire de 1460 années solaires,
ce qui fournira un nouveau et puissant argument, pour confirmer la verité de
ce que nous venons d’avancer touchant l’auteur legitime de la doctrine
jeroglyphique des livres canoniques, et tout de l’ye kim attribué à Fo-hi
unaniment par tous les anciens et les modernes. (BOUVET, 1701 apud
COLLANI, 1989, p. 44).

32
Referência ao episódio bíblico da Torre de Babel.
60

Na carta de Bouvet, considerada aqui, fica clara sua preocupação em explicar


quem foi Fu Xi, além de sua relação direta com a concepção figurista, o que daria base à
análise da obra. Segundo o autor, Sem, um dos três filhos de Noé, teria dado origem à nação
chinesa e entregue os livros sagrados a seus herdeiros na China, – entre eles o Clássico das
Mutações, atribuído originalmente a Enoque e passado às mãos de Noé, – e, em seguida, para
Sem, na China. Para Bouvet, o inventor desta obra retirou os hieróglifos da natureza e da arte,
apoiado em regras simples e naturais, para que as pessoas versadas em literatura pudessem
formar novos caracteres, a partir da combinação de caracteres elementares. Enoque –
verdadeiro Hermes dos egípcios e verdadeiro Fu Xi dos chineses – seguiu o método da
matemática e da geometria, que parte da unidade e do ponto para uma linha superficial à
sólida, para outra tridimensional, que resulta na formação dos hieróglifos. Conforme afirma
Bouvet (1701, p. 105 apud COLLANI, 1989, p. 61), as figuras e números pares e ímpares
combinadas com arte, demonstram a simplicidade da escrita hieroglífica, que segue os
princípios e métodos de uma ciência abstrata, apresentando-se como a mais natural e
conveniente para “elevar o espírito do homem até as ideias sobrenaturais e a verdade sublime
da religião”.
No âmbito do estudo sinológico comparativo, o método de análise de Bouvet
referente ao Clássico das Mutações indica os caminhos tomados pelo autor ao tratar dos
caracteres chineses. Os hexagramas contidos no material delimitam e apresentam os detalhes,
partindo do mais simples ao mais amplo, assemelhando-se ao método de seleção e análise de
Wang Li. O que torna ambos idênticos é o uso da filologia, e o diferencial é que a cultura de
comparação de Bouvet é a ocidental, especificamente, a da concepção religiosa em relação à
chinesa, enquanto Wang Li faz analogias dentro de sua própria cultura e, mesmo quando
desenvolve comentários sobre os sinólogos ocidentais, parte do quanto esses estudiosos
conseguiram absorver e entender sobre a China. A introdução de uma interpretação sobre o
que for analisado também é comum em filologia, o que não exclui o mérito de Bouvet em seu
estudo. As diferenças no uso da filologia entre Bouvet e Wang Li estão nas bases teóricas e
objetivos de cada um. Falar da China sem estudar ou considerar os teóricos chineses para um
assunto específico de sua civilização, como no caso da religião, é um caminho falho e
inseguro. Wang Li demonstra, em sua obra, que em seu próprio país, no período antigo, já
existia diferentes interpretações referentes à língua e mesmo às crenças. Temos a convicção de
que mudanças sejam comuns em qualquer sociedade, pois há interação e troca de
conhecimento, que vão além das próprias leis que buscam certa regularidade social. Em uma
61

de suas autobiografias, Wang Li (1981, p. 149) faz menção a este assunto, ao apresentar sua
opinião sobre a comparação das gramáticas:

Ele foi contra imitar a gramática ocidental. Ele considerou ser possível pegar
a gramática ocidental para pesquisas comparativas, mas disse: quanto às
nossas pesquisas da gramática de algumas línguas nativas, não é difícil de
pegarmos uma outra língua nativa para comparar, comprovando seus pontos
de igualdade, mas, é difícil procurarmos, nestas línguas maternas, seus
apoios de pontos de diferenças em todas as línguas nativas do mundo.
Observar a existência de algumas coisas na casa de outra pessoa, depois
retornar para ver se na sua própria casa tem as mesmas coisas, naturalmente,
é possível, é preciso apenas prestar um pouco de atenção, tendo o cuidado de
não considerar erroneamente um ‘cesto de descansar os pés’ (zhufuren) como
um ‘cesto de papeis’ (zizhilou)33.

Na análise figurista de Bouvet sobre o Clássico das Mutações, é possível notar


algo semelhante ao que diz Wang Li sobre a dificuldade de se estabelecer uma analogia entre
línguas nativas do mundo, em uma pesquisa comparativa, bastando o cuidado na investigação
e consideração. Bouvet (1701) faz uma conveniente aproximação dos hexagramas com os
números e a geometria, que ganha a atenção e melhorias com o sistema binário desenvolvido
pelo também matemático Leibniz. Os caracteres chineses, para Bouvet, eram numerosos e
extravagantes na aparência, mas seguiam os mesmos princípios e métodos existentes no
Clássico das Mutações, que servia de sistema básico. Como os números partem de duas raízes
primitivas, 2 e 3, isto é, par e ímpar, e a unidade é o princípio de todas as coisas da natureza,
os caracteres chineses também podem ser analisados dentro deste modelo, o que facilita a
forma de comparação pela consideração reduzida de seus traços. Seguindo este raciocínio, é
possível representar (..) como 2, e (...) como 3, sendo o ponto (.) a unidade que pode compor
múltiplas configurações. No caso dos hexagramas chineses, na comparação de Bouvet, o
princípio é praticamente o mesmo, pois os hexagramas são representados pelos traços
primitivos -, =, ≡, representando as três santíssimas trindades, ou manifestado no caractere
zhu (主), que significa “Senhor Soberano”, o qual é comparado ao tetragrama de Jeova ( ),
que traz tanto o Yoda (‫)י‬, quanto o ponto de zhu (`) (COLLANI, 1989).
Segundo Bouvet (1701), os caracteres e os símbolos do Clássico das Mutações, da
mesma forma que nos livros sagrados dos outros povos, foram inventados por Enoque para o
uso de sacerdotes ou filósofos. Ele criou outra forma de escrita, adaptando as verdades

Original: 他反对模仿西洋语法。他认为拿西洋语法来比较研究是可以的,但是他说:
33
“我们对于某一族
语的文法的研究,不难在把另一族语相比较以证明其相同之点,而难在就本族语里寻求其与世界诸族语
相异之点。看见别人家里有某一件东西,回来看看自己家里有没有,本来是可以的,只该留神一点,不
要把竹夫人误认为字纸篓” (p. 149).
62

espirituais da religião para o povo comum, tido como grosseiro por ser acostumado a usar os
olhos e os ouvidos. Os novos caracteres representavam as figuras artificiais ou hieroglíficas
dos filósofos, servindo como emblemas de suas ideias para expressar as verdades de Deus, de
forma simples. Existem três tipos de caracteres, mais encontrados no Egito e na China: os que
contêm imagens de gênios, humanas, e figuras naturais ou artificiais; os menos construídos,
que são partes de caracteres criados para representar a natureza e a arte, que se aproximam
dos hieróglifos dos filósofos, como os caracteres chineses; e os mais construídos, que
possuem a maioria dos caracteres da língua, tendo relação com as letras da língua santa.
Bouvet afirma que os chineses usam verdadeiros hieróglifos conservados nas figuras dos
ídolos e dos templos, dos quais o povo se utiliza de várias maneiras e o qual, baseados em
superstições, ensinam por meio de erros, criando muitos outros caracteres que fogem aos
princípios apresentados no Clássico das Mutações (COLLANI, 1989).
Para cada tipo de escrita, na perspectiva de Bouvet, havia um tipo de pessoa que a
utilizava. O filósofo pertencia a um grupo menor que se ocupava das questões divinas, e
utilizava, portanto, uma língua sagrada. Bouvet utiliza-se desse argumento para esclarecer o
que ocorreu na China com o distanciamento do povo em relação à sabedoria dos antigos e dos
filósofos. Visto que a língua chinesa era a mais próxima e adequada para a transmissão da
verdade, a resposta está na influência do demônio nos interesses e nas ideias do povo.
A leitura figurista de Bouvet sobre o Clássico das Mutações é uma sugestão de
interpretação desta obra, na tentativa de esclarecer dúvidas, principalmente, no âmbito
religioso e dos interessados nos assuntos sobre a China, no período. A proximidade das
reflexões feitas sobre essa obra seguia o modelo comum nas missões jesuítas de buscar na
cultura do outro os traços típicos do Velho Testamento. A parte referente ao evangelho é
bastante detalhada na carta de Bouvet a Bignon (15/09/1704, Beijing) e, para atender ao
recorte que fizemos, selecionamos os aspectos próprios do processo de análise da obra
considerada. Segundo Collani (1989, p. 79-80), a proposta apresentada por Bouvet a Bignon
para a análise dos livros chineses é fundamentada conforme seis pontos:

1) quel jugement il vous paroist qu’on doit faire de l’ancienne


philosophie des Chinois, et du livre ye kim, qui en renferme tous les
principes. Et si on a eu raison de condamner comme fausses, temeraires,
scandaleuses, et tendantes à la superstition, les deux propositions alleguées
au commencement de cete lettre, savoir que la philosophie chinoise, si on
l’entend comme il faut, ne renferme rien de contraire à la loy chretienne et
que le livre ye kim est le sommaire d’une tres saine doctrine physique et
morale.
2) S’il vous paroist, supposé la verité de nostre exposé, que ceux qui
63

condamment et qualifient de la sorte les propositions susdites, entendent


veritablement le fond de la doctrine symbolique, contenuë dans le texte des
livres canoniques.
3) Si les personnes, qui font gloire comme eux d’ignorer les
mathematiques, et qui osent bien reprocher aux missionaires de nostre
Compagnie comme un vain amusement indigne de personnes consacrées au
ministere apostolique, l’etude et l’usage qu’ils en font, sont capables
d’entendre la profonde doctrine des livres canoniques, et sur tout de l’ye kim,
qui de l’aveu de tous les savans Chinois roulle toute entiere sur la theorie des
nombres, de la geometrie, de la musique, de l’astronomie etc.
4) Si ces mesmes personnes, pour juger du vrai sens des livres
canoniques suivant l’aveuglément, les commentaires et interpretations de
certains ecrivains, qui conviennent d’un costé, que la doctrine de ces livres
est appuyée sur la theorie des de mathematiques; et avoüent d’un autre, que
la Chine a perdu depuis long temps les anciens et veritables principes de ces
sciences, et consequement qu’ils ne les entendent pas eux mesmes: si, dis-je,
ces personnes, ne suivent pas des personnes aveugles, et incapables, supposé
cete ignorance, de penetrer le sens legitime de leurs propres livres.
5) Si au contraire des missionaires, comme plusieurs d’entre les Jesuites,
qui se seront prepares de longue main à l’etude de ces sortes de livres, par la
connoissance des mathematiques, de la fable, de la mythologie de Grecs, des
mysteres et jeroglyphes de l’Egypte, de la Cabale des Hebreux; et de toute
sorte de philologie necessaire à l’intelligence de l’antiquité: ne doivent pas
se trouver pourvus de grands avantages par dessus les autres, et sur les
Chinois mesme les plus habiles, pour penetrer et comprendre le fond de la
doctrine de leurs anciens livres, sur tout si cete doctrine, comme nous
l’avons suffisamment declaré, n’est autre chose que la connoissance de la
vraye sagesse, ou de la loy naturelle, mesme sous une idée plus parfaite, que
le commun des theologiens n’en ont eu jusqu’ici.
6) Si ceux qui ont excite de nouveau le feu de la dispute entre les
missionaires de la Chine, et qui depuis plusieurs années, poursuivent avec
tant d’ardeur la prompte decision des controverses, ne s’exposent pas
visiblement au mesme reproche, qu’ils ont fait jusqu’ici si injustement aux
Jesuites, d’avoir surpris la Sacrée Congregation et le Saint Siege par de faux
exposez.

Observando-se as propostas para a análise do Clássico das Mutações, nota-se a


importância do trabalho filológico feito por Bouvet na busca de produzir provas contrárias aos
argumentos negativos apresentados sobre os missionários na China, além da relevância dos
livros canônicos chineses. Faz-se necessário dizer que a carta de Bouvet a Bignon, que serve
de apoio neste assunto, é posterior ao contato feito com Leibniz a respeito de seu sistema
binário (carta de 15/02/1701, Braunschweig). Tal fato indica a influência deste contato na
análise da obra apresentada a Bignon, em que Bouvet parece convicto de seus argumentos e
defende o apoio da matemática no estudo do Clássico das Mutações.
Leibniz (1701) faz uma análise comparativa de sua recém-criada aritmética
binária por meio dos hexagramas contidos no Clássico das Mutações e esclarece as dúvidas
de Bouvet, do ponto de vista científico, o que dá crédito às suas considerações, fortalecendo
64

ainda sua interpretação religiosa sobre os livros canônicos chineses, pela base de que a
unidade é Deus, ou seja, todas as coisas do universo. Certamente, a opinião de Leibniz foi
fundamental, principalmente, pelo estabelecimento de valores da literatura chinesa
considerados pelos europeus. A característica filológica das análises de Bouvet também
tornou-se referência, do ponto de vista lógico, tendo resolvido muitos problemas de
interpretação do material escrito sobre a obra. O trabalho de Bouvet aproxima-se da filologia
chinesa, em Wang Li, já que ambos buscam a comprovação dos textos antigos. Em
contraposição, os estudos tradicionais feitos pelos próprios chineses eram excluídos, devido
ao figurismo, e o valor dado à literatura chinesa parte do que o europeu considera semelhante
à sua cultura, e não do que realmente foi apresentado pelos chineses. A posição de Bouvet
sobre os livros canônicos chineses destaca-se, visto que ele era encarregado de analisar os
textos classificados como hereges na concepção da Igreja católica.

1.4 A metafísica como base da proto-sinologia de Leibniz

A partir de discussões sobre a chamada querela dos ritos, referente aos chineses,
as interpretações de Leibniz tornaram-se relevantes para a proto-sinologia. Seu caminho
reflexivo era contrário ao suposto materialismo chinês, defendido principalmente pelo
pensamento escolástico e cartesiano. No período em que Leibniz teve contato com o
pensamento oriental, a China já possuía elevado grau de desenvolvimento estrutural
administrativo e científico, que chegava a superar o próprio conhecimento europeu
(FLORENTINO NETO, 2016). Diante disso, os contatos dos missionários nesse país
precisaram ser reformulados, de acordo com o método de acomodação de Ricci e o figurismo
de Bouvet, apresentados anteriormente.
O conhecimento de Leibniz sobre a China deu-se por meio de seu contato com
materiais que circulavam no meio intelectual europeu, produzidos em sua maioria pelos
missionários no Oriente, além das informações trocadas entre ele e esses religiosos, através de
cartas. Leibniz era matemático e filósofo e sua rede de contato por correspondências foi
essencial para o desenvolvimento e resultados de suas pesquisas. Uma das aproximações de
importante influência sobre a concepção de Leibniz em relação à China foi com o padre
jesuíta Claudio Filippo Grimaldi, em Roma, no ano de 1689. Para esse encontro, Leibniz
prepara uma lista com trinta perguntas referentes a matemática, física e técnicas chinesas,
65

dentre outras relacionadas à vida, especialmente, intelectual deste povo (FLORENTINO


NETO, 2016).
As duas linhas de pensamento que envolviam a querela dos ritos chinesa referem-
se aos métodos de conversão dos chineses ao cristianismo. A primeira é a dos jesuítas,
juntamente com Grimaldi, que apoiava a compatibilidade entre os antigos rituais aos
ancestrais chineses e o cristianismo; a segunda reúne as outras ordens religiosas, além de
alguns jesuítas, a Sorbonne e o Vaticano, que afirmavam a incompatibilidade entre o
cristianismo e os rituais chineses. Tais questões serviram de base para a problemática da
teologia e da metafísica cristã, além de fazerem parte do ideal de domínio dos países católicos
sobre os considerados incivilizados e pagãos. Neste ponto, a querela dos ritos buscava
discutir o ateísmo chinês, questionando a noção de Deus, dos anjos e da imortalidade da alma
(FLORENTINO NETO, 2016). Para a sinologia, ou ainda para a proto-sinologia, esse
momento reforça o que foi afirmado sobre a relação do figurismo na área. A intervenção de
Leibniz e sua teoria da harmonia preestabelecida, em relação a essas questões, revela certo
distanciamento das influências religiosas e enfatiza os propósitos científicos e de uma leitura
mais filosófica, contudo, não difere totalmente das interpretações do cristianismo, já que sua
real intenção era de contribuir para a permanência das intervenções missionárias na China,
visando substituí-las por grupos protestantes.
Conforme afirma Florentino Neto (2016), na carta inacabada de Leibniz a Nicolas
Rémond referente ao Discurso sobre a teologia natural dos chineses, é possível reunir
evidências que apontam para sua concepção de uma teologia natural praticada pelos chineses
e a possibilidade de uma aproximação efetiva com o cristianismo, dentro de uma interpretação
filosófica, visto que, após a morte de Ricci (século XVII), o padre Nicolas Longobardi, em
sua sucessão, busca combater o método de acomodação, alegando que os mandarins
zombavam das explicações referentes ao mesmo. Por outro lado, a análise que apresenta a
opinião inicial de Leibniz sobre a doutrina está na seguinte passagem:

Pode-se duvidar de início se os chineses reconhecem ou reconheceram


substâncias espirituais. Mas após ter pensado bem sobre isso, julgo que sim,
embora eles talvez não tenham reconhecido essas substâncias como
separadas e efetivamente exteriores à matéria. Não haveria nenhum mal
nisso em relação aos espíritos criados, pois eu mesmo me inclino a crer que
os anjos possuem corpo. Mas, em relação a Deus, é possível que a opinião de
alguns chineses tenha sido de dar-lhe também um corpo, de considerar Deus
como a alma do mundo e de uni-lo à matéria, como fizeram os antigos
filósofos da Grécia ou da Ásia. Entretanto, mostrando que os mais antigos
autores da China atribuem ao Li ou ao primeiro princípio a produção do Ki
ou da matéria, não há necessidade de reformulá-los, basta explicá-los. Poder-
66

se-á persuadir mais facilmente os seus discípulos de que Deus é Intelligentia


supramundana, e acima da matéria. Assim, para julgar que os chineses
reconhecem as substâncias espirituais, deve-se sobretudo considerar o seu Li
ou regra, que é o primeiro autor e a razão das outras coisas, e que creio
corresponder à nossa divindade (FLORENTINO NETO, 2016, p. 104-105).

O que se percebe é que Leibniz defendia a proposta de Ricci, e certamente por


esse motivo também apoiou Bouvet, já que ambos defendiam a importância do pensamento
chinês antigo no processo de catequização dos chineses. O próprio Ricci usou o termo
theologia naturalis pela primeira vez para definir tal pensamento, e também acreditava que os
chineses conheciam um deus e a imortalidade da alma, mas não tinham ideia da criação e do
paraíso e inferno, ignorando a punição e a bondade divinas. Leibniz (1692) discorre sobre o
pensamento chinês na obra Novissima Sinica, destacando sua posição em defesa do método de
acomodação. O autor apoiava um diálogo intelectual entre Europa e China e, além disso,
como foi mencionado anteriormente, tinha conhecimento sobre as invenções e outras técnicas
dos chineses e sobre o interesse nestes assuntos pelo Imperador Kang Xi (FLORENTINO
NETO, 2016).
A problemática em torno dos termos Li (理), Ki (气, Qi), Tai-kie (太极, Taiji) e
Xangti (上帝, Shangdi) foi longamente discutida por Leibniz na carta a Rémond, em busca de
uma conciliação principalmente entre as opiniões dos padres Longobardi e Antoine de S.
Marie, que representavam o pensamento cristão sobre a China da época. A proposta de
Leibniz era que a Europa recebesse missionários chineses para ensinar sua teologia natural,
da mesma forma que enviava os missionários cristãos à China (FLORENTINO NETO, 2016).
Neste contexto, há algo importante a ser considerado, com relação aos estudos sinológicos,
que consiste na possibilidade de criação de um intercâmbio intelectual entre Europa e China e
consequente compartilhamento de informações entre ambos os países, especialmente, dentro
dos interesses de Leibniz e sua teologia racional, o que remete inevitavelmente às áreas
científicas europeias referentes à matemática especulativa. Leibniz (1979, p. 17) destaca sobre
esse aspecto que:

Não se deve fazer matemática como um trabalhador manual, e sim como um


filósofo. Virtude decorre de sabedoria, e a alma da sabedoria é a verdade, e
quem se dedica à pesquisa das demonstrações matemáticas compreende a
essência das verdades eternas e pode, por isso, distinguir o certo do incerto.

Salientamos que nesse período houve um aumento do interesse da literatura


chinesa na Europa, principalmente, devido ao posto de importância assumido pelo padre e
67

matemático Bouvet, dentro do império de Kang Xi e sua interpretação figurista do Clássico


das Mutações. A real condição para o referido intercâmbio seria o que indica o prefácio de
Novissima Sinica, isto é, que “os missionários que deviam ser enviados à Europa teriam que
ser, antes de tudo, profundos conhecedores das ciências teóricas ocidentais para que pudessem
ajudar os europeus” (LEIBNIZ, 1692 apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 20). Essa
proposta, contudo, aponta os limites de um intercâmbio eficiente, visto que os chineses teriam
de adquirir o conhecimento necessário dos europeus para depois estarem aptos a ensinar seu
conhecimento moral. Mas, na opinião de Leibniz, o maior empecilho estava no interior da
própria metafísica europeia, para uma real conciliação entre o confucionismo e o catolicismo,
por causa do limitado conceito de matéria dos escolásticos (FLORENTINO NETO, 2016).
Diante das evidências, as condições propícias para a criação de uma possível área
de estudos chineses que se distanciasse dos propósitos e influências das missões jesuítas,
ganhando um caráter mais científico e acadêmico, – como é vista a sinologia atual –, teve seu
espaço inicial, nas perspectivas de Bouvet e Leibniz, principalmente, pelo fato de
introduzirem perspectivas que, de certa forma, destacaram as qualidades e condições de
conhecimento do “outro” chinês, proporcionando inclusive condições para aproximações
entre nações, como no caso da França e da China, para Bouvet, e de planejamento de
intercâmbio científico, na condição de Leibniz. Contudo, os limites também são grandes e
remetem às discussões em torno do cristianismo e também da dominação, limitando um
diálogo aberto e seguro para as pesquisas sinológicas que favorecessem tanto o Ocidente
quanto a China, o que não desconsidera a característica de uma proto-sinologia em processo.
A teoria de Leibniz sobre a harmonia preestabelecida e a concepção do universo
enquanto unidade orgânica indica sua aproximação com o pensamento chinês, apoiado em
seus conceitos de matéria e de mônada, que determinam e diferenciam sua posição no
momento de transição da sinologia ocidental. Para Leibniz não existia qualquer ateísmo dos
chineses em conceber Li como o fundamento de tudo e detentor de qualidades materiais
(FLORENTINO NETO, 2016). A convicção de Leibniz, em sua teoria da harmonia
preestabelecida, colocava-o à frente de seu tempo e servia para assegurá-lo em um debate, que
para a Igreja e, mais especificamente, para o assunto da querela dos ritos era algo discutido
com cautela e limitações. Leibniz, além de apoiar o método de acomodação de Ricci, na carta
a Rémond, também defende a manutenção dos contatos com os chineses e com a valiosa
aproximação conquistada pelos missionários com o Imperador Kang Xi. De acordo com sua
argumentação, o importante era reconsiderar a opinião dos chineses sobre o assunto
68

contestado pelos padres Emmanuel Diaz, Nicolas Longobardi, Antoine de S. Marie, dentre
outros (FLORENTINO NETO, 2016).
Leibniz (1716 apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 105) faz uma analogia entre
os chineses e os cristãos que acreditavam em anjos governando elementos e grandes corpos,
apontando condições equivalentes ao afirmar que:

No reino dos escolásticos, não foram condenados aqueles que acreditavam,


com Aristóteles, que certas inteligências governavam as esferas celestes. E
aqueles que dentre os chineses creem que seus ancestrais e seus grandes
homens estão entre esses Espíritos se aproximam bastante da expressão de
nosso senhor, que insinua que os abençoados devem ser semelhantes aos
anjos de Deus. É então adequado considerar que aqueles que atribuem
corpos aos gênios ou anjos não negam por isso as substâncias espirituais
criadas, pois concedem almas racionais a esses gênios dotados de corpo –
assim como os homens possuem – mas almas mais perfeitas, assim como
seus corpos são também mais perfeitos.

Leibniz indica, assim, a necessidade de consideração e esclarecimento do sentido


das doutrinas chinesas antigas, além de demonstrar seu desejo de reunir mais fontes de
informações sobre o assunto, e de alegar a existência da tradução de todas elas para análise. O
proto-sinólogo parece não se contentar com meras opiniões, e demonstra seu interesse pela
China em seu método comparativo dos fenômenos.
Baseado nas informações colhidas por S. Marie sobre a concepção de Li para os
chineses, Leibniz (1716, p. 73 apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 107) afirma que:

Segundo os chineses, o Li é a única causa que move o céu há tantos séculos


com um movimento sempre igual. Ele dá estabilidade à terra, comunica às
Espécies a virtude de produzir seus semelhantes. Essa virtude não está na
disposição das coisas e não depende delas, mas consiste e reside nesse Li.
Ela predomina sobre tudo, é em tudo, governa e produz tudo como mestre
absoluto do céu e da terra.

Segundo a atribuição de Longobardi referente ao termo Li, Leibniz (1716, p. 73


apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 107) atesta que:

Eles o chamam (por excelência) o Ser, a substância, a Entidade. Essa


substância, segundo eles, é infinita, eterna, incriada, incorruptível, sem
princípio e sem fim. Ela não é somente o princípio físico do céu, da terra e
das outras coisas corporais, mas também o princípio moral das virtudes, dos
hábitos e das outras coisas espirituais. Ela é invisível, é perfeita em seu Ser
em soberano grau, é todo o tipo de perfeições.
69

Leibniz cita tais concepções para afirmar sua opinião sobre a metafísica, –
compartilhada indiretamente nos exemplos dos missionários em relação ao pensamento dos
chineses –, isto é, a ideia de uma unidade de Deus que contém todas as coisas, – princípio
exemplificado também em seu sistema binário. Esta pressuposição de Li, contendo os mesmos
atributos de Deus, é a questão contestada por Longobardi (1716), e é o que leva Leibniz a
buscar as opiniões dos chineses e sua aproximação com fatos corriqueiros existentes também
entre os ateus da Europa, já que acredita que tais questões não possam ser ignoradas e
classificadas apenas no meio chinês. Leibniz tenta, portanto, caracterizar a concepção dos
chineses sobre teologia natural, através do apontamento de princípios que melhor
caracterizam esta doutrina. Dessa forma, contesta os argumentos que comparam o Li dos
chineses à matéria primeira:

Para precisar, não vejo como seja possível que os chineses possam tirar da
matéria primeira tal como nossos filósofos ensinam em suas escolas, que é
uma coisa puramente passiva, sem regra e sem forma, a origem da ação, da
regra e das formas. Não os creio tão estúpidos e absurdos para tanto. Essa
matéria primeira escolástica não possui outra perfeição além do Ser senão a
da receptividade e da potência passiva. Ela possui somente a capacidade de
poder receber todos os tipos de figuras, de movimentos, de formas. Mas ela
não pode ser a fonte de tudo isso, e é claro como o dia que a potência ativa e
a percepção que regra essa potência ativa para operar de uma maneira
determinada não lhe convém. Assim, creio ser um erro considerar o Li dos
chineses, que é a Razão ou a Regra, como a matéria primeira (LEIBNIZ,
1716, apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 110-111).

Do ponto de vista da sinologia comparada, Leibniz busca apoiar-se totalmente no


material traduzido pelos missionários na China, – o que parece comum no século XVII,
conforme apresentado por Mungello (1989) –, mas contesta a opinião dos religiosos
contrários ao método de acomodação, e se utiliza de seu conhecimento filosófico para
desenvolver os pontos da cultura chinesa que considera positivos, particularmente sobre a
interpretação da querela dos ritos, que impedia os avanços da sinologia em seu tempo, e
tornava inviáveis todos os trabalhos desenvolvidos na China desde Ricci. Leibniz parece usar
de forma seletiva e metódica todas as informações que obtém sobre a China e faz uma
profunda análise, procurando distanciar-se das leituras e influências religiosas contidas no
material coletado, e apresentando propostas inovadoras e autênticas de reinterpretação do
contexto chinês sobre a metafísica. Um exemplo de suas considerações pode ser notado
quando diz:
70

O autor chinês, segundo a tradução que o Padre Longobardi nos oferece,


prossegue assim: “Os Espíritos são todos da mesma espécie que o Li, de
modo que o Li é a substância e a Entidade universal de todas as coisas”.
Imagino que ele queira dizer que o Li é, por assim dizer, a quintessência, o
vigor, a força e a entidade principal das coisas, pois ele distinguiu
expressamente o Li do ar e a matéria do ar. Parece que aqui o Li não significa
a primeira substância espiritual, mas de modo geral a substância espiritual ou
a Enteléquia, ou seja, aquilo que é dotado de atividade e de percepção ou
regra de ação como as almas. E quando o autor chinês acrescenta “que as
coisas não possuem outra diferença entre elas senão ser de uma matéria
mais ou menos grosseira, mais ou menos extensa”, ele aparentemente não
quer dizer que o Li ou os espíritos sejam materiais, mas sim coisas animadas
pelos espíritos, e que aqueles que são unidos a uma matéria menos grosseira
e mais extensa são mais perfeitos (LEIBNIZ, 1716, p. 13 apud
FLORENTINO NETO, 2016, p. 112).

Quanto à análise das afirmativas desse autor chinês ainda observa que:

[...] esse autor não penetrou suficientemente a razão, e que buscou a fonte da
diferença dos espíritos nos órgãos, como também fazem muitos de nossos
filósofos por não terem conhecido a harmonia preestabelecida (LEIBNIZ,
1716, p. 13apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 112).

Considerando tais argumentos, é possível alegar que Leibniz estabelece uma


leitura metafísica, na esfera da proto-sinologia do século XVII, que consideramos ser próprio
do autor, embora Mungello (1989, p. 316) tenha afirmado que:

Bouvet revealed a mystical mathematical vision by which Fu Hsi’s diagrams


were seen as a numerological metaphysic (métaphysique numéraìre) or
general method of knowledge for reducing all things to the quantitative
elements of number, weight and measure. According to Bouvet, the method
of Fu Hsi’s diagrams followed rules of three sorts of numerical progressions,
as well as the rules of proportion and geometry and laws of statics. The
result made rational the works of the Creator. At this point, Bouvet stood
before a chasm of heterodoxy.

Mungello (1989) não apresenta mais argumentos sobre a metafísica numérica de


Bouvet, permanecendo no contexto figurista do mesmo, o que sugere a possibilidade de
Bouvet ter destacado um aspecto da metafísica por influência de Leibniz. Além disso, na carta
a Rémond, essa concepção é bastante evidente.
Ainda segundo Mungello (1989), o interesse de Leibniz pela China estava
relacionado a sua busca particular por uma linguagem universal, ou a chamada Clavis Sinica,
sem deixar de lado o contexto histórico que o tema representou na Europa do século XVII.
Mas Leibniz obteve resultados definidos sobre o assunto ao comparar os hexagramas do
71

Clássico das Mutações com seu sistema binário, tendo contribuído também com as questões
referentes a esse tema tanto na China quanto na Europa. Leibniz empenhou-se vigorosamente
no assunto da Clavis Sinica, concentrando-se em uma característica universal. Apoiado
também nos trabalhos de Ramon Lull (1232-1316) sobre o método combinatório e a arte da
memória, propôs uma linguagem filosófica, capaz de comunicar a verdade, tal como a
matemática e a geometria (MUNGELLO, 1989).
A metafísica de Leibniz pode constituir um grande diferencial na delimitação da
proto-sinologia e ainda na constituição de um modelo de sinologia, na época, devido ao
método de tratamento das informações vindas da China, que reúne o maior número possível
de registros e estabelece contatos importantes e raros sobre o assunto, além de aplicar uma
análise comparativa e específica ao material adquirido. Considerando a definição de sinologia
proposta por Mungello (1989), de que se trata de estudos avançados sobre a China pelos
europeus, é notório o similar perfil de Leibniz. Tomando o modelo de sinologia chinesa de
Wang Li, apoiado na filologia, o estudioso também merece lugar de destaque, por trabalhar
com fontes produzidas por filólogos na China, e de forma autêntica.
Com base na carta a Rémond, Leibniz descreve sua metafísica, afirmando que os
chineses não reconheciam substâncias separadas da matéria e que os antigos atestavam que o
Li (primeiro princípio ou regra) produz o Ki (matéria). A partir dessa concepção, Leibniz
deduz que Li corresponde ao Deus cristão, pela propriedade que possui de criar todas as
coisas, sendo ativo e contrário à matéria. Para eles, os espíritos são ou a potência de Deus, ou,
substâncias espirituais particulares dotadas de ação e certo conhecimento, além de corpo.
(FLORENTINO NETO, 2016).
Com base nas descrições de Longobardi sobre a atribuição dos chineses ao
primeiro princípio, Leibniz (1716, p. 73 apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 107) afirma
que:

Eles também a chamam de Unidade sumária (diz ele) ou suprema, pois


como os números têm a unidade como princípio, e como ela não tem
nenhum, também nas substâncias e nas essências do universo há uma
unidade que é soberanamente uma, que não é capaz de divisão em relação à
sua entidade, e que é o princípio de todas as essências que estão e que podem
estar no mundo. Mas ela é também o agregado ou a mais perfeita
multiplicidade, pois na entidade deste princípio estão contidas todas as
essências das coisas, como em seu germe. Nós dizemos o mesmo sobre isso
quando ensinamos que as ideias, as razões primitivas, os protótipos de todas
as essências estão em Deus. E unindo a unidade suprema com a mais perfeita
multiplicidade, nós dizemos que Deus é unum omnia, omnia comprehensa in
uno, sed unum formaliter, omnia eminenter .
72

Após Longobardi (1716) apresentar todos os argumentos referentes à concepção


de Li dos chineses, Leibniz (1716, p. 78 apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 109) questiona
se tais apontamentos não poderiam significar “que o Li dos chineses é a soberana substância
que adoramos sob o nome de Deus”. Leibniz responde que é necessário ter cautela ao fazer tal
questionamento, mas não desconsidera a possibilidade de os chineses terem indicado mais
atributos de Deus a Li do que da própria matéria. Ou seja, talvez os chineses estivessem com a
razão. Leibniz (1716, p. 79 apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 113), ao tentar contestar a
ideia de que Li é matéria prima, cita passagens da obra de Longobardi (1716) sobre os autores
chineses, sugerindo a fragilidade das afirmações:

Primeiramente, diz ele, o Li não pode subsistir por si mesmo e tem


necessidade do ar primogênito. Não sei se os chineses dizem isso
formalmente. Eles dirão talvez que ele não pode operar por si mesmo quando
opera naturalmente nas coisas, pois ele não produz as coisas senão por meio
da matéria primeira, que aparentemente entendem como esse ar primogênito.
Assim, isso antes prova que o Li não é a matéria primeira.

Leibniz vai desconstruindo os argumentos apresentados pelos próprios


missionários, vistos por ele como superficiais e que necessitavam de melhores análises e
comparações sobre o pensamento dos chineses e sua cultura. Em sua opinião,

Todas essas expressões dos chineses possuem um bom sentido. Eles dizem
do Céu o que nós dizemos dos animais, ou seja, que eles agem segundo uma
inteligência, como se eles a possuíssem, por mais que não a tenham pois são
dirigidos pela regra ou razão suprema, que os chineses chamam de Li.
Quando eles dizem que o ar protogênito ou a matéria surge do Li
naturalmente e sem vontade, é possível que acreditem que Deus produziu a
matéria necessariamente. Mas pode-se, entretanto, dar um sentido melhor às
suas palavras, explicando-as a partir da conveniência que a suprema razão
transmitiu ao que é mais razoável. É possível que, por abuso, eles tenham
chamado isso de necessário porque é determinado e infalível, assim como
muitos na Europa se servem desta expressão. Eles excluíram a ação
voluntária porque entenderam por voluntário um ato de resolução e
deliberação no qual se está de início incerto, e em seguida determinado, o
que não ocorre em Deus. Assim, creio que, sem chocar a antiga doutrina dos
chineses, pode-se dizer que o Li foi levado pela perfeição da natureza a
escolher dentre diversos possíveis o mais conveniente, e que por meio disso
produziu o Ki ou a matéria, mas com tais disposições que todo o resto veio a
ele por propensões naturais, de certo modo como o senhor Descartes
pretende que o sistema presente do mundo tenha nascido em consequência
de um pequeno número de suposições produzidas de início. Assim, os
chineses, bem longe de serem culpáveis, merecem louvores por fazer as
coisas nascerem por suas propensões naturais e por uma ordem
preestabelecida. Mas o acaso do modo algum tem lugar aqui, e não parece
73

ser fundado nas passagens dos chineses (LEIBNIZ, 1716, p. 90 apud


FLORENTINO NETO, 2016, p. 115-116).

Argumenta, assim, que todas as coisas possuem a mesma matéria primeira,


distinguindo-se pelas figuras produzidas por seus movimentos, e que essas mesmas coisas são
passivas por causa do Li, ou seja, que a matéria primeira Ki (Qi) é a produção do Li
(LEIBNIZ, 1716 apud FLORENTINO NETO, 2016). O Ki (Qi), na visão de Leibniz,
corresponde ao ar primitivo e à matéria verdadeira. Para ele, a produção da matéria primeira
pelo Li, por meio da operação divina, aponta que “a filosofia chinesa se aproxima mais da
Teologia Cristã que a filosofia dos Gregos antigos, que consideravam a matéria como um
princípio paralelo a Deus que ele não produz, mas que somente forma” (LEIBNIZ, 1716, p.
56 apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 119). No caso do Taikie (Taiji), Leibniz (1716, p. 56
apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 119-120) sugere ser “o Li trabalhando sobre o Ki,
Spiritus domini qui ferebatur super aquas, considerando o Espírito soberano como o Li, e as
águas como o primeiro fluido, como o ar protogênico, como Ki ou como a primeira matéria”.
Quanto ao termo Xangti (Shangdi), Leibniz (1716 apud FLORENTINO NETO,
2016) argumenta que, sendo o mesmo que Li, é possível dar-lhe também a designação de
Deus – afirmação defendida também por Ricci (1716). Ao defender que Xangti (Shangdi) e Li
são nomeações diferentes aplicadas a Deus pelos chineses, Leibniz (1716, p. 77-78 apud
FLORENTINO NETO, 2016, p. 126) atesta:

Esses antigos sábios da China, ao considerar o Espírito que governa o Céu


como o verdadeiro Deus, e tomando-o como o próprio Li, ou seja, como a
Regra ou como a soberana Razão, tiveram mais razão do que acreditavam.
Pois foi detectado pelas descobertas dos astrônomos que o Céu é todo o
Universo conhecido, e que nossa Terra não é senão uma de suas Estrelas
subalternas, e que se pode dizer que há tantos sistemas Mundanos quanto há
Estrelas fixas ou principais, sendo o nosso apenas o sistema do sol, que não é
senão uma dessas estrelas, e que assim o governante ou senhor do Céu é o
senhor do Universo. É por isso, como eles tão bem conheceram [essa
verdade] sem saber a sua razão, que possivelmente tenham aprendido uma
parte de sua sabedoria da tradição dos Patriarcas.

Faz, portanto, uma avaliação muito metódica do que os chineses apresentam como
suas crenças, comparando-as tanto com o que os próprios missionários contrários aos chineses
informam em suas leituras quanto com as formas conhecidas naquele tempo por outras
culturas e filósofos ocidentais, como Platão. Ao analisar o sentido de cada termo em chinês,
traduzido pelos missionários, Leibniz (1716) demonstra o aproveitamento das fontes
produzidas pela filologia ocidental na China, além de oferecer outras interpretações, com base
74

na filosofia, ao material coletado. Tal fato distingue-o dos demais proto-sinólogos da época, a
nosso ver. Em relação ao termo Kuei-xin, Leibniz (1716, p. 96 apud FLORENTINO NETO,
2016, p. 129-130) levanta a possibilidade de se tratar de espíritos celestes ou anjos, pelos
atributos de:

[...] defender e conservar os homens, as vilas, as províncias, os reinos. Não


como se eles fossem almas ou formas substanciais das coisas, mas como o
piloto que está no navio, o que nossos filósofos chamam de inteligências e
formas assistentes. É preciso reconhecer que as palavras de Confúcio de
outros chineses antigos possuem o seu sensu máxime obvio et naturali. E,
aparentemente, essas expressões tão próximas das grandes verdades de nossa
religião chegaram aos chineses pela tradição dos antigos patriarcas.

Percebe-se que Leibniz não apenas buscou defender o pensamento dos chineses
dentro de sua cultura, de acordo com as informações que reuniu, mas também enfatizou a
aproximação destes com os antigos patriarcas da religião cristã, de maneira geral. Na opinião
dele, a falha das interpretações pertencia mais aos escolásticos. Uma passagem que comprova
essa afirmação é:

O mesmo ocorre com diversas interpretações atribuídas a Aristóteles pelos


árabes e pelos escolásticos, que são efetivamente contrários às opiniões deste
autor e do verdadeiro sentido que os antigos intérpretes gregos lhe davam,
que foi recuperado pelos modernos. E eu mesmo creio ter mostrado o que é a
Enteléquia, que os escolásticos não conheceram bem (LEIBNIZ, 1716, p. 96
apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 130).

O proto-sinólogo buscou, assim, demonstrar a possibilidade de ensinar os


chineses, com base em uma interpretação razoável do axioma de que tudo é um, sendo que a
sabedoria pertence ao criador de tudo e não às criaturas inanimadas, como consequência
natural das forças que o primeiro princípio colocou nelas. O objetivo de Leibniz seria o de
satisfazer os intérpretes chineses, por reduzirem o governo do Céu e outras coisas às causas
naturais, isto é, apoiar sua doutrina e apresentar-lhes as descobertas da Europa, admitindo a
participação da potência da substância suprema, a que os chineses chamam Li.
(FLORENTINO NETO, 2016).
Sobre as almas humanas que os chineses classificam como Hoen, Leibniz (1716
apud FLORENTINO NETO, 2016), com base em Longobardi, diz ser a alma que sobe ao Céu
e o Pe ou corpo que volta para a terra. Afirma ainda não ver problema algum das almas
humanas na doutrina clássica chinesa, e que estas “aproximam a natureza dos Espíritos
ministros do supremo Espírito, embora eles sejam de um grau inferior ao dele” (LEIBNIZ,
75

1716, p. 76 apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 144).


Leibniz (1716, p. 76 apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 145), por meio da citação
de um autor chinês que distingue muito bem a natureza universal, afirma:

A Natureza Universal, diz ele, não chega e não parte, mas a alma chega e
parte, ascende e decai. Ou seja, ela é ora um corpo grosseiro, ora um corpo
mais nobre e sutil, e é dado a entender que ela subsiste, pois do contrário
retornaria à natureza universal.

E, em relação ao culto dos ancestrais, comenta:

O culto dos ancestrais e dos grandes homens instituído pelos chineses


antigos pode muito bem ter por fim marcar a gratidão dos vivos, virtude
prezada e recompensada do céu, e para incentivar os homens a fazerem
ações que os tornam dignos do reconhecimento da posteridade. Entretanto,
os antigos falam dele como se os espíritos dos ancestrais virtuosos, envoltos
por uma aura de glória na corte do monarca do universo, fossem capazes de
causar o bem e o mal a seus descendentes. E parece que, ao menos
aparentemente, eles os concebem como subsistentes (LEIBNIZ, 1716, p. 21
apud FLORENTINO NETO, 2016, p. 148).

Leibniz (1716) faz uma análise bastante lúcida sobre as doutrinas dos chineses, do
ponto de vista filosófico, e esclarece pontos mal interpretados e mesmo desconsiderados por
aqueles que condenam a teologia natural dos chineses. Do ponto de vista da sinologia, faz
sugestões importantes, ao dizer:

É bem possível que, se nossos europeus fossem suficientemente informados


sobre a literatura chinesa, o auxílio da lógica, da crítica, das matemáticas e
de nossa maneira mais determinada de nos exprimir do que a deles nos faria
descobrir nos monumentos chineses de uma antiguidade tão remota coisas
desconhecidas pelos próprios chineses, e mesmo por seus intérpretes
posteriores, por mais clássicos que os creiamos (LEIBNIZ, 1716, p. 21 apud
FLORENTINO NETO, 2016, p. 149).

Tais sugestões comprovam o ponto de vista além de seu tempo, na perspectiva da


sinologia comparada, e servem de introdução para os comentários sobre as descobertas
referentes aos hexagramas de Fu Xi (com a contribuição de Bouvet), demonstrando sua
dedicação nos estudos mais avançados sobre a China:

É assim que o Reverendo Padre Joaquim Bouvet e eu descobrimos o sentido


aparentemente mais verdadeiro e mais preciso dos caracteres do Fohi,
fundador do império, que não consiste senão na combinação de linhas
inteiras e interrompidas, e que são considerados os mais antigos da China,
76

assim como são também os mais simples (LEIBNIZ, 1716, p. 21 apud


FLORENTINO NETO, 2016, p. 149).

A questão referente à análise dos hexagramas de Fu Xi (presente nas cartas, a


partir de 1701), mesmo anterior à correspondência sobre a querela dos ritos (1716), promove
debates muito próximos, visto que as missões dos jesuítas na China, na época de Bouvet, já se
encontravam em conflito, devido aos resultados do método de acomodação de Ricci, que
precisaram ser revistos. Além disso, os rituais chineses eram criticados e discutidos pelo
método de conversão dos chineses ao cristianismo, desde o início das missões. Neste
contexto, o Discurso sobre a teologia natural dos chineses, atribuído a Leibniz (1716), é um
importante divisor do momento de transição da sinologia ocidental, em seu processo de
construção. Seus argumentos sobre os hexagramas de Fu Xi vêm comprovar o axioma chinês
apresentado na carta a Rémond, de que todas as coisas são uma, utilizada ainda como apoio
pelo Padre Longobardi (FLORENTINO NETO, 2016). Na carta a Rémond, Leibniz parece
reforçar as convicções sobre a teologia natural dos chineses, demonstrando sua metafísica
para explicar o comportamento destes em relação ao que os missionários denominaram
querela dos ritos. Concentrando-se no Li e em suas atribuições, enfatiza que este possui
características comuns aos assuntos discutidos pelos filósofos europeus, que não merecem ser
negligenciados ou excluídos, sem um amplo estudo ou consideração de suas semelhanças.
Esta observação de Leibniz serve também de introdução aos seus apontamentos em aritmética
binária – trabalho debatido nas correspondências com Bouvet –, a cerca das comparações de
seu sistema, resumidos em 0 e 1, com os hexagramas de Fu Xi.

1.4.1 As contribuições de Leibniz na formação da proto-sinologia

A proto-sinologia, de modo geral, corresponde ao início dos estudos sobre China


desenvolvidos por cientistas europeus, o que difere dos interesses missionários na China, por
constituírem contatos restritos, e também da sinologia posterior, pelo nível de conhecimento e
objeto de estudos (MUNGELLO, 1989). Consideramos Leibniz o precursor da proto-
sinologia, por seu perfil científico e relação específica com o material produzido pelos
missionários na China, o que o destaca na classificação de Mungello (1989), visto que os
proto-sinólogos considerados ou eram missionários fora da China, ou, cientistas dependentes
das informações vindas daquele país e produzidas pelos jesuítas. Leibniz, ao introduzir o
método matemático na análise dos hexagramas contidos no Clássico das Mutações, muda o
77

foco de uma pesquisa totalmente religiosa e fundamentada no figurismo para uma científica.
Os apontamentos deste filósofo e matemático sobre a teologia natural dos chineses destacam
sua posição dentro da proto-sinologia, pela questão específica da metafísica e de seus
interesses em assuntos referentes à China, indiferentes ao seu plano de substituir as missões
católicas pelas protestantes. Seu apoio teórico eram os trabalhos desenvolvidos na China pelos
jesuítas e, particularmente, a análise filológica de Bouvet sobre o Clássico das Mutações. Tal
fato limitava sua obtenção de informações mais avançadas e distantes das interpretações feitas
pelos missionários, em relação aos materiais da China.
As contribuições de Leibniz na formação da proto-sinologia estão relacionadas
diretamente com a sua troca de correspondências com os missionários na China. Embora
tenha apresentado interesse pelo país, ele nunca havia estado lá, mas seu conhecimento sobre
o assunto era considerável, devido à ampla rede de contatos, principalmente por cartas. Neste
aspecto, a posição de Leibniz enquanto cientista poderia ser considerada neutra, uma vez que
concentrava-se nos assuntos de sua investigação. Leibniz certamente teria melhor êxito, se o
material de suas análises não sofresse influência das missões na China. Apoiou a reflexão
figurista de Bouvet, conforme se pode observar nas cartas, e incentivou seu método
comparativo. Quanto ao foco científico, Leibniz produziu em 1689, em Roma, uma lista com
trinta perguntas sobre a China endereçadas a Grimaldi, que demonstravam sua curiosidade
puramente científica acerca dessa nação (FLORENTINO NETO, 2016).
Podemos afirmar que o pensamento científico de Leibniz, em relação aos assuntos
da China, foi a maior contribuição deste estudioso para a formação da proto-sinologia, visto
que o pensamento anterior, tanto dos missionários na China quanto na Europa, era concebido
como misterioso ou ateísta. Mas Leibniz destacava os valores de uma cultura até mesmo
avançada para os padrões europeus e que precisava ser explorada com cuidado. A ciência
desta civilização também lhe despertava o interesse.
A possibilidade de intercâmbio entre a China e a França foi algo bastante
defendido por Leibniz, pois facilitaria a troca de conhecimentos e resolveria suas indagações.
O fato de saber que o Imperador Kang Xi se interessava pela matemática ocidental atraiu a
atenção do pesquisador. Para o desenvolvimento da proto-sinologia, Leibniz partiu em defesa
das missões na China, por meio da elaboração das discussões sobre a teologia natural dos
chineses. O conflito religioso – já intenso no âmbito das missões chinesas – ganhou
relevância com a querela dos ritos, atribuídas a Longobardi. Na carta a Nicolas Rémond, de
1716, Leibniz defende a conciliação e a consideração da concepção teológica dos chineses,
que era criticada por Longobardi, responsável pelas missões na China.
78

Ao realizar a comparação dos hexagramas contidos no Clássico das Mutações,


por meio de sua aritmética binária, Leibniz fortalece os contatos com os missionários, através
de Bouvet – um dos matemáticos do Rei Luís XIV da França e contato direto do Imperador
Kang Xi da China. Leibniz considera o risco de acabar esse contato com o Imperador chinês,
em sua carta a Bouvet, de 1703, aconselhando-o a concentrar seus estudos na história das
artes da China, para evitar um possível abandono dos interesses de Kang Xi, tão logo este
percebesse não ser mais necessária a troca de conhecimento com os estrangeiros
(FLORENTINO NETO, 2016). É evidente o interesse de Leibniz na ciência chinesa, e o
contato com os missionários vincula-se a este propósito, por isso seu papel na proto-sinologia
é fundamental. Além disso, Leibniz reúne características típicas de um sinólogo – conforme
concebido nesta pesquisa, com base em Wang Li – quando se aproxima da perspectiva de
Granet, por suas considerações sobre os hexagramas e por suas reflexões sobre as
controvérsias referentes aos caracteres Li (理), Ki (气, Qi), Tai-kie (太极, Taiji) e Xangti (上
帝, Shangdi), relatadas na carta a Rémond. Podemos dizer que o que mantém Leibniz dentro
do modelo de proto-sinologia não é o fato de não dominar o idioma chinês, – embora fosse
um instrumento que facilitaria suas pesquisas –, e nem mesmo o fato de não ser filólogo; mas
o fato de, inevitavelmente, seguir a abordagem figurista de Bouvet, o que limitava um maior
conhecimento sobre a China.
Embora existisse limitação de informações em relação às interpretações
missionárias no século XVII, é notório o excelente aproveitamento que Leibniz fez não só do
material que coletou, mas também dos contatos que estabeleceu com importantes missionários
e estudiosos envolvidos com a China, como Bouvet, Grimaldi, Le Gobien, Verjus, Kochanski,
Vota, dentre outros. Sua rede de troca de informações foi fundamental para que tivesse acesso
a assuntos sobre antropologia, teologia, filosofia etc, apresentados posteriormente em sua obra
Novissima Sinica, em que se destaca o pensamento chinês da época. Leibniz tinha total noção
do que a condenação dos ritos chineses representava para os trabalhos realizados e ao projeto
com a China, e dos efeitos negativos disso para a Europa. Diante de sucessivas condenações
aos cultos chineses, Leibniz intervém, refutando os apontamentos considerados como idolatria
chinesa, e defendendo serem práticas puramente de respeito e honra a Confúcio, por seus
méritos culturais. Para ele, os chineses não consideravam Confúcio como um Deus. Segundo
Le Gobien (1700 apud LEIBNIZ, 1987), as cerimônias eram obrigações de honra aos
governantes e aos letrados. Dentre esses e outros argumentos, Leibniz vai desconstruindo a
opinião dos religiosos contrários à cultura chinesa, a qual desconheciam, mas para qual
79

impunham mudanças. A proposta de Leibniz era de conciliação e consideração das práticas


vistas por ele como naturais e compreensíveis.
A maior contribuição de Leibniz para a proto-sinologia e para a sinologia foi sua
atuação nos interesses acadêmicos de sua época para os estudos sobre a China. Além de
estudioso, Leibniz estabeleceu um importante contato com Grimaldi, missionário jesuíta e
membro da Academia de Ciências em Beijing. O encontro de Leibniz e Grimaldi deu-se
quando ele esteve na Academia de Ciências da Itália (FLORENTINO NETO, 2016). A
aproximação entre os dois constitui um marco para as ciências e para os estudos referentes aos
assuntos da tradição técnica e científica da China, fato que supera os demais proto-sinólogos
de seu tempo. Seus propósitos em efetivar intercâmbios entre a China e a Europa determinam
os benefícios que poderiam trazer para ambos os países, caso as exigências não fossem
consideradas apenas da parte europeia.
As considerações de Leibniz sobre a querela dos ritos também têm um papel
fundamental na concepção da proto-sinologia de seu tempo, já que apontou propostas viáveis
para a resolução do problema de intolerância religiosa por parte das missões na China sobre a
cultura chinesa. Ao discutir filosoficamente as práticas cerimoniais dos chineses, Leibniz
contesta todos os argumentos apresentados por Longobardi que denunciavam tais ritos como
contrários ao cristianismo. Esta perspectiva era um fator limitante para as acomodações
jesuítas na China, desde o tempo de Ricci (LEIBNIZ, 1987). A base da filosofia de Leibniz
sobre o pensamento chinês está na concepção metafísica, em particular, de matéria e de
universo. Focado em seu entendimento sobre os conceitos de mônada, força, harmonia
universal e harmonia preestabelecida, ele recusa que o pensamento chinês seja materialista ou
ateu (FLORENTINO NETO, 2016). A concepção filosófica de Leibniz sobre a metafísica,
mais direcionada ao seu entendimento de matéria, atuaram diretamente, por meio de seus
escritos, na proto-sinologia, servindo de base para seus argumentos referentes ao grande fator
limitador dos contatos de estudo sobre a China, – a querela dos ritos.
Ao contrário do que afirma Mungello (1989) sobre a teoria do figurismo de
Bouvet ter sido transmitida para a Europa por meio de Leibniz, acreditamos que Leibniz, com
seu estudo comparado dos hexagramas de Fu Xi, tenha atuado na comprovação e no auxílio
da teoria do figurismo de Bouvet, – cujas discussões mantiveram-se limitadas entre ambos –,
pois Leibniz, mesmo ao apoiar os apontamentos do jesuíta, parece não compartilhar desta
opinião em sua produção, mas sim atuar na divulgação dos hexagramas do Clássico das
Mutações, apresentados a ele por Bouvet, mas de acordo com sua concepção filosófica. Um
exemplo que reforça essa afirmativa é seu comentário sobre Bouvet na carta a Rémond, em
80

que se concentra na apresentação de sua comparação dos hexagramas com a aritmética


binária, sem entrar em detalhes sobre o figurismo, mesmo sendo este um importante assunto
relacionado à religião. Leibniz mantém sua concepção filosófica, que o coloca à frente de
supostas influências, destacando seu posicionamento científico em tratar as informações,
importante contribuição para a proto-sinologia de seu tempo.
Na época de Leibniz, contrariar as concepções estabelecidas pelo cristianismo,
parecia constituir um grande desafio, mesmo dentro da academia, já que muitas delas foram
fundadas por representantes religiosos. Leibniz tinha consciência dos problemas enfrentados
pelos jesuítas na China, como demonstra a seguinte passagem:

Leibniz se préoccupe de la querelle des rites chinois pour sés effets plus que
pour son contenu: il ne cesse de mettre en garde contre le danger qu’elle fait
courir aux missions, jésuites ou autres, et ne s’étonne jamais des mauvaises
nouvelles que lui arrivent de Chine. Pour le contenu, il en traite rapidement:
car la question porte sur le culte, sur la religion extérieure; or les devoirs
rendus à Confucius et aux ancêtres ne sont que civils et honorifiques, aussi
peu religieux que le cident. Les Européens – le parti romain surtout – se
laissent abuser par la fausse singularité de l’exotisme: ils ne reconnaissent ni
ne tolèrent ailleurs ce qui se fait ici sans péché. Moins politique qu’on ne l’a
dit, l’intérêt du philosophe porte sur le seul vrai problème théorique à
élucider: la métaphysique (LEIBNIZ, 1987, p. 19).

Para ele, o problema não estava nos ritos dos chineses, mas no tratamento
direcionado a eles e suas práticas, de forma escolástica. Decide, então, distanciar-se da análise
teológica e tratar a questão da querela dos ritos do ponto de vista filosófico. O autor expressa
essa decisão, quando diz:

Je laisse aux théologiens le soin de discuter des cérémonies civiles


[entendez; la querelle des rites]; je préfère quant à moi m’intéresser à ce qui
importe le plus à la philosophie (c’est-à-dire à la théologie naturelle): les
esprits et le Xamg-ti (LEIBNIZ, 1987, p. 20).

Por meio desta conduta, Leibniz apresenta sua opinião sobre o tratamento, não
apenas das práticas culturais chinesas, mas também de sua forma de ver e estudar a China, o
que comprova sua contribuição para o desenvolvimento de uma autêntica proto-sinologia,
definindo a importância que esta pesquisa deu a esse estudioso no âmbito da sinologia
comparada, apontando a transição dos estudos sobre a China com aspectos figuristas, para
proto-sinologia enquanto ciência, somente limitada pelas informações impregnadas de
interpretações das missões na China. No caso de Leibniz, o problema das influências de
81

leituras dos jesuítas no material produzido e propagado na Europa ainda passou por seu
método exclusivo de análise, o que beneficiou a sinologia, de modo geral.
As considerações filosóficas sobre a China feitas por Leibniz são de grande
importância para a sinologia chinesa, uma vez que se aproximam dos objetivos dos chineses
na antiguidade, ao analisar os clássicos do período Han, buscando esclarecer a visão política e
filosófica dos autores antigos, para resgatar as informações mais pertinentes e estabelecer um
vínculo histórico. Leibniz não era filólogo, como os estudiosos chineses, mas se utilizou
indiretamente da ciência, ao coletar informações produzidas pela filologia ocidental,
exatamente como fez o sinólogo ocidental moderno Marcel Granet. A diferença entre ambos é
que Granet está inserido num período, em que as discussões científicas sobre a China estão
em destaque e, além disso, ele introduz o método da sociologia na sinologia. A semelhança
entre períodos distintos sobre a sinologia coloca Leibniz em destaque na história.
Quanto aos diversos estudos sobre a China, Leibniz revela, na lista de trinta
perguntas a Grimaldi (1689), o conhecimento que já possuía sobre o país, além dos interesses
que vão além dos proto-sinólogos de seu tempo. Todas essas perguntas são importantes para a
sinologia, destacando-se para as análises as seguintes:

4. O Flora Sinica do P. Boyon ainda existe? Existem ainda mais livros não
publicados sobre a China?
7. É correto que os chineses produzem papel dourado e conseguem inserir
listras de outros materiais na malha do papel? Quais procedimentos
particulares eles usam na produção de papel?
9. Como eles preparam a terra da qual a porcelana é produzida? Ela é
transparente por natureza e não há esperança alguma de encontrar algo
semelhante na Europa? Não se usa cal com estanho como ingrediente para
laqueá-las?
13. Em que se diferenciam a produção de vidro na China e na Europa,
considerando que o vidro chinês é mais frágil, mas também fluido.
14. Existem medicamentos reconhecidamente comprovados que poderiam
ser copiados na Europa, ou importados, tais como nossa gente copiou a
moxa? Como é o procedimento cirúrgico dos chineses?
15. Não existe na tradição antiga dos chineses traço algum de geometria
demonstrativa e de metafísica? Eles conhecem o teorema, que teria tido, para
Pitágoras, o valor de uma hecatombe?
16. Desde quando os chineses fazem uso de observações astronômicas?
22. Tradução para o latim de trechos especialmente úteis de livros chineses,
sobretudo sobre história e história natural.
24. Eles têm máquinas especiais que vale a pena imitar na Europa? Sobre a
técnica empregada por uma numerosa quantidade de gente para transportar
grandes pedras.
25. O que podemos esperar de uma chave para decifrar os caracteres
chineses?
26. Como os chineses destilam, do arroz, um álcool com o mesmo valor do
nosso? Qual é a química deles e como eles separam diferentes metais? Eles
82

lavam ouro da areia e há alguma particularidade sobre isso?


28. Facilitação da vida cotidiana, que teria valor introduzi-las na Europa de
acordo com o modelo chinês.
29. Suas técnicas militares e outras observações úteis sobre estratégias
militares e navegação. Como são produzidas as velas dobráveis e quais
dispositivos eles usam contra fortes impactos de vento?
30. Minas chinesas para extração de metais e minerais. Como eles produzem
sal de cozinha, nitrato e outros semelhantes? (LEIBNIZ, 1689 apud
FLORENTINO NETO, 2016, p. 27-29).

Nestas questões, Leibniz demonstra muito interesse em técnicas chinesas


possíveis de ser aplicadas ou desenvolvidas na Europa, indicando a necessidade de
conhecimento de técnicas e produtos existentes na China, além de enfatizar o desejo de saber
mais sobre a matemática e de ter acesso a mais livros traduzidos do chinês. Sabe-se que
Leibniz, enquanto estudioso, leu muito do que circulava na Europa a respeito da China e, por
meio de suas perguntas, percebe-se que tais fontes, possivelmente, tenham citado fatos
curiosos daquele país, mas sem maiores detalhes de seu funcionamento. A percepção de
Leibniz vai além dos fatos observáveis, como se pode notar pelas dúvidas que requerem
análises e reflexões mais aprofundadas, próprias de sua inquietação científica.
Para ele, a língua chinesa apoiava-se em sua busca por uma Clavis Sinica. O
termo, comum em seu tempo, fundamentava-se nas pesquisas em proto-sinologia europeia,
que buscavam uma língua universal. Segundo Mungello (1989), Leibniz, como um dos
cientistas envolvidos neste tipo de pesquisa, diferencia-se dos demais por seu foco na
linguagem filosófica, com características semelhantes à matemática. Leibniz passou a dar
mais atenção à língua chinesa, considerada como possível língua primitiva, no século XVII,
como demonstra a pergunta de número 25, dirigida a Grimaldi. Bouvet é apontado, por
Mungello (1989), como o responsável por apresentar mais detalhes sobre a língua chinesa a
Leibniz e enviar-lhe os exemplares dos hexagramas do Clássico das Mutações. Bouvet
interessou-se pela aritmética binária de Leibniz e pediu mais detalhes a Leibniz que, por sua
vez, fez aproximações dos hexagramas com seu modelo, confirmando suas suposições de
semelhanças com a possível Clavis Sinica. Para eles, os hexagramas de Fu Xi eram sistemas
simplificados da linguagem escrita dos chineses antigos, e tinham como base a matemática,
semelhantes ao sistema binário de Leibniz. Esta comparação deu segurança às indagações
figuristas de Bouvet, e, enquanto contribuição para a proto-sinologia, foi o modelo mais
plausível de Clavis Sinica, tendo resolvido uma questão muito duvidosa, até aquele momento,
considerando a busca pelos outros proto-sinólogos apresentados por Mungello (1989).
Leibniz, como grande interessado pelos assuntos sobre a China e leitor insatisfeito
83

com as informações ainda sem esclarecimentos para suas inquietações, demonstra nesta lista
de perguntas a Rémond o quanto ainda havia para se explorar sobre esse país. É possível
apontá-lo como um dos estudiosos mais informados daquele tempo sobre as questões dos
chineses, e o mais influente, dentre os proto-sinólogos que necessitavam de contatos mais
seguros e de propriedade para reunir materiais para suas pesquisas, pode-se ainda afirmar que
Leibniz influenciou mais os missionários superiores na China, por seu envolvimento direto
com questões delicadas, como a querela dos ritos, e também por seu contato com os mais
importantes grupos de estudiosos na Europa, do que os próprios pesquisadores.
A diversidade de temas tratados por Leibniz, como o Discurso sobre a teologia
natural dos chineses, os comentários no Novissima Sinica, as perguntas a Grimaldi referentes
aos chineses, além das correspondências abordando amplos assuntos sobre a civilização
chinesa, são provas do nível de conhecimento e capacidade de influência do proto-sinólogo
para o século XVII. Sua concepção de harmonia preestabelecida, seu conceito metafísico de
mônada, seu interesse pela característica universal, por uma linguagem filosófica, são alguns
atributos do filósofo e proto-sinólogo que fizeram parte de um momento de transição da
sinologia, superando a proto-sinologia baseada praticamente no figurismo, por uma
perspectiva científica.
84

Capítulo 2: A concepção científica da sinologia moderna

2.1 O método da sociologia de Émile Durkheim na sinologia de Marcel


Granet

Granet (1997) inova a sinologia ao introduzir, na análise da civilização chinesa, o


ponto de vista da sociologia, de Durkheim (1858-1917). O método da sociologia passa a ser
um diferencial, ao observar a sinologia ocidental em comparação à sinologia chinesa, por
apresentar uma proposta que se distancia do uso da filologia e do material editado por essa
área e que foca nos grupos sociais e no que a sociedade chinesa produz. O método aplicado
por Granet não desconsidera toda a filologia e a linguística em suas análises, pois acaba se
utilizando indiretamente desses instrumentos por meio dos autores e dos livros a que se refere,
como Henri Maspero (1883-1945), Bernhard Karlgren (1889-1978) etc. Mas a investigação
científica, enquanto objetivo, fortalece totalmente o aspecto de abordagem dos estudos sobre a
China, já iniciados por Leibniz, que demonstrou o distanciamento das influências religiosas
sobre o assunto.
Para falar da influência do método da sociologia de Durkheim na sinologia de
Granet é preciso referir-se à obra Études sociologiques sur la Chine (GRANET, 1953) que,
embora seja posterior ao Pensamento Chinês (GRANET, 1934, primeira edição), aqui
considerado, faz parte dos estudos em sinologia e é um exemplo da visão sociológica aplicada
na China em sua época, o que por sua vez é considerado nesta pesquisa como importante
inovação. No prefácio da obra de Granet (1953), Louis Gernet, diretor de estudos da École
des Hautes Études, argumenta que o autor contribuiu muito para as ciências humanas,
especialmente, para a sociologia. Gernet diz que “Simiand présentait un jour Granet comme
un des sociologues les plus qualifiés [e que] Granet ne s’est jamais occupé que de sinologie[,]
ce sont toujours des réalités indigènes qu’il analyse” (GRANET, 1953, p. 8-9). Segundo o
prefaciador, Granet buscou apresentar o positivismo de um historiador, além de apoiar-se na
busca das realidades humanas, – tidas como sociais, conforme definiu Durkheim –, tomando-
as como instrumento de análise. Uma passagem que comprova a influência do método da
sociologia de Durkheim, em Granet, é:

“Depuis qu’il y a des sociologues, leur premier objet, quand ils travaillent,
n’est-il pas de découvrir des faits?” Granet aspirait à la joie de la découverte;
il est de ceux qui l’ont le plus éprouvée: le dogmatisme ne la connaît pas.
Mais “l’ouvrier” avait le droit de “dire sa reconnaissance” quand il avait pu
analyser les agencements féodaux qui sont à la base d’un type familial, ou
85

quand il avait pu montrer dans les structures et les aménagements sociaux la


raison d’être et le principe d’organisation d’une pensée morale, d’une
imagination mythique, d’un systeme du monde (GERNET, 1953 apud
GRANET, 1953, p. 9).

Ainda de acordo com Gernet (1953), a linha de pesquisa de Granet parece ser
mais da sociologia que da sinologia, ou um estudo próprio da sociologia, devido ao método
que ele segue. Para o prefaciador a sinologia parece ter o significado comum definido no
Ocidente, isto é, o da busca pela especialização em China, como se esse país e sua civilização
fossem distintos dos outros. Mas ele nota a possibilidade de um estudo em sociologia, o que
acredita ter sido o trabalho de Granet. Neste trabalho, também compartilhamos do ponto de
vista de que a sinologia de Granet é baseada na aplicação do método da sociologia, ao
considerarmos a sinologia chinesa de Wang Li, em uma análise comparada, sem
desmerecermos as inovações e principalmente o desenvolvimento científico da sinologia
ocidental, cujo responsável foi Granet.
Na tentativa de definir o termo fato social, criado por Durkheim (2007), Gernet
(1953 apud GRANET, 1953, p. 9) expõe sua opinião sobre as pesquisas de Granet:

Des faits: c’est-à-dire des formes définies de l’ “humaine nature”; et donc


qui ont valeur scientifique. On ne les déduit pas, on ne les reconstitue pas par
intuition immédiate, elles peuvent être singulières et scandaleuses: on les
observe, et c’est dans un contexte qu’on les observe. Certes, Granet savait
tout le prix d’une typologie qui, dans la science de l’homme, ressortit à une
sociologie générale: les Catégories matrimoniales en témoignent assez, et
déjà le souci qu’il a eu, dans la Civilization, de situer la famille chinoise
noble. Mais, encore une fois, il est sinologue, c’est à une humanité
particulière – et d’ailleurs largement étendue dans le temps et l’espace –
qu’il s’intéresse directement. Je me risquerais à dire que ce qui l’attirait plus
que tout, c’était des comportements – à condition d’approfondir le sens du
terme et d’y retrouver la notion, aussi familière à Granet qu’à Mauss, de
l’homme total: et on la retrouvera justement ici, en clair ou en filigrane.

Pode-se perceber, assim, que Granet tem como foco o comportamento dos
chineses, ou seja, a natureza humana, não na sua individualidade, mas no que é compartilhado
pela sociedade – o fato social. Além disso, o sobrinho de Durkheim Marcel Mauss34, a quem
Gernet se refere fazendo uma aproximação com Granet, foi filósofo e sociólogo. Gernet
relaciona, direta e indiretamente, a sinologia de Granet ao método da sociologia de Durkheim
para apresentar pontos que se assemelham e para esclarecer o caminho metodológico deste
sinólogo, o que fortalece a afirmação sobre a influência de Durkheim nos trabalhos de

34
Veja-se: <http://ea.fflch.usp.br/lista-de-verbetes?q=node/69>
86

sinologia de Granet, e delimita um dos momentos de transição da sinologia, afirmando-se


como ciência moderna, distante do âmbito religioso e inserida no meio acadêmico.
Focado nos estudos de base histórica sobre o mundo chinês, Granet buscou as
características sociais, familiares e particularidades do pensamento chinês, isto é, os costumes
de uma civilização que, para Gernet, não parecem incoerentes e contraditórios. Granet (1953)
aborda as formas de parentesco e os modos matrimoniais, além das organizações sociais em
que se relacionam e suas crenças, pegando emprestado de Mauss as epígrafes: “l’expression
des sentiments sociaux et des structures” e “réalité totale, à la fois individuelle et intelligible”
(MAUSS, 1872-1950 apud GRANET, 1953, p. 10). Para Gernet, o trabalho de história e
sociologia é da mesma espécie e, nele, Granet busca destacar os fatos mais significantes.
Na perspectiva do prefaciador, Granet (1953, p. 13) realiza “une faculte
d’interprétation que la ‘théorie sociologique’ne confere pas par elle seule, et, on peut bien le
dire aussi, un art três subtil”. Mesmo assim, afirma que o autor contribuiu com os estudos das
representações religiosas chinesas e que tudo está relacionado às choses sociales, isto é, os
fatos sociais próprios do método da sociologia de Durkheim. A base reflexiva de Gernet, para
defender esse argumento está em seu comentário de que,

[...] toutes expriment, de certain point de vue, des 《choses sociales》- telle
série de symbolismes implique l’organisation féodale de la parenté – et si la
vertu d’épreuve qui est essentielle au rite assure à la croyance une continuité
créatrice, c’est qu’elle est en rapport avec une pensée d’intégration sociale et
avec les notions religieuses qui l’accompagnent aux différents moments.
Inversement en quelque sorte, le mémoire sur La vie et la mort a pour objet
immédiat une croyance, et considere mème d’abord la spéculation; la
spéculation la plus savante procede de la croyance la plus primitive; mais au
cours du procès, c’est le système des pratiques sociales qui se retrouve
(GERNET, 1953 apud GRANET, 1953, p. 13).

Pelo que se pode notar, a pesquisa de Granet está envolvida com o método da
sociologia de Durkheim, mas sua proposta foi inovadora, considerando a civilização chinesa
como objeto de seus estudos. Comparado à sinologia moderna ocidental, tal fato parece
pertinente, o que retoma o problema a respeito do papel da sinologia e da necessidade que
essa disciplina teria em existir diante da sociologia, da história, da filosofia etc, que já
propõem estudos específicos próprios para serem aplicados na China. Gernet (1953 apud
GRANET, 1953) considera o foco das pesquisas de Granet – o pensamento chinês –,
inseparável da linguagem, por ser esta específica para sua expressão.
87

De acordo com as considerações de Gernet (1953 apud GRANET, 1953, p. 14), as


análises de Granet referentes à língua chinesa bem como sua relação com o pensamento
chinês podem ser realizadas nos termos da linguística moderna, além de associadas à
sociologia, o que indica que,

[...] le chinois offre le cas, vraiment aberrant pour une langue de civilisation,
d’un état ou la fonction d’appel est au premier plan, où le langage a pour fin,
non pas tant de représenter une réalité objective que de suggérer des
sentiments et des attitudes. Il ne s’agit pas seulemnt de constater ce
pragmatisme, ni de relever les traits qui opposent le chinois au type
intellectualisé des langues modernes ou même de l’indo-européen: il s’agit
de définir, positivement, un système linguistique qui est rapport avec un
mode de pensée, et un mode de pensée qui, par son expression linguistique
elle-même, est solidaire d’une tradition sociale. La tentative d’interprétation
sociologique va donc ici au plus profond: c’est dans l’exposé qu’il faut
suivre la théorie des images vocales, celle de la convergence du
monosyllabisme et de l’écriture comme facteur de stabilisation, celle du
“rythme analogique”en affinité avec la conception des “modèles”que sont
l’un pour l’autre la nature et l’humanité – forme qui s’impose tout ensemble
à la représentation du monde, aux modes coutumiers du raisonnement, à la
structure de la phrase.

Gernet (1953 apud GRANET, 1953) afirma ainda que o sinólogo não apresenta
contestações sobre o assunto apontado por ele como sugestão ao relativismo, que o objeto de
estudos da linguística seria uma manifestação psicológica e que durante muito tempo era
especificamente social. Segundo o prefaciador, a visão de Granet apoia-se nas modalidades
típicas de Lévy-Bruhl (1857-1939), que considerou o modo de pensar em que o concreto e o
tradicional são associados e o modo de percepção envolve o comportamento linguístico.
O foco dos estudos de Granet são os fatos sociais, mais precisamente, os fatos
chineses, em que se destaca a etiqueta apresentada por essa civilização, a partir de seu
pensamento, que expressa um sistema de mundo específico. A língua, nesse contexto e desde
os rituais antigos, é tida como um sistema ordenado de signos convencionados e obrigatórios,
que serve de suporte social, isto é, como instrumento de controle da sociedade, e que está
presente em atividades determinadas no cotidiano dessa civilização. A língua como condição
solidária de toda uma mentalidade, ou seja:

[...] la série de correspondances que la pensée chinoise établit entre l’homme


et l’univers se retrouve dans un symbolisme continu que le zele
“grammatical” des ritualistes élève à la dignité d’une “métaphysique”
(GERNET, 1953 apud GRANET, 1953, p. 15).
88

Nesta concepção sobre os pontos de análise atribuídos a Granet (1953), tudo está
intimamente ligado ao pensamento, responsável por expressar a eficácia desejada de uma
língua. O autor observa que “l’analyse de Granet retient justement de la conception chinoise
cet élément psycho-physiologique que comporte pour sa part la fameuse théorie d’Aristote”
(GRANET, 1953, p. 15).
As afirmações de Gernet (apud GRANET, 1953) são importantes para esse
trabalho, visto que os estudos de Granet contribuiram com as ciências humanas e são
amplamente difundidos, principalmente, na área da sinologia, constituindo um grave
problema, segundo o autor, pela posição privilegiada dos cientistas em relação à sustentação
das normas. Tais observações são pertinentes à obra O Pensamento Chinês (GRANET, 1997),
que consideraremos aqui, e remetem ao método da sociologia de Durkheim, sendo
fundamental para esclarecer sua relação com a sinologia de Granet.
O que Gernet (1953 apud GRANET, 1953) produz em suas reflexões parece
essencial para complementar o tema deste capítulo e fortalecer as evidências sobre a base dos
estudos de Granet. Uma passagem que aponta para esse caminho é:

On ne biaise pas avec une expérience humaine. On ne peut éluder celle-là


sous pretexte que son étrangeré la disqualifie, ni la dérober dans une
idéologie complaisante. Est-il possible de l’intégrer, c’est problème
sociologique tel que Granet l’a conçu dans son domaine: “En considérant
comme des inventions étranges et singulières ces produits de la pensée
humaine, j’aurais cru manquer à l’esprit de l’humanisme comme au principe
de toute recherche positive”.La réponse est inspirée de Durkheim: si les
choses tiennent, c’est qu’elles ont des raisons de tenir; si une pensée aussi
exorbitante d’aspect peut être rendue intelligible par la connaissance du
social qui la sous-tend et qui a duré, c’est que les règles qui organisent cette
pensée “répondent en quelque manière à la nature des choses”. Je ne suis pas
absolument sûr que Granet entendit tout à fait comme Durkheim la “nature
des choses”.Il y avait peut-être chez lui un positivisme plus entier et un
relativisme plus accueillant (GERNET, 1953 apud GRANET, 1953, p. 16).

Conforme destacado, as pesquisas de Granet são próprias da sociologia e


inspiradas em Durkheim, mas resta a dúvida sobre sua compreensão a respeito do conceito de
natureza das coisas. Gernet sugere valioso considerar que Granet ampliou e renovou o
entendimento do conceito de humanismo com seus trabalhos sobre a civilização chinesa. Na
perspectiva de Rolf Alfred Stein (1911-1999), na introdução dos Études sociologiques sur la
Chine (GRANET, 1953), os trabalhos em sinologia de Granet estão fundamentados em
Édouard Chavannes (seu professor) e Marcel Mauss (seu amigo). Ele afirma ter sido o
conhecimento em sociologia que auxiliou Granet no avanço das pesquisas sobre a China.
89

Segundo Stein (1953 apud GRANET, 1953, p. 18-19), Granet herdou de Chavannes as
conquistas na área da sinologia, com as quais contribuiu, tornando a disciplina independente
da ciência tradicional e de base frequentemente escolástica, na Europa: “Chavannes avait
innové en tenant compte des trouvailles archéologiques en Chine et en se servant de la
méthode critique de philologie et d’histoire élaborée en Europe”. Na visão de Stein (1953
apud GRANET, 1953), Granet foi além ao analisar a essência dos trabalhos críticos e eruditos
dos letrados, focando nas possíveis datas dos textos e apontando falhas. Destacamos, nessa
citação, a aproximação da sinologia ocidental com a sinologia chinesa por referir-se ao
método crítico da filologia e da história elaborado na Europa. É provável que Wang Li esteja
falando dessa influência que recebeu a sinologia ocidental pelos contatos com o material
produzido pelos estudos em filologia antiga, já existentes na China principalmente na dinastia
Qing.
Neste capítulo, ressaltamos a presença do método da sociologia de Durkheim na
sinologia de Granet, principalmente, por esse ter como instrumento de análise o fato social,
elemento fundamental no desenvolvimento das pesquisas em sociologia. Defendemos que a
partir da introdução do método próprio da sociologia nas pesquisas em sinologia por Granet,
estas se distanciam do uso da filologia, mas não completamente, conforme fica claro em sua
filiação acadêmica e coleta de materiais. Ao aproximar a sinologia da sociologia, Granet
inovou as duas ciências no Ocidente. Considerando que a sinologia europeia já fazia uso da
filologia em suas análises, ainda que sob outro ponto de vista, parece que por meio dessa
prática tornou-se mais parecida com a chinesa, apresentada por Wang Li (1981). O fato de
Granet aplicar o método da sociologia nas pesquisas sobre a China destaca-o como inovador
dessa área na Modernidade. A sinologia ocidental, em comparação à chinesa, deixa de existir,
já que seu principal instrumento (a filologia) é colocado em segundo plano. Ao considerar a
sinologia ocidental em relação à sua criação e evolução fora da China, o que se nota é a
modernização dessa ciência, enquanto meio de especialização nos assuntos sobre a China,
mantendo a sinologia com seu sentido e função genéricos.

2.1.1 O conceito de fato social para a sinologia de Granet

Com base em Durkheim (2007), acerca do que vem a ser o fato social, é possível
destacar nas reflexões de Granet (1997) sobre O Pensamento Chinês, o que pode caracterizar
a importância deste conceito para a sinologia moderna, além de afirmar uma abordagem
90

científica e originalmente ocidental dos estudos sobre a China, tornando-a aparentemente


distinta das considerações referentes à proto-sinologia (Leibniz) e à sinologia chinesa (Wang
Li), uma vez que o instrumento destacado nas pesquisas destes sinólogos é a filologia. É
preciso mencionar exatamente como se define o conceito de fato social, para
compreendermos sua relação com o que foi elaborado por Granet (1997):

É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer


sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que
é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma
existência própria, independente de suas manifestações individuais
(DURKHEIM, 2007, p. 13).

Ao analisar a visão de Granet (1997) em relação ao que concebe como


pensamento chinês em sua obra, nota-se que igualmente o define como um fato social, por
possuir aspectos diferentes de outras civilizações. Esta observação está apoiada na afirmativa
de que “quando se procura explicar um fenômeno social, é preciso pesquisar separadamente a
causa eficiente que o produz e a função que ele cumpre” (DURKHEIM, 2007, p. 97). Neste
sentido, o que causa o pensamento chinês está diretamente relacionado à língua enquanto
produto e sua função para essa sociedade, assim como seu modo de refletir sobre os
fenômenos de espaço e tempo, analisados neste capítulo, com o objetivo de caracterizarmos o
conceito de fato social dentro da sinologia moderna. Desta forma, é preciso destacar também
a regra descrita por Durkheim (2007, p. 112) ao afirmar que:

A causa determinante de um fato social deve ser buscada entre os fatos


sociais antecedentes, e não entre os estados da consciência individual [...] a
função de um fato social deve sempre ser buscada na relação que ele mantém
com algum fim social.

Outro ponto que reforça esse argumento é:

As formas mais complexas da civilização não são senão vida psíquica


desenvolvida. Assim, ainda que as teorias da psicologia não sejam
suficientes como premissas ao raciocínio sociológico, elas são a pedra de
toque capaz de provar sozinha a validade das proposições indutivamente
estabelecidas (DURKHEIM, 2007, p. 101)

As regras do método da sociologia apresentadas acima servirão para delimitar as


reflexões, especificamente, referentes ao fato social como algo mensurável e passível de
classificações comparativas, como aponta Durkheim (2007). Sendo a sociologia uma das
91

áreas fundamentais utilizadas por Granet em suas análises sobre o pensamento chinês,
podemos supor que certas marcas teóricas sejam naturalmente destacadas pelo sinólogo. Para
tanto, analisaremos as considerações feitas na obra O Pensamento Chinês (GRANET, 1997)
em relação à sua definição dos conceitos anteriormente referidos, buscando revelar se o autor
toma ou não esses elementos como fatos sociais, o que caracterizará, de certa forma, o
caminho teórico metodológico do mesmo, na abordagem deste assunto.
Em relação ao Espaço e Tempo, Granet (1997, p. 65) afirma:

O pensamento, erudito e vulgar, obedece na China a uma representação do


Espaço e Tempo que não é puramente empírica. Ela se distingue das
impressões de duração e extensão que compõem a experiência individual. É
impessoal. Impõe-se com a autoridade de uma categoria.

Diante disso, podemos afirmar que o espaço e o tempo são causas do pensamento
chinês, o que comprova que sua representação não é puramente empírica. Além disso, Granet
retoma os fundamentos apresentados anteriormente de que o “fato social possui uma
existência própria, independente de suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 2007, p.
13). Apenas isto já serviria de prova para o que propomos nessas análises. Contudo,
tentaremos reunir mais exemplos que defendam tais argumentações.
Para Granet (1997, p. 66), os chineses tomam o espaço e o tempo como
“emblemas ricos em afinidades”, não sendo “dois conceitos independentes ou duas entidades
autônomas”. Esta relação existente entre ambos, como constituintes da concepção chinesa, é
explicada pelo sinólogo, quando diz que:

Pode-se agir sobre o Espaço com a ajuda de emblemas temporais, sobre o


Tempo com a ajuda de emblemas espaciais, e sobre os dois,
simultaneamente, por meio dos símbolos múltiplos e ligados, que assinalam
os aspectos particulares do Universo (GRANET, 1997, p. 66).

Quanto à condição do fato social, possível de ser mensurado, podemos notar que
Granet (1997, p. 69) apresenta dois tipos de espaço, ao dizer que: “o espaço inculto suporta
apenas seres imperfeitos; o espaço pleno só existe onde a extensão é socializada”. Outro
exemplo em relação ao espaço e ao tempo é quando diz que “os chineses decompõem o
Tempo em períodos, assim como decompõem o Espaço em regiões, mas definem cada uma
das partes integrantes por um conjunto de atributos” (GRANET, 1997, p. 71). Em Granet
(1997), a ideia de unidade entre o espaço e tempo que produz o pensamento chinês, assim
como a relação das bases concebidas como yin e yang, também tidas como de mesmas
92

características universais, pelo autor, abrangem os fundamentos teóricos de Durkheim (2007)


acerca dos fatos sociaiss.
Podemos afirmar que Granet (1997), ao analisar as características da língua, do
espaço e do tempo para os chineses, se utiliza das Regras do Método Sociológico
(DURKHEIM, 2007) referentes aos fatos sociais na composição de suas reflexões. É possível
que tenha escolhido esse caminho teórico devido à sua formação em sociologia, e isso parece
ficar claro, não apenas nestas análises, mas também quando cita Durkheim (1912):

É possível (não seria inédito) que, de diferentes lados e, imagino, a título de


elogio, estas páginas levem alguns a dizer que eu quis esclarecer os fatos
chineses por meio de “teorias sociológicas”, ou (do mesmo modo) que tentei
ilustrar “a teoria sociológica” com a ajuda de fatos chineses. Será preciso eu
declarar que não sei coisa alguma da chamada teoria ou teorias sociológicas?
Desde que existem sociólogos, porventura o objetivo primário de seu
trabalho não tem sido descobrir fatos? Talvez eu tenha apontado alguns que
não haviam chamado a atenção. O princípio da descoberta deles encontra-se
na dissertação sobre “as classificações primitivas” publicada por Durkheim e
Mauss; apraz-me dizer isso – e talvez não seja desinteressante acrescentar
que, embora poucos especialistas as tenham citado [...], as páginas dessa
dissertação que dizem respeito à China deveriam marcar época na história
dos estudos sinológicos. Acrescento ainda que, se conduzi a análise das
categorias chinesas com a única preocupação de extrair dos simples fatos
chineses uma interpretação correta, minha melhor razão para crer na
exatidão dessa análise é que ela evidencia o predomínio da categoria de
totalidade, na qual, após um vasto levantamento, Durkheim [...] insistira
vivamente. (DURKHEIM, 1912, p. 630 apud GRANET, 1997, p. 356, notas
de rodapé 21 e 22, grifos nossos).

Na interpretação deste trecho, com base nas perguntas feitas por Granet e em sua
conclusão, nota-se um teor irônico, como se houvesse a necessidade de o autor negar o que
conhece e tomar como óbvio para esse tipo de análise, justamente pela concretude e certeza,
os trabalhos de Durkheim. Além de apontar a necessidade de destacá-los nos estudos
sinológicos da época. Conforme já mencionado, a concepção da sinologia de Granet está
fundamentada no método da sociologia de Durkheim, pela necessidade de análises mais
objetivas sobre a China de sua época, e como o sinólogo afirma, por sua “preocupação de
extrair dos simples fatos chineses uma interpretação correta [na busca de comprovar] o
predomínio da categoria de totalidade” (GRANET, 1997, p. 356). Nesta citação, Granet
afirma ter-se apoiado no fato social para analisar a civilização chinesa e indica que essa é uma
condição da sociedade como um todo, ou seja, como categoria de totalidade, independente do
indivíduo, o que é próprio do método da sociologia de Durkheim.
A sociologia passa a ser o instrumento de Granet na análise da sociedade chinesa,
93

quando seu objeto de estudo passa a ser o fato social. Neste caso, Granet deixa de lado a
filologia, mas não completamente, visto que se apoia em textos chineses antigos, e que seu
professor Chavannes já se utilizava do método da filologia em suas pesquisas sobre a China.
Granet tomou a língua chinesa enquanto fato social em suas reflexões, tendo buscado o fato
social antecedente na China Antiga – tarefa difícil sem o apoio dos textos. Sobre o caminho
percorrido pelo sinólogo, afirma Stein (1953 apud GRANET, 1953, p. 19):

Analysant la critique des textes fournis par les lettrés chinois depuis près de
deux mille ans, Granet montra leur constant souci de rationalisation,
d’épuration et de schématisation des faits archaïques touffus. Mais il
démontra en même temps que, malgré eux, leur travail destructeur laissait
toujours subsister un certain nombre de schémas directeurs de la pensée. A la
critique externe, Granet opposa la critique interne.

Mas Granet não segue as análises como fazem os filólogos:

Faisait-il donc délibérément fi de la critique philologique des textes? Certes


non. Quand il commença sés travaux sinologiques, il était amplement formé
à celle méthode, agrégé d’histoire, sorti de l’École Normale. Mais il avait
vite compris que, du moins à l’époque où il travaillait, la critique
philologique des textes, telle que la pratiquent les hellénistes et les latinistes,
était alors pratiquement impossible, ou, du moins, illusoire, en sinologie.
Telle qu’elle se présentait à l’époque chez les lettrés chinois, et souvent chez
des sinologues européens qui adoptaient leurs conclusions, celle soi-disant
critique se basait dans la plupart des cas sur des appréciations subjectives de
style, ou sur des idées préconçues propres à la philosophie néo-
confucianiste. Il en allait autrement de méthodes d’investigation objectives,
comme la statistique. Granet connaissait et appréciait les travaux de Karlgren
qui employait ces méthodes (STEIN, 1953 apud GRANET, 1953, p. 19-20).

É possível notar que o problema encontrado por Granet nas críticas filológicas não
estava na filologia, mas nas concepções em que ela se apoiava na Europa. O sinólogo percebe
que tal fato não contribuia com o desenvolvimento desta ciência e, ao mesmo tempo, aponta
uma visão da filologia de sua época que se encontrava fixada no mundo europeu. De modo
similar, os estudos sobre as línguas antigas chinesas de Karlgren também foram citados por
Wang Li (1981), e Granet (1953) parece seguir seu método de investigação objetiva, mas,
provavelmente apoiando-se nos estudos históricos e sociais sobre a China. Karlgren foi
apontado pelo sinólogo chinês como o único grande influenciador da linguística chinesa,
tendo provavelmente conquistado uma posição considerável para os estudos em dialetos
antigos da China, entre os sinólogos europeus. Karlgren foi sinólogo e linguista; seu método
de pesquisa seguia os preceitos da linguística histórica. Mas Wang Li (1981, p. 152) afirma
94

que todos os sinólogos da Europa Ocidental que pesquisavam a língua chinesa eram
especialistas em linguística geral e que seus objetivos eram aplicar essa ferramenta de análise
na China, ou seja, de acordo com a concepção científica europeia, o que para os chineses foi
vantajoso, visto que passaram a conhecer e a estudar este instrumento.
Ao tomar o fato social como objeto de estudos em sinologia, Granet passa a
destacar o produto da sociedade chinesa, dependente das instituições reponsáveis por sua
existência. Segundo Stein (1953 apud Granet, 1953), o pensamento chinês tem relação direta
com essas instituições, e tudo o que os chineses produzem são expressões do pensamento que,
enquanto fato social, não são concebidas individualmente, mas possuem sua importância na
sociedade.
Granet (1997, p. 29) concebe a arte e a linguagem dos chineses como “um corpo
de técnicas que servem para situar os indivíduos no sistema de civilização formado pela
Sociedade e pelo Universo”. Assim, a língua chinesa constitui-se como arte e produto (fato
social) dessa sociedade, como algo que os distingue no mundo, e pelo que afirma Granet
(1997, p. 31), teria o propósito de tornar-se “instrumento de cultura de todo o Extremo
Oriente”. Tal visão aproxima-se, de certa forma, da proposta existente desde épocas anteriores
de encontrar uma língua universal, que teve Leibniz como um dos cientistas em destaque
sobre esse assunto. Não garantimos que Granet também tenha seguido nesta busca, – mesmo
porque seu argumento tende mais ao relativismo, já apresentado por Gernet (1953 apud
GRANET, 1953), que indica a assimilação do conhecimento por todo o Extremo Oriente
como idêntico, bastando apenas o uso da língua chinesa para uma comunicação efetiva, o que
não condiz com a verdade, – mas ele parece extender a capacidade da língua chinesa, como
fato social, para além de suas fronteiras, indicando sua condição de existência própria e
finalidade social.
Granet (1997) apoia-se, principalmente, na investigação do fato social, e afirma
que os sábios chineses buscaram defender cada um a sua escola e que possuíam
conhecimentos sobre assuntos diversos. Isto aponta as instituições escolares como fatos
sociais que detêm informações específicas e agem nos indivíduos como indutores de um
pensamento civilizatório, o que é confirmado quando o sinólogo afirma que “toda a sabedoria
chinesa tem fins políticos” (GRANET, 1997, p. 21). Em comparação, Wang Li (1981)
também aponta os estudos em sinologia chinesa, por meio do uso da filologia, como forma de
destacar as opiniões políticas e filosóficas dos antigos, o que reforça os argumentos de Granet
(1997) sobre os propósitos morais e civilizadores do antigo pensamento chinês, visto que se
tratava de meios de educar o povo. Neste ponto, existe a função do fato social que se propõe a
95

um fim social, – o de conduzir o povo à civilização (DURKHEIM, 2007). Granet (1997)


ainda afirma que seu objetivo é descobrir que espírito anima (a função) as técnicas chinesas e
apontar os fins práticos (finalidade social) dos mesmos, envolvendo também o conceito de
fato social.
Granet (1997) parece focar na língua oficial (mandarim) dos antigos, e afirma
desconhecer as variedades de dialetos existentes na China, apontando a influência recebida
pelo método de pesquisa de Karlgren (1920, apud GRANET, 1997), cujo interesse de análise
era justamente os dialetos antigos. A língua oficial (mandarim) passa a ser um recorte feito
por Granet, que indica a escolha de uma língua institucionalizada, ou seja, pertencente à
nobreza e aos letrados e não aos variados falares da sociedade. A linguagem considerada em
O Pensamento Chinês (GRANET, 1997) é ainda mais específica dos poetas, pois a obra em
análise é o Clássico das Poesias (Shijing), atribuída a Confúcio e que teria sido concebida por
interesses políticos e ritualísticos, o que reforça a ideia de uma língua com fins civilizatórios.
Os emblemas vocais representados pelos falares da nobreza e os emblemas gráficos
representados pelos caracteres determinados pelo Império demonstram dois fatos sociais que
exercem uma finalidade de coerção exterior ao indivíduo (DURKHEIM, 2007).
Na linguagem chinesa antiga e atual é comum o uso de provérbios (designados
por Granet (1997) como máximas), para indicar um nível de conhecimento cultural nas
discussões, isto é, para destacar a boa educação (MARCUSCHI, 2008). Granet (1997, p. 52)
afirma servirem para “fazer valer seu pensamento”, com o uso que os poetas chineses faziam
de uma “fórmula comprovada”, que segundo o autor, eram frequentemente utilizadas no
Clássico das Poesias (Shijing). Ainda no contexto do ensino da língua chinesa, desde o
período antigo, o tema apresentado por Granet (1997) sobre o ritmo na oratória também
refere-se ao conceito de fato social, por ser entendido como um meio de imposição de uma
regra conservada pelos antigos e treinada pelo ensino repetido de recitações, direcionadas pelo
professor aos alunos. Este método é apontado por Granet (1997) como um sistema sem regras
gramaticais ou lógica, mas com a finalidade de preservar um estilo de linguagem e estabelecer
os propósitos de conduzir, converter e convencer no ato discursivo.
Para Granet (1997) os termos yin e yang, apontados por ele como fortemente
fundamentados no Clássico das Poesias (Shijing), apresentam aspectos concretos de espaço e
tempo. Atesta que “as mutações animais são os sinais e emblemas das transformações da
atividade social” (GRANET, 1997, p. 92) e que, embora afirme a não existência da categoria
gramatical do gênero em chinês, o pensamento chinês é regido pela categoria de sexo, em que
atuam as oposições yin e yang. O conceito de fato social continua presente em sua análise do
96

yin e yang, quando estes atuam como coisas (sinais e emblemas) que apresentam as
transformações sociais, universal e independente das manifestações individuais.
Quanto aos números, Granet (1997) afirma que os antigos sábios chineses não
foram além de cálculos básicos e possíveis de serem dominados; além disso, utilizavam os
números como classificadores de coisas. Parece apontar que na China antiga não existia
matemática e que para ele os números serviam apenas como elementos classificadores. Os
números são concebidos em sua obra como emblemas com função classificatória e ligados aos
conceitos de espaço e tempo. No Clássico das Mutações (Yijing), os números recebem a
denominação de emblemas divinatórios (GRANET, 1997). A ciência dos números dos
chineses, para Granet (1997), está diretamente relacionada com as artes da adivinhação e,
conforme afirma Chavannes (1865-1918 apud GRANET, 1997, p. 136), “os teóricos chineses
não se prendiam com pleno respeito à exatidão das relações numéricas”, tendo recebido seus
princípios dos gregos. Podemos notar que Granet recebeu influência direta do sinólogo
Chavannes sobre o assunto dos números, dentre outros. Quando Granet (1997) atesta que os
símbolos numéricos são tidos como emblemas eficientes e não próprios para representar
abstrações, concebe os números da mesma forma que os caracteres chineses; além disso, os
números servem apenas para comparar as semelhanças e não para mensurar. A ciência dos
números, para o sinólogo, origina-se e aplica-se na morfologia social (GRANET, 1997), o que
indica que é concebida como fato social em sua sinologia.
Segundo Granet (1997), Tao (Dao) é concebido como eficácia, possuindo uma
ação reguladora; nele estão contidos o yin e o yang, ou seja, Tao é o universo, além de uma
ideia concebida pela sociedade chinesa, indicando um fato social, um sistema de mundo como
uma totalidade. O sinólogo busca delimitar um sistema único e definido de pensamento,
tentando distanciar-se e excluir ideias folclóricas. Considera “geomancia e calendário,
morfologia e fisiologia comuns ao macrocosmo e ao microcosmo” tomados como saber total e
regra única, que rege os homens e as coisas (GRANET, 1997, p. 238). Granet (1997) refere-
se, assim, ao produto (fato social) enquanto externo ao indivíduo, como única regra. No caso
da etiqueta, o sinólogo aponta os soberanos como divisores da civilização, o que os coloca na
posição de reguladores da sociedade. Mas o que está em jogo como fato social são as regras
tradicionais de prestígio, que indicam o soberano como representação da instituição imperial.
A etiqueta, que mantém o valor tradicional, é o símbolo de que “o indivíduo incorpora em si a
civilização nacional” (GRANET, 1997, p. 239-253).
Sobre as seitas e escolas, Granet (1997) apresenta os mestres que buscavam
colocar em prova os seus conhecimentos e os discípulos como colecionadores de habilidades,
97

por meio do contato com várias escolas. O conhecimento é apresentado como fato social,
enquanto elemento distinto e mensurável, possível de se colecionar (coisa). Quanto às receitas
de governo, o sinólogo afirma que se deve conquistar ou manter o prestígio, além de
considerar a aproximação com os políticos importante para esse fim. Os juristas reconhecem o
sentido da lei e a arte de governar, enquanto as receitas se definem como o poder do príncipe,
que só é grande se o príncipe for prestigiado como santo (GRANET, 1997), o que não
depende apenas dele, mas do sistema social, ou seja, as receitas de governo dependem de algo
além do indivíduo. As receitas do bem público, para esse sinólogo, dependem dos prestígios
adquiridos sem consistência (políticos ou juristas aventureiros), ou por herdeiros de grandes
famílias, ou chefes de escola renomados. O objetivo dos poderosos era aumentar o poder do
estado e a renda do governo; os ideais de Mozi e Confúcio são seguidos com o intuito de
preservar o bem público (GRANET, 1997). De todo modo, o prestígio parece ser o fato social,
que tem razão de existir, mas que possui finalidade social, e que independe do indivíduo, mas
se apoia nos fatores externos a ele.
Confúcio parece ter adquirido o prestígio de patrono de uma moral conformista e
de exemplo da sabedoria nacional. Mas tais valores foram agregados a ele, após um longo
tempo de estudos e reconhecimentos, e não por si só (GRANET, 1997). Consideramos que
Confúcio tenha buscado uma sociedade ideal, apoiada na educação e no civismo resgatado
dos antigos pensadores prestigiados e reunidos nos clássicos. As virtudes humanistas
defendidas por Confúcio necessitavam de uma sociedade civilizada. Granet (1997) acredita
que o bem público para Confúcio necessitava da educação do indivíduo, da compreensão do
“teu” e do “meu”, enquanto Mozi considerava tais princípios como verdadeiros castigos para
a sociedade. A educação da sociedade, no propósito de Confúcio, é um objeto institucional, e
Mozi é contrário aos princípios que buscam o fim social pela educação. Para Granet (1997), o
taoismo poderia ser apresentado como uma disciplina nacional, isto é, que tivesse um fim
social, próprio de um fato social. Na ortodoxia confucionista, a civilização surge das
necessidades da vida social, o bem é produto social, isto é, constitui fato social, por sua
própria finalidade.

2.2 A língua chinesa enquanto fato social

A língua chinesa é concebida por Granet (1997) como fato social e analisada,
neste caso, como coisa produzida pela e para a sociedade, sendo constituída independente da
98

vontade individual (DURKHEIM, 2007). Para Granet (1997, p. 29), “ao falar e escrever, os
chineses, por meio de gestos estilizados (vocais ou outros), procuram representar e sugerir
condutas”. Diante desta observação, é possível notar que, para o autor, a língua é um modo de
expressar a ação da sociedade chinesa. Ao descrever a língua, o sinólogo afirma que “o chinês
é uma grande língua de civilização que logrou tornar-se e permanecer como instrumento de
cultura em todo o Extremo Oriente” (GRANET, 1997, p. 31). Para ele, a língua parece possuir
características muito mais abrangentes do que um sistema individualizado e sem ideais
expansionistas, isto é, parece exercer uma coerção externa ao indivíduo.
Apoiado na primeira regra de Durkheim (2007) que considera os fatos sociais
como coisas para a sua melhor observação, fica evidente que Granet (1997), trata a língua
como coisa produzida por uma civilização, um “instrumento de cultura” tomado como
“emblema vocal”, que pode ser observado em sua história evolutiva e, no caso da língua
chinesa, classificada como pertencente ao grupo sino-tibetano. Assim, para Granet, a língua
chinesa falada e escrita tem as características de um fato social, e pode ser mensurada e
comparada com outras ou com ela mesma em períodos diferentes de sua história. O autor cita
um exemplo de comparação quando afirma que Karlgren “tentou até demonstrar que os
chineses outrora empregavam pronomes pessoais no caso do sujeito e no caso do objeto. [...]
Os chineses da época feudal, portanto, teriam falado uma língua em que existiam vestígios de
flexão” (GRANET, 1997, p. 32). Apresenta ainda vários exemplos que reforçam essa análise
comparativa da língua chinesa: a própria suposição de que o chinês possui características
monossilábicas já indica essa condição. Embora não conheça, o sinólogo sabe da existência de
vários outros dialetos na China, já que afirma que,

Não conhecemos a importância das variedades dialéticas que estavam aptas


a distinguir os falares dos diferentes países da antiga China. [...] Há
probabilidades de que o hábito das reuniões interfeudais tenha favorecido o
desenvolvimento de um falar comum aos nobres das diferentes senhorias
(GRANET, 1997, p. 32).

Neste caso específico, o autor parece apresentar uma distinção entre um falar
regional ou popular e um falar culto, mais nobre – visão clara do que Durkheim (2007)
apresenta como coerção, – o que caracteriza um fato social, como já dito anteriormente.
Quanto à escrita, Granet (1997, p. 38) apresenta aspectos bem distintos quando diz:

Os méritos da escrita chinesa são de ordem totalmente diversa: prática, não


intelectual. Essa escrita pode ser utilizada por populações que falam dialetos
99

– ou mesmo idiomas – diferentes, com o leitor lendo à sua maneira o que o


escritor redigiu pensando em palavras do mesmo sentido, mas que ele
poderia pronunciar de modo inteiramente diferente.

Neste fragmento, é possível notar as características funcionais da língua escrita


chinesa, segundo a visão de Granet (1997), e também o que foi definido por Durkheim (2007)
como função que cumpre um fenômeno social. A teoria de causalidade enfatizada por
Durkheim (2007) é bem empregada na análise da língua por Granet (1997), o que reforça
nossas convicções, até o momento, de que a obra O Pensamento Chinês, especificamente, no
assunto sobre a língua chinesa, apoia-se na teoria metodológica das regras correspondentes
aos fatos sociais. Outro exemplo que evidencia essa afirmação é:

A fala está ligada à escrita por um destino comum. Daí a importância desta
última no desenvolvimento da língua chinesa e o fato de que (tal como o
feitiço é reproduzido por um talismã) a virtude dos vocábulos é como que
sustentada pela virtude das grafias. A palavra pronunciada e o sinal escrito
são – juntos ou separados, mas sempre tendendo a apoiar um ao outro –
correspondentes emblemáticos, julgados exatamente adequados às realidades
que notam ou suscitam; neles e nelas reside a mesma eficácia, pelo menos
enquanto continua válida uma certa ordem de civilização (GRANET, 1997,
p. 42).

Ao analisar este trecho, podemos afirmar que o talismã é a causa do feitiço, isto é,
o talismã está impregnado de crenças que o torna um objeto com valor semântico para um
determinado grupo que o reconhece, gerando sua função social que é reproduzir o feitiço ou a
convicção de que ele ocorre em sua presença. Assim, pode-se concluir que, Granet (1997)
determina que a fala e a escrita possuem valores dependentes, enquanto forem usadas pela
sociedade chinesa, o que representa sua finalidade social. A utilidade da língua não depende,
portanto, de um único indivíduo, ou seja, é externa a ele, o que a caracteriza como fato social.
Considerando as áreas que estudam as variações e mudanças das línguas, como a
linguística histórica35 e a sociolinguística36, podemos afirmar que o método de Granet (1997)

35
Um dos principais fatores que envolvem as mudanças da língua é justamente o seu uso pela sociedade que a
criou. A linguística histórica trata da história interna e da história externa da língua: a interna foca na mudança da
estrutura da língua no tempo; a externa interessa-se pelo contexto da história social, política, econômica e
cultural de todas as sociedades, às quais ela está relacionada (FARACO, 2005).
36
“Embora Saussure (professor de Meillet, em Paris) considerasse, em tese, a língua como uma instituição social
(estudando-a, porém, como um sistema autônomo), foi Meillet quem, de fato, elaborou uma perspectiva em que
as condições sociais passaram a ser vistas como tendo uma influência decisiva sobre a língua e,
consequentemente, sobre a mudança” (FARACO, 2005, p. 152-153). Meillet percebia a língua como um fato
social, influenciado por Durkheim. A sociolinguística estuda a correlação sistemática existente entre as variações
linguísticas e os fatos sociais, como classe de renda, nível escolar, sexo, etnia dos falantes etc (FARACO, 2005).
William Labov é considerado o fundador da sociolinguística variacionista.
100

é conveniente não apenas sob o ponto de vista da sociologia, mas também da abordagem da
língua enquanto instrumento social, que existe justamente pela inter-relação e necessidade
comunicativa dos grupos sociais, pois compartilham, de certo modo, das mesmas leis que
envolvem o processo de desenvolvimento e mudança destes grupos. Granet (1997) reconhece
o falar comum no contexto imperial e no meio letrado, e sabe que há diferenças entre a
linguagem empregada no ambiente linguístico37 e os dialetos externos, que vão além do status
social e recebem privilégios e discriminações próprios das interações. Para a linguística
histórica, de maneira resumida, toda língua (falada ou escrita) sofre mudanças no tempo e
espaço devido ao seu uso no contato social (FARACO, 2005). Ao considerar a língua escrita e
o falar dos letrados e nobres em suas análises, Granet (1997) exclui, ao mesmo tempo, a
grande variedade de falantes classificados como não cultos e sem prestígio, existentes na
China, no período pesquisado. O fato de pertencer ao grupo falante de mandarim (putonghua),
ou língua imperial (guanhua), conforme aponta Ricci (1552-1610, apud WITEK, 2001),
indica que se teve acesso ao ensino. Para contextualizar é preciso citar Calvet (2007, p. 76),
segundo o qual as leis linguísticas são:

➢ As leis que se ocupam da forma da língua, fixando, por exemplo, a


grafia ou intervindo no vocabulário por meio de listas de palavras.
➢ As leis que se ocupam do uso que as pessoas fazem das línguas,
indicando qual língua deve ser falada em dada situação ou em dado
momento da vida pública, fixando, por exemplo, a língua nacional de um
país ou as línguas de trabalho de uma organização.
➢ As leis que se ocupam da defesa das línguas, seja para assegurar-lhes
uma promoção maior (internacional, por exemplo), seja para protegê-la
como se protege um bem ecológico.

Por meio de tais leis linguísticas podemos afirmar que a língua chinesa, tomada
como fato social por Granet (1997), é a de uma minoria privilegiada, o que torna sua análise
restrita a esse grupo social. Afirmar que a língua chinesa utilizada pelos nobres era de uso
geral pela sociedade chinesa seria indicar que todo povo chinês tinha acesso à educação, o que
não é verdade, pois tal quadro revela-se alarmante ainda na atualidade, mesmo com os
esforços governamentais. Conforme atesta Calvet (2007, p. 91):

Para difundir uma língua uniformizada, o governo dispõe de certo número de


meios: a televisão, o cinema, a escola... Mas a escola desempenha seu papel
imperfeitamente; muitos dos professores dão aula em “dialeto”, seu
conhecimento do pu tong hua é insuficiente etc. Acrescentemos a isso o fato
de essa língua não desfrutar de um movimento de adesão popular. Se as

37
Trata-se da presença ou ausência das línguas nas formas oral ou escrita em nosso cotidiano. (CALVET, 2007).
101

pessoas do Norte, sobretudo as de Pequim, a falam sem muitas dificuldades


(mas os pequineses representam menos de 1% da população), o resto da
população han prefere utilizar suas próprias línguas e deixa transparecer
nessa utilização fortes sentimentos identitários.

Por Granet (1997) desconsiderar um estudo linguístico da língua chinesa, como


ele mesmo comenta, sua análise fica distante do contexto que influenciou este instrumento
social, – como a criação e a introdução de novos caracteres no meio administrativo chinês, tão
logo um novo imperador assumisse a liderança, pela tradição ou por invasão, como no caso da
Mongólia e da Manchúria, – além de outras influências estrangeiras relacionadas aos contatos
comerciais, políticos, religiosos etc. Isto, porque existem “dois tipos de gestão das situações
linguísticas: uma que procede das práticas sociais e outra da intervenção sobre essas práticas”
(CALVET, 2007, p. 69-70).
Um sinólogo chinês, quando analisa um fenômeno, tomando como instrumento a
filologia, automaticamente considera o meio letrado em seus estudos, visto tratar da forma
específica do material escrito. Isso não quer dizer que não ocorram mudanças linguísticas
também nesse material, pois um dos objetivos do uso da filologia é justamente comprovar os
documentos e desconsiderar as falhas possíveis, que possam comprometer todo o trabalho
baseado nos resultados das avaliações. Um fato que comprova essa afirmativa é a ocorrência
de interpretações distantes da realidade chinesa, feitas pelos missionários e outros estudiosos
ocidentais sobre a China antiga, ao introduzirem sua concepção de mundo no material. Os
chineses já tinham experiência no uso da filologia e pareciam concientes das possibilidades de
alteração interpretativa do material, dentro de sua própria cultura.
Quando se considera a língua chinesa como fato social é preciso ter em conta de
que grupo linguístico da China se está falando, qual língua chinesa está sendo analisada, e se é
oral ou escrita. Por meio de um recorte, o instrumento língua chinesa fica um pouco menor e
melhor para ser trabalhado. A língua chinesa enquanto fato social, na visão de Granet (1997),
corresponde à língua da corte imperial, e quando considera o Clássico das Poesias (Shijing),
na análise da escrita e do estilo, naturalmente, foca no grupo linguístico dos poetas e no estilo
literário artístico.
Em 4 de maio de 1919, a forma de escrita literária clássica (wenyan) mudou para a
forma popular ou vernácula (baiyan), caracterizando uma das grandes exigências da
população por reformas no ensino. Isto indica que a língua clássica, mesmo prestigiada pelos
letrados, não era bem aceita pela sociedade, o que reforça nossa opinião de que a língua
chinesa analisada por Granet (1997) era a de uma minoria com acesso ao modelo de ensino.
102

Assim, a língua chinesa enquanto fato social retrata a nobreza da China. A linguagem poética
do Clássico das Poesias (Shijing) além de transmitir certos provérbios, próprios da cultura
chinesa (muito comuns na atualidade) e carregados de ensinamentos antigos, servia de apoio
para a memorização dos caracteres, por meio das rimas, formas e significados (WANG LI,
1981).
O que podemos deduzir, com base em Wang Li (1981), é que Granet (1997)
analisou o Clássico das Poesias (Shijing) por influência dos estudos feitos por Karlgren
(1932), em sua obra As Pesquisas dos Clássico das Poesias (Shijing yanjiu). Embora
distancia-se completamente das interpretações de base religiosa feitas pelos missionários na
China, Granet parece não abandonar totalmente a ferramenta filológica em suas reflexões, o
que o aproxima da sinologia chinesa, concebida por Wang Li.
Buscar a realidade objetiva dos fatos sociais (DURKHEIM, 2007) é a grande
preocupação de Granet (1997). Ele vê nos emblemas vocais e gráficos da língua chinesa o
objetivo específico de educar, de civilizar segundo os ensinamentos dos antigos, prestigiados
por manterem os padrões sociais tradicionais. Confúcio, conforme apresentado por Granet
(1997), em O Pensamento Chinês, recebe esse status de valor cultural, por conservar a
tradição e criar um modelo estrutural para o ensino de tais valores para a sociedade chinesa. A
língua chinesa dos letrados é um excelente instrumento de transmissão desses valores, o que a
qualifica como fato social eficiente. Mas o sinólogo coloca a língua chinesa dentro de um
padrão estabelecido em seu tempo, no meio acadêmico, e provavelmente sob influência das
discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat, classificando essa língua como inapropriada para
expressar as ideias abstratas, e útil apenas para objetivos pragmáticos, um objeto que possui a
função de representar o real, indicando o pensamento chinês como incapaz de teorizar o
mundo ao seu redor. Neste aspecto, a finalidade social, para Granet, aponta a civilização
chinesa como atrasada. Quanto ao Clássico das Mutações (Yijing), que para Leibniz recebeu
um tratamento valioso em relação à matemática chinesa antiga, foi concebido pelo sinólogo
como livro de adivinhações, pois seus caracteres foram considerados números, mas com
funções simbólicas e ritualísticas.

2.2.1 A língua chinesa segundo Granet

O sistema de linguagem chinesa, na opinião de Granet (GRANET, 1997, p. 29),


envolve arte e formas de expressar a ação, com a função de “situar os indivíduos no sistema
103

de civilização formado pela Sociedade e pelo Universo”. Para o sinólogo, a língua chinesa é
considerada uma língua universal, ou que foi criada com este objetivo, ao menos em todo o
Extremo Oriente. Uma língua monossilábica e de escrita figurativa, que na antiguidade teria
possuído mais elementos, como afixos e desinências, em sua composição, reduzidos na forma
atual. Granet (1997) reconhece os dialetos que distinguem os falares das várias regiões da
China Antiga, mas afirma não saber sua importância. Segundo o sinólogo, a língua falada na
corte teria se desenvolvido por meio das reuniões frequentemente realizadas entre os nobres
feudais. A gramática do chinês segue a regra de posição, mas a fala desse povo acompanha a
emoção, justificada por Granet (1997) pelo valor dos elementos de um conjunto emocional. O
que podemos entender por meio de tal pensamento é que, para o sinólogo, os chineses falam
com certa emoção. Poderíamos pensar que estivesse se referindo à entonação, própria da
linguagem oral chinesa, mas desconsideramos tal hipótese quando destaca que a importância
da ordem das palavras na fala dos chineses é afetiva e prática, e nem sequer menciona os
cinco tons da língua mandarim, essenciais para atribuir e distinguir significados, visto a
grande quantidade de palavras homófonas, e que mesmo utilizados, não alteram em nada a
sintaxe da língua. Neste caso, acreditamos que Granet tenha cometido um erro em sua análise,
ao confundir a linguagem poética do Clássico das Poesias (Shijing) com a linguagem comum.
Para Granet (1997), a palavra em chinês não é um signo que possa representar
conceitos, mas que denota fases do processo de mudança da natureza das coisas, como no
exemplo referente à palavra “idoso”, que para ele não existe em chinês, mas que é
representada por um grande número de termos que apontam as fases do envelhecimento. Isto
quer dizer que a língua chinesa, segundo ele, contém um léxico muito abrangente, o que
consideramos ser a concepção inútil de língua para qualquer ser humano, pelo fato de
sobrecarregar a memória. Mesmo os caracteres chineses possuem uma quantidade limitada:
Ricci (1552-1610, apud WITEK, 2001) já dizia serem em torno de dez mil. Atualmente,
qualquer um que conheça cerca de dois mil e quinhetos caracteres chineses domina
perfeitamente a leitura e possui vocabulário suficiente para se comunicar, pois a regra de
posição indicada por Granet (1997) é mesmo eficaz para a formação de novas palavras e não
apenas para determinar a sintaxe da língua.
Segundo Granet (1997), os homônimos da língua chinesa são compreendidos por
exprimirem cada um sua própria essência, o que significa que os chineses criaram uma língua
que representa a essência real e absoluta das coisas do mundo. Para ele, são emblemas sem
tantos elementos fonéticos e mais preocupados com a forma, não contendo o sentido claro das
ideias, mas buscando manter o valor afetivo e prático, para serem sentidos como emblemas
104

das palavras. Na escrita chinesa as palavras homônimas realmente são raras, pois os caracteres
são símbolos distintos, que realmente possuem a função de um signo linguístico; um simples
traço já indica tratar de outro caractere. Considerando a língua chinesa oral, existem os tons
como diferenciadores do que poderia gerar o mesmo sentido. Outro sistema diferenciador de
palavras de mesmo som é o método comum em qualquer outra língua, ou seja, o contexto
conversacional. Granet (1997) absteve-se de fazer uma análise linguística do chinês e
desconsiderou quase completamente as características fundamentais dessa língua enquanto
objeto.
Os méritos da escrita chinesa, na concepção de Granet (1997), são por sua
praticidade, não intelectuais. Ele afirma que essa forma de escrita pode ser utilizada por
qualquer falante (de dialetos ou de outras nações), por aceitar a leitura em várias pronúncias,
mantendo o sentido original. De fato isso ocorre até hoje na China, e o governo busca
implementar uma política linguística para fortalecer e expandir a língua oficial. Mas com a
propagação da pronúncia padrão por meio do ensino da romanização (pinyin), além dos
caracteres, de certo modo, a língua institucionalizada ganha prestígio nacional em detrimento
dos dialetos locais. A escrita chinesa concebida por Granet parece retratar o tempo antigo,
pois o sistema de romanização (pinyin) da língua chinesa foi oficializado pelo governo do país
em 1958, quando a língua oral e escrita já havia passado por uma série de reformas oficiais,
como demonstra a tabela da linha do tempo da política linguística chinesa, baseada em
Simões (2010):

1644-1912 – Império Manchu (dinastia Qing), a língua oficial era o


Guanhua (Mandarim Imperial), com base na fala culta de Beijing, de uso
restrito e não exigido da população.
1912 – República da China abre a nova era da utilização da língua oral
comum.
1913 – Conferência para a Unificação da Pronúncia, ensino do Mandarim
Imperial como padrão em todos os níveis de ensino.
1918 – Oficialização do sistema Zhuyinzimu como transcrição fonética da
língua oral nacional.
1919 – “Movimento 4 de Maio”, “revolução literária”, estudantes e
intelectuais reivindicavam a substituição do wenyan (escrita clássica) pelo
baiyan (escrita popular ou vernácula) no ensino.
1924 – Decidiu-se pelo regresso à fonologia baseada na fala de Beijing.
1928 – Oficialização do Guoyue Romatzyh (Romanização da Língua
Nacional).
1930 – Adoção da designação Zhuyinfuhao (Símbolos Fonéticos),
atualmente utilizados em Taiwan.
1935 – Primeira tentativa de reforma oficial do Hanzi (caracteres) pelo
governo nacionalista. Publicação da “Primeira Lista de Caracteres
Simplificados”.
105

1936 – Mao Zedong, em uma entrevista para um jornalista americano, previa


o fim dos caracteres chineses. (Calvet (2007, p. 89) também cita esse fato).
1949 – Após a fundação da RPC, as questões linguísticas passaram a ser
consideradas “tarefas políticas importantes”. Promoção de uma língua oral
comum à população Han.
1950 – Política de uniformização linguística tem suporte no artigo de
Estaline (1950). Comissão de Reforma da Escrita.
1955 – Conferência para a Padronização do Chinês Moderno, putonghua
(língua oral comum), “Primeira Lista de Formas Variantes Verificadas.”
1956 – Conselho do Estado solicitou o ensino do putonghua em todas as
escolas. “Plano de Simplificação dos Caracteres.” Coexistência das formas
de escrita: simplificada, na “China Continental e Singapura”, e tradicional,
nas “Regiões Administrativas Especiais de Macau e Hong Kong e em
Taiwan”.
1958 – O “Grande Salto em Frente” proposto por Mao (1957-1960).
Oficialização do Alfabeto Fonético Chinês Romanizado Pinyin.

Ao considerar o Clássico das Poesias (Shijing) em sua análise sobre a língua


chinesa, Granet (1997) parece não dar atenção à estrutura típica da linguagem poética, comum
na cultura chinesa desde a antiguidade. Tal estrutura fazia uso de caracteres únicos e
específicos, motivo pelo qual Granet a considerou monossilábica, conservando as rimas e a
característica da arte literária. Focado nas máximas que aparecem na obra, delimita
criteriosamente a quantidade de caracteres, como marcas da rítmica própria das poesias. O
fato é que as máximas chinesas também possuem uma regra em sua estrutura, usando em sua
maioria quatro caracteres. Mas também existem estruturas com o mínimo de três e padrões
com maior número de caracteres, o que as caracteriza como estruturas fechadas e com
significado enraizado na cultura. O valor das máximas para a cultura chinesa é sua função
referencial e seu uso como elemento de sentido na sociedade. Assim, funcionam como peças
chave, retomando fatos históricos ou lendas prestigiadas, com o propósito de transmitir um
ensinamento. Existem os provérbios proferidos pelos letrados, imperadores, guerreiros,
filósofos etc, mas também existem os produzidos pelas pessoas comuns, mas que ganharam
prestígio pelo exemplo de apontar a boa conduta civil. Granet (1997, p. 62) dá ênfase aos
provérbios da referida obra e apresenta as funções de conduzir, convencer e converter da
língua chinesa, mas afirma que essa língua “não parece organizar-se para registrar conceitos,
analisar ideias ou expor doutrinas discursivamente”. Dessa maneira, parece afirmar que a
língua chinesa não foi feita para formular ideias por meio de palavras, ou para teorizar e
apresentar teorias oralmente, o que não condiz com uma língua tão antiga e amplamente
utilizada por essa civilização.
106

Para Granet (1997), a língua chinesa possui mais características de uma língua
artificial38 do que de uma língua natural39 de um povo. Quando o autor apresenta a língua
chinesa como uma língua de civilização, ou sua qualidade universal, dá a esse idioma
aspectos valiosos de nacionalização; mas, ao afirmar que esse objeto social não foi feito para
exprimir ideias abstratas, Granet indica que é uma língua em fase de evolução e até mesmo
defeituosa para a função social que lhe é atribuída. Para ele, a língua chinesa falada também
assume um papel de língua artificial, desenvolvida nas reuniões entre os nobres. Assim,
desconsidera a própria condição do mandarim40 (no meio social em termos de restrição do
ensino), cuja origem vem dos inúmeros dialetos do norte da China41, o que prova que não se
constitui como língua única e pura, conforme tenta apresentar Granet. Basta considerar os
longos períodos de guerras ocorridos na história da China Antiga, que forçaram povos de
línguas e costumes distintos a se unirem pela imposição do império dominante.
Granet (1997) embora tenha referido ao potencial da língua chinesa como objeto
com propósitos políticos e de controle da sociedade, uma invenção humana dos sábios para
alcançar um modelo de civilização desejado, com a introdução de valores morais, ele a reduz
a algo sem conteúdo gramatical, como se fosse possível concebê-la como instrumento de
comunicação, sendo que até mesmo uma língua artificial precisa de regras eficientes de uso.
Um dos princípios, compartilhados pelos falantes, geralmente pesquisados pelos linguistas é a
distinção do sistema mental abstrato que faz parte das regras das línguas (TRASK, 2011). A
regra de posição das palavras na escrita chinesa, apontada como rigorosa por Granet, entra em
contradição com os princípios da fala, considerada dependente da emoção, o que dá a
impressão de duas coisas tão diferentes, a ponto de uma não representar a outra na
comunicação. Realmente, existem diferenças marcantes entre o sistema escrito e o oral das
línguas, sendo o escrito uma tentativa de representar a fala o mais próximo possível, mas isso

38
Segundo as teorias da linguística, trata-se de toda língua inventada em laboratórios de línguas, geralmente com
a função de se tornar uma língua universal, como foi o caso do esperanto. O fato é que se esse tipo de língua não
recebe atenção e não é usada pelos falantes, torna-se um objeto sem valor. Um exemplo é a língua novial, criada
por Otto Jespersen, que não recebeu qualquer interesse. Línguas naturais também podem se tornar línguas
mortas, como no caso do latim, e isso é próprio das línguas e suas regras de existência (TRASK, 2011).
39
Objeto de estudos da linguística, as chamadas línguas maternas.
40
Conforme Zhou Youguang (2003 apud Simões, 2010, p. 25), “o ‘Mandarim imperial’ baseava-se na fala das
pessoas instruídas da capital, Pequim, mas não dispunha de uma fonologia padronizada; o seu âmbito de
utilização era muito restrito e não se exigia que fosse conhecido pela população em geral”. Era, portanto, uma
língua para a elite letrada, reforçando a tese de que o estudo, no período imperial, destinava-se apenas à nobreza.
41
“Além das línguas minoritárias, em torno de cinquenta, faladas por cerca de 5% da população, existe um vasto
conjunto composto por oito línguas diferentes, as do grupo han: a língua do Norte, o wu, o xian, o gan, o min do
Norte, o min do Sul, o yuê e o hakka, elas mesmas divididas em mais de 600 dialetos locais” (CALVET, 2007, p.
87).
107

não pode ser algo que limite o próprio uso dessa ferramenta, o que a tornaria obsoleta e
possível de ser rejeitada pelos falantes42.

2.2.2 Uma análise não linguística da língua chinesa

Atualmente, é muito difícil conceber uma análise não linguística das línguas
naturais, pela diversidade de trabalhos já realizados e em processo de produção. Já na época
da primeira edição d’O Pensamento Chinês (GRANET, 1934), as discussões no campo da
linguística eram intensas e bastante produtivas. No século XIX, a correspondência entre
Humboldt e Abel-Rémusat (1821-1831) demonstra o nível acadêmico das discussões
realizadas sobre a língua chinesa. A linguística histórica realizava trabalhos sobre as
mudanças linguísticas desde a sua criação, em 1786, a partir de William Jones (TRASK,
2011). A filologia existe muito antes dos estudos em linguística histórica e foi amplamente
aplicada nas missões jesuítas na China, tendo o filólogo e matemático Bouvet, como
representante. Wang Li apresenta a filologia como um ramo diferente da linguística, pelo fato
de tratar exclusivamente da língua enquanto produto escrito, mas é provável que a linguística
histórica tenha-se originado justamente dos estudos filológicos (FARACO, 2005), pelos
padrões comuns de comparação entre as famílias das línguas, em materiais gráficos.
Granet (1997) propõe-se a realizar uma análise que não segue a linguística pura e
nem as críticas literárias, excluindo também a descrição detalhada da língua chinesa, e
justificando buscar aspectos objetivos. Quando escolhe esse método de análise, tenta colocar a
língua chinesa nos moldes do fato social. Desta forma, mantém o foco nos estudos mais
objetivos possíveis, caracterizando a língua chinesa como objeto, ou produto social, que se
pode observar e tirar suas conclusões. Esta é uma análise provável da língua chinesa, como
tentativa de se distanciar do ponto de vista linguístico. Podemos afirmar ainda que esse tipo
de análise foi muito superficial para que o autor fizesse suposições a respeito dessa língua, de
maneira tão convincente. E não nos referimos ao método da sociologia de Durkheim, que
toma o fato social como fundamental para o estudo de grupos sociais.
Chavannes pode ter influenciado completamente a sinologia de Granet, em
relação a certos conhecimentos essenciais adquiridos pelos chineses a partir do contato antigo
com os gregos (GRANET, 1997). Esta noção mostra que o que os chineses apresentavam
como comportamentos avançados, na visão destes estudiosos, teria vindo desta suposta

42
Na cultura chinesa, era comum o abandono de formas de escrita e oral impostas por uma nação dominante e
invasora, devido às leis linguísticas e interesses em jogo (CALVET, 2007).
108

aproximação. A reflexão de Granet sobre a língua chinesa ser incapaz de exprimir


pensamentos abstratos parece permanecer no âmbito da história propriamente defendida pelos
europeus de que a antiguidade greco-latina foi o berço das civilizações, o que reforça o
hermetismo da época.
A análise da língua chinesa sem o viés linguístico poderia indicar uma língua
artificial, criada com objetivos políticos e morais. Este tipo de língua não é material de
estudos da linguística, por não oferecer as propriedades abstratas que participaram de sua
formulação e uso, e que vão além do próprio objeto, com princípios comuns e passíveis de
comparação. Daí origina-se a construção das famílias das línguas e a possibilidade de estudar
as condições de mudança das línguas em contato com diferentes povos. A língua chinesa, para
Granet (1997), tende a ser formulada a partir do objeto língua, em direção às condições de
abstração e não no sentido contrário de sua invenção e desenvolvimento, fato comum a todas
as línguas naturais e motivo da existência da área linguística, pelo seu interesse. Quando
Granet (1997) refere-se à doutrina das denominações corretas, própria das receitas de
governo, como um princípio de ordem, indica um dos meios de regulagem da língua chinesa
antiga, relacionado com o sistema de filologia dos chineses. Segundo Wang Li (1981), a
filologia representa o principal modelo de regulamentação da China Antiga. Uma língua
escrita sem um válido princípio de regras para a sua manutenção, conservação e transmissão
(leis linguísticas de preservação) pode perder facilmente sua função de instrumento de
comunicação, e ser substituída por qualquer outra língua dominante, que possua fundamentos
da escrita, ou imposta por um inimigo.
A língua é objeto de estudos da linguística e este campo possui ampla divisão em
subáreas com interesses distintos, dentre elas, a linguística histórica, a sociolinguística e a
psicolinguística, que abordam diretamente questões referentes à língua enquanto fato social, e
sua relação com o comportamento social no uso, além da mente humana no processo de
aquisição da linguagem. Considerar a possibilidade de analisar uma língua qualquer, de modo
não linguístico, significa abandonar as teorias desta área, elaboradas até o momento da
pesquisa. Granet (1997) realmente analisa a língua chinesa como fato social, e possivelmente
poderia ter definido melhor tal objeto, em sua perspectiva sociológica, se utilizasse teorias
básicas discutidas em seu tempo sobre o papel da língua na inter-relação social e as
consequências do status de um determinado grupo social em relação ao uso da língua, como
no caso da língua imperial que era restrita aos nobres e letrados, não sendo exigida no ensino
da população comum, assim como a linguagem poética e filosófica, também pertencentes a
tais grupos. Trazer o contexto linguístico da nobreza para a população comum, de maneira
109

geral, é afirmar que o pensamento chinês segue o modelo institucionalizado, sem variações
locais ou dentro da própria corte. É preciso esclarecer que as variações e mudanças de uma
língua são justamente as condições fundamentais à sua existência, pois denotam o uso da
língua pela sociedade que a criou. E o fato de não haver mudanças indica que a língua deixou
de ser útil aos falantes, sofrendo exclusão.
Uma língua com o status de nacional, como o mandarim, também passa pelo
processo de variação e mudança, comum a qualquer nação. O fato é que uma língua nacional
passa por um controle mais rigoroso de conservação de seu sistema, como é o caso da escrita
padrão e das regras gramaticais institucionalizadas – parte das leis linguísticas. A filologia,
segundo Wang Li (1981), funcionou como um sistema regulador da língua chinesa, tendo
servido como instrumento seguro para as pesquisas em sinologia, devido à conservação das
estruturas regulares das línguas antigas, o que atesta um padrão comum das mudanças
linguísticas enquanto condição de existência dos estudos em linguística histórica, já que
possibilita a observação das alterações que ocorrem na estrutura das línguas.
O método da sociologia, concebido por Durkheim (2007), considera o fato social
um objeto indicador de características próprias de uma sociedade, porém não como “coisas
materiais”, mas como “coisas” vistas de outra perspectiva. Esta outra forma de conceber a
“coisa material” indica que a língua chinesa não corresponde a um objeto inerte, como a
língua artificial, mas que possui propriedades que apontam sua própria concepção e uso, e que
por isso sua abstração deve estar em primeiro plano. Podemos afirmar que a análise não
linguística da língua chinesa, por Granet, revela traços de um objeto inerte, na maioria das
vezes, criado pelo Imperador, isto é, por um indivíduo sábio qualquer. Este objeto recebe
valores políticos e morais que são transmitidos para a sociedade chinesa com propósitos
civilizatórios. Emblemas com a função de orientar condutas cívicas podem ser concebidos a
qualquer momento, bastando existirem leis que os tornem obrigatórios. Wang Li comprova
que alguns caracteres eram realmente inventados pelos Imperadores e passavam a ser
utilizados no meio administrativo, mas que a base cultural e histórica da criação das letras
chinesas é muito mais antiga e seus valores não são propriamente impostos, mas necessários à
representação abstrata do mundo e ao compartilhamento das ideias, no ato comunicativo –
condição comum a qualquer língua natural.
Granet (1997) está convicto de que a língua chinesa oral e escrita é fato social
distinto das línguas especificamente europeias. Ao abordar essa língua sem apresentar
aspectos mais detalhados que denotem um estudo linguístico, Granet mantém-se em um plano
superficial, em que a língua chinesa, e tudo o que é qualificado como linguagem, assume o
110

papel de emblema ou símbolo, recebendo interpretações por vezes aleatórias. Em uma análise
não linguística da língua chinesa, os emblemas orais e gráficos servem, conforme observa
Granet (1997), apenas para exprimir a ação. Em relação à oralidade, o autor descreve sua
função simbólica e de caráter objetivo, da seguinte maneira:

É na arte da fala que se exaltam e culminam a magia dos sopros e a virtude


da etiqueta. Apor um vocábulo é atribuir uma posição, um destino - um
emblema. Quando o sujeito fala, denomina, designa, ele não se limita a
descrever ou a classificar idealmente. O vocábulo qualifica e contamina,
provoca o destino, suscita o real. Realidade emblemática, a fala domina os
fenômenos (GRANET, 1997, p. 36, grifos do autor).

Para o sinólogo, a fala tem as mesmas características emblemáticas apresentadas


por ele em relação à escrita chinesa. São símbolos que ganham valor semântico no ato de fala.
Segundo sua concepção, não é uma prática que visa apresentar ideias, mas determinar a
realidade. A fala chinesa parece, para Granet (1997), um ato pragmático constante, sem uma
estrutura gramatical definida e adequada ao eixo semântico da língua. Esse argumento indica
algo criado para receber sentidos e não para expressá-los, como os símbolos. Apoiado nesta
linha de reflexão, Granet (1997, p. 37) até se aproxima de uma leitura linguística, quando trata
das palavras vazias ou mortas, na visão dos gramáticos modernos:

O vocabulário antigo abrange um certo número dos vocábulos batidos, que


os gramáticos modernos qualificam de "palavras vazias" ou " palavras
mortas". As outras, as "palavras vivas", são infinitamente mais numerosas: é
nelas que reside uma força capaz de resistir ao desgaste. Quer exprimam
uma ação ou um estado (qualquer espécie de aparência fenomênica), todas
essas palavras suscitam, se assim posso dizer, uma essência individual.
Todas fazem parte da natureza dos nomes próprios. Valem como
denominações, como denominações singulares. Daí essa pululação de
palavras, que forma um contraste tão estranho com a pobreza do fonetismo.

Na visão apresentada nessa citação, Granet fala das palavras vazias ou mortas, que
são entendidas por meio da linguística histórica como palavras que possivelmente estão em
processo de variação, já que possuem sentido ambíguo ou se encontram em processo de
abandono de uso. A possibilidade de Granet estar diante de um fenômeno típico de mudança
linguística é provável. Quanto às palavras vivas ou de uso comum, certamente, estão na
comunicação da sociedade, o que não exclui outros fenômenos de mudança, lentos e
contínuos. A característica de emblema ou símbolo da língua chinesa, para Granet (1997), dá-
se por sua “essência individual”, como um objeto inerte que precisa ser interpretado ou
111

receber sentido, limitando-os à função de nomes próprios, e foneticamente pobres.


Wang Li (1981) apresenta, em sua obra A História da Linguística Chinesa, as
qualidades específicas dos dicionários antigos, que contestam o argumento da falta de
elemento fonético dos caracteres chineses, já que para todas as línguas naturais existe uma
regra básica que as qualifica ao uso e que, do contrário, perderia rapidamente a função na
comunicação. Geralmente, os caracteres chineses não possuem um único sentido, como
“nome próprio”, por exemplo, apresentado por Granet (1997). Sempre há necessidade da
regra de posição, que pode destacar ou excluir o sentido original de determinado caractere, até
mesmo nas poesias antigas. Existe ainda a possibilidade de mudança de função gramatical, o
que também ocorre com as línguas flexionais. Dessa forma, a flexão de uma língua ocorre, na
maioria das vezes, pela necessidade de sentido de uma palavra, mas em outra função.
A língua chinesa tida como símbolo ou emblema oral ou gráfico, também pode ser
considerada em análise, e a área mais qualificada para explicar sua pertinência é a semiótica.
Os caracteres chineses não parecem atuar nesta civilização como as cores de um semáforo, ou
os sinais usados pelos árbitros em certos esportes etc, mesmo assim, não só a língua chinesa,
como qualquer língua natural, pode ser vista como um sistema simbólico43. Não pretendemos
sugerir que Granet (1997) possa ter seguido uma análise linguística ou mesmo semiótica
sobre a língua chinesa, mas buscamos indicar que a consideração da língua chinesa como fato
social não explorou o potencial do método da sociologia de Durkheim, de investigar a língua
enquanto coisa produzida pela sociedade. Talvez seja esse o ponto a que Gernet (1953 apud
GRANET, 1953, p. 16) se refira, no trecho “Je ne suis pas absolument sûr que Granet entendit
tout à fait comme Durkheim la ‘nature des choses’.Il y avait peut-être chez lui un positivisme
plus entier et un relativisme plus accueillant”.

2.3 O Clássico das Mutações (Yijing) para a sinologia de Granet

A obra Clássico das Mutações recebeu destaque na Europa, pela análise filológica
de Bouvet (1656-1730), que introduziu a visão figurista a respeito do material, e pela
comparação com o sistema binário, de Leibniz, ganhando interesse acadêmico pela
possibilidade de revelar um guia sobre as ciências universais e sobre a matemática antiga da
China. A concepção de Granet (1997) sobre o Clássico da Virtude e do Tao (Daodejing) e o
43
Sistema que corresponde a um conjunto de signos que possui um significado convencional. “Uma das grandes
forças que animam a semiótica é a crença de que há interesse em considerar como sistemas simbólicos também
objetos construídos socialmente, como é o caso dos mitos e dos filmes, e que isso permite interpretá-los de
maneira esclarecedora” (TRASK, 2011, p. 277). A semiótica é uma área distinta da linguística.
112

Clássico das Mutações (Yijing) é apresentada como material repleto de provérbios (adágios),
que inspiraram, durante muito tempo, “exercícios de meditação” ou “disciplina de vida”. O
autor afirma que a doutrina dessas obras permanece impenetrável, a menos que se consiga
compreender sua função real, que se resume em interesses políticos com fins civilizatórios.
Na descrição sobre o Clássico das Mutações, por exemplo, Granet (1997, p. 114) aponta que:

Sessenta e quatro desenhos, os Hexagramas, compõem sozinhos o


verdadeiro texto do I Ching: todo o resto é apenas comentário, ampliação ou
lenda, para ajudar na decifração dos emblemas divinatórios. Nesses 64
símbolos gráficos está contido um saber, um poder total.

Afirmamos que a ideia dos 64 símbolos gráficos apresentada por Granet, em


relação aos hexagramas do Clássico das Mutações, assemelha-se muito ao que ele diz sobre
os caracteres chineses, com a função de expressar ou representar a totalidade (um poder total),
uma linguagem universal. Tal ideia é comum também no meio acadêmico, desde Leibniz, que
marcou o primeiro momento de transição da sinologia europeia, até a época da sinologia
moderna de Granet. Na interpretação de Granet (1997), o Clássico das Mutações tem a função
específica de manual de adivinhações. Por meio dessa leitura, a obra perde o prestígio de
explicação de todas as ciências do mundo, por conter uma linguagem matemática, e é vista
como meio de estabelecer previsões litúrgicas e cerimoniais. Tal afirmação pode ser
comprovada no seguinte trecho:

Desse saber depende a totalidade das chamadas técnicas divinatórias. Não


surpreende, portanto, constatar (levemos em conta aqui os acasos que
regeram a conservação dos documentos) que as mais antigas exposições
conhecidas sobre o Yin e o Yang estão contidas no Hi zi, pequeno tratado
anexado ao I Ching (o único manual de adivinhação que não se perdeu).
Tampouco surpreende que o autor do Hi zi fale do Yin e do Yang sem pensar
em dar uma definição deles. Na verdade, basta lê-lo sem preconceito para
perceber que ele procede por alusão a ideias conhecidas. Veremos, inclusive,
que o único aforismo contendo as palavras yin e yang em que podemos
adivinhar a ideia que ele fazia desses símbolos aparece como uma fórmula
pronta, um verdadeiro adágio: aliás, é nesse fato que reside a única
possibilidade que nos é dada de conseguir interpretar esse aforismo
(GRANET, 1997, p. 85).

Podemos afirmar que a linguagem usada na composição do Clássico das


Mutações é de uso filosófico do período de sua criação, e buscava explicar certas concepções
dos fenômenos tidos como universais para os antigos chineses. Tanto Bouvet (1656-1730)
como Leibniz (1646-1716) comentam sobre o contexto da referida obra, apoiados nessa
113

interpretação, e atribuem o uso da linguagem contida no material aos sábios antigos.


Percebemos que Granet (1997) buscou, em sua apresentação do texto referente ao Yin e Yang,
acrescentar uma interpretação que compara a língua escrita chinesa antiga com a ocidental, ao
comentar que existe um diferencial de uso dos termos Yin, Yang e Tao, na obra, e que há o
emprego de maiúsculas e minúsculas, o que é impossível na escrita chinesa, visto que não
existe este tipo de marcador nesse sistema, a não ser na romanização da pronúncia dos
caracteres, que não é usada como língua escrita e não existia no período da referida obra. É
possível que tenha-se referido aos termos em posição e valor de substantivo e adjetivo, mas
isso não fica claro em sua explicação. Granet (1997) afirma que os mestres chineses que se
utilizavam do Clássico das Mutações, apoiavam-se nos sinais apresentados pelas varinhas de
aquileias para fazer suas adivinhações, as quais tinham relação com as carapaças de tartaruga.
No caso das varinhas, o uso seria para um tipo de cálculo, e o sinólogo afirma que os antigos
chineses não diferenciavam aritmética de geometria, fazendo uso dos números e das figuras
para facilitar a identificação e manipulação das realidades, também dentro do contexto das
práticas de adivinhação.
Granet (1997) atribui o Clássico das Mutações a Fu Xi (Fu-hi), devido a seu
enaltecimento pelos adeptos dos ensinamentos que contém esse material. Este autor é tido
como responsável pela civilização chinesa, inventor do sistema do uso de nós feitos em cordas
e da adivinhação com o uso de varinhas de aquileias, considerados pelo sinólogo como o
primeiro modelo de governo da China. A importância do Clássico das Mutações, para Granet,
continua no âmbito de um tipo de política antiga, que se apoia na regência de tudo por meio
da consulta de uma espécie de oráculo. A criação dos trigramas é apontada como de autoria de
Fu Xi, e os hexagramas, ao Rei Wen do reino de Zhou, mas Granet apresenta a existência de
registros que indicam a participação de ambos no tratado da disposição dos trigramas.
Observando a sinologia de Granet, em sua análise do Clássico das Mutações, é possível
identificar um estudo característico da filologia, principalmente, na tentativa de descrever os
pontos essenciais da obra e sua aproximação com um contexto histórico ou perspectiva
plausível com base nos textos antigos, embora Granet tenha comentado na introdução d’O
Pensamento Chinês que não seguiria essa metodologia. Acreditamos que o sinólogo não tenha
conseguido se distanciar das influências de seu professor, o filólogo e também sinólogo
Chavannes. Na passagem seguinte, é possível notar que Granet entra em conflito com a
postura que assumiu de lidar apenas com os fatos sociais, ao discutir sobre a possibilidade de
a regra aritmética da escala ter sido adquirida pelos chineses antigos por empréstimo dos
gregos:
114

Se interpretássemos os fatos dessa maneira, a ordem que se estabeleceria


para sua história não seria insensata. Isso é verdade. É verdade também que,
assim fazendo, reservar-nos-íamos a vantagem de postular uma origem
através do empréstimo; esse é o tipo de fato histórico que um bom filólogo
se compraz em estabelecer: decidindo que houve um empréstimo, passa-se
para outros especialistas a tarefa de encontrar a explicação real dos fatos. As
questões referentes à origem interessam-nos pouco aqui (GRANET, 1997, p.
151).

A justificativa dada por Granet e que indica a sua concepção sobre esse assunto é
que, a partir do desenvolvimento das teorias musicais, os chineses seguiram uma orientação
contrária à concepção quantitativa dos números, devido à grande variedade de sistemas de
cálculo existentes, tendo atrasado o conhecimento abstrato de unidade. Granet mostra, com
essa afirmação, que é possível formular duas hipóteses sobre a função dos números conhecida
pelos chineses: a primeira apoia-se na teoria dos tubos e da escala, apresentada pelos chineses
em suas práticas musicais, relacionada ao que concebem sobre o universo; a segunda hipótese
apoia-se na ideia de que tenha havido um empréstimo dos gregos aos chineses antigos
(GRANET, 1997). Granet buscou dar a resposta que a filologia deixaria para outros
especialistas. É importante ressaltar aqui essa postura da filologia. Em sua análise, Granet
(1997) segue suas reflexões, reconhecendo a existência de falhas na filologia ocidental, e
aproxima-se da sinologia chinesa de Wang Li, ao considerar possíveis costumes dos chineses
em sua pesquisa, com base nos textos antigos. Um fato que indica o apoio de Granet nos
textos antigos é quando cita o famoso historiador da China antiga, Si Maqian, para confirmar
sua teoria sobre os tubos musicais. E afirma que Chavannes cometeu um equívoco na
tradução de termos fundamentais que comprovariam essa teoria.
Granet (1997) expõe ainda os motivos que o impediram de basear-se
completamente na filologia, ao afirmar que, seguir o método de filologia dos eruditos, – que
acreditam ser o melhor instrumento tomado pelas pesquisas arqueológicas, servindo-se dos
textos antigos para datar suas descobertas –, torna possível encontrar os fatos que indicam a
completa realidade e, ao mesmo tempo, comprovar o contrário do que anunciou o método.
Granet acredita na possibilidade de ocorrências anacrônicas, ou afirmações contraditórias, que
classifica em três problemas referentes ao uso desse instrumento na investigação do Clássico
das Mutações, a saber: “que a ordem dos Elementos, quando eles sucedem uns aos outros,
nada tem de arbitrária”; “que a ordem dos Elementos nada tem de arbitrária, uma vez que eles
foram assemelhados às estações” e “que a ordem das Notas é inteiramente regulamentada”
(GRANET, 1997, p. 157). A argumentação de Granet, com base nos autores e textos chineses,
115

ainda é marcante e parece buscar comprovar sua hipótese de que o conhecimento e o uso dos
números pelos chineses antigos se relacionam com a técnica e a prática de fatos sociais
baseados na construção de instrumentos musicais. Pelo que indicam, a importância dos três
problemas (que poderiam ser mal interpretados pelos filólogos) está nas práticas antigas que
se fixaram, se regulamentaram com o tempo e a utilidade. Granet percebe os fatos sociais
antigos justamente pelo uso de análises textuais, isto é, pelo uso da filologia, mas considera o
papel específico dos costumes chineses apresentados nos registros históricos.
A relação dos números do Clássico das Mutações e da cultura chinesa antiga, em
geral, é apresentada na sinologia de Granet como um tipo de aritmética desenvolvida por meio
da invenção dos instrumentos musicais e suas notas, além da sua relação com quadrados
mágicos e as disposições dos emblemas yin e yang. Para as suas considerações sobre essa
obra, Granet busca distanciar-se da filologia ocidental, e aproxima-se de uma análise muito
comum na filologia chinesa, conforme construída em Wang Li (1981). A base dessa
afirmação está no fato de Granet buscar a comprovação de seus argumentos nos registros
chineses antigos. Ao seguir esse caminho, parece orientar-se por um modo de tratar o material
da escrita antiga de forma muito parecida com a dos filólogos da China. Deduzimos que isso
possa ter sido intencional ou mesmo influenciado pela forma de pesquisa de Karlgren, em
relação aos textos antigos chineses. É notório que Granet possuía conhecimento em filologia
suficiente para distinguir os trabalhos que realizava, e é possível que ele tenha percebido tais
trabalhos na China, mas não definiu ou classificou essa área, de acordo com a perspectiva dos
chineses, embora a tenha utilizado, direta ou indiretamente.
A importância do Clássico das Mutações para a sinologia de Granet é a
possibilidade de relação entre os emblemas divinatórios e os números, já que o sinólogo
afirmava que os chineses não distinguiam tais elementos na antiguidade. Ele descreve os
hexagramas como compostos por uma sobreposição de dois trigramas, formados por linhas
inteiras e partidas, tal como apresentado por Leibniz e Bouvet em suas correspondências. A
divisão numérica foi introduzida por Granet (1997), com base em um quadrado mágico e no
que ele classifica como ordem de produção dos trigramas. Introduziu também a combinação
dos elementos yin e yang em sua interpretação dos trigramas, além de acrescentar os cinco
elementos: água, terra, madeira, metal e fogo. O importante no processo de descrição dos
hexagramas do Clássico das Mutações, apresentado pela sinologia de Granet, é o caminho
próprio de uma análise filológica, que busca comprovar as interpretações e delimitar as glosas
e seu significado mais provável. Assim, para apontar os fatos objetivos que apresentam o
pensamento chinês, Granet (1953) apoia-se na filologia, que tem como base os trabalhos de
116

Chavannes e principalmente de Karlgren. Descreve os erros cometidos por Chavannes, em


relação à tradução e interpretação, e admira o método objetivo e estatístico do sinólogo e
linguista Karlgren.
Para Granet (1997), a análise desta obra representa a relação das posições dos
trigramas com o espaço, o tempo, o yin, o yang, o calendário, e todo um conjunto de
elementos com propósitos políticos e morais, isto é, por meio da conduta da sociedade,
direcionada pelos adivinhos, não como produtores de tais leis, mas por demonstrarem a
eficácia da instituição que fazia parte de seu ofício:

Eles tinham que levar em conta as representações sociais relativas ao Tempo


e ao Espaço, bem como sistemas complexos de classificação. Tinham
também que dotar todas essas convenções de um prestígio que seduzisse o
pensamento e justificasse a ação. Serviram-se, para esse fim, de símbolos
geométricos e aritméticos. Estes, como todos os emblemas, gozavam do
poder de evocar pela representação (GRANET, 1997, p. 133).

Esta eficácia institucional, segundo o autor, dependia da transmissão de inspiração


e confiança dos símbolos, que possuíam certa abstração como fator limitador, mas que,
utilizados para os objetivos universais, eram dotados de representação imperativa e eficazes.
A menção de algo eficaz é muito presente nas reflexões de Granet (1997) e tornam os
símbolos de adivinhação, os números e os caracteres chineses possuidores da mesma função
social, qual seja, representar o universo de maneira eficaz, recebendo elementos morais e
civilizatórios, a partir dos sábios ou adivinhos. Mas a função dos números era essencialmente
classificatória, e Granet atribui a comprovação disso aos registros da literatura erudita, ou seja,
com base na filologia antiga.
Em sua obra O Pensamento Chinês, Granet (1997) considera o Clássico das
Mutações como uma obra específica de adivinhações, o que deixa exposto na própria tradução
do título – Livro da Adivinhação (I Ching/ Yijing). Esta tradução ficou mais próxima do que
Granet defende, e não do que realmente significa, já que Yi significa “mudança” e jing,
“clássico”, e a ordem dos termos é naturalmente invertida pelas regras morfológicas de ambos
os idiomas. Granet, ao estabelecer o estudo de alguns dos principais clássicos chineses, para
fazer o levantamento dos fatos sociais e estruturar o pensamento chinês, adotou um método de
sinologia distante da influência e da característica dos missionários da China, e introduziu um
método específico da sociologia na abordagem do assunto. Mas, mesmo buscando evitar o
uso da filologia, dentre outros recursos que sua pesquisa exigia, utilizou-se desse instrumento,
direta e indiretamente, sem abandonar seu propósito maior de apontar os fatos sociais de
117

modo objetivo, o que pode ser notado na seleção, no tratamento e na interpretação do material.
Não podemos afirmar que o trabalho de Granet é próprio de um filólogo, mas ele utilizou essa
ferramenta para organizar de forma seletiva o material tratado em sua análise. Nesse sentido,
Granet chegou muito perto do modelo de sinologia chinesa e, possivelmente, tenha recebido
as influências dos materiais reunidos pelos letrados do Império Qing, mas sem dar total
atenção, e até tendo criticado os métodos precários da filologia para o que ele buscava como
fato objetivo, algo que fosse semelhante ao real, coisas produzidas pela sociedade chinesa e
que refletissem seu pensamento.
Ao introduzir o Clássico das Mutações na análise da ortodoxia confucionista,
Granet sugere que Confúcio e seus seguidores tenham se interessado por essa obra, devido aos
assuntos morais e políticos aí contidos. Ele alega que o fato desse grupo interessar-se por
adivinhações comprova o enfraquecimento do humanismo confuciano. Com isso, o método
pragmático de ensino tendeu a crescer, fato que Granet (1997) aponta como reconhecimento
de uma psicologia positiva por parte de Confúcio. Este enfatizava o estudo e o
questionamento de fatos cotidianos, focado exclusivamente na interpretação dos clássicos,
valorizando os estudos ritualísticos. O caráter de manual de adivinhações, atribuído ao
Clássico das Mutações, por Granet, sobressai, colocando a obra em posição inferior em
relação a outros clássicos.
Nesta pesquisa, não nos adentramos no mérito das discussões políticas e
filosóficas dos sábios em relação à referida obra, mas buscamos descrever o papel específico
que ela representa para a sinologia de Granet, e como ele a apresenta em seu trabalho.
A concepção dos ritos, que tem relação direta com a importância do Clássico das
Mutações na sinologia de Granet pode ser melhor entendida pela seguinte passagem, em que
se nota o aspecto geral das práticas representativas dos chineses:

Os nomes têm exatamente os mesmos méritos que os ritos. Constituem uma


simbólica que, para os indivíduos, tem o valor de uma regra. Regra objetiva,
mas não externa. Os homens raciocinam com correção (assim como agem
bem), aprendem a pensar bem (como aprendem a agir bem) e progridem para
longe da estupidez (assim como progridem para longe da uniformidade, isso
é, do mal) ao se conformarem ao simbolismo convencional composto pelos
signos verbais e pelos gestos ritualísticos.
Os ritos e a linguagem, quando corretamente praticados, servem acima de
tudo para abolir as discussões e as desordens, as disputas e a anarquia.
Praticados com finura (e sob a orientação de um Mestre cujo ensino penetre
“nos quatro membros”, até as profundezas do ser), introduzem no espírito a
calma que, por outro lado, fazem imperar na sociedade. Dessa calma resulta
o verdadeiro conhecimento: ele é o sinal de que o espírito está inteiramente
aberto à Razão (GRANET, 1997, p. 341, grifos do autor).
118

Nesta citação, é importante notar que o valor ritualístico, que também envolve o
Clássico das Mutações, conforme concebido por Granet, recebe uma interpretação positiva,
indicando a boa conduta da sociedade. É compreensível a comparação feita entre os ritos e a
linguagem, enquanto símbolos que devem ser ensinados por verdadeiros mestres, isto é, como
objetos institucionais e com propósitos civilizatórios, o que caracteriza o valor dessa obra para
as doutrinas chinesas.
Citando o pensador Dong Zhongshu (179 a.C.-104 a.C.), Granet (1997) apresenta
o valor, que não apenas o Clássico das Mutações poderia desempenhar, mas também todos os
clássicos confucianos, de que o dever de um bom governo é instruir o povo e que o melhor
meio seria pela propagação dos Seis Clássicos (Liujing) de Confúcio: o Clássico das Poesias
(Shijing), Clássico dos Documentos (Shujing), o Clássico dos Ritos (Liji), o Clássico das
Músicas (Yuejing), o Clássico das Mutações (Yijing) e Os Anais da Primavera e Outono
(Chunqiu). Devido à valorização dos clássicos como forma de orientar o povo e estabelecer a
ordem, conforme os desejos do governante, tais obras tornaram-se parte da doutrina ortodoxa,
que exigia a preparação de intérpretes oficiais dos clássicos. Esta implementação foi seguida
pela dinastia Han (GRANET, 1997).
Com isso, o humanismo de Confúcio perde destaque, em favor do crescente
interesse da ortodoxia na política chinesa antiga (GRANET, 1997). Wang Li (1981) também
comenta o interesse pelos clássicos do período Han, julgando-o prejudicial ao
desenvolvimento da filologia chinesa, pelo fato de focarem os estudos quase que
exclusivamente nessas obras. Granet (1997) parece seguir dentro da mesma linha de análise,
possivelmente por influência dos materiais por ele coletados e dos filólogos, com os quais
teve contato.
A teoria musical dos Doze Tubos e Cinco Notas, em que Granet (1997) se apoia
para descrever tanto a estrutura numérica existente no Clássico das Mutações quanto sua
própria tese, que busca explicar o conhecimento dos números pelos chineses antigos, foi
introduzida no Ocidente, segundo o mesmo autor, pelo missionário Padre Amiot, e
aproximou-se das teorias musicais gregas, recebendo atenção e valor no âmbito científico.
Embora seja possível afirmar que Granet tenha se distanciado totalmente das influências dos
missionários na China pela abordagem dos fatos sociais, assim como Leibniz, ele também se
baseou nos materiais produzidos pelos jesuítas.
N’O Pensamento Chinês, além de Amiot, Granet cita o Padre Wieger, apontado
como o tradutor que observou o erro em traduzir o termo ren, da doutrina confuciana, por
119

“caridade”, aconselhando o uso do termo “altruísmo”. Granet (1997), por sua vez, discorda
dessa tradução e apoia-se no próprio ensinamento de Confúcio, na obra Lunyu, afirmando que
ren significa o respeito ao próximo e a si mesmo. É evidente a posição de Granet como crítico
e corretor de falhas em relação ao material e apontamento feito pelos missionários sobre
aspectos da civilização chinesa, o que não apenas indica semelhança com a atitude de Leibniz,
como também apresenta sua abordagem filológica, devido à preocupação com a glosa e ao
apoio nos textos chineses para confirmação.
Outro padre citado por Granet (1997) foi Legge, e sua crítica a ele destacou a
incompreensão do missionário sobre o uso que os chineses faziam dos pauzinhos pares e
ímpares para a determinação do número dos dias intercalares e o ritmo das intercalações.
Em contraposição aos comentários de Leibniz (1646-1716) sobre a estrutura
numérica contida no Clássico das Mutações, Granet (1997) descreve detalhada e
resumidamente a função dos números para os chineses antigos, afimando que não serviam
para quantificar, mas para classificar. Leibniz (1646-1716) faz sua comparação por meio da
introdução de seu sistema binário e uma possível relação com os hexagramas. Granet (1997)
não nega a existência de um tipo de cálculo na China Antiga, mas, na opinião dele, os
números serviam para classificar o universo e possuíam um valor total, e não eram aplicados a
medidas e indicações de unidade. Assim, o número “um”, para os chineses, significa tudo.
Tais afirmações são atestadas na seguinte passagem:

Longe de procurar fazer dos Números sinais abstratos da quantidade, os


chineses empregam-nos para representar a forma ou estimar o valor de tais
ou quais grupos, que podem apresentar-se como grupos de coisas, mas que
tendem sempre a ser confundidos com grupos humanos. Os Números dizem
a forma ou o valor das coisas, pois indicam a composição e o poder do
grupo humano a que essas coisas estão ligadas. Eles expressam, antes de
mais nada, a parcela de poder que cabe ao Chefe responsável por um grupo
humano e natural (GRANET, 1997, p. 186).

Granet inova em sua análise sobre o Clássico das Mutações, não apenas por
introduzir a visão de fato social, mas por considerar em suas reflexões o material produzido
pelos antigos chineses. Ao considerar o sistema numérico, ele apresenta uma concepção de
conhecimento aritmético e geométrico, que os chineses antigos não distinguiam, e relaciona
os números aos conceitos de yin, yang e tao, como emblemas que representam a totalidade,
reafirmando sua tese de que os números são símbolos, assim como a linguagem chinesa, e
uma vez que possuem funções semelhantes, não servem para expressar ideias abstratas.
Acredita ainda ter vindo daí a relação dos números com as ideias diretivas, no sentido de que
120

foram criados para indicar uma ação. Granet (1997, p. 353) confirma opinião de que o
pensamento chinês não segue ideias abstratas, mas é guiado por uma espécie de ordem,
quando diz:

Uma vez que tudo depende de congruências, tudo é uma questão de


conveniência. A lei, o abstrato e o incondicional estão excluídos - o
Universo é uno - tanto da sociedade quanto da natureza. Daí o ódio tenaz
despertado pelos Juristas e pelos Dialéticos. Daí o desprezo por tudo o que
pressupõe a uniformidade, por tudo aquilo -- indução, dedução -- que
permite uma forma qualquer de raciocínio ou premeditação coercitivos, por
tudo o que tende a introduzir no governo do pensamento, das coisas e dos
homens qualquer elemento mecânico ou quantitativo. Faz-se questão de
conservar em todas as noções - mesmo na de Número, mesmo na de Destino
- algo de concreto e de indeterminado, que reserve uma possibilidade de jogo.
Na idéia de regra pretende-se ver apenas a idéia de modelo. A noção chinesa
de Ordem exclui, sob todos os seus aspectos, a idéia de Lei.

Para o autor, o Clássico das Mutações também é influenciado por essa concepção
de ordem que guia o pensamento dos chineses. A noção numérica dos chineses, apresentada
por Granet (1997), está apoiada na visão de Chavannes (1865-1918) e sua pesquisa em
filologia, – o que reforça nosso ponto de vista de que Granet tenha-se utilizado desse
instrumento em suas análises sobre aspectos do pensamento dos chineses – além de considerar
a afirmação de que os chineses não usavam os números para quantificar.
A transposição dos hexagramas pelos números correspondentes ao dos quadrados
mágicos, feita por Granet (1953), é conveniente se comparada com o modelo de sinologia
chinesa de Wang Li (1981), pois resgata e considera o ponto de vista dos chineses antigos,
além de estar baseada em textos.
É pertinente, com base no comentário de Gernet (1953 apud GRANET, 1953),
afirmar que Granet não assimilou totalmente o sentido do termo natureza das coisas do
método sociológico de Durkheim. Granet poderia ter assumido, em suas argumentações, o uso
da filologia e delimitado seu ponto de vista contrário ao método usado pelos eruditos, mas
preferiu negar o uso desse instrumento e focar na busca dos fatos sociais. Acreditamos que, ao
seguir um modelo idêntico ao da sinologia de Wang Li (1981), Granet (1997) apresenta um
momento de transição da sinologia que, da mesma forma que Leibniz, fez uso da filologia,
mas seu diferencial foi a introdução de uma abordagem moderna na análise, por meio da
ênfase no método da sociologia na sinologia. No caso específico de Leibniz (1701), a ênfase
foi na matemática, o que define tanto um quanto o outro como sinólogos, na perspectiva de
Wang Li.
121

2.4 Uma visão científica da sinologia

A sinologia enquanto ciência envolve questões diversas, e é o que esse trabalho


tenta pontuar, a partir de fundamentos epistemológicos. Partindo-se da perspectiva de
Mungello (1989) de que a proto-sinologia tenha sido designada a partir dos estudos
missionários na China, que têm como premissa a formação da sinologia na Europa através do
conhecimento da China com base no material publicado nesse país, podemos afirmar que a
visão científica da sinologia recebe outra dimensão, quando o próprio europeu passa a reunir
conhecimentos sobre essa civilização, por meio de estudos acadêmicos e com base em
produções acadêmicas em circulação.
Édouard Chavannes (1865-1918), professor de Granet, parece pertencer à primeira
geração de sinólogos, mas, observando as discussões entre Humbolt e Abel-Rémusat (1821-
1831), nota-se que ele, na verdade, participou da segunda. Ainda com base na definição de
sinologia de Mungello (1989), podemos considerar que Granet tenha feito parte da terceira
geração. A primeira geração de sinólogos foi fundamental para estabelecer o ramo da
sinologia enquanto ciência, e ainda definir os rumos que tomaria essa área, além de sua
própria razão de existência. Granet, por sua vez, definiu a sinologia como moderna ao
introduzir o método da sociologia de Durkheim no estudo sobre a civilização chinesa. Inovou,
assim, ao apontar características tidas como falhas ou pontos inseguros existentes até sua
época, destacando a importância do momento de transição da sinologia.
Na perspectiva de Wang Li (1981), é possível classificar as gerações de sinólogos
ocidentais a partir da consideração científica dos estudos sobre a China, fazendo uso da
filologia, ou baseando-se nela. Neste caso, Leibniz faria parte da primeira geração de
sinólogos, seguido por Humbolt e Abel-Rémusat (segunda geração), Chavannes (terceira
geração), e Granet (quarta geração). Essa perspectiva, assim como a nossa, baseia-se no
momento de transição da sinologia.
O aspecto científico da sinologia de Granet recebe destaque, pelo fato de seu
modelo de análise compartilhar de condições semelhantes às que levaram Leibniz a
questionar as pesquisas realizadas em seu tempo sobre a China, além de apresentar
características próprias do modelo de sinologia chinesa de Wang Li. Classificamos, aqui,
todos eles como cientistas, e consideramos o uso da filologia em suas pesquisas – fator
comum entre eles – como meio direto ou indireto.
A sinologia de Granet é caracterizada como área científica, pois segue uma
abordagem dedutiva nas análises, e não somente pelo fato de introduzir o método da
122

sociologia. Retomando os motivos apontados por Granet, n’O Pensamento Chinês, como
falhas de uso da filologia, pode-se reconhecê-los como fatores comuns em qualquer estudo
científico, visto se tratar de possibilidades de contestar uma argumentação, resultantes de
novas descobertas. Os eruditos deram prioridade ao uso da filologia (GRANET, 1997), mas,
com base em Wang Li (1981), o problema não está no instrumento e sim na forma como é
utilizado. Conforme argumenta, foi o foco quase que exclusivo nos clássicos Han que
prejudicou esse método na China, pois limitou as possíveis comparações e até o
desenvolvimento dessa área enquanto ciência. Na concepção do estudioso chinês, é evidente
que a filologia possui métodos específicos e estruturados para análise de materiais antigos,
além de subáreas importantes, como a paleografia, a glossologia etc.
No caso da filologia ocidental, embora seus estudos e sua utilização serem
antigos 44 , seu âmbito de investigação mais comum mantinha-se dentro da concepção das
pesquisas de línguas indo-europeias. A filologia foi e continua sendo um importante
instrumento para as pesquisas em linguística histórica, e Wang Li (1981) demonstra
compartilhar desse conhecimento, indicando que era de uso também na antiguidade chinesa.
Granet (1997) parece referir-se aos erros de tradução e interpretação, cometidos pelos
sinólogos de seu tempo, quando cita Chavannes, Maspero etc, associando-os ao instrumento
de análise.
Apontando a importância da filologia para os estudos em linguística histórica,
Silva (2008) define essa área:

A filologia abrange pois: história da língua (glotologia, glótica, linguística e


seus ramos) com a estilística e a métrica; história literária. Faz-se aplicação
prática da filologia quando se edita criticamente um texto (LEITE
VASCONCELLOS, 1950, p. 8 apud SILVA, 2008, p. 13).

É compreensível que um instrumento, acostumado a tratar de línguas ocidentais,


passe a apontar falhas ou contenha vícios de uso próprios de sua aplicação, como os
constatados nas missões jesuítas na China, por exemplo, por Bouvet e pelos missionários
citados por Granet (1997). Outro motivo, pelo qual Granet não confia no uso da filologia para
o estudo da sinologia, é a possível constatação de anacronismos no trabalho dos filólogos

44
As sociedades humanas que tiveram escrita e puderam, assim, preservar textos literários e religiosos –
assumidos, a cada geração, como preciosos monumentos culturais – desenvolveram também estudos filológicos.
São exemplos disso os trabalhos dos sábios hindus que, desde pelo menos o século IV a.C., procuravam fixar
seus textos religiosos; os estudos que os alexandrinos, por volta do século II a.C., fizeram dos textos dos poetas
gregos antigos; e o esforço dos comentadores árabes, na Idade Média, para fixar o texto do Corão (FARACO,
2005).
123

eruditos. Assim, possivelmente para evitar cometer tais erros, Granet abstém-se de seguir um
trabalho com rigor histórico.
O mérito científico da sinologia de Granet deu-se pelo abandono do que ele
considerou como limites dessa área e apoio em um método que vinha ganhando interesse e
certa credibilidade, mesmo com as críticas comuns a qualquer teoria científica – o da
sociologia de Durkheim. Granet conheceu a filologia, possivelmente, por meio de Chavannes
e dos estudos em sinologia, o que pode comprovar sua desconfiança no uso de tal
instrumento. A proposta de abordar os fatos sociais nos estudos sobre a China também
poderia ser considerada própria de uma sociologia chinesa, pelo fato de a sinologia ainda
necessitar de definições, enquanto ciência. Se todas as áreas existentes tomassem como objeto
de estudos a China, a sinologia seria um mero termo sem valor para se constituir como área de
estudos. Este problema ainda se mantém na atualidade e sua causa está justamente na
condição em que a área foi criada. Considerando os estudos enviados para a Europa com base
nas produções dos missionários na China, é possível perceber uma diversidade de estudiosos e
curiosos, especialistas em alguma área ou não, que tomavam a China como objeto de estudo.
Mesmo a definição dada por Mungello (1989) compartilha desse problema, visto que trata do
assunto como independente das áreas de domínio dos interessados. Como se bastasse tomar a
China como objeto para ser classificado como sinólogo.
Diferente do método adotado por Chavannes e todos os outros sinólogos de sua
época, Granet introduz o fato social em suas reflexões sobre sinologia e passa a observar o
comportamento social dos chineses por meio de sua produção. Com isso, tudo o que é produto
da sociedade e de seu uso pode indicar aspectos próprios dessa civilização, caracterizando
também seu modo de pensar o mundo. A partir de tal método, tudo o que é produto social
passa a ser visto por Granet como coisa, e que possui uma função total, isto é, uma função
social. Embora este modelo aproxime-se perfeitamente do método adotado por Durkheim na
sociologia, Granet foi pioneiro ao realizar o trabalho referente à China especificamente, o que
o coloca em evidência. Granet não nega esse caminho, mas age com certa cautela, evitando
assumir um estudo somente sociológico. Se considerássemos apenas esses pontos nas
pesquisas sobre a China desenvolvidas por Granet, conviria excluí-lo enquanto sinólogo.
Nesse caso, também ficaria de fora Leibniz, por se tratar de um matemático interessado nos
assuntos das missões na China. Por essa linha de raciocínio, possivelmente, sobrariam as
discussões entre Humbolt e Abel-Rémusat, já que tratam das questões que deram origem à
sinologia ocidental, além de Chavannes e a observação de falhas sobre a filologia, para
contrapor à sinologia chinesa de Wang Li.
124

Granet (1997) conserva as características de Chavannes (1865-1918), retomando,


de certa forma, algumas inquietações que também parecem ter motivado Leibniz a efetuar
mudanças no método. Critica os poucos missionários citados n’O Pensamento Chinês, e
demonstra seu total distanciamento das concepções religiosas, – diferente de Leibniz que,
embora mantivesse seus interesses científicos, inevitavelmente, dependia das informações das
missões. O grande diferencial de Granet, em relação aos outros estudiosos de seu tempo, foi o
questionamento sobre o material e o apontamento da necessidade de mais informações sobre a
China. Mesmo comparada a outras vertentes da atualidade, a sinologia de Granet parece servir
de modelo, não pela influência do sinólogo, mas porque corresponde ao tipo de padrão aceito
no momento. Pode ocorrer ainda a reunião de outras áreas distintas para investigar e discutir o
mesmo objeto. Exemplo disso são os trabalhos realizados pela filósofa e sinóloga Anne
Cheng (2007), na obra La Pensée en Chine Aujourd’hui, juntamente com alguns
colaboradores, como Viviane Alleton (linguista e sinóloga), Jacques Gernet (cientista social e
sinólogo), Léon Vandermeersch (historiador e sinólogo), Karine Chemla (matemática e
sinóloga) etc. É importante esclarecer que esse tipo de sinologia não foi criado por Granet,
uma vez que já partia da proto-sinologia (MUNGELLO, 1989), em que se destaca o filósofo e
matemático Leibniz. Embora exista um interesse comum sobre os assuntos da China entre os
pesquisadores, cada um domina uma área distinta.
Não podemos negar a importância desse modelo de sinologia, já que amplia as
pesquisas e aborda diversos temas sobre a China, mas podemos considerar um problema
epistemológico da área em seguir tal concepção: de um lado, temos ciências distintas e que
possuem fundamentações específicas características de sua condição de existência; de outro,
temos a sinologia que, de acordo com esse modelo, não parece ter outra função senão a de
delimitar o objeto de análise, no caso, a China. Outra condição desse tipo de sinologia é usar
áreas cientificamente comprovadas e estruturadas apenas como instrumentos de seleção e
investigação dos aspectos da China. Nesta condição, a sinologia passa a atuar somente como
um espaço de reunião e discussão dos fenômenos, e não como uma área científica que tenta se
constituir. Dessa maneira, tal sinologia demonstra não possuir definições estruturais, que a
colocariam na posição de área científica independente.
Observando as condições de criação e razão de existência da sinologia ocidental
enquanto ciência, é possível delimitar os padrões de sua constituição. Além disso, nota-se que
essa área sempre manteve a posição de classificar o interesse pela China, o que não a sustenta
como ciência, nem mesmo pelo fato de as pesquisas permanecerem no âmbito científico desde
sua designação (MUNGELLO, 1989). O problema amplia-se quando se busca descrever a
125

estrutura da sinologia ocidental. Não seria possível, no momento, delimitar a extensão dos
interesses de estudos que a sinologia ocidental possui sobre o seu objeto.
No caso da sinologia chinesa, de Wang Li, a única ferramenta de seleção e preparo
do material utilizado nas análises é a filologia. Granet (1997) demonstra em seus relatos que
até mesmo em seu tempo se fazia uso desse instrumento, porém com falhas e restrições
metodológicas, motivo pelo qual não deu total credibilidade à filologia.
O problema que retomamos é o fato de que a filologia ocidental não estava
habituada a ser empregada nas línguas orientais, e que, provavelmente, não aceitava ou não
considerava completamente as habilidades dos chineses para tal finalidade. A filologia é uma
ciência que possui estrutura definida e objetivos delimitados, tida como um dos ramos da
linguística que demanda treinamento e atenção, uma vez que qualquer detalhe ou informação
que passe despercebido possa comprometer o resultado do trabalho. Tal informação poderia
ser encontrada em textos ou livros antigos, ainda não manuseados ou mesmo descobertos, fato
que consideramos causa da desconfiança de Granet, em relação aos resultados insatisfatórios,
recolhidos por ele ou por outro filólogo, principalmente, devido à abordagem focada na
objetividade dos fatos.
Da mesma forma, Wang Li julga a aplicação da filologia pelos estudiosos chineses
nos clássicos Han, como um impedimento ao desenvolvimento dessa área e da linguística
chinesa, em geral. Entretanto, Wang Li não nega o uso da filologia, já que se trata do principal
método utilizado pelos antigos na China, além de ter relação com a gramática chinesa,
desenvolvida tardiamente, de acordo com sua opinião.
O propósito da sinologia chinesa era estudar as opiniões políticas e filosóficas dos
antigos, por meio de objetivos definidos e específicos, sem adentrar o mérito das áreas
política ou filosofia, mas com o intuito de produzir pesquisas que auxiliassem no
conhecimento de tais assuntos, a fim de promover o desenvolvimento das áreas que
necessitavam dessas informações. É provável que a filologia utilizada por Granet e pelos
filólogos de sua época, no Ocidente, almejasse algo maior que a própria capacidade de
atuação, ou seguisse um modelo típico ocidental. Segundo Wang Li (1989), todos os
ocidentais que estudavam a língua chinesa eram especialistas no método desenvolvido por
Saussure, no Curso de Linguística Geral (2006), e o aplicavam ao estudo do chinês. Tal fato
favoreceu o conhecimento da área pelos chineses, mas também limitou a aquisição eficiente
da filologia chinesa pelos estudiosos ocidentais.
É interessante a relação que Granet (1997) faz com o fato social na sinologia, não
por ser novidade, visto que se trata de uma abordagem própria da sociologia, mas por
126

considerar seu emprego na análise da China, – o que também não impedia o próprio
Durkheim de fazê-lo em suas pesquisas. O fato é que Granet aplica esse método em conjunto
com a filologia, por influência das pesquisas realizadas por Chavannes sobre a China.
Podemos afirmar, com base em Wang Li (1981), que Karlgren tinha muito mais experiência
na aplicação e no conhecimento da filologia na língua chinesa, devido, especificamente, aos
conhecimentos linguísticos, do que Chavannes que, por sua vez, possuía experiência em
estudos históricos sobre a China. A consideração do fato social nos estudos da civilização
chinesa é o que destaca a sinologia de Granet como moderna e científica, uma vez que utiliza
um método reconhecido cientificamente.
A sinologia concebida por Granet (1997) permanece a mesma do tempo de
Leibniz, no sentido de que já era uma área existente, e de que um estudioso com determinada
especialização tenha tomado a China como objeto, sem definir ou deixar claro sobre qual
aspecto desse país iria tratar. Geralmente havia relação com a área de atuação do estudioso, o
que também sugere que a sinologia ocidental, mesmo a atual, não possua uma estrutura
delimitada de tratamento do objeto.
Resumidamente, é possível classificar a sinologia em: sinologia figurista
(Bouvet), sinologia do fato social (Granet), sinologia radical (FRANÇOIS JULLIEN, 1951-/
ANNE CHENG, 1955-) e sinologia chinesa (não desconsiderando a existência de outras
concepções de sinologia no mundo, mas que também partem dessa base comum e participam
das condições de mudanças, pelo contato cultural).
A sinologia figurista tem como fundamentação o figurismo de Bouvet, e recebeu
forte influência da concepção de mundo dos missionários jesuítas na China. A partir do
material produzido por eles, estudiosos e curiosos produziram novos artigos que circulavam
no ambiente acadêmico europeu, bem como em vários outros países. Basicamente, os efeitos
da sinologia figurista podem ser encontrados até a atualidade, sem que seja citado o termo
figurismo, mas sim aspectos da concepção de cosmologia chinesa, introduzidos na China
pelas missões, e outras interpretações que sofreram influência direta do figurismo. Um
exemplo é a obra Orientalism in Sinology, de Adrian Chan (2010).
A sinologia do fato social foi iniciada por Granet e apoia-se no método da
sociologia de Durkheim, com uma suposta influência da filologia chinesa e ocidental no
tratamento do material analisado.
A sinologia radical, de Jullien, entra na questão da alteridade chinesa. Para este
sinólogo, o chinês é o “outro” distante, e só é possível compreender a civilização chinesa
sendo chinês. Acredita que o que o ocidental pode aprender e discutir sobre a China é apenas
127

uma interpretação construída.


A sinologia chinesa é baseada no que descreve Wang Li (1981) em A História da
Linguística Chinesa. Tem como fundamento o uso da filologia como instrumento para
realização da coleta e recuperação de material, além da interpretação e comparação do
conteúdo extraído do material analisado. A partir desse processo de organização, o resultado é
analisado por sinólogos, que têm como objetivo encontrar nos textos, especificamente, do
período Han, os aspectos da política e da filosofia dos autores e estudiosos citados nos
mesmos. A principal finalidade é resgatar informações pertinentes sobre o referido assunto,
produzido e compartilhado pelos antepassados, que podem servir de base para a cultura
chinesa em geral, podendo ainda ser aproveitados por outras áreas científicas.
É possível notar que a sinologia ocidental, além de não possuir uma estrutura
independente, é muito diversa no tratamento do objeto.
A partir desses tipos de sinologia, é possível fazer um levantamento daqueles que
se aproximam do modelo de sinologia chinesa de Wang Li e daqueles que se distanciam ou
não têm qualquer relação com o uso da filologia. Acreditamos que somente com base neste
mapeamento será possível estabelecer estudos em sinologia comparada a nível mundial, visto
terem relação direta com a origem da área, e considerando os padrões normais de influência
dos estudos sobre a China no mundo.
Quanto à sinologia chinesa, é provável que os países que alcançaram maiores
progressos nos estudos sobre a China, a partir dos materiais produzidos pelos jesuítas, e de
maior tempo de contato com esse país, assimilaram ou consideraram algo do método de
pesquisa dos chineses. Principalmente, em relação ao final da dinastia Qing, conforme
comenta Wang Li (1981), tendo estabelecido um padrão próprio ou aproximado ao dos
chineses.
Não se pode afirmar que todos os países pesquisem a China da mesma maneira.
Um exemplo é o Brasil, que ainda não considera formalmente a sinologia no meio acadêmico,
embora exista os Estudos Orientais, em algumas instituições de ensino, além de pesquisadores
considerados sinólogos, pelo simples fato de tomarem a China como objeto de estudo, em
suas especializações. Tal fato abrange um âmbito maior, exigindo discussões a respeito, além
de certa cautela no que diz respeito ao que vem a ser sinologia enquanto área científica.
Granet não inova por fazer uma abordagem puramente sociológica da sinologia,
mas introduz à área uma nova forma de tratar seu objeto de pesquisa, apontando, assim, uma
nova possibilidade de análise. A sinologia de Granet não é estruturada e delimitada para atuar
como campo científico independente, pois realmente essa área ainda é considerada, se assim
128

podemos dizer, como subárea das áreas que têm a China como foco de análise. No caso da
sinologia chinesa, por outro lado, a filologia atua somente como instrumento facilitador do
que se pode resgatar dos documentos antigos e que esclareçam os aspectos políticos ou
filosóficos de seus autores.
É compreensível que tais temas pareçam não bastar para suprir a diversidade de
interesses e questionamentos dos estudiosos ocidentais. Talvez seja esse o motivo de muitas
áreas científicas empenharem-se nas pesquisas sobre a China, de acordo com suas
metodologias e objetivos. O fato é que, ao manter essa abordagem, a sinologia ocidental
jamais sairá de sua posição secundária e, muito menos, poderá ser tomada como ciência. É
comum buscarem delimitar as áreas de interesse da sinologia ocidental em história, literatura,
língua e cultura chinesa. O estranho é não apresentarem as fundamentações teóricas
metodológicas que a compõem e que justifiquem tais escolhas, fazendo com que a concepção
de sinologia enquanto área científica permaneça vaga.
Ao buscar apresentar a China com base no que foi possível extrair dos
documentos chineses antigos, Granet (1997) age de maneira positiva sobre as considerações
necessárias que se pode fazer sobre outra civilização, e tenta comprová-las com base em
documentos históricos. Neste sentido, esforça-se para constituir uma sinologia moderna, que
busque nas fontes primárias as respostas às suas indagações científicas. O equívoco cometido
por Granet foi acreditar ser capaz de apresentar uma ciência que se revelasse quase como
verdade absoluta, fato que se nota por meio de termos comumente empregados por ele, n’O
Pensamento Chinês, tais como “concreto”, “objetivo”, “realidade” etc. A fim de confirmar tal
afirmação, tem-se:

Para não correr um risco excessivo de trair a realidade, convém nunca


esquecer que uma “doutrina” chinesa deve ser definida, não pela tentativa de
determinar as articulações de um sistema dogmático, mas procurando
destacar uma espécie de fórmula-mestra ou receita central (GRANET, 1997,
p. 19).

Outro argumento que comprova o propósito de Granet (1997) em apresentar fatos


considerados por ele como realidade da China Antiga é quando afirma que os eruditos
poderiam cometer anacronismos ao apresentarem uma realidade que não se sustenta no
processo das descobertas, para descrever o seu descrédito com a filologia. Para uma visão
científica evitam-se afirmações anacrônicas, mas sempre há o apoio dos fenômenos e do
material que se pôde reunir, além das teorias de que se dispõe, o que não exclui a
possibilidade de falhas ou argumentos passíveis de contestação. Exemplos de afirmações de
129

Granet que podem ser refutadas são as de que a língua chinesa não tenha sido feita para
expressões abstratas, ou que o pensamento chinês não priorize a abstração, ou ainda que os
chineses se revelem como pragmáticos.
A concepção de que os chineses não utilizavam os números para quantificar, mas
para classificar, apresentada por Granet (1997), é uma afirmativa recentemente contestada,
segundo as pesquisas de Chemla (2004), devido à descoberta do livro Les Neuf Chapitres, que
comprova a existência de cálculos feitos pelos antigos chineses, utilizando um sistema
semelhante ao de Pitágoras. Granet não nega a existência de um tipo de aritmética e
geometria, mas afirma que os chineses não distinguiam os mesmos e que o sistema de cálculo
deles era essencialmente pela prática divinatória, isto é, nada que apontasse um meio de
formulações abstratas. Granet cita a obra Science and Civilisation in China, de Needham
(1945-1965), mas por suas afirmações, deduz-se que ele não tenha diferenciado ciência de
técnica, apresentando o pensamento chinês como algo prático, que expressa a ação e incapaz
de formular teorias e abstrair o mundo. É possível que tais afirmações tenham sofrido
influência do resultado das discussões das primeiras décadas do século XIX entre Humboldt e
Abel-Rémusat, que deram origem à sinologia (ROUSSEAU/ THOUARD, 1999).
Numa tentativa de defesa de Granet quanto ao fato de ser acusado de ilustrar a
teoria sociológica, ele afirma que “os fatos sociais são efetivamente reais e são os únicos que
levam a ‘uma história positiva das ideias’” (GRANET, 1997, p. 10). Acreditamos, com base
em Gernet (1953 apud GRANET, 1953), que esse argumento tenha sido mais retórico do que
efetivamente a realidade. Praticamente todo o trabalho de Granet sofre forte influência do
método da sociologia de Durkheim, e pela afirmativa de Elisseeff (1997, apud GRANET,
1997), no prefácio d’O Pensamento Chinês, de que tenham ocorrido “turbulências e
contestações” nos estudos dos fatos sociais, é provável que Granet tenha usado
argumentações retóricas para evitar comprometer seu trabalho, o que justifica sua resposta em
tom irônico na nota 22 (GRANET, 1997, p. 356).
O conhecimento de Granet a respeito da filologia é bastante destacado em seu
trabalho, e n’O Pensamento Chinês, ele demonstra admiração por tal instrumento, embora
tenha afirmado a sua incredulidade nos resultados obtidos pelos eruditos. Faz uma análise
filológica ao interpretar criticamente os textos produzidos tanto pelos eruditos quanto pelos
modernos, como é o caso de Chavannes. Granet não confia nas datas fixadas pelos eruditos,
mas se apoia nas narrativas históricas produzidas por Si Maqian (145 a.C.), famoso
historiador e literato chinês, autor dos Registros Históricos (Shiji), certamente, traduzidos e
analisados com o uso da filologia. Ele interpreta também as glosas de textos antigos chineses,
130

além de tecer comentários a respeito dos caracteres chineses antigos.


O Pensamento Chinês é claramente pautado na filologia, pois sem uma análise
linguística, histórica ou crítica literária (conforme Granet afirma ter realizado em seus
trabalhos), que dê condições de estabelecer uma ordem e segurança preliminar para o
manuseio do material e conteúdo considerado pelo método de análise, tal pesquisa seria
apenas uma reunião de narrativas que não sustentariam o método dos fatos sociais. Seria
apoiar-se em uma base fraca, que não sustentasse a expectativa do sinólogo em apresentar
ações objetivas da sociedade chinesa antiga que comprovasse o modo de pensar desse povo.
A teoria dos fatos sociais de Durkheim pode ter passado por críticas negativas no
tempo de Granet, mas atualmente tem grande relevância na sociologia, servindo de base a
essa área científica. Se Granet (1997) buscou trazer o fato social para a sinologia, apontando-
o como fator comum ou geral de uma China racional, ele não pode negar a sua origem teórica
e ligação direta com a sociologia. O problema que se faz notar é que Granet não possuía e
nem constituiu uma estrutura teórica da sinologia, – e até hoje não há –, o que justifica a
aplicação do método da sociologia de Durkheim à sinologia de seu tempo.
Granet utilizou a filologia em suas análises, tanto pela influência que recebeu de
Chavannes, quanto pela necessidade que existia e ainda existe no Ocidente de compor
documentos em outras línguas, sem lidar somente com o material em chinês, por meio de
traduções e investigações criteriosas, para definir o que realmente interessa à sinologia. Para
tal, consideramos o modelo de sinologia chinesa construída por Wang Li bastante interessante,
por sua estrutura delimitada e foco de análise.
Comparando sucintamente os modelos de sinologia apresentados, buscando os
fatores comuns entre eles, é possível estabelecer que a sinologia figurista considera a filologia
como instrumento de análise e reúne o material antigo da China (especificamente, os
clássicos), mas faz suas interpretações com base na leitura figurista dos missionários na China,
introduzindo esse pensamento nos resultados do material produzido, o qual serviu para os
estudiosos acadêmicos como único meio de conhecer a China, e foi ampliado pelo acréscimo
de análises e pontos de vista das diversas áreas interessadas no assunto. A partir do momento
em que o material, influenciado pelo figurismo, é reproduzido e recebe novas informações
interpretativas, o resultado passa a ser maior e muito distante do original, mas a base comum
permanece a mesma, o que permite sua verificação.
No caso da sinologia do fato social, há fortes indícios do uso da filologia como
instrumento de análise, e o foco é a busca dos fatos sociais no material produzido pelos
chineses em tempos antigos, Granet inaugura, assim, uma nova perspectiva de trabalho
131

sinológico e sociológico, o que se caracteriza como sinologia moderna, para os padrões


existentes à época (século XX).
A sinologia radical parece ter sido desenvolvida por Jullien (1951-) para
interpretar a China, em síntese, como o estranho e incompreensivo aos padrões ocidentais,
sendo bastante contrário aos apontamentos de Anne Cheng (1955-), que aborda várias formas
de análise sobre a China, por meio do debate com outras áreas de estudo. Tanto Jullien como
Anne Cheng pertencem ao período considerado como nova geração de sinólogos, uma vez
que fazem parte das discussões atuais sobre a área e apontam mudanças de perspectivas dos
modelos fundamentais e de origem da sinologia. A sinologia chinesa será melhor apresentada
no quarto capítulo deste trabalho, mas adiantamos que sua base são os resultados de uma
análise filológica preliminar dos clássicos Han. Somente mais tarde foi feita uma análise
sinológica, com foco nas características políticas e filosóficas dos principais autores e no que
o texto produzido por eles pôde oferecer a respeito do assunto.
Conforme argumentos anteriores, a sinologia figurista e a sinologia do fato social
apresentam-se como dois momentos importantes de transição da sinologia, que podem ser
comparados à sinologia chinesa, de Wang Li. O ponto em comum entre as três é o uso da
filologia como instrumento nos trabalhos iniciais de análise. O que as difere é que as
sinologias ocidentais (a figurista e a do fato social) não possuem qualquer estrutura teórico-
metodológica para se estabelecer como ciência e têm como função geral os estudos sobre a
China; além disso, ambas introduzem na sinologia conceitos e funções totalmente ocidentais,
bem como o próprio termo sinologia, nas pesquisas sobre esse país. O diferencial entre as
duas primeiras é a visão religiosa imposta na realidade chinesa, em oposição à perspectiva
científica e de vínculo acadêmico.
Segundo Wang Li (1981), os estudos em sinologia na China são antigos, o que
demonstra ao descrever a evolução da filologia enquanto área de estudo da língua chinesa
antiga até os contatos dos ocidentais na China, que favoreceram o desenvolvimento da
linguística chinesa. A área tornou-se objeto da sinologia de Wang Li, por envolver tanto o
desenvolvimento da filologia como instrumento quanto as posições políticas e contribuições
dos filósofos chineses, que discutiram a língua chinesa antiga e suas propostas de organização,
manutenção e fixação como língua nacional, em meio a vários dialetos existentes fora da corte
imperial e às mudanças comuns que ocorrem nas línguas em contato, nas diferentes etnias.
Granet (1997) poderia ter tomado outro rumo em suas pesquisas e considerações,
se revisse sua concepção sobre filologia e assumisse o uso desse instrumento em suas análises.
Assim, seu modo de investigação seguiria o modelo apresentado por Wang Li (1981), ao
132

menos no que diz respeito ao instrumento. Considerando seu foco no fato social, após a
utilização da filologia chinesa possivelmente seu trabalho estaria mais bem embasado, do que
sob a influência das observações preliminares de Chavannes, que além de introduzir
concepções na perspectiva ocidental, era impregnada das leituras de seu tempo, entre os
sinólogos. Tanto Chavannes como Karlgren possuíam convicção a respeito da concepção de
língua chinesa de Granet, com base nas informações dos debates sobre o processo de
desenvolvimento do campo da linguística, naquele tempo, ainda limitado pelos estudos das
línguas indo-europeias e baseado nas teorias de Saussure. O linguista e sinólogo Karlgren foi
um dos primeiros a considerar as línguas orientais em suas pesquisas, sendo importante
influenciador do desenvolvimento da linguística chinesa pelos chineses. Maspero também
contribuiu, mas em menor proporção. A seguinte passagem confirma essa afirmação:

Com isso, seria possível ou não dizer que, a fonologia da China não recebeu
influência de Karlgren ou recebeu apenas uma influência extremamente
fraca? Não podemos falar deste modo, porque a China daquela época
recebeu igualmente todos os princípios de Karlgren, recebeu inclusive o seu
ponto de vista e método, depois o corrigindo, a partir de pontos complexos,
até mesmo o comparando de maneira um pouco mais distanciada (WANG
LI, 1981, p.160)45.

Neste trecho, observa-se a importância dada por Wang Li ao estudioso Karlgren,


em relação ao desenvolvimento da linguística chinesa. Com isso, nota-se que os chineses
assimilaram melhor o conhecimento dos ocidentais, do que aqueles que o proporcionaram,
pois além de valorizarem os trabalhos desse sinólogo, também compararam e corrigiram
aspectos não coerentes, isto é, trataram o assunto de modo científico, avançando com os
resultados.
Granet (1997) considerou Maspero (1883-1945), dentre outros autores, como
referência em suas pesquisas, e apoiou-se no material produzido por Karlgren (1889-1978)
para aprofundar seus conhecimentos a respeito da língua chinesa. Wang Li (1981) aproveita o
conteúdo das informações produzidas por esses sinólogos na China, mas aponta os limites e
falhas cometidas por ambos, que poderiam ter sido aproveitadas pelos sinólogos ocidentais,
como no caso de Granet, evitando uma perspectiva fundamentada somente no que os
estudiosos ocidentais produziram, sem comparar ao estudo de Wang Li.
A filologia, para Wang Li, é totalmente contrária à que Granet despreza, enquanto

这能不能说,中国音韵学没有受高本汉的影响或只受极微弱的影响呢?我们不能这样说,因为当时的
45

中国学者一般都接受了高本汉的总原则,甚至接受了他的观点、方法,然后从枝节的地方去纠正他,甚
至比他更走得远些 (p. 160).
133

instrumento. Para ele, a filologia possibilita um amplo estudo comparado, valorizando todo
tipo de informação que contribua com o esclarecimento dos fenômenos. É o caso do próprio
Wang Li na elaboração de sua obra A História da Linguística Chinesa, que reúne as
informações chinesas e ocidentais de forma comparativa, apresentando os pontos que se
complementam ou diferem, para destacar na sinologia chinesa as opiniões da política
linguística ou da filosofia da linguagem, correspondente aos autores mais importantes. Granet
(1997) analisa os textos chineses antigos, buscando reinterpretá-los, com base em seu
conhecimento de filologia e em seu interesse pelos fatos sociais. Desse modo, sua pesquisa
está fundamentada na leitura dos clássicos chineses, de onde buscou extrair o que considera
como comportamento e produto da sociedade chinesa antiga, tomando essa concepção como
padrão para toda a China, independente de os grupos de letrados e de os chineses que tinham
acesso ao ensino serem minoria, restringindo-se ao Império. No caso da sinologia chinesa, de
Wang Li, o foco de estudos é apenas esse meio, o que justifica o uso da filologia. Wang Li
(1981) apresenta, com os materiais produzidos pela filologia, relatos de estudos dos dialetos
antigos chineses feitos por Yang Xiong (Dinastia Han), indicando um tipo antigo de
dialetologia, realizado por meio da coleta, por escrito, dos diferentes falares de grupos étnicos
diversos. Isto indica a existência de um material importante sobre as línguas chinesas, ao qual
Granet não teve contato, limitando-se ao âmbito da corte imperial, que também não deixa de
ser um importante objeto, desde que não seja apontado como a língua de todos os chineses.
Estabelecer o fato social como objeto de análise da civilização chinesa foi um fato
inédito para a sinologia da época de Granet, mas sua aplicação em um contexto histórico
muito antigo exigiu melhor escolha e tratamento do material, para que os resultados fossem
satisfatórios. A causa eficiente que produz os fenômenos sociais descritos por Granet (1997),
depende da completa organização e delimitação do material a ser analisado, para que se torne
possível apontar sua função social (DURKHEIM, 2007).
O pensamento chinês como fenômeno social, conforme concebido por Granet
(1997), é apresentado pela língua oral e escrita chinesa, no estilo em que é expressa; pelas
ideias diretivas, compostas pelo espaço e tempo, e pelos conceitos de yin e yang; pelos
números e suas funções; pelo conceito de tao; pela expressão chinesa de mundo, composta do
macrocosmo, microcosmo e o padrão de etiqueta; pelas religiões (seitas) e instituições
(escolas), representadas pelas receitas de governo, que se resumem na arte (e não regra) de
administrar, receitas do bem público, representadas por Confúcio e Mo Zi; e por fim, pela
ortodoxia confuciana, composta pelos representantes institucionais, Mêncio, Xun Zi (Siun-
tseu) e Dong Zhongshu. Todos esses aspectos são o que o pensamento chinês produz, ou seja,
134

sua causa eficiente. A partir desse quadro, Granet apresenta a função deles para a sociedade
chinesa, sendo basicamente a de fomentar a organização social. Isto é, o pensamento chinês
busca a civilização por meio da ordem e não, da regra. Segundo Granet (1997), a civilização é
um benefício para os chineses, por isso, é produzida pela sociedade e, não mais, invenção dos
sábios.
A sinologia do fato social, para Granet (1997), busca apresentar uma sociedade
chinesa que preza os valores morais, e que por isso segue um caminho civilizatório, como se
pode observar no comentário de Paul Chalus (1997 apud GRANET, 1997, p. 7): “o
pensamento chinês se orienta para a cultura, e não para o conhecimento puro”. Entendemos
que a tal orientação para a cultura refere-se às práticas sociais que, no caso, constituem a
cultura da civilização chinesa. Segundo Granet, os chineses são pragmáticos e não buscam o
conhecimento científico, pois acreditam que a humanidade é parte do universo. Para eles,
basta ter consciência do papel do homem na natureza como um todo que se complementa.
Esta visão de totalidade é bastante acentuada na opinião de Granet (1997) e tem relação direta
com o conceito de dao (tao), na sinologia do fato social. A concepção de mundo, para a
sinologia de Granet, abrange as ideias de ordem, totalidade e eficácia. Tais ideias fazem parte
da concepção de universo para os chineses, o que gera entre eles um status muito distinto do
qual participam o chefe, o sábio e o homem de bem.
Para a sinologia do fato social, de Granet, a organização do reino, representando o
universo chinês, é regida pela virtude que promove as artes e as ciências. A virtude é um
protocolo produzido pela ética chinesa, e para esse povo a etiqueta é universal (social). Tais
fatos não são tidos como regra ou lei, mas como protocolo (costume) social, aceito sem
contestação, segundo Granet (1997). O sinólogo apresenta, em seu modelo de sinologia, uma
China ordeira, que segue costumes próprios das instituições, sejam elas imperiais ou dos
letrados; uma concepção de mundo que foi determinada pelo sistema imperial e transmitida
para o povo chinês. A instituição dos sábios criou um sistema de civilização, que passou a ser
modelo da organização social chinesa, isto é, um sistema de civilização nacional. É possível
notar que tudo se dirige a uma função social – a constituição da civilização, regida pela ordem.
A sinologia do fato social apoia-se constantemente no princípio civilizatório da China,
institucional e, na opinião de Granet, aceito por todos os chineses. No entanto, todo sistema
de governo busca ser aceito e seguido pela sociedade, ainda que existam oposições. A
sociedade chinesa também segue esse modelo, o que não a torna exceção, como tenta
demonstrar Granet. Para ele, os chineses não contrariam o modo pelo qual o governo
estabelece seus métodos:
135

Todas as lendas visam a relatar fatos da história humana. Uma mesma


filosofia política as inspira. Os seres e as coisas existem e perduram em
razão da harmonia (ho) instituída pelos santos autores da civilização
nacional. É a Sabedoria destes que permite aos homens e aos seres
conformarem-se a sua essência (wu) e realizarem plenamente seu destino
(ming). A harmonia social, que se deve à ascendência dos Sábios, acarreta,
juntamente com a Grande Paz (Tai ping), um perfeito equilíbrio do
macrocosmo, e esse equilíbrio reflete-se na organização de todos os
microcosmos. A primazia conferida às preocupações políticas é
acompanhada, nos chineses, por uma repulsa intrínseca a qualquer teoria
criacionista (GRANET, 1997, 213).

A sinologia chinesa, de Wang Li, apresenta situações que contestam os


argumentos de Granet, em relação a aparente “harmonia instituída pelos santos autores da
civilização nacional” (WANG LI, 1981, p. 8), como os exames oficiais do período Han, que
eram aplicados de forma muito rigorosa e estabeleciam penas severas aos erros cometidos.
Além disso, o próprio ensino, restrito ao âmbito da corte, demonstra um propósito imposto
pela instituição governamental, confirmando a influência desse pensamento nas considerações
de Granet, por tratar do material escrito da China Antiga.
No tratamento desse tipo de material a sinologia do fato social, bem como a
figurista aproximam-se à chinesa. Acredita-se que a influência herdada do sistema figurista
exista, devido ao uso da filologia por Granet, ou mesmo devido aos vestígios do contato com
o material produzido pelos filólogos chineses na dinastia Qing (WANG LI, 1981). Qualquer
sinólogo que tomar os clássicos como material de análise deve ter em mente que estará
retratando não somente fatos de tempos distantes, mas também a linguagem e perspectivas
muito distintas da sociedade, especialmente, da não letrada.
Outro fator importante, destacado por Granet (1997), é que, na maioria das vezes,
cada autor transmite em seu trabalho aquilo que acredita e defende, a menos que o texto seja
um trabalho encomendado e previamente orientado a seguir critérios, como os realizados ao
Imperador. Essa expressão das ideias políticas ou filosóficas, por meio do uso da filologia
enquanto instrumento de análise, serve de objeto de estudo para a sinologia chinesa.
Granet (1997) demonstra perceber o aspecto político e de conduta moral dos
clássicos que investiga, mas, por ter como prioridade os fatos sociais, abrange outros assuntos
amplos, e acaba tratando das questões políticas e filosóficas de maneira generalizada. É
possível notar as ligações que faz em relação à constituição da civilização chinesa, na seguinte
descrição:
136

A fisiologia e a higiene ou a moral confundem-se com a física - ou melhor,


com a História, isto é, com a arte do Calendário; a anatomia e a psicologia
ou a lógica se confundem com a cosmografia, a geografia ou a política; e o
essencial na política é a arte – posteriormente denominada de Geomancia
(fong shuei) - graças à qual os chineses pretenderam ordenar o mundo,
aplicando-lhe seu sistema de classificações, isto é, as regras de sua
morfologia social. Geomancia e calendário, morfologia e fisiologia comuns
ao macrocosmo e ao microcosmo, esse é o saber total e a única regra. Esse
saber e essa regra ditam e ensinam todos os comportamentos dos homens e
das coisas. Qualquer ser seria rebelde e fomentador de desordem se
infringisse as mínimas prescrições da Etiqueta. A Etiqueta é a única lei. É
graças a ela que se realiza a ordem do Universo. Ela deve comandar cada
gesto e cada atitude dos seres, pequenos e grandes (GRANET, 1997, p. 238).

Para Granet (1997), a classificação da política como geomancia devia-se ao fato


de ser organizada pela escola dos adivinhos. A partir disso, entende-se que a administração
imperial da China Antiga era realizada, não por estudos estratégicos que envolviam
preparativos de defesa ou ataque militar, tendo em vista os longos períodos de guerras, como
dos Reinos Combatentes (475-221 a.C.), mas pela conduta do governo com base na sorte.
Granet comenta esse período conturbado e diz não aceitar as interpretações existentes,
evitando muitas opiniões, por não estar seguro das informações que reúne sobre o assunto. O
sinólogo considerou esse período e o anterior, conhecido como Primavera e Outono (770-476
a.C.), por ser o tempo em que viveu Confúcio, referido em sua obra. Em relação à sinologia
dos fatos sociais, Granet afirma ter evitado seguir uma cronologia histórica em suas análises e
reúne os fatos considerados mais importantes, simplesmente, por não considerar precisas as
datas informadas pelos eruditos para um trabalho que buscava a objetividade.
A sinologia de Granet possui aspectos muito positivos quanto ao tratamento das
questões sobre a China de forma científica, considerando os estudos acadêmicos existentes em
seu tempo e analisando-os de forma crítica, além de buscar o apoio de fontes primárias para
desenvolver suas reflexões. Por outro lado, Granet faz uso da retórica para negar dois
conceitos fundamentais utilizados em sua pesquisa: a sociologia, que tem relação direta com
os fatos sociais, e a filologia enquanto instrumento de suas análises. A sociologia serviu para
reformular os caminhos da sinologia de seu tempo, e a filologia, além de se aproximar da
sinologia chinesa, de Wang Li, mesmo não sendo a intenção de Granet, facilitou a organização
e a estruturação de um trabalho que evitou se apoiar na história, mas precisou falar das
dinastias chinesas; evitou seguir um estudo linguístico e literário, mas precisou falar da língua
chinesa antiga e fazer interpretações dos clássicos Han.
Na sinologia dos fatos sociais, Granet faz considerações ao Clássico das
Mutações e ao Clássico das Poesias, e coloca ambas as obras na mesma categoria, tomando
137

os provérbios da primeira como poesias. Embora aponte certa relação dos provérbios com os
do filósofo chinês Zhuang Zi, Granet (1997) afirma possuírem uma linguagem poética. A
nosso ver, esse sinólogo não soube distinguir o gênero poético do filosófico. Também
notamos que n’O Pensamento Chinês ele dá maior ênfase à análise do Clássico das Poesias, o
que entendemos como sua base de interpretação para o Clássico das Mutações e outros
clássicos chineses. Esta afirmação pode ser atestada em:

Os poemas do Shijing que estão escritos na linguagem mais proverbial são,


seguramente (a opinião pública o atesta), aqueles em que se expressam os
pensamentos mais sutis. A mesma regra se aplica às obras de todas as épocas
e de todos os gêneros. Os poemas mais ricos em expressões consagradas são
os mais admirados. Em nenhum deles as fórmulas convencionais se
acumulam tanto quanto nos tipos de meditações místicas em que o lirismo
chinês soa sua nota mais alta. A grande densidade de máximas não mede
apenas o saber tradicional do poeta: a densidade mais acentuada é a marca
do pensamento mais profundo (GRANET, 1997, p. 54).

Embora realize extensa análise do Clássico das Mutações, Granet (1997),


diferentemente de Leibniz (1646-1716), aponta as possíveis relações dos hexagramas contidos
na obra com a função específica de um sistema de adivinhação antigo. A relação dos
hexagramas com um sistema matemático, apresentado na comparação com o sistema binário
de Leibniz, é considerada por Granet de valor secundário, devido à referência com os
emblemas numéricos, que possuíam a função de protocolar e classificar os elementos
universais. A concepção de mutabilidade, que também envolve os emblemas numéricos
enquanto emblemas divinatórios, é melhor entendida, na seguinte passagem:

Assim, na linguagem técnica da adivinhação, a palavra tao expressa a regra


essencial que se encontra na base de qualquer mutação - mutação real e
mutação de símbolos -, porque rege globalmente a totalidade das mutações.
O Tao é, por conseguinte, o Princípio de Ordem que rege simultaneamente a
produção (através da alternância) das aparências sensíveis e a manipulação
(mediante a substituição) das rubricas emblemáticas que denotam e suscitam
as realidades. Ele é, ao mesmo tempo (pois não há por que distinguir entre a
ordem técnica, a ordem real e a ordem lógica), o Poder de regulação, que se
obtém manipulando emblemas, o Saber eficaz, que rege as substituições de
símbolos, e a Ordem ativa, que se realiza, através de mutações perpétuas, na
totalidade do Universo (GRANET, 1997, p. 204).

A mentalidade chinesa, na sinologia de Granet (1997), prioriza a eficiência de um


sistema de disciplina social. O fato de apontar o princípio dos chineses em valorizar e seguir a
civilização demonstra que Granet conseguiu destacar a função fundamental do conteúdo das
138

obras clássicas antigas, principalmente as de Confúcio de enfatizar a educação, a disciplina, a


boa moral e a conduta do povo. Tais princípios são tanto políticos, no sentido da organização
administrativa que tem como finalidade reger o país (daí a preocupação com a “disciplina
social”), quanto filosóficos, pois levantam questões sobre diversos assuntos, muitas vezes
relacionados com as dificuldades populares e necessidades emergenciais, tornando-se
importantes construtores da civilização, como “Hong fan, pequeno tratado comumente tido
como o ensaio mais antigo da filosofia chinesa, [que] tem por tema o conjunto das receitas
que um Soberano digno desse nome deve conhecer” (GRANET, 1997, p. 109).
A partir dessa reflexão, é possível afirmar que os temas considerados principais
objetos de estudo na sinologia chinesa, de Wang Li (1981), isto é, a política e a filosofia dos
antigos letrados, definem os limites possíveis desse modelo de sinologia, e que também são
contextualizados de maneira generalizada por Granet (1997), no método da sinologia dos
fatos sociais, em que tentou não assumir o uso da filologia como instrumento de análise, além
de buscar se distanciar do próprio método da sociologia, do qual se serve de apoio.
139

Capítulo 3: O uso da linguística na sinologia ocidental

3.1 A importância da linguística para a sinologia

A partir do contato das missões jesuítas na China, tendo como destaque os


estudiosos Ruggieri (1543-1607) e Ricci (1552-1610), ocorreu a implementação em
estabelecer comunicação na língua local para melhor transmissão do cristianismo aos chineses,
o que acabou por facilitar as relações comerciais e intelectuais, favorecendo a expansão
europeia no país asiático. Naquele tempo os métodos de estudo da língua chinesa eram
precários e distintos dos estudos linguísticos atuais, mas os referidos missionários obtiveram
êxito no aprendizado do idioma, dentro de seus limites, produzindo traduções de uma
variedade de livros clássicos chineses para as línguas europeias, especialmente o latim.
No contexto das missões, a língua chinesa, em relação às línguas ocidentais, era
tida como ferramenta facilitadora da aproximação e do contato. Assim, a partir das
necessidades encontradas, o conhecimento linguístico tornou-se fundamental ao
estabelecimento de intercâmbio com essa nação, embora não tenha alcançado os objetivos
desejados por Leibniz, devido à problemática que envolvia particularmente a querela dos ritos.
A perspectiva ocidental que melhor aborda o papel da linguística na sinologia é
retratada nas Lettres Édifiantes et Curieuses sur la Langue Chinoise, de Humboldt e Abel-
Rémusat (ROUSSEAU/ THOUARD, 1999). A partir das discussões entre esses dois
estudiosos, a sinologia é criada como uma área de questões avançadas sobre a China e dentro
do meio acadêmico, proposta já iniciada por Leibniz, naquele tempo, ainda dentro da sua
perspectiva e apoiado nos materiais enviados pelos missionários à Europa.
As primeiras discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat, em 1822, tratam das
formas gramaticais. Os contatos iniciais se deram a partir das publicações de Abel-Rémusat
sobre o assunto no Journal asiatique, apresentando uma perspectiva contrária ao que concebia
Humboldt, animando os interessados pelo aprofundamento dos debates. O interesse desses
estudiosos estava na diversidade das línguas para uma pesquisa em antropologia comparada e
a hermenêutica desse saber, segundo D. Thouard, além da função da língua chinesa no
desenvolvimento da teoria linguística de Humboldt, segundo J. Rousseau, conforme
apontamentos referidos na introdução da obra Lettres Édifiantes et Curieuses sur la Langue
Chinoise (1999).
O estudo das diversidades culturais a partir das línguas se constitui como a base
de uma antropologia comparada, tornando Humboldt e Abel-Rémusat os precursores deste
140

método de estudo. Segundo D. Thouard (ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 10), a língua


chinesa funciona como o paradigma de uma hermenêutica do discurso, abandonando
simultaneamente o modelo bíblico e sagrado da tradição exegética e assumindo o contexto
inédito da interculturalidade.
A temática que aborda as diferenças culturais, tendo a linguagem como método, é
fundamental para as discussões entre os referidos estudiosos e serve de referência para a
história da origem da sinologia ocidental. Provavelmente os resultados e afirmações propostas
nesse debate ainda permanecem e são tidos como exemplos para a sinologia moderna, como é
possível notar nos argumentos de Granet, dentre outros sinólogos mais atuais, que defendem
que a língua chinesa não é própria para a abstração das ideias. D. Thouard afirma em sua
introdução da obra Lettres Édifiantes et Curieuses sur La Langue Chinoise que:

Le chinois, s’il est aux antipodes linguistiques du sanscrit, diffère également


de lui en ce qu’il n’est en aucune façon un double irrationnel de la Grèce.
C’est une autre famille, mais son étrangeté ne peut pas même cautionner
quelque supériorité des Eupopéens, tant est vénérable son antiquité et
indéniable son extrême culture. En d’autres termes, Humboldt est un des
premiers européens, par son étude du chinois, à envisager une mise en forme
à la fois culturelle et linguistique du sens radicalement autre que celle à
laquelle est habituée la tradition occidentale dans sa double origine judéo-
chrétienne et gréco-romaine. C’est peu dire qu’il n’est pas compris de ses
contemporains. L’enjeu culturel, et par là philosophique, est immense
(ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 10).

Conforme se pode notar, a língua chinesa ainda era tida como algo estranho e
misterioso, diferente do modelo comum das línguas europeias. Isso significa que a posição
anteriormente defendida por Leibniz da língua chinesa como um forte concorrente para
representar a língua universal, segundo a sua perspectiva, não surtiu efeito na Europa. D.
Thouard (1999, p. 11) apresenta a língua chinesa como “um objeto cultural, que representa
uma civilização indecifrável”. Apoiado em François Jullien, afirma que o chinês é
radicalmente o outro, diferente do Oriente indiano, que os estudos do sânscrito descobriram
ser próximo das línguas europeias. A língua chinesa, na concepção de D. Thouard, é tida
como objeto de estudos da projeção das ideias. A China, na opinião desse pesquisador, possui:

Le statut d’un tel continent culturel est celui d’un monstre inclassable,
rebelle aux constructions simplistes et bien « européennes ». Lorsque se
prépare une sinologie, au moment de la discussion entre Humboldt et Abel-
Rémusat, la Chine fait figure d’exception dans l’histoire universelle :
« monstre », « cas singulier », « momie » ou animal en hibernation, elle reste
à l’extérieur de l’histoire de la culture ou de la philosophie
141

(ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 11).

Nessa passagem, D. Thouard apresenta alguns dos principais motivos para as


discussões de Humboldt e Abel-Rémusat, que serviram de base para a construção da sinologia
ocidental, excluindo a China daquilo que era concebido como universal, na perspectiva
europeia. Seguindo esta concepção, a língua chinesa passa a ser um objeto externo ao mundo
“comum” europeu e necessita de um profundo estudo linguístico e filosófico para uma
possível tentativa de se chegar a um modelo de compreensão das ideias que participaram da
sua elaboração, ou seja, a busca de entender o pensamento chinês.
Aqui fica evidente que a língua chinesa abordada nas discussões de Humboldt e
Abel-Rémusat é a partir da escrita e D. Thouard deixa isso em destaque quando comenta
sobre o conteúdo do debate, o que para esses estudiosos não distancia do modelo da
linguagem oral. Ele descreve o chinês como uma massa incrível de signos com significados
que podem escapar de nós, se comportando como enigmas, muito diferente dos hieróglifos
egípcios conhecidos no Ocidente. Ele afirma que o chinês é uma língua incompreensível, para
os moldes das línguas europeias. A dificuldade com que os missionários se depararam na
China para o aprendizado do chinês é citada na carta de 15 de outubro de 1769, do Padre
François Bourgeois, por D. Thouard, que diz:

(...) Le chinois est bien difficile, Je puis vous assurer qu’il ne ressemble en
rien à aucune langue commune. Le même mot n’a jamais qu’une
terminaison ; on n’y trouve point du tout ce qui dans nos déclinaisons
distingue le genre et le nombre des choses dont on parle. Dans les verbes,
rien ne nous aide à faire entendre quelle est la personne qui agit, comment et
en quel temps elle agit, si elle agit seule ou avec d’autres. En un mot, chez
les Chinois le même mot est substantif, adjectif, verbe, adverbe, singulier,
pluriel, masculin, feminin, etc. C’est à vous qui écoutez, à épier les
circonstances et à deviner (Lettres édifiantes et curieuses de Chine par des
missionnaires jésuites (1702-1776), I. und J.-L. Vissière (éds.), 1979, p. 468
apud ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 12).

A descrição da língua chinesa, conforme D. Thouard (1999), destaca a concepção


missionária desse idioma e, apesar do avanço das discussões apresentadas por Humboldt e
Abel-Rémusat, o objeto de estudos ainda estava influenciado pelas interpretações e produções
de materiais pelos jesuítas. O método de análise da gramática chinesa e a concepção filosófica
de um modelo de pensamento desse povo, com base na comparação das estruturas da língua
chinesa com as línguas ocidentais são inéditos e até necessários para a época, fato que
demonstra o valor do debate e a importância da obra Lettres Édifiantes et Curieuses sur La
142

Langue Chinoise (ROUSSEAU/THOUARD, 1999) para a sinologia comparada proposta aqui.


Nesse contexto, que podemos afirmar ser de transição das ideias preconcebidas pelos
missionários na China em direção às discussões acadêmicas na Europa sobre essas ideias,
existe o destaque da linguística na construção da sinologia ocidental.
A linguística de Humboldt funciona como um instrumento de análise da língua
chinesa, para seu estudo em antropologia comparada. Isso registra na história a importância da
elaboração de teorias para buscar um meio de compreender a China. A falha do seu método,
conforme indica esta pesquisa, está no apoio das interpretações produzidas pelos missionários
em suas obras sobre o assunto, da mesma forma que nos estudos de Leibniz. Diferentemente
de Leibniz, Humboldt possuía certo conhecimento das línguas, mas considerou a perspectiva
europeia em sua pesquisa e não buscou compreender melhor a produção dos estudiosos
chineses sobre esse assunto. Esse recorte metodológico era comum na Europa do século XIX,
fato também destacado por Wang Li (1981) em relação ao Ocidente.
Humboldt utiliza seu método de teoria da linguagem no estudo da língua chinesa,
apontando um estudo comparado das estruturas gramaticais do chinês em relação ao grego,
latim e hebraico. As primeiras diferenças notadas nos debates entre os estudiosos foram que o
chinês não possui uma escrita alfabética, não é possível determinar as partes de uma oração e
não apresenta o modelo flexional comum das línguas consideradas clássicas na Europa.
Estudos como os desenvolvidos na discussão entre Humboldt e Abel-Rémusat em relação à
comparação e classificação das famílias das línguas, assim como a busca de bases comuns
entre línguas distintas já existiam antes, mas tomar a língua chinesa como objeto deste estudo
e ter como propósito delimitar hábitos mentais para o uso de uma escrita que tenta representar
imagens e não o som é sem dúvidas um trabalho inédito para a antropologia comparada, a
filosofia da linguagem, a linguística e especialmente para a sinologia.
Conforme descreveu D. Thouard (1999), Abel-Rémusat foi médico e naturalista
que viu na Revolução Francesa um momento de ruptura da tradição religiosa e cultural e se
apoiou nas ciências exatas. Já Humboldt não seguiu a teologia presente na Alemanha de sua
época, possuía uma educação racionalista e estudos em Direito. Ele trabalhou no programa de
estudo comparado das línguas, produziu o texto de título Sur la naissance des formes
grammaticales et leur influence sur le développement des idées, apresentando o princípio da
classificação das línguas. Sua teoria se baseava no surgimento das formas gramaticais
específicas das línguas, em que as línguas primitivas não se faziam entender, tendo como
principal exemplo desse modelo a língua chinesa. Humboldt concebia as línguas como um
processo de abstração das percepções sensíveis e qualitativas pelo uso das formas verbais. O
143

segundo ponto importante na perspectiva desse pesquisador era o surgimento das formas
flexionais das línguas, fato que excluía o chinês (ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 14-15).
D. Thouard (1999) afirma que existem diferenças entre as ditas línguas
“gramaticalmente formadas”46, que apresentam o desenvolvimento das ideias em sua estrutura
e as outras classes de línguas e aponta que Humboldt, ao escolher somente as línguas que
possuem uma gramática como sendo perfeita para o desenvolvimento das ideias, encontra um
problema em classificar as línguas chinesa e a copta47. Para Rémusat, segundo D. Thouard
(1999) citando o Elémens de grammaire chinoise desse autor, na gramática as palavras com
função de nome, de tempo, de lugar, a natureza das proposições positivas, optativas,
condicionais, são deduzidas pelas posições das palavras, ou são representadas pelas palavras
separadas, escritas como caracteres distintos, antes ou depois de um nome ou verbo 48 . Já
Humboldt, com sua suposição de que a língua chinesa é desprovida de gramática ou sentido
comum das palavras, concebe as nomeadas como gramáticas determinadas somente pela
posição das palavras ou pelas palavras separadas, que o leitor busca determinar, a partir do
49
contexto, se a palavra é um substantivo, adjetivo, verbo ou uma partícula
(ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 16).
Em relação ao papel da linguística na sinologia ocidental, podemos afirmar, com
base nos precursores Humboldt e Abel-Rémusat para esta pesquisa, que suas discussões
tinham um importante fundamento para o momento de origem da sinologia e que indica a
língua escrita chinesa como objeto de interesse das análises, apesar de sua posição misteriosa
e inferior em comparação com as línguas tidas como de prestígio para os acadêmicos
europeus, gerando os debates produzidos nas primeiras décadas do século XIX.
A introdução da linguística na criação da sinologia ocidental apresentou um
método que delimitou, não somente a língua chinesa como instrumento, mas o pensamento
chinês como objeto, que participou do próprio eurocentrismo da época dos primeiros estudos
sobre a China pelos acadêmicos. A transição entre as interpretações cristãs e a perspectiva de
mundo da Europa foi importante para o surgimento da sinologia, pois expandiu os debates e
pesquisas sobre a China para o campo das reflexões científicas em desenvolvimento no

46
Em seu estudo, Humboldt concebe a língua gramaticalmente formada como aquela que possui aspectos
morfológicos, sintáticos e semânticos reconhecíveis em sua estrutura, com base no modelo prioritariamente das
línguas europeias, ou seja, o grego, latim e hebraico. O estudioso segue a tese de que existem duas classes de
línguas, as que possuem gramática formada, possíveis de se analisar a evolução das ideias para a sua constituição
e as línguas primitivas, sendo de caráter incompreensível (ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 15).
47
Língua antiga de base egípcia.
48
Neste modelo é necessário ter conhecimento prévio do que é nome ou verbo em chinês.
49
Aqui fica a critério do leitor descobrir ou determinar a função das palavras pelo contexto, gerando múltiplas
interpretações, na perspectiva de Humboldt, ou seja, para ele a língua chinesa não permite clareza de ideias.
144

Ocidente. Fica em destaque também que o foco dos estudos em antropologia comparada
apresentado nas discussões de Humboldt e Abel-Rémusat era no desenvolvimento das ideias
dos chineses, no caso, supostamente refletidas ao produzirem sua língua. Esse estudo parece
se aproximar dos objetivos propostos pelos sinólogos chineses, na perspectiva de Wang Li
(1981), nos quais o pensamento político e filosófico dos antigos era o objeto de interesse
dessa área, extraído das análises da escrita dos clássicos.
No debate Abel-Rémusat se opõe ao argumento apresentado por Humboldt em
relação ao chinês propondo a reconsideração da sua tipologia linguística, além do modelo
teleológico e as formas de análise das línguas. Para esse estudioso a língua chinesa possuía
propriedades relevantes que não podiam ser desprezadas. Ele afirmava que a gramática da
língua chinesa não utilizava categorias específicas para indicar a ligação das palavras e
apresentava outra forma de relacionar os elementos da linguagem com o fluxo de pensamento,
parecendo um tipo de sintaxe sem morfologia (ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 17). Com
essa afirmativa Rémusat indica que não estava focado nos modelos comuns da linguística de
seu tempo, mas aberto para outras possibilidades de compreender as diferenças, como no caso
da língua chinesa e pelo próprio interesse da antropologia comparada, segundo as discussões
da obra considerada aqui, também do pensamento chinês e sua diferença para os debates
interculturais. A questão principal de Abel-Rémusat é sobre as particularidades da língua
chinesa, também apontadas pelo sinólogo chinês Wang Li (1981) como características
valiosas do idioma e que merecem atenção para a teorização e determinação de sua gramática.
De acordo com D. Thouard (1999), Humboldt passa a receber influência de Abel-
Rémusat por meio da troca de correspondências e discussões que primeiramente eram
contrárias em certos pontos sobre a análise da língua chinesa. Apoiado na existência das
formas universais de gramática, ele começa a entender que, no caso do chinês, é possível
considerar a ocorrência de processos diferentes de organização, uma língua que possui a
gramática precária em comparação com o modelo padrão ocidental, que o sentido se constrói
no contexto, fundamentado na inteligência dos interlocutores e a gramática ocorre por
dedução (ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 18).
Com base na obra Lettres Édifiantes et Curieuses sur La Langue Chinoise
(ROUSSEAU/THOUARD, 1999) podemos afirmar que o método empregado por Humboldt e
Abel-Rémusat em suas discussões sobre as propriedades da língua chinesa determina a
sinologia, não como uma área científica, visto que a antropologia comparada é tida como área
principal, mas como um assunto relevante no meio acadêmico. Apesar das limitações da
linguística ocidental na época desses debates, assim como a inexistência da linguística chinesa
145

e principalmente de estudos da gramática chinesa na China (a não ser a filologia chinesa


clássica), conforme Wang Li (1981) aponta em sua obra, as propostas de conceber a língua
chinesa pelos estudiosos são pertinentes, por se fundamentarem no material escrito coletado,
ou seja, nos caracteres chineses e naquilo que seria possível construir como sua gramática.
O limite do método adotado por Humboldt e Abel-Rémusat também é
fundamental para conhecermos as motivações que participaram da sinologia construída a
partir dos seus debates. Naquele momento e, para os objetivos dos estudos propostos por
ambos, era necessário desenvolver teorias que pudessem determinar a gramática da língua
chinesa e para os europeus não existia nenhum modelo chinês padrão para ser adotado.
Segundo afirma Wang Li (1981), os estudos de gramática chinesa foram introduzidos na
China pelos ocidentais, o que também não desqualifica o método antigo de estudo da língua
utilizado pelos chineses desde o Pré-Império. É importante destacar aqui que havia
necessidades metodológicas tanto dos chineses quanto dos europeus, o que é comum para
qualquer área científica em formação. Rémusat parece reconhecer essa necessidade ao
argumentar que a forma de organizar a língua chinesa demonstrava um método diferente do
padrão ocidental e que requeria atenção.
Nas palavras de D. Thouard (1999) em sua introdução, Humboldt se mantém
convicto da existência de regras e de uma gramática universal que estão invisíveis nas formas
de pensamento do falante, supondo que a compreensão de uma língua por outra só é possível
por meio desses padrões. Para Humboldt essas regras não podem ser determinadas em todas
as línguas, elas representam as ideias que regulam a gramática comparada e são concebidas a
partir da forma original de cada língua conhecida. Ele se apoia nas línguas flexionais como
representantes do modelo linguístico perfeito para expressar o pensamento, neste caso, o
chinês não é tido como um bom exemplo, ou é imperfeito para exprimir as ideias abstratas,
mas é por apresentar diferenças na aplicabilidade de seu modelo que a língua chinesa ganha
valor nas pesquisas. Em seu modelo gramatical, as raízes lexicais são meios modificadores da
gramática, mas o contexto e as relações das palavras na frase são determinantes
(ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 19).
É a partir das considerações do idioma chinês que Humboldt e Abel-Rémusat
abrem os caminhos da sinologia, ao refletirem sobre as diferenças culturais e seus valores, em
uma discussão que podemos afirmar ser puramente científica e dentro do meio acadêmico. O
interessante nesse debate, além do assunto, é a posição assumida por ambos os estudiosos ao
apresentarem seus argumentos, buscando pontos em comum e possibilidades de resultados
satisfatórios para a antropologia comparada. Em contato com a perspectiva de Abel-Rémusat,
146

Humboldt reconhece os limites do seu conhecimento, já Rémusat aprecia a qualidade das


propostas publicadas nas correspondências, dando prosseguimento e contribuindo com as
reflexões. D. Thouard afirma que na discussão entre esses pesquisadores não ocorre um
distanciamento e oposição das ideias de uma ciência positiva francesa e uma metafísica alemã,
a questão é de ordem cultural, mas se apoia em uma apreciação subjetiva e estética, Humboldt
concorda com a diversidade das perfeições linguísticas apresentadas por Rémusat, mas se
mantém, de acordo com a sua suposição, no âmbito das limitações retóricas dos chineses
(ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 20).
Com base nos comentários de D. Thouard (1999), destaca-se o caráter
hermenêutico de Humboldt introduzido nas línguas naturais como um aspecto novo para as
análises da língua chinesa. Ele não se apoia na história da hermenêutica, abandonando os
problemas tradicionais dos textos religiosos, jurídicos ou filológicos, seu interesse está na
compreensão das línguas. O estudo da língua chinesa de Humboldt não busca somente
reconstruir o pensamento linguístico, como também tenta testar e aprofundar as propriedades
universais das línguas, ou seja, as dimensões hermenêuticas e de comunicação. Para
Humboldt a individualidade linguística está na interdependência constante da compreensão e
incompreensão50 (ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 22-27).
Jean Rousseau também apresenta uma análise crítica sobre a obra Lettres
Édifiantes et Curieuses sur La Langue Chinoise (ROUSSEAU/THOUARD, 1999). Em sua
introdução ele argumenta sobre a questão do chinês na teoria de Humboldt, aspecto
fundamental que destaca o papel da linguística na sinologia ocidental. Ele afirma que
Humboldt está obstinado pela língua chinesa, por essa ser um exemplo que contraria a sua
tese e dificulta a resolução dos problemas teóricos. Rousseau descreve os processos históricos
relacionados com as teorias das línguas flexionais iniciadas por Franz Bopp (1791-1867). Não
pretendemos trazer as teorias das línguas flexionais para esta pesquisa, mas buscar esclarecer
os interesses e o método aplicado por Humboldt sobre a língua chinesa e a importância para
as discussões com Abel-Rémusat, que deram origem à sinologia.
Para uma sinologia comparada podemos destacar que, enquanto Humboldt
compreende a língua chinesa não como um sistema analítico, Wang Li (1981) confirma o
contrário, o que aponta as necessidades de considerar os estudos existentes na China para a

50
« Parler est en soi déjà faire l’essai d’une clarification de ses propres pensées et de la possibilité d’une
compréhension mutuelle de soi et du monde. Comme la langue concourt à la formation de la conscience de soi,
elle conditionne la compréhension aussi bien du côté du sujet que de l’objet, qui ne se différencient qu’à partir
d’elle. La diversification et la multiplication des relations conduit à la relativisation des points de vue particuliers,
mais du même coup à leur enrichissement » (ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 26-27).
147

revisão de conceitos e da própria concepção de um dos objetos de estudo da sinologia


ocidental. Segundo Rousseau, Humboldt toma a função flexional como a ideia central da sua
tese e busca comprovar a superioridade das línguas flexionais em relação a outros sistemas,
como no caso do chinês (ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 22-35).
Criteriosamente, Jean Rousseau (1999) apresenta os limites e tensões da teoria de
Humboldt, fato que delimita a posição da linguística na sinologia ocidental a partir do século
XIX. No período das discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat as teorias sobre a língua
chinesa foram as primeiras para a área da linguística. Atualmente a linguística é usada como
um dos principais instrumentos de análise da língua chinesa, como destacado nos trabalhos de
Alleton (2010), já com uma concepção mais desenvolvida e teorias mais bem elaboradas
sobre o assunto. O valor dos apontamentos de Humboldt em relação ao estudo da língua
chinesa está no seu caráter inédito dentro do meio acadêmico, apesar de a sua análise
comparativa colocar sistemas de línguas completamente distintas lado a lado, com o objetivo
de comprovar a sua tese sobre a superioridade das línguas flexionais que, segundo ele,
possuíam uma gramática explícita e que exteriorizava a formulação do pensamento. Rousseau
questiona se o critério adotado por Humboldt teria alguma possibilidade de indicar claramente
a superioridade de sistemas específicos como o grego e o latim em relação ao chinês. Nessa
via teórica, conforme Rousseau, Humboldt desconsidera ou desqualifica o valor cultural e a
idoneidade da literatura chinesa, que ele afirma ser indeterminada e fragmentada
(ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 37-39).
Na concepção de Rousseau, a língua chinesa é apresentada nas discussões de
Humboldt e Abel-Rémusat como o instrumento de uma evolução teórica. Ele afirma que
Humboldt não possuía grande conhecimento do idioma chinês, ao contrário de Abel-Rémusat,
que foi considerado um grande sinólogo51, professor de língua e literatura chinesas no Collège
de France desde 1814 (ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 40-41). Essa informação é
fundamental para compreendermos as diferenças das perspectivas de ambos os estudiosos
sobre o objeto de suas investigações, no caso do chinês. Ter conhecimento sobre a língua
chinesa evita se fazer uma análise apoiada na inferência de informações, ou seja, aplicar um
método de análise não dedutivo, que se apoia em fatos e na experiência. Diferentemente de
Humboldt, Leibniz não possuía qualquer domínio sobre o idioma chinês, mas as suas

51
Abel-Rémusat é referido na obra aqui analisada como sinólogo, o que pressupõe a existência da referida área,
porém compreendemos que essa concepção está longe de determinar o fato como uma área de estudos, se
aproximando mais da classificação feita por Mungello (1989). O reconhecimento como área científica, conforme
concebido nesta pesquisa, ocorreu a partir das citadas discussões entre esse pesquisador e Humboldt, fato que
destacou o chinês e seu idioma no ambiente acadêmico, dando sequência a diversos outros estudos sobre o
assunto que refletem e permanecem até a atualidade.
148

observações possuíam embasamento no material de que dispunha, que continha interpretações


feitas pelos missionários, mesmo assim, Leibniz levantou questões puramente dedutivas e de
caráter científico, independentemente das influências. Humboldt introduz traços novos em sua
classificação da língua chinesa, como base de comparação enfatizada por sua perspectiva da
superioridade das línguas flexionais e prestigio especialmente das línguas greco-romanas.
Abel-Rémusat, segundo Rousseau, entra no debate sobre a teoria elaborada por
Humboldt de forma cortês, apresentando os aspectos positivos dos argumentos do colega e
destacando as qualidades próprias da língua chinesa que se aproximavam da perspectiva de
Humboldt, atitude que deu margem para as discussões. Com seu conhecimento e reflexões
sobre o idioma, Rémusat contribuiu com a reformulação das teorias introduzidas por
Humboldt. A importância da linguística para a sinologia ocidental está nessa construção
teórica atribuída ao debate entre esses cientistas. Não se trata de uma discussão apenas do
campo da linguística, mas sobre a definição da constituição da língua chinesa para analisar,
por meio da gramática, como os chineses elaboram as ideias quando utilizam o seu idioma, ou
seja, permanece no âmbito da filosofia para esclarecer um recorte da antropologia comparada
referente à diversidade cultural.
A linguística de Humboldt, a partir de um problema teórico referente à língua
chinesa, é a área que delimita e define as pesquisas em sinologia no meio acadêmico. Essa
questão não tinha, a princípio, a língua chinesa ou a China como objeto, mas esse passa a
contrariar a tese de Humboldt sobre as formas gramaticais e as línguas flexionais como
exemplos perfeitos da manifestação do pensamento humano na sua forma mais pura. A língua
chinesa é tida como um exemplo oposto e, com as correspondências de Abel-Rémusat, ganha
maior atenção, mas o assunto contribui muito mais para a definição da gramática das línguas
como uma estrutura dependente, ou seja, as palavras possuem relações e funções importantes
e que determinam a compreensão da comunicação e não podem ser vistas como elementos
isolados, característica inicialmente destacada na língua chinesa por Humboldt e contestada
por Abel-Rémusat.
Apesar da importância que a língua chinesa adquire nos debates entre Humboldt e
Abel-Rémusat, envolvendo também outros sinólogos da época, a questão fica sem uma
resposta definitiva sobre a construção da gramática chinesa, pois o debate mais intenso se
encerra com a morte de Rémusat, grande influenciador e crítico das pesquisas de Humboldt.
As afirmações feitas por Humboldt referentes à língua chinesa, por mais que pareçam
decisivas, na compreensão do próprio estudioso, ainda necessitavam de pesquisas mais
detalhadas e amplas, delimitando a sua perspectiva científica da busca constante de respostas
149

e opiniões mais criteriosas e objetivas, como no caso das discussões com Abel-Rémusat.
Segundo Rousseau (1999), as questões centrais da crítica de Abel-Rémusat sobre
as teses de Humboldt possuem quatro pontos de divergência:

1) la différence entre les langues classiques et le chinois est une illusion


fondée sur un artifice d’écriture ;
2) la prétendue supériorité des langues à flexion s’appuie sur un critère
secondaire par rapport à la finalité du langage ;
3) la « perfection » du chinois ne peut être appréciée que du point de vue de
ses usagers ;
4) la définition de la grammaire doit être révisée pour tenir compte des
données chinoises (ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 242-243).

Esses pontos são fundamentais para a reformulação da teoria de Humboldt, na sua


tentativa de apresentar uma réplica. A partir dessa citação é possível afirmar que a sinologia
ocidental se constrói segundo um método comparativo, que envolve a língua chinesa,
especialmente a sua escrita e gramática, em comparação com as línguas ocidentais, que
certamente influenciou o desenvolvimento da filologia comparada. É evidente que Abel-
Rémusat não concorda com as propostas teóricas de Humboldt referentes à língua chinesa e
apresenta suas opiniões, discutindo ponto a ponto as cartas do colega por meio de notas, com
referências e exemplos da língua chinesa.
Para a sinologia comparada, o método desenvolvido por Humboldt, em seu
contato com Abel-Rémusat, buscando reconstruir a gramática da língua chinesa, contribuiu
com o aprimoramento da linguística, como instrumento, fazendo aqui um paralelo com a
concepção dessa área segundo Wang Li (1981), para a sinologia chinesa. A teoria da
linguagem formulada por Humboldt é utilizada ainda nos dias de hoje, servindo de base para a
gramática transformacional, de Noam Chomsky 52 , o que pressupõe a confirmação do
desenvolvimento e aplicação dos trabalhos iniciais registrados nas correspondências dos
primeiros estudiosos analisados nesta pesquisa.
Atualmente, com o desenvolvimento da linguística, como área maior de pesquisa
sobre a língua, a maioria das questões referentes à língua chinesa levantadas no debate entre
Humboldt e Abel-Rémusat já foram resolvidas, como a da suposição de que a língua chinesa

52
Um tipo particular de gramática gerativa, desenvolvido pelo linguista Noam Chomsky, na década de 1950. Sua
regra básica consiste na construção da estrutura de uma frase peça por peça, sempre acrescentando algo novo até
ter a estrutura completa. Uma característica importante deste sistema é que, qualquer que seja o elemento
acrescido na estrutura da sentença, ele deve permanecer no lugar, não podendo ser movido para outro (TRASK,
2011, p. 131).
150

não possui gramática, de que se trata de uma língua monossilábica 53 , de que possui uma
escrita quase impossível de ser aprendida, além de ser incompreensível, etc. Muitas respostas
são apresentadas por Alleton (2010), dentre outros linguistas e sinólogos interessados no
idioma chinês, além disso, há um intercâmbio muito amplo entre pesquisadores tanto
ocidentais quanto chineses.
Na obra Lettres Édifiantes et Curieuses sur La Langue Chinoise
(ROUSSEAU/THOUARD, 1999), o linguista e orientalista Silvestre de Sacy, membro
fundador da Société Asiatique (1822), juntamente com Abel-Rémusat, também apresentou
suas observações sobre as discussões de ambos os estudiosos, indicando a rede de interesses
da sinologia formada na época, a partir dessa obra. É possível notar que essas
correspondências produzidas e publicadas na Europa do século XIX se tornaram referência
para a sinologia recém-formada nas instituições daquele período, tendo reflexos ainda nos
dias de hoje, pelas teorias e afirmações que ganharam força neste meio, sem uma análise mais
detalhada, conforme o próprio Humboldt já apontava.
O que se nota é que a função da linguística na sinologia ainda permanece dentro
do modelo aplicado por Humboldt, ou seja, como instrumento de análise da língua chinesa, no
caso, com o propósito de compreensão deste sistema e que resolva as necessidades para a
análise de um objeto específico de outra área de estudos determinada, como no exemplo da
antropologia comparada de Humboldt. Em comparação com a sinologia chinesa é possível
constatar certa aproximação com a função da filologia que, resumidamente, é recuperar o
material escrito da língua chinesa, no caso, de maneira que possa ser compreendido, podendo
ser fragmentos de uma língua antiga ou uma escrita que necessita da decifração. A proposta
de estudar como as pessoas estruturam e desenvolvem o pensamento, por meio da influência
das formas gramaticais, é distinta do objeto da sinologia chinesa, que prioriza analisar o que
as pessoas pensam, se tratando mais de uma análise e interpretação textual e de apoio
exclusivo naquilo que se pode extrair da literatura de uma nação.

3.1.1 A polêmica em torno dos conceitos em sinologia

53
“As proporções relativas de palavras de um ou dois caracteres variam consideravelmente conforme o estilo
dos textos. Nas peças de teatro, assim como na linguagem familiar, as palavras monossilábicas podem
ultrapassar 50% do efetivo total. Nos textos descritivos contemporâneos, sejam eles literários ou científicos, as
palavras são dissilábicas em sua maior parte. Ao contrário, o estilo literário ou clássico (wenyan), que era de uma
extrema concisão, apresenta-se como um limite: nos escritos desse estilo, os caracteres correspondem a palavras
na maioria dos casos. Foi por uma generalização apressada que os sinólogos do século XIX, baseando-se nas
particularidades desse estilo bastante elaborado, concluíram que todos os caracteres eram palavras. Esse estilo
“nobre” não está mais em uso na China, salvo em frases feitas, slogans ou citações” (ALLETON, 2010, p. 24-
25).
151

A questão dos conceitos em sinologia está diretamente relacionada com o método


do figurismo aplicado pelos missionários. Podemos afirmar que atualmente trata-se da
extensão de um processo gerado pelo figurismo e propagado, na maior parte do tempo, pelas
traduções de obras chinesas, produzidas pelos jesuítas na China e enviadas à Europa. Com as
pesquisas desses livros no meio acadêmico, deduzimos que ocorre reinterpretações do
conteúdo desse material, como fez Leibniz na comparação dos hexagramas do Clássico das
Mutações com o seu sistema binário. O método comparativo não é considerado como
negativo para Wang Li, desde que não ocorram inferências na interpretação dos fenômenos.
A discussão entre Humboldt e Abel-Rémusat sobre a estrutura gramatical chinesa
também aponta supostas aberturas comparativas do idioma chinês, pela falta do domínio
perfeito dessa língua, interpretação irregular dos caracteres chineses e principalmente
incompreensão da filosofia chinesa, o que propicia, naturalmente, a introdução de conceitos
de outra língua estrangeira, no processo de tradução, com novas significações, podendo alterar
o sentido original, exatamente como ocorria no figurismo. Agora não mais sob a influência
direta do cristianismo, é inevitável que as traduções registraram e mantiveram as marcas dos
primeiros leitores tradutores.
Em Lettres Édifiantes et Curieuses sur La Langue Chinoise, Rousseau (1999) faz
alguns apontamentos sobre a questão da tradução, que envolve a língua chinesa, conforme
concebida por Humboldt, agora no meio acadêmico e dentro de uma análise que supõe a
diversidade cultural. Rousseau (1999) diz:

Les langues offrent, on vient de le voir, des différences spécifiques ; il faut


les souligner et non les neutraliser. Deux tentations sont définies : soit
traduire « littéralement » et laisser « subsister l’incohérence apparente », soit
remplir « les lacunes » et ramener l’idiosyncrasie « à notre phaséologie ».
Trahir le locuter natif qui ne souffre nullement des déficiences ou trahir la
langue qui les a dans sa structure, telle est l’alternative. Humboldt tranche
d’après ses options antérieures : « il faut laisser subsister cette différence et
ne pas l’altérer ». Il n’y a pas à proprement parler conflit entre les deux
hommes à ce propos. Simplement Humboldt s’écarte plus nettement encore
d’une linguistique de l’universel au bénéfice de celle qui préserve la
diversité. Pour des raisons théoriques et non plus seulement idéologiques, il
répudie la tentation réductrice au profif du vertige de la multiplicité, sinon du
culte de l’écart. Pour Humboldt, dans la stratégie de la traduction se rejoue le
paradoxe de la compréhension du langage : l’infinie variété des langues se
donne comme obstacle, alors qu’elle la rend possible
(ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 255-256).

As teorias que indicam aspectos e limites da tradução literal ou da tradução e


adaptação livre ainda prevalecem na atualidade acadêmica, apontando discussões divergentes
152

entre a escolha do melhor método de tradução. Na citação, Rousseau (1999) registra que
Humboldt opta por manter e destacar as diferenças, se apoiando na sua teoria de uma
linguagem compreensível ou não. Segundo ele, a tradução segue do espírito universal humano
para a expressão por meio de uma forma ideal de linguagem, ou seja, parte da gramática inata
para os sistemas variados de língua. De acordo com Rousseau, a tradução é uma forma de
investigar e buscar recuperar as propriedades das línguas.
Em relação ao estudo comparativo das línguas, Rousseau afirma em sua análise
das discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat que:

Il faut certes se faire Chinois pour concevoir l’impression que les idées font
sur eux, mais, puisque toutes les langues « sont comprises de la même
manière », le seul point de vue pertinent est en fin de compte celui de
« l’étude comparative des langues » qui consiste à examiner « la variété des
moyens des instrumens », à savoir « comment ils font pour arriver au même
but que nous avec un instrument entièrement différent »
(ROUSSEAU/THOUARD, 1999, p. 256).

Considerar a opinião do outro como ator responsável por sua cultura e


instrumentos de comunicação, no caso, é um avanço para as análises referentes ao chinês. O
problema é classificar o outro (chinês) como sendo tão estranho que só pode ser
compreendido por ele mesmo, o que determina um distanciamento, praticamente, impossível
de solução. A proposta de Humboldt em comparar a língua chinesa com o sânscrito foi um
meio de destacar as diferenças e serviu para desenvolver a sua teoria da linguagem, mas não
explicou como funciona a gramática da língua chinesa, atribuindo a ela uma característica
primitiva, por não apresentar as estruturas tidas como padrão, que registram a gramática inata,
conforme concebida por Humboldt. Dessa forma a língua chinesa não é analisada por uma
perspectiva nova, como sugerida por Abel-Rémusat, que afirma que o chinês pode conceber a
gramática de forma muito diferente daquela do modelo conhecido pelos ocidentais.
Pensar em uma língua sem gramática, conforme concebe Humboldt em relação ao
chinês, indica que, para um tradutor desse idioma fica a responsabilidade de descobrir e
completar as lacunas da estrutura das frases e até mesmo criar formas possíveis de
compreensão da língua chinesa para outro idioma. Uma tradução desse tipo pode gerar textos
com sentidos diferentes do original. O figurismo, por exemplo, produziu significados
concebidos pelo cristianismo em clássicos chineses, como nas traduções do Clássico das
Mutações e tantos outros, interpretados pelos missionários na China. Quando ocorre a
negação do pensamento chinês, por meio da afirmação de que a língua chinesa não possui
153

gramática, se deduz que a compreensão dessa língua por outra fica a cargo do tradutor e
também leitor, no trabalho de reconstrução de sentido, como se este fizesse o papel de um
filólogo, o que não condiz com a verdade.
A polêmica que envolve os conceitos em sinologia, segundo Adrian Chan, em
Orientalism in Sinology (2010), tem relação com os termos utilizados pelos missionários na
China para definir e traduzir os clássicos confucianos, em particular, dentre outras obras
chinesas. Para Chan conceitos como “um Deus criador” e “pecado original” não existem na
concepção chinesa. Segundo Chan:

To the Chinese, there is no single god, neither are human beings born with
original sin. These are foreign concepts imposed on them since their early
contacts with the missionaries who crossed oceans to ‘save’ them. If the
Chinese don’t have the concept or word for god and sin, then new words and
new concepts have to be invented to name in the local language to capture
them. Hence the sinologists use a supporting vocabulary to study China and
things Chinese (CHAN, 2010, p. 25).

O problema da introdução de sentidos e adaptação de palavras de outros idiomas


com aquilo que é interpretado da língua chinesa é gerar a construção de um ideal chinês de
que o próprio povo não se reconhece como membro desta civilização, da mesma forma que
concebe uma ideia no Ocidente que ganha significado apenas neste meio. Chan (2010) se
apoia na crítica de Edward Said, na obra Orientalismo, para determinar e apresentar o
Orientalism in Sinology. Citando Said, Chan afirma que:

By Orientalism, Said suggested it is ‘an integral part of European material


civilization and culture. Orientalism expresses and represents that part
culturally and even ideologically as a mode of discourse with supporting
institutions, vocabulary, scholarship, imaginary, doctrines, even colonial
bureaucracies and colonial styles’ (SAID, 1995 Orientalism, p. 2 apud
CHAN, 2010, p. 59).

O Orientalismo, basicamente, destaca a propagação das ideias construídas na


Europa sobre o oriental em geral e apresenta a produção e circulação desse material nas
instituições que se formavam fora do Oriente. Chan (2010) não recria outras formas de
significado para os termos que diz serem diferentes ou não existirem na China, mas prefere
manter as palavras em inglês, com sua suposta correspondente em chinês romanizado e
discutir como compreendem isso em seu país. A proposta aqui é de apresentar a problemática
dos conceitos, destacando o método de análise de Chan (2010). Os limites dessa questão estão
no âmbito do eurocentrismo da época, assim como também se destaca na concepção de
Humboldt sobre a China e seu idioma, em relação às línguas ditas como “superiores” no
154

mundo ocidental, conforme a sua análise comparada.


Nas palavras de Chan (2010), a teoria da cosmogonia aplicada pelos missionários
na China é uma das principais construções introduzidas naquela civilização. Para ele, ao agir
dessa forma, os missionários negaram a maneira que os chineses concebiam a origem do
universo, interpretando os clássicos a partir de suas crenças. Apoiado no Clássico da Virtude
e do Tao (Daodejing), Chan (2010) afirma que “In Chinese culture, the origin of the cosmos
was a hun-dun condition, an amorphous cosmic stuff with unlimited potentials, or cosmic
soup, such as an Uncarved Block (Tao Te Ching, Nos. 15 & 19 etc apud CHAN, 2010, p. 69)”.
A leitura feita pelos missionários está apoiada no figurismo, o que podemos
apontar como um recorte do tema sobre a cosmogonia atribuído a Chan (2010) para
apresentar o Orientalismo na sinologia. Nesse contexto da cosmogonia, a introdução de
sentido do pensamento ocidental na cultura chinesa é inevitável, com o uso de conceitos do
cristianismo e também da filosofia greco-romana, como ocorreu por extensão na sinologia
desenvolvida nas instituições europeias, visto que os materiais frequentemente consultados
pelos estudiosos eram aqueles traduzidos na China pelos missonários. No caso da Europa do
século XIX, o exemplo das discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat partiu de reflexões
científicas, semelhante ao que fez Leibniz anteriormente a eles, mas com a predominância do
eurocentrismo, que negava o pensamento chinês, destacando a filosofia ocidental como
modelo de comparação.
Conforme descreve Chan (2010):

As their cosmogonies also informed them how to achieve moral


improvement, the Christians must reject the way or China’s major moral
philosopher, Confucius, who endeavoured to improve himself from the age
of 15 and hoped that by 70 he would achieve the happy state of having what
he ought to do coinciding with what he wants to do. The Christians must
reject that as spiritual pride while the Chinese moralists, mainly the
Confucians, must reject the Christian idea of accepting the Free Gift of a
Saviour who has atoned for our sins, as moral cowardice (CHAN, 2010, p.
79).

Ao reinterpretar os clássicos confucianos e introduzir a doutrina cristã em seu


conteúdo, como era parte dos planos de acomodação de Ricci, uma quantia de conceitos foi
utilizada nesse material e é possível ainda hoje encontrarmos traduções totalmente
influenciadas por esses trabalhos dos primeiros tradutores na China. Como a sinologia chinesa
tem como base o estudo dos clássicos Han, a influência dos missionários tratou diretamente
do material de análise dos estudiosos chineses. Nesse contexto é possível notar um choque
cultural pelo contato e intermediação do conhecimento, com prováveis consequências para os
155

trabalhos de tradução em particular, que expandiu para todas as instituições europeias. Apesar
disso, Chan (2010) afirma que nem todos os sinólogos ocidentais aderiram a essa concepção
sobre a China, dizendo que “Indeed, Arthur Mote and Joseph Needham have warned against
the use of a Creator-God in sinology decades ago, but their advices seemed to have been
largely neglected” (CHAN, 2010, p. 89). A negação da visão de mundo concebida pelos
chineses no âmbito acadêmico ocidental delimitou o léxico utilizado, não saindo da
perspectiva de quem os interpreta, sendo esta uma das críticas do Orientalismo na sinologia,
conforme Chan (2010), não apenas por esse distanciamento, mas pela construção de uma
civilização chinesa que não condiz com a realidade desse povo.
Dentro da sinologia comparada, o maior prejudicado é a própria sinologia
ocidental, que busca conhecer a China, mas se apoia em informações estereotipadas, não
comparando com o que dizem os sinólogos chineses, ou seja, sem revisar as fontes primárias.
Segundo Chan (2010, p. 124), poucos sinólogos reconhecem os problemas, ao realizarem
comparações para seus trabalhos de história ou outros temas relacionados com a China. A
questão principal está nas referências que servem de apoio para esses trabalhos, repetindo
conceitos que excluem o pensamento chinês. Para Chan (2010), as traduções dos clássicos
chineses atribuídas aos missionários na China, posteriormente enviadas para a Europa, deram
início à produção das referências bibliográficas. Exemplificando esse problema fundamental
da sinologia ocidental, Chan (2010) afirma que:

As the Chinese language has no word for sin, sinology’s Christian


missionary pioneers used as substitute the word zui which has very different
meanings. To commit zui is to commit a crime or to transgress against a
temporal authority not the Creator-God. While zui is also a transgression in
Buddhism but as Buddhism also has no Creator-God, to commit a Buddhist
zui is to transgress against one’s conscience or the Buddhist transcendent
nature (CHAN, 2010, p. 165).

O uso de conceitos chineses para estabelecer o significado definido em outra


cultura, como no caso de “crime” (zui), indica o conflito de sentido e não esclarece, tanto para
os chineses quanto para os ocidentais, a ideia exata daquilo que eles queriam transmitir,
parecendo mais uma adaptação possível para uma tentativa de resolver os problemas de
entendimento da doutrina cristã e não do pensamento chinês, como um foco. Esse modelo de
transmissão irregular do conhecimento sobre a China ganhou valor, segundo Chan (2010),
que diz:

The command by their Creator-God to Go Forth sustained the onward march


156

of Christian Soldiers into China to save souls, and coincidentally laid the
foundation of Orientalist sinology. The most influential of these Christian
Soldiers was undoubtedly James Legge who was the first to translate
systematically the Chinese cultural texts. When he became the Professor of
Chinese at Oxford University upon returning home, his translations became
authoritative, so much so that though his translations were published in the
1870's, they are still regarded as the standard and still in print. Modern
translations may be technically more accurate, the influence of Legge's
translation is still very pronounced. In 1948, the General Assembly of the
new United Nations asked UNESCO, its education and scientific
commission, to re-publish Legge's words as 'the most representative of the
cultures of certain member states...of Asia' (Legge: 1879/1988 v) As the UN
was about to deny membership to China, it told the world what they should
know about her culture (CHAN, 2010, p. 235).

Na concepção de Chan (2010), essas traduções invalidaram a cosmogonia chinesa,


pela substituição de conceitos chineses por aqueles do cristianismo. Com base em Chan
(2010), Legge parece retornar a então “querela dos ritos”, ao citar conceitos controversos e
anteriormente discutidos por Leibniz, o que indica que tais questões não foram levadas em
conta pela igreja. Conforme Chan (2010) descreveu:

The words are shang and di. Di can mean king, emperor, or ancestors of
kings; and shang can mean high, superior, above, ancestor or senior. Legge
was aware the Yi Jing (The Book of Changes) said: ‘When the former kings
sought virtue, they sought the intercession of shang di.’ Legge knew that in
some Classical texts the terms refer to the mythic kings Yao and Shun
(CHAN, 2010, p. 241).

Nesse contexto, Chan (2010) complementa citando Legge, que pontua:

‘Di, in Chinese, is equivalent to our GOD, and SHANG DI was the same,
with the addition of shang equal to Supreme. In this view, I have never
wavered, and I have rendered both the names as “God” in all the volume of
the Chinese Classics thus far translated and published.’ (Legge 1879 Ibid.:
xxiii apud CHAN, 2010, p. 246).

Apoiado na crítica feita por Said, em Orientalismo, Chan (2010) amplia a


problemática para os sinólogos modernos, incluindo aqueles de etnia chinesa, que também
passam a seguir a construção ocidental sobre a China, como a tradução do Analectos de
Confúcio, feita pelo Prof. D. C. Lau, segundo Chan (2010), antes sendo este da Universidade
de Londres e atualmente da Universidade Chinesa de Hong Kong. A ideia de que o progresso
vinha de fora da China foi apresentada por Wang Li (1981), o que pode explicar essa
condição de valor introduzida naquele país e criticada pelo sinólogo chinês.
Podemos notar que a polêmica dos conceitos na sinologia é ampla ao ponto de
influenciar também os próprios chineses, que passaram a reinterpretar aspectos essenciais da
157

sua cultura, a partir da concepção europeia, como afirma Chan (2010), invalidando a
cosmogonia chinesa, pela introdução de conceitos ocidentais e ressignificação de termos do
pensamento clássico chinês. Na discussão entre Humboldt e Abel-Rémusat existe uma
divergência de opinião em que o sinólogo francês busca apresentar uma proposta sobre a
língua chinesa e sua suposta gramática, mas é introduzida no modelo teórico de Humboldt, o
que exemplifica o forte debate eurocêntrico em relação ao tido como “o chinês é o diferente”,
ou seja, existia uma barreira criada pelos tradutores a ser transposta para que pudesse ocorrer
o desenvolvimento da sinologia ocidental e o material de referência não ajudava para extrair o
fundamental.
A distorção da cultura chinesa na sinologia em geral, segundo Chan (2010),
atribuída aos orientalistas, prejudicou mais os trabalhos fora da China, visto que este tipo de
material era pouco lido pelos chineses em seu país. Para Chan (2010), o problema da
expansão e permanência do Orientalismo na sinologia está enraizado na história, cultura e
sociedade que compõem o âmbito acadêmico ocidental. Ele define sinologia como o estudo
da China, especialmente, das áreas literária e cultural, com a publicação dos resultados em
outros idiomas, o que para esta pesquisa não delimita a sinologia como uma ciência
independente, além disso, Chan (2010) afirma que o termo sinologia não tem equivalente em
chinês e cita a palavra Hanxue (a mesma usada por Wang Li, 1981), e comenta que este
conceito é inadequado para o sentido de sinologia empregado no Ocidente, por se limitar ao
estudo do povo Han. Isso parece confirmar que para Wang Li a sinologia que ele relaciona
com Hanxue é exclusivamente chinesa e ele apresenta a origem desse conceito na China
antiga, sendo distinto do sentido de sinologia ocidental. Isso não desqualifica a definição feita
por Chan (2010), visto que é possível existirem outras variedades de sinologia, cada qual com
as características específicas de cada país, porém, tendo sua origem no modelo descrito na
sinologia comparada, sendo um problema conceitual e de funcionalidade.
Compreendemos que a polêmica que envolve os conceitos em sinologia não se
limita ao figurismo implantado na China, mas também é uma concepção eurocêntrica de
mundo e está registrada no significado que os conceitos podem transportar de uma língua para
outra. O significado para a sinologia está diretamente relacionado com a concepção da
filosofia ocidental em oposição à filosofia chinesa. O método de Chan (2010) envolve a
crítica do Orientalismo na sinologia, expondo aquilo que nas correspondências dos
missionários estava claro como um planejamento de expansão do cristianismo nas colônias.
Da mesma forma ocorreu com o ideal europeu, que transparece na constituição da sinologia
ocidental, sendo este o sentido da crítica de Chan (2010), sobre um problema existente nas
158

instituições ocidentais que parece indicar a permanência da perspectiva orientalista na


sinologia. Podemos afirmar que os conceitos são formas de circular percepções distintas de
mundo ou mesmo impor a filosofia ocidental na China, sendo possível encontrarmos
dicionários e obras atuais em diversas línguas que mantêm traduções do chinês ainda apoiadas
no pensamento implementado antigamente, ou seja, permanecendo na filosofia ocidental para
explicar a filosofia chinesa, de modo geral.

3.2 A exclusão do pensamento chinês da filosofia e o surgimento da


sinologia ocidental

A questão da exclusão do pensamento chinês da filosofia tem seu reflexo na


elaboração das teorias de Humboldt (1999) Sur la naissance des formes grammaticales et leur
influence sur le développement des idées. O assunto não está diretamente relacionado com o
nascimento das formas gramaticais e sim com o tipo de filosofia em vigor no século XIX e
sua influência sobre os estudos do pensamento chinês.
Resumidamente, a pesquisa de Humboldt (1999) em Antropologia Comparada
tem como foco a comprovação do fenômeno que envolve as relações gramaticais com a forma
que o ser humano estrutura o pensamento, a partir da sua elaboração na mente para o mundo,
apresentado por meio da linguagem. Suas questões fundamentais são:

« Comment naît dans une langue le mode de désignation des raports


grammaticaux qui mérite d’être appelé une forme ? » et « Dans quelle
mesure est-il important pour la pensée et le développement des idées que ces
rapports soient désignés par des formes réelles ou par d’autres moyens ? »
(ROUSSEAU/ THOUARD, 1999, p. 79).

Na aplicação de seu método de comparação das formas gramaticais das diversas


línguas do mundo, Humboldt (1999) se depara com o problema de analisar e classificar a
gramática da língua chinesa dentro da concepção filosófica europeia e atrai a atenção do
sinólogo francês Abel-Rémusat para o debate, se tornando um assunto público de grande
relevância para os acadêmicos da época.
De acordo com Dyck (2005), a história da filosofia tem sua origem a partir das
descobertas da Grécia com seu desenvolvimento no meio intelectual europeu. Nesse contexto,
os sinólogos, que buscavam defender seu objeto de estudos e sua área, se encontravam
confusos em assumir um tipo de filosofia chinesa. Segundo Dyck (2005), o primeiro a utilizar
um termo que tinha relação com o assunto foi Marcel Granet, com a obra O Pensamento
Chinês, publicada pela primeira vez na França, em 1934, sendo até hoje um trabalho de
159

referência para a sinologia moderna.


Dyck (2005) apresenta os motivos de Granet para a escolha desse título na citação
que diz:
Pour découvrir ce qui constitue, si je puis dire, le fonds institutionnel de la
pensée chinoise, on dispose de renseignements assez bons, mais ils ne
pourraient guère autoriser à composer une Histoire de la Philosophie
comparable à celles qu’il a été possible d’écrire pour d’autres pays que la
Chine. La Chine ancienne, plutôt qu’une Philosophie, a possédé une Sagesse
(GRANET, 1999, p. 9-10 apud DYCK, 2005, p. 13).

Fica evidente o fato histórico do distanciamento europeu de uma sinologia que


considerasse um tipo de filosofia chinesa como objeto de estudo, como ocorre no modelo
apresentado por Wang Li (1981) na sinologia chinesa. Na citação de Dyck (2005), Granet, ao
classificar a China como possuidora de uma Sabedoria, que não pode constituir uma história
da filosofia comparada como no Ocidente, retoma o assunto em discussão entre Humboldt e
Abel-Rémusat, sobre a China diferente e oposta de tudo aquilo que conheciam. O debate entre
esses dois pesquisadores ocorre no momento em que a filosofia possuía características
exclusivamente europeias e fundamentadas nos filósofos da Grécia antiga, isso fica evidente
nos argumentos de Humboldt, quando aponta o seu modelo de “gramática perfeita e superior”,
se referindo ao grego, latim e sânscrito.
A discussão entre Humboldt e Abel-Rémusat vai de encontro com as perspectivas
da filosofia europeia, quando o assunto em foco é se a língua chinesa possui ou não gramática.
A afirmação inicial de Humboldt de que o chinês não possui uma forma gramatical significa,
de certa forma, que os chineses não estruturam as ideias quando falam ou escrevem, sendo
considerado por ele como um idioma incompreensível ou de características primitivas, ou seja,
para ele os chineses pensam de uma maneira totalmente diversa da concepção ocidental e
mesmo do modelo universal europeu. Para Dyck (2005) existia uma grande dificuldade dos
sinólogos europeus em interpretar a realidade chinesa, além do controle intelectual e da
história política sobre as informações no século XIX. Segundo Dyck (2005):

La formalisation philosophique apposée depuis un siècle à la pensée chinoise


dénaturerait une tradition intellectuelle dont les fondements resteraient
irréductiblement étrangers à la philosophie occidentale. À partir de quoi
l’idée d’une « philosophie chinoise » ne serait pas adossée à l’adéquation
entre une forme occidentale de la philosophie et certains contenus chinois,
mais à une définition de la philosophie comme universel admettant plusieurs
manifestations possibles, chinoise notamment. C’est donc en philosophie
que le doute intervient ensuite, sur l’extension à adopter pour déteminer ce
en quoi consiste exactement l’activité philosophique (DYCK, 2005, p. 14).
160

Conforme argumenta Dyck (2005), existia um debate na França (Séc. XIX) sobre
a constituição de uma filosofia chinesa dentro da sinologia, mas essa discussão não foi
considerada pela filosofia ocidental, durante longos anos, ainda hoje é polêmico falar da
existência do pensamento chinês na filosofia e os limites estão na tradicionalidade que
envolve a história dessa área dentro das instituições europeias. Anne Cheng (2005) também
toca na questão de se existe ou não uma filosofia chinesa. Segundo essa sinóloga moderna,
Victor Cousin, em Sorbonne (1828), foi um dos primeiros a apresentar esse tema. O que
permanece atualmente é a busca em definir ou distinguir a filosofia chinesa em comparação
com o que foi classificado como filosofia no Ocidente.
Anne Cheng (2005) compartilha das reflexões historiográficas levantadas por
Dyck (2005), em seu artigo, buscando destacar a origem da questão referente à existência ou
não da filosofia chinesa e delimita o obstáculo epistemológico que envolve e até mesmo
diferencia a filosofia de base grega do que pode ou não ser chamado de filosofia chinesa, a
partir do modelo excludente ocidental. Na sinologia comparada, no caso dessa pesquisa, seria
possível considerar os valores chineses atribuídos aos seus filósofos ou ao que foi definido
por seus estudiosos da antiguidade, tais como Confúcio, Mêncio, Xunzi, Zhuangzi, etc, com o
propósito de desenvolver uma análise comparativa justa, ou seja, considerando a perspectiva
de ambos os lados sobre a questão. Com base no que fez Wang Li (1981) em sua obra ao citar
os linguistas, sinólogos ocidentais que se assemelhavam ao que é definido como sinologia
chinesa, a questão é, quais seriam os filósofos ocidentais que se aproximam do modelo chinês
dessa área de estudo? Será que os chineses da antiguidade definiam essa área como fazemos
no Ocidente?
Negar o pensamento chinês na filosofia é, ao mesmo tempo, negligenciar todos os
estudiosos da China antiga e suas obras, pelo pressuposto de não atenderem ao modelo grego
de filósofo. Abel-Rémusat toca nesta questão, ao resgatar os valores chineses antigos, mas
parece não convencer Humboldt, que apresenta sua argumentação, influenciado pelos
conceitos e valores europeus de sua época. De forma contrária ocorre na China moderna uma
busca de adaptação aos critérios adotados nas instituições ocidentais, com relação à filosofia.
Anne Cheng (2005) afirma que:

Ce faisant, Zheng Jiadong founit le volet complémentaire de l’article de J.


Thoraval qui a été, de fait, partie prenante aux débate susmentionnés sur la
« légitimité de la philosophie chinoise ». En tant qu’intellectuel chinois
moderne, chercheur à l’Académie des sciences sociales de Chine et
spécialiste du confucianisme contemporain, il nous dépeint le traumatisme
représenté par la contrainte philosophique dans les milieux des lettrés
161

chinois qui étaient en train de se muer en intellectuels de type occidental au


début du XX siècle et qui, pris qu’ils étaient entre la nécessité de s’inventer
une philosophie et l’exigence de rester fidèles à la tradition nationale, ne
virent pas d’autre solution que de reconvertir leur propre tradition de pensée,
fondée sur les Classiques confucéens, sous forme d’ « histoires de la
philosophie chinoise ». Zheng Jiadong montre le caractère forcé d’un tel
exercice, qui oblige les historiens de la philosophie chinoise, depuis Hu Shi
et Feng Youlan jusqu’à nos contemporains, à distordre la périodisation
historique et à surimposer une classification totalement artificielle en
ontologie, épistémologie, dialectique, ou métaphysique, éthique, logique. Si
l’on tire la leçon de l’exposé de Zheng Jiadong, on en vient à se demander si
le genre des histoires de la philosophie n’appartient pas à un passé révolu et
s’il ne s’agirait pas à présent de repenser la tradition intellectuelle chinoise à
nouveaux frais dans son historicité propre (CHENG, 2005, p. 9 – 10).

É possível que o mesmo que vem ocorrendo com a filosofia chinesa também
acontece com a sinologia chinesa, quando o assunto é distanciar do modelo tradicional chinês
e se adaptar ao modelo defendido e reconhecido nas universidades ocidentais. Isso porque as
raízes históricas das áreas e a demanda existente impõem seus padrões que podem influenciar
naturalmente as suas bases originais, favorecendo certas teorias em comparação com outras.
Segundo Dyck (2005), o modelo de magistério na filosofia francesa, por exemplo,
possui programas de cursos nas universidades com materiais que apresentam a perspectiva
hegeliana de exclusão da China e do Oriente em geral do campo da filosofia, além de
prevalecer a ideia heideggeliana de que “a China pensa, mas não filosofa” (DYCK, 2005, p.
14). É evidente que, com esse modelo que exclui o pensamento chinês da filosofia, a sinologia
ocidental se distingue totalmente da sinologia chinesa, ao perder de vista aquilo que para os
estudiosos chineses é tido como objeto de suas pesquisas. Um exemplo que indica esse
distanciamento comparativo está na afirmação de Dyck (2005) que afirma:

Ce qui signifie, et l’image du « décret » retenue dans l’introduction de la


revue Philosophie le montre bien, que le problème chinois heurte la
détermination de la philosophie quant à la légalité qu’elle induit : qu’est ce
qui, en droit, peut répondre au nom de philosophie ? En d’autres termes, à la
question de savoir comment définir la philosophie se surimpose celle de
décreter ce qui peut s’accorder à la dignité philosophique. C’est la collusion
observée par Richard Rorty entre les sens « descriptif » et « honorifique » de
la philosophie, lesquels sont associés pour identifier un « canon
philosophique » délivrant au fil de l’évolution historique une logique et une
morale de la philosophie (DYCK, 2005, p. 14).

As obras tidas como canônicas para a filosofia, na França, serviram de modelo de


comparação para a sua classificação e definição como disciplina nas instituições, dessa forma os
clássicos tradicionais chineses foram excluídos desse projeto. Dyck (2005) recorda o episódio de que a
Europa dos iluministas tinha a China como paradigma da filosofia prática e não especulativa apoiada
162

na perspectiva dos missionários, como Bouvet, por exemplo, que descreveu a natureza filosófica do
confucionismo, relembrando que foi a partir das traduções e interpretações figuristas que as obras
chinesas ganharam atenção na Europa. Esse prestígio se inverte mais tarde na rejeição do pensamento
chinês da filosofia, pelo fato de que o modelo de filosofia tradicional chinesa não se compara com a
filosofia ensinada na França. Alguns dos principais motivos para a exclusão do pensamento chinês da
filosofia estão no seguinte contexto descrito por Dyck (2005) que pontua:

Il existe à cet égard une seconde chaîne de raisons, proprement


philosophique cette fois, que l’on a coutume de mettre en avant pour
expliquer le rejet de la Chine, à savoir la filiation Hegel-Husserl-Heidegger :
au fondement du retrait de la Chine et de l’Orient en philosophie, il y a
Hegel, dont les sectateurs « ne reconnaissent à la pensée orientale de dignité
philosophique qu’en la traitant comme une lointaine approximation du
concept », pour reprendre la formulation de M. Merleau-Ponty ; Husserl puis
Heidegger achèvent l’édification d’une identité grecque de la science des
concepts ; la philosophie, assimilée au passé européen, pensée à partir d’un
territoire comme « géo-philosophie » selon le mot de G. Deleuze et F.
Guattari, se distingue depuis le XIX siècle de ses autres spéculatif ou
spirituels – les sagesses orientales au premier chef. Cette généalogie n’est
pas discutable. Elle présente cependant un obstacle, dans la mesure où elle
permet d’expliquer et même de justifier sans difficulté la dissolution dans les
consciences européennes d’une « philosophie chinoise ». En somme il suffit
de rappeler l’influence de la philosophie hégélienne de l’histoire en France
pour rendre nuls et non avenus les égarements chinois et les confusions
terminologiques de siècle des Lumières. À partir de quoi la qualification
philosophique de la pensée chinoise perd définitivement tout caractère
problématique, si ce n’est à l’interroger à l’intérieur des systèmes hégélien
ou heideggérien (DYCK, 2005, p. 16).

Em comparação com o que é concebido por Humboldt (1999) sobre as


características da língua chinesa e sua afirmação de que é um idioma desprovido de gramática,
sendo o foco principal de sua pesquisa justamente determinar a estruturação do pensamento e
sua manifestação por meio das gramáticas, fica evidente a falta de teoria sobre o pensamento
chinês naquela época (séc. XIX). A defesa do objeto de estudos da sinologia, por Abel-
Rémusat (1999), não parece receber reconhecimento suficiente das instituições francesas e
sua perspectiva não ganha destaque como proposta teórica contrária, com elementos
comprovados cientificamente. Com o pensamento chinês excluído da filosofia
institucionalizada na França, percebe-se um ambiente totalmente influenciado pela filosofia
hegeliana, conforme descreveu Dyck (2005).
O processo de regulamentação da filosofia como disciplina acadêmica na Europa
do século XIX é o primeiro momento de exclusão do pensamento chinês da filosofia.
Segundo Dyck (2005) registra:
163

Or cette période, normative quant à ce qui doit ou non être intégré à la


philosophie et à son histoire, n’interrompt pas aussi brutalement qu’on le
croit la carrière philosophique de la Chine en France. On se figure
généralement l’intérêt philosophique pour la tradition chinoise comme une
peau de chagrin se réduisant inexorablement en France depuis le XVIII
siècle, âge d’or de la sinophilie européenne. Mais si l’on prend pour repères
deux Histoires de la philosophie diffusées comme des manuels au début et à
la fin du XIX siècle, c’est l’évolution inverse qu’il faut admettre : l’Histoire
comparée des systèmes de philosophie de Degérando, éditée pour la
première fois en 1804, situe la Chine à la périphére du territoire
philosophique, tandis que l’Histoire de la philosophie d’Alfred Fouillée,
composée sous la Troisième République, l’inclut dans la partie «philosophie
ancienne ». Ce réaménagement en faveur de l’Orient ancien pourrait être
entendu comme un retour en grâce de la Chine en philosophie. Mais il
pourrait aussi bien être la marque d’un quadrillage de plus resserré pour
circonscrire l’histoire et les lieux de la philosophie, sans qu’une parcelle de
l’histoire intellectuelle connue puisse s’y soustraire. Et la tradition chinoise,
de mieux en mieux déchiffrée, n’échappe pas à ce processus (DYCK, 2005,
16-17).

No contexto que se buscou relatar uma história da filosofia, conforme Dyck


(2005), fica evidente o problema de citar ou não o pensamento chinês como participante da
história. Por mais que a construção da história exige uma definição do local do pensamento
chinês na filosofia, para a própria delimitação dessa área como disciplina acadêmica, seu
papel é sempre inferior e secundário em relação à filosofia grega. Pelo que apresenta Dyck
(2005) a filosofia e a sinologia ganham espaço institucional praticamente ao mesmo tempo na
França. De acordo com ele:

C’est que le XIX siècle français se caractérise par un second fait majeur, à
savoir l’essor de la sinologie laïque. Après un net recul des études chinoises
en Europe avec la suppression de la Compagnie de Jésus en 1773, l’activité
sinologique, écartée sous la Révolution, reprend son essor en milieu laïque
avec les faveurs de l’Empire. Philosophie et sinologie initient donc en même
temps leur destin instituionnel : Victor Cousin, fondateur de la philosophie
universitaire française, enseigne à l’École Normale à partir de 1814, et Jean-
Pierre Abel-Rémusat inaugure un cours de langue et littérature chinoises et
mandchoues au Collège de France en 1816. C’est dire que la sinologie se
constitue comme science à mesure que la philosophie se systématise. Jusque
dans les annés 1840 environ, l’avancée contemporaine de leurs travaux laisse
véritablement ouverte la question d’une « philosophie chinoise » - laquelle, à
l’intersection exactement des disciplines philosophique et sinologique,
engage en quelque sorte les deux sciences dans leurs contenus et leur
épistémologie à travers la détermination d’un même objet (DYCK, 2005, p.
17).

Analisando essa citação é possível perceber que a sinologia, conforme


institucionalizada por Abel-Rémusat, na França, no início, se limita ao curso de língua e
literatura chinesas, ou seja, parte de um curso comum do idioma e se constitui como ciência.
164

A questão que parece dialogar diretamente com a filosofia e também caracterizar o problema
da sinologia, conforme discutido nesta pesquisa, é o fato descrito por Dyck (2005) de que o
objeto que constitui a epistemologia da filosofia e da sinologia é o mesmo, quando o assunto é
a China. Podemos deduzir que o pensamento chinês seja definitivamente o objeto das duas
ciências, fato que descaracteriza a própria área da sinologia ocidental, já que a filosofia possui
a sua estrutura sistematizada. O que parece distinguir ambas as áreas é justamente o método
da filosofia de se apoiar nas teorias hegelianas para abordar o pensamento chinês. Por outro
lado, a sinologia de Abel-Rémusat busca compreender o pensamento chinês, por meio da
língua e literatura, como instrumentos, mas, conforme as discussões deste com Humboldt
nota-se que faltavam teorias mais consistentes para contestar esse estudioso e essa falta estava
justamente na constituição da filosofia europeia e sua forma de considerar o pensamento
chinês, ou seja, a filosofia servia para complementar a necessidade de teoria da sinologia
iniciada por Abel-Rémusat.
As primeiras produções sobre a história da filosofia, segundo Dyck (2005),
indicam estudos que participaram do processo de sua formação como disciplina acadêmica na
França (séc. XVIII). De acordo com Dyck (2005), a nomeada Histoire comparée des systèmes
de philosophie considérée relativement aux principes des connaissances humaines foi o
primeiro material do gênero, produzido por Degérando, em 1804, Paris, dez anos antes da
fundação do curso de filosofia no país, fato que pressupõe as bases que compõem sua
diferença estrutural e consistência teórica em comparação com a formação da sinologia.
Conforme Dyck (2005), a concepção da filosofia se apoiou nas perspectivas de
Heumann e Brucker, compondo as referências bibliográficas sobre o assunto, na França do
século XIX, partindo de uma definição francesa de filosofia e se distanciando daquilo que
concebia Leibniz quando se referia ao filósofo chinês Confúcio em seus estudos, além de seu
método de buscar informações pontuais sobre a China, claramente registradas em suas
correspondências com os missionários. Para Dyck (2005) a história da filosofia que os
primeiros autores produziram tinha duas vertentes: a primeira, com base no período do
cristianismo, com a filosofia grega, socrática e aristotélica e a filosofia não grega; a segunda,
no período pós-cristianismo, com o desenvolvimento da escolástica. No primeiro caso a
localização geográfica da China era concebida com base nos relatos dos jesuítas e na época de
Noé e seus filhos, ou seja, dentro da interpretação figurista. Heumann, segundo Dyck (2005),
apoia a concepção do ateísmo chinês e refuta a cronologia segundo os missionários, além
disso, o confucionismo é tido como produto da filosofia, mas não associado ao Oriente
(DYCK, 2005, p. 18).
165

Observando o percurso da história da filosofia, conforme relatada por Dyck


(2005), percebemos que o pensamento chinês estava sempre distante do modelo de filosofia
ocidental ou era citado pelos autores, dentro da perspectiva figurista, pelo material que já
circulava na Europa. Leibniz pode ter sido um dos primeiros filósofos a levantar questões
importantes sobre o pensamento chinês e que poderiam determinar o local deste na filosofia.
Dyck (2005) afirma que Leibniz aplicou seu método da universalidade da razão,
estabelecendo uma unificação das religiões do mundo, nesse contexto ele classificou a moral
chinesa como admirável, em certos aspectos, e dentro de uma doutrina filosófica, ou, uma
“teologia natural”, como nomeado por ele. Leibniz buscou destacar os valores do pensamento
chinês na filosofia.
Referindo-se à qualidade tida como exótica da tradição chinesa, que a delimita de
certa forma na filosofia, Dyck (2005) afirma que:

La catégorie « exotique », qui permet d’associer la tradition chinoise aux


manifestations grecques du système naturel malgré l’absence de lien
génétique entre elles, semble, dans ces conditions, moins l’expression d’une
totale extériorité que le moyen de nommer l’ensemble des déclinaisons du
fait philosophique. L’isolement chinois dans la partition de Heumann
marque également l’identification possible de la philosophie dans un passé
divers que l’évolution historique ne vient pas encore discriminer de manière
qualitative. Brucker, Heumann et leurs contemporains posent donc la
philosophie comme un universel de droit que les faits viennent
singulièrement étayer, au premier rang desquels la découverte du corpus
confucéen (DYCK, 2005, p.20).

O caráter universal da razão defendido por Leibniz parece se manter nos trabalhos
posteriores a ele, da mesma forma que os clássicos de Confúcio apresentaram qualidades
próximas dessa perspectiva, conforme apoiava esse filósofo. Tanto a proto-sinologia que se
formava na Europa tendo Leibniz como precursor, quanto a filosofia em processo de
definição como ciência, parecem ter se influenciado mutuamente na história, quando o objeto
era o pensamento chinês, visto que dependiam dos resultados preliminares de análises do
material sobre o assunto, que era escasso na época e continha a interpretação missionária,
necessitando da qualidade acadêmica, que por sua vez tinha como ambiente de formação as
instituições europeias.
O período de transição da proto-sinologia de Leibniz até a fundação institucional
da sinologia de Abel-Rémusat participa efetivamente das discussões sobre a exclusão do
pensamento chinês da filosofia. Segundo Dyck (2005), a Histoire comparée de 1804 não faz
qualquer menção sobre a tradição chinesa e só na segunda edição de 1822 é que Degerando
166

inclui o texto Invariable Milieu, citando a tradução de Abel-Rémusat, publicada em 1818.


Nesse período já se passavam dois anos da fundação do seu curso de língua e literatura
chinesas no Collège de France, ou seja, a sinologia ocidental produzia os primeiros trabalhos.
Dyck (2005) relata uma passagem que apresenta o início dos trabalhos da
sinologia, definindo a sua posição como área científica e o pensamento chinês aceito dentro
de uma perspectiva inicial de filosofia quando diz:

Pour mémoire, la Société Asiatique de Paris était créée en 1821. Degérando


y siégea jusqu’en 1830. Collusion académique ou dessillement soudain, en
1822, les « Quatre livres moraux » venus de Chine apparaissent dans la
partie consacrée au premier ordre des connaissances, la morale – le second
étant les mathématiques. La brièveté du passage accordé à l'Invariable
Milieu indique néanmoins que Degérando, en rendant compte des travaux
récents de Rémusat, fait oeuvre honnête et savante de diffusion, sans
contredire las principes énoncés vingt ans plus tôt: le Zhong Yong est décrit
comme « une sorte de code des devoirs civils ou religieux, accompagnés du
détail des rites et des cérémonies prescrites »; on y trouve « quelques règles
d'une grande généralité » et « un petit nombre de définitions qui semblaient
promettre un plus heurex développement », le tout dicté par « une sorte de
raison pratique, le sens commun ». Ici, l'accès aux textes chinois renouvelé
par la sinologie laïque vient confirmer, semble-t-il, la distinction entre la
philosophie et ses prémices (DYCK, 2005, p. 25).

A partir da sinologia iniciada na França por Abel-Rémusat, em 1816, é possível


determinar que os trabalhos publicados por esse sinólogo ganharam o status acadêmico
necessário para a sua área, além disso, o interesse por livros clássicos como o Zhong Yong,
sendo uma das primeiras traduções feitas por Rémusat, definiu um método que se aproximou
ao da sinologia chinesa conforme concebida por Wang Li (1981), pela análise textual, própria
dos estudos literários e da filologia. Esse modelo de sinologia ocidental ainda existe nos dias
de hoje, o que caracteriza essa área dentro dos cursos de língua e literatura chinesas, sendo o
termo sinologia apenas um título e não a classificação de uma área científica. As teorias que
poderiam enriquecer a sinologia como ciência tiveram seu momento com as discussões entre
Humboldt e Abel-Rémusat, mas o fundamental estava na constituição da filosofia europeia,
que por sua vez poderia apresentar propostas esclarecedoras sobre o lugar do pensamento
chinês, se a forma de análise fosse inclusiva. Provavelmente esse foi o principal motivo que
impediu Humboldt de incluir e classificar a gramática da língua chinesa em seu modelo de
análise.
Na concepção de Dyck (2005), o interesse da França como pioneira da introdução
do curso de língua chinesa nas instituições foi para fins diplomáticos e comerciais, tendo
continuidade nesse projeto com a criação do curso de chinês vernacular na Escola de Línguas
167

Orientais, em 1843. O referido autor também afirma que no período de 1822 e 1835 os
principais estudiosos que contribuíram com os trabalhos sobre a sinologia foram os
orientalistas Abel-Rémusat, Sacy, Julien, Pauthier, juntamente com os filósofos e filólogos
Degerando, Cousin, Ritter, Quinet, Humboldt e Schlegel. Nesse contexto percebe-se a
importância das traduções e reinterpretações de traduções antigas, método idêntico ao da
sinologia chinesa de Wang Li (1981), sendo o de buscar compreender a tradição intelectual
dos chineses. Isso reforça a afirmação de que existiu um método na sinologia ocidental
semelhante ao da sinologia chinesa. O problema fundamental estava na forma de interpretar
os clássicos chineses, ou seja, faltava reformular a filosofia do século XIX, considerando
outras vertentes, para a inclusão do pensamento chinês.

3.3 A ciência na China antiga e sua relação com a sinologia

A descrição da ciência desenvolvida na China desde a sua antiguidade surge como


um elemento importante para desconstruir a concepção atribuída a este país na história da
sinologia ocidental. Com a exclusão do pensamento chinês do modelo de filosofia europeu é
inevitável a ocorrência da desvalorização, negligência ou reinterpretação de toda a produção
científica da história chinesa. Do contrário, as descobertas arqueológicas, juntamente com
estudos mais criteriosos sobre o assunto poderiam ter esclarecido muitos dos equívocos que
prejudicaram os estudos sobre a China até a atualidade.
Um dos principais sinólogos modernos responsável pela pesquisa sobre a ciência
na China foi Joseph Needham, com a monumental obra Science and Civilisation in China,
composta por sete volumes, com alguns temas divididos totalizando mais de vinte volumes.
Todo o trabalho foi feito em conjunto por uma equipe de especialistas em diversas áreas e
focados na China. Esse método praticamente define o modelo da sinologia moderna de
pesquisar seu objeto, tornando a sinologia um estudo amplo sobre a China, a qual se utiliza do
método e instrumento de análise das áreas de interesse do pesquisador, da mesma forma que o
modelo atribuído por Granet, que se apoiou no método da sociologia para as suas pesquisas
sobre a civilização e o pensamento chinês.
Joseph Needham (1900–1995) foi embriologista, historiador de ciências,
bioquímico e sinólogo inglês. Seu projeto da obra Science and Civilisation in China envolveu
temas muito importantes sobre a China e foi realizado de forma muito detalhada, o que
podemos dizer que superou diversos outros trabalhos na sinologia moderna, além disso,
apresentou a história do desenvolvimento científico chinês e seu valor para o mundo
168

acadêmico. Sua equipe era composta de cientistas de diversas nacionalidades, incluindo


especialistas chineses, caracterizando um modelo de sinologia bastante atual. Nesse caso,
podemos afirmar que o termo sinologia se trata do título de um grupo de estudos
especializados sobre a China.
Um diferencial do trabalho de Needham em comparação com seus antecessores
foi abordar a filosofia chinesa e sua relação com o pensamento científico. A obra de Needham
segue um método de história comparada e se apoia na descrição dos fatos historiográficos. O
sinólogo inglês aplica seu conhecimento científico e estrutura minuciosamente a história da
ciência chinesa, buscando descrever os fenômenos. Com uma boa equipe de colaboradores o
trabalho ganha estrutura e organização possíveis de êxito, fato que é comprovado pela
continuidade do projeto mesmo após a sua morte. O método de análise descritiva não é novo,
visto que os missionários já o utilizavam em seus registros, a diferença do trabalho de
Needham é interpretar adequadamente os dados e resolver os ditos fenômenos problemas por
meio da comparação dos dados.
Segundo nota de Needham (1956), podemos perceber a perspectiva básica de seu
método de análise quando declara:

WE are very conscious of the great range of territory surveyed in this


volume, yet since Chinese cultural history is as complex as that of Europe,
nothing less would have sufficed. The reader whose interests lie in the
contrasting general development of thought at the two ends of the Old World
will not consider superfluous one single note of this symphony. But we
cannot but have in mind the reader who, perhaps himself a busy
experimentalist, wishes to appreciate with minimum expenditure of time
how far the scientific thought of ancient and medieval China differed from
that of ancient Greece and medieval Europe. For such an enquirer the first
necessity is to apprehend the deeply organic and non-mechanical quality of
Chinese naturalism (NEEDHAM, 1956, nota inicial).

Needham apresenta nessa citação que existem diferenças na comparação da China


com a Europa e a Grécia e ele analisa os dados de maneira mais neutra e não focado em uma
só perspectiva de universalidade, como fez Humboldt e tantos outros. Needham (1956)
também apresenta um ponto importante de sua análise ao comentar que “How far Chinese
influences affected the thought of Leibniz and the development of organic naturalism in
Europe is a question also raised” (nota inicial). A proposta do sinólogo inglês tenta resolver
questões polêmicas entre a concepção científica da China e da Europa.
De acordo com Needham (1956, p. 1), a palavra “filosofia” para os chineses
refere-se à atitude ética e social, não tendo o mesmo sentido que na Europa. É importante a
169

distinção de conceitos apresentada por Needham para entendermos a concepção de ciência


chinesa. Em sua obra ele destaca as palavras numeradamente em caracteres chineses,
conforme seus correspondentes transcritos54 no corpo da obra, o que auxilia nas pesquisas do
leitor.
Em relação ao confucionismo, Needham afirma que, apesar de ser um pensamento
dominante na China antiga, não contribuiu para a ciência do país, o que é muito contraditório
visto que a política foi a base dos estudos confucianos e Needham enfatiza esse ponto no
mesmo parágrafo da sua introdução, fato que requer uma investigação mais minuciosa para
esclarecer se o sinólogo faz alguma distinção entre ciências humanas em comparação com as
outras ciências chinesas, além disso, com o apoio de Wang Li (1981), é possível afirmar que
tanto Confúcio como o confucionismo tiveram função importante no desenvolvimento das
ciências humanas e na sinologia chinesa. Isso não desqualifica a obra de Needham, visto que
foi um trabalho inédito e com perspectiva positiva sobre a China e seu conhecimento
científico produzido, além disso, Needham teve grande influência dos especialistas chineses
da sua equipe e ele parece focado em descrever as ciências naturais dos chineses, mas também
aborda outros aspectos científicos e tecnológicos.
Sobre a história do pensamento científico chinês, tema do segundo volume da
obra Science and Civilisation in China, Needham (1956) destaca as características das
importantes escolas de pensamento da China antiga, classificadas em: Confucionista, Taoista,
Moista, Legalista, Lógicos, Naturalistas, etc. Segundo o sinólogo inglês, Confúcio é
reconhecido como educador, como diz a seguinte passagem:

Confucius was certainly greatest as an educator. Before his time there is


mention only of schools of archery. As has often been pointed out, he was
the first who stated clearly that in teaching there should be no class-
distinctions. No qualifications of birth were necessary in acceptance for the
administrative and diplomatic training which Confucius gave. In this we see
one of the germs of the bureaucratic system, according to which whoever
was teachable and ambitious for letters could become a scholar and serve his
prince (later, the imperial State) as an official, no matter what the social
position of his family might have been. Confucius had much to say of the
honour of such officials (NEEDHAM, 1956, p. 6).

A partir dessa passagem podemos afirmar que Confúcio não atuou somente nas

54
O método de transcrição da língua chinesa, conhecido como hanyupinyin e de base latina, foi oficializado em
1958 e passou por um longo período de inplementação e aceitação pelo povo chinês, atualmente é bastante
difundido pelos programas de alfabetização na China. Com base em Aleton (2010), do ano de 1900 até a data de
oficialização do sistema pinyin cerca de 35 formas diferentes de transcrição foram selecionadas pelos linguistas
chineses para análise e definição de um padrão, ou seja, na época de publicação da obra de Needham ainda não
se usava o sistema oficial (ALLETON, 2010, p. 113-114).
170

questões políticas da China, mas também na transmissão do conhecimento, com o objetivo de


preparar seus alunos especialmente para a vida pública. A preservação e transmissão dos
clássicos antigos chineses foram enfatizadas por este filósofo, sendo essa atividade, conforme
Wang Li (1981), de grande valor para a sinologia chinesa. No tempo de Confúcio, segundo
Needham (1956), algumas das principais barreiras para o desenvolvimento da civilização
chinesa eram os conflitos e disputas de poder, nesse contexto Confúcio valorizou a educação
do povo, o respeito aos ritos e a organização administrativa da nação, questões fundamentais
da ciência política e educacional e também para o desenvolvimento dos estudos em geral. Isso
fica evidente na seguinte passagem:

The freeing of education from all barriers of privilege and social class was
undoubtedly revolutionary doctrine, and if it paved the way for the
mandarinate of feudal bureaucratism, it embodied also some of the essential
elements of modem democratic thought. Opinions have differed greatly as to
the extent to which consciously 'democratic' ideas can be attributed to
Confucius, and the matter is not unimportant for us because there are close
sociological connections between democracy and the natural sciences
(NEEDHAM, 1956, p. 7).

Tanto Confúcio como seus alunos compreendiam a importância da educação


como base para um bom governo e também para as ciências, por meio do aprendizado e
capacitação do povo. Needham (1956) apresenta o provável interesse de Confúcio para as
ciências naturais afirmando que:

As good a device as could be found, surely, for any modern scientific


academy. Yet traces of interest among the early Confucians in natural
science as opposed to human affairs, are few. Confucius recommended the
study of the Book of Odes, apart from other reasons, because it would widen
one's acquaintance with the names of birds, beasts, plants and trees. He said
he agreed with the southern proverb that a man without constancy would not
make even a good wizard or a good physician. There are indicationsh that
one of his chief students, Tsêng Shen, had scientific interests approximating
to those of the later School of Naturalists. But that is all (NEEDHAM, 1956,
p. 8).

Essa passagem destaca não só o distanciamento de Confúcio das ciências naturais,


mas também indica o interesse de Needham no assunto, esclarecendo a sua afirmativa de
pouca contribuição dos confucionistas para essa ciência. Apesar disso, Needham reconhece o
papel de Confúcio para as ciências humanas, sendo esse o objetivo do filósofo chinês. A
questão é que os chineses, principalmente na antiguidade, parecem não classificar de forma
separada essas ciências como fazemos. Confúcio deu importância na preparação de seus
171

alunos para cargos públicos, ou seja, para as provas imperiais, a partir disso ele capacitava
estudiosos que por sua vez se tornavam aptos para o desenvolvimento da ciência e tecnologia
na China antiga, motivo pelo qual Confúcio é tido como o patrono da educação chinesa na
atualidade.
Nas palavras de Needham (1956), a tendência do confucionismo foi para o
racional e não religioso ou sobrenatural, sendo considerado por esse sinólogo como
prejudicial para a concepção da ciência chinesa, por excluir os fenômenos não humanos.
Ocorre que esse não era o foco dos estudos de Confúcio e ele mesmo não negava essa
possibilidade de investigação, desde que fosse esse o seu objeto. Pelas referências de
Needham (1956) sobre esse assunto percebe-se que ele se apoiou nas traduções de Legge ao
citar Confúcio, podendo ser um dos motivos apresentados por Needham da falta de clareza
dos objetivos de Confúcio em seus diálogos.
Needham (1956) cita diversas passagens do Analectos, de Confúcio, traduzidas
por Legge, e afirma o contraste apresentado pelo filósofo chinês entre o romântico e o
racional, dizendo:

This gives us a taste of the way in which Confucianism was typical of all
Chinese civilisation in its combination of the romantic and the rational.
Favourable to, even emphasising, traditional rites and ceremonies, it
remained unshakably sceptical and averse to any kind of supernaturalism.
This was the element referred to above which could have helped the growth
of the scientific view of the world. But it was more than counterbalanced by
the Confucian attitude to knowledge, which never wavered from the
standpoint that man and human society were alone worthy of investigation.
(NEEDHAM, 1956, p. 14).

É possível afirmar que Needham (1956) buscou encontrar uma ligação plausível
entre a tradição dos ritos e cerimônias apresentadas por Confúcio e o distanciamento de um
desenvolvimento científico por esse meio. Ocorre que os ritos sempre foram formas
simbólicas para demonstrar a atitude de respeito e consideração dos homens em relação aos
antepassados, fundamental para a rede comportamental que se ampliava para a família e
nação, pela cooperação e comprometimento.
No caso do filósofo Mêncio, Needham (1956, p. 17) afirma que a importância
dele para o pensamento científico está na sua doutrina da natureza humana. É importante citar
que Mêncio foi aluno de Confúcio, o que reforça a questão sobre os propósitos desse filósofo
em relação ao comportamento humano e a aplicação dos seus ensinamentos na ciência, a
partir do interesse de seus alunos. Sobre o taoismo, para Needham (1956), foi uma forma de
combinar filosofia e religião, além do que ele classifica como protociência e magia. O
172

taoismo se apresenta para o sinólogo como o único sistema místico que deu atenção e
favoreceu a ciência chinesa antiga. Needham (1956) concebe a origem do taoismo da seguinte
forma:

Taoism had two origins. First there were the philosophers of the Warring
States period who followed a Tao of Nature rather than a Tao of Human
Society and therefore, instead of seeking for employment at the courts of the
feudal princes, withdrew into the wildernesses, the forests and mountains,
there to meditate upon the Order of Nature, and to observe its innumerable
manifestations. Two of them we have already met-the hermits-irresponsible
from the Confucian point of view. But the philosophers of the Tao of Nature
may be said to have felt 'in their bones', for they could never fully express it,
that human society could not be brought into order, as the Confucians strove
to bring it, without a far greater knowledge and understanding of Nature
outside and beyond human society. They attacked 'knowledge', but what they
attacked was Confucian scholastic knowledge of the ranks and observances
of feudal society, not the true knowledge of the Tao of Nature. Confucian
knowledge was masculine and managing: the Taoists condemned it and
sought after a feminine and receptive knowledge which could arise only as
the fruit of a passive and yielding attitude in the observation of Nature
(NEEDHAM, 1956, p. 33).

Podemos constatar que Needham apresentou nessa passagem as vantagens do


taoismo para o desenvolvimento da ciência chinesa em oposição ao confucionismo. É preciso
evitar uma interpretação na perspectiva ocidental moderna sobre a atitude de Confúcio, visto
que naquele tempo o império era patriarcal e as mulheres tinham outras funções no palácio. O
método do Confúcio era somente voltado para a preparação de seus alunos para cargos de
ministros e conselheiros do imperador, ou seja, posições ocupadas pelos homens. O fato é que
o taoismo proporcionou dar atenção para os fenômenos da natureza, o que contribuiu para o
desenvolvimento das ciências naturais da China.
Para a sinologia ocidental o taoismo foi praticamente excluído desde os
missionários na China, que deram maior atenção e até influenciaram o confucionismo, por
meio do figurismo. O taoismo favoreceu a alquimia e a farmacologia chinesa antiga e
Needham (1956) foi um dos poucos sinólogos que destacou a importância disso para os
estudos sobre a ciência chinesa. Conforme a seguinte passagem é possível perceber a opinião
desse sinólogo sobre a visão europeia em relação ao taoismo que afirma:

It is necessary to say that, for one reason or another, Taoist thought has been
almost completely misunderstood by most European translators and writers.
Taoist religion has been neglected and Taoist magic has been written off
superstition, Taoist philosophy has been interpreted as pure religious
mysticism and poetry. The scientific or 'proto'-scientific side of Taoist
thought has been very largely overlooked, and the political position of the
173

Taoists still more so (NEEDHAM, 1956, p. 34).

Não apenas a filosofia taoista foi mal interpretada pelos europeus, mas também as
obras dos principais taoistas da China antiga, como dos filósofos Laozi e Zhuangzi, que foram
excluídas ou reinterpretadas nos períodos de contato do Ocidente nesse país, prejudicando a
sinologia de modo geral. Esclarecer questões gerais sobre a China se tornou uma necessidade
para os sinólogos europeus que obtinham os materiais traduzidos e produzidos pelos
missionários na China, como demonstrou Leibniz em uma de suas correspondências, com a
lista de perguntas aos jesuítas. Needham parece resgatar o interesse dos acadêmicos europeus
pela ciência e tecnologia chinesa com a produção de sua obra.
Para apresentar o contraste entre o foco nas mudanças da natureza do taoismo em
relação à conservação e permanência principalmente das tradições chinesas defendidas pelo
confucionismo, Needham (1956) comenta que:

Noteworthy, too, is the contradiction between Taoist appreciation of change,


transformation, 'evolution', perhaps social evolution, on the one hand, and
Confucian Legalist belief in stability and permanence. Several commentators
have pointed this out. Thus, for Hsün Tzu, things only appeared to change
and did not really do so, terms meant now the same things as in ages past,
human nature does not alter, and between ancient and modem times there
was no real difference. Similarly, the Taoist denial of anthropocentrism was
diametrically at variance with those whose interests were focused on human
society, and for whom man was the measure of all things (NEEDHAM, 1956,
p. 83).

A questão dessa passagem apresenta diferenças de propósitos entre o taoista e o


confucionista, pois este último tratava de leis e regras sociais regulamentadas pelo imperador
e respeitadas pela tradição social, fato que condiz com a busca de estabilidade e permanência,
o que não evita as mudanças, visto que também ocorriam neste meio, mas de maneira mais
lenta e gradual, ou seja, as leis eram alteradas conforme as necessidades e decretos imperiais,
fato também citado por Wang Li (1981) sobre as leis que regiam o exame imperial.
Podemos afirmar que a obra de Needham (1956), de maneira pontual, busca
esclarecer justamente as lacunas anteriormente apresentadas nas discussões entre Humboldt e
Abel-Rémusat sobre a consideração da filosofia chinesa pelos estudiosos europeus. Ele faz
uma análise muito próxima do que se concebe no Ocidente como filosofia, mas apresenta
também o que é distinto na cultura chinesa. O pensamento chinês se torna importante não
somente pela obra aqui analisada, mas quando o sinólogo coloca em destaque The
Fundamental Ideas of Chinese Science. Nesse tema o autor trata das formulações básicas das
teorias que compõem a concepção de ciência chinesa.
174

Para Needham (1956) a ciência na China antiga possuía ideias fundamentais que
são consideradas a partir de três principais tópicos: a teoria dos cinco elementos, as forças Yin
e Yang no universo e a utilidade científica dos símbolos do Clássico das Mutações (Yijing).
Segundo o sinólogo, o propósito é:

It will be necessary to discuss not only their nature and later significance, but
also their historical origin, and here our presentation will have to differ
considerably from the Chinese traditions formerly generally accepted, and
taken over more or less uncritically by the early occidental sinologists, but
now superseded by the results of modem research (NEEDHAM, 1956, p.
216).

Nota-se que o assunto referente à passagem necessita de análises mais críticas,


segundo Needham (1956), e com perspectivas modernas. É interessante a consideração de
Needham pela obra Clássico nas Mutações (Yijing) e a atribuição de valor científico dela em
sua pesquisa, que busca se diferenciar das investigações anteriormente feitas pelos sinólogos.
Comparando com o método da sinologia chinesa de Wang Li (1981), Needham faz um estudo
muito parecido com o dos chineses, ao focar nos clássicos antigos e interpretar os dados de
forma coerente, usando o método da história comparada, o que diferencia das análises feitas
com a filologia, além do objeto, que é a ciência e tecnologia chinesa.
Needham (1956) considera três obras como importantes para refletir sobre as
ideias fundamentais da ciência chinesa, que são: o World-Conception of the Chinese, de Forke,
o Sinism, de Creel, e La Pensée Chinoise, de Marcel Granet. Para o sinólogo inglês, a obra de
Granet é superior em comparação com as outras duas. Segundo Needham (1956):

Granet's volume was a much more sophisticated production than either of


these two books-indeed, in its way a work of genius. Granet, who was
basically a sociological analyst of myths, had drawn an unforgettable picture
of the peasant society, the aenolithic proto-feudalism, of the early Chou
period, the time of the Shih Ching folksongs. Then, in his Pensée Chinoise,
approaching the ideas of a Huai Nan Tzu or a Wang Chhung from the angle
of that mythology and folklore out of which they had developed, he unfolded
a vast panorama of Chinese thought, passing from facts of social life to
concepts of time and space, from divination practices and magic squares to
the theories of the elements, from the macrocosm to the microcosm and back
again. The work is illuminated by flashes of deep insight, and Granet's most
fundamental estimates of the specific characteristics of ancient Chinese
thought are, I believe, correct-it will not be possible to complete this section
without quoting from some of them. But he passes from one demonstration
to another with so much assurance and clarity that one acquires the uneasy
feeling of watching a conjuring performance, and ends with the conviction
that none of the ancient Chinese naturalists can have been nearly so clear in
their own minds about their own system as Granet was. We can hardly dare
175

to take so godlike a way (NEEDHAM, 1956, p. 217).

Needham (1956) apresenta nessa passagem que a perspectiva de Granet é


realmente incontestável e também reconhece que o método do sinólogo francês foi do fato
social aplicado na civilização chinesa. Essa questão é muito importante para a sinologia
comparada e afirma a estrutura moderna da sinologia ocidental, diferente da sinologia chinesa.
As pesquisas em sociologia são indiscutíveis em qualquer contexto e para qualquer objeto,
como no caso da civilização chinesa. Segundo Needham (1956), Granet parece reconhecer
que as pesquisas sobre a China são dependentes da literatura e dos livros antigos. O sinólogo
inglês diz que atualmente são muitos os materiais descobertos pela arqueologia que permitem
um estudo cada vez mais preciso sobre a China antiga, além disso, são raros os sinólogos
capazes de ler textos em chinês com uma perspectiva treinada em ciências naturais. Needham
(1956) defende que “Perhaps the present book will prove that across the centuries and across
the ideographic-alphabetic barrier, similar minds can still communicate” (NEEDHAM, 1956,
p. 217).
A perspectiva de Needham (1956) sobre a língua escrita chinesa é muito parecida
com a apresentada por Wang Li (1981) quando fala das descobertas das escritas nas carapaças
de tartaruga, cujas informações foram comparadas com as de bronze, anteriormente estudadas,
comprovando as relações estruturais e o significado original do material. Uma passagem que
aproxima ambos os sinólogos é a que Needham diz:

While this seems worth doing, it must be understood that these ancient
etymologies probably had little influence on the thinking of the exponents of
the proto-science of the Chhin and Han, or the scientific men of the Sung; on
the mind of a magician like Luan Ta, or a sober pharmaceutical botanist like
Thang Shen-Wei. Throughout Chinese recorded history many of these
etymologies remained unknown, even to Hsü Shen, the + 2nd-century father
of Chinese lexicography, whose Shuo Wên Chieh Tzu (Analytical Dictionary
of Characters) was the predecessor of so vast a train of dictionaries and
encyclopaedias. So far as we know, Hsü Shen never saw a bone inscription
of the Shang period. He regularly gave, however, the 'lesser curly' (hsiao
chuan) or 'seal' forms of the characters, and it was only by comparing these
with the forms found in bone and bronze inscriptions that scholars were
enabled to decipher the latter. Hsü Shen misinterpreted many characters, but
was right as to many more. Some of his ideas which were formerly thought
to be absurd or fantastic have been confirmed by study of the bone
inscriptions (NEEDHAM, 1956, p. 218).

É possível afirmar que Needham (1956) destaca o objeto da sua investigação, ao


indicar que os estudos em lexicografia encontrados no Dicionário das Formas e Estudo dos
Caracteres, de Xu Shen (100-121 d.C), também citado por Wang Li (1981), contribuíram
176

muito pouco para o pensamento da protociência das dinastias Qin, Han e Song. Na realidade,
a maior contribuição das descobertas de Xu Shen foi para os estudos da linguagem da China
antiga, atualmente reforçados pelos estudos da linguística chinesa. A diferença entre os
estudos de Needham em comparação com Wang Li está nas distintas ciências de ambos os
sinólogos. Apesar de apresentar os filósofos chineses, o objeto de estudos da sinologia de
Needham é a ciência natural dos chineses e ele pesquisa nos livros chineses antigos indícios
de pensamento e vocabulário que apontem para esta ciência, mas ele reconhece a importância
das descobertas arqueológicas e os estudos dos caracteres antigos para outras pesquisas.
A principal relação da ciência antiga chinesa para a sinologia tanto ocidental
quanto chinesa é o apoio dos livros clássicos, mesmo Granet, que nega um estudo
historiográfico em seu trabalho e foca nos fatos sociais, não deixa de consultar as obras de
autores chineses antigos, muitos deles a partir de traduções já existentes na Europa. Needham
também se apoia em muitos autores que traduziram ou se apoiaram em traduções antigas, mas
ele faz comparações dos dados, tentando encontrar fatos comuns que comprovem ou se
aproximem da história, amparado pelos especialistas chineses de sua equipe.
O método de história comparada de Needham (1956) fica em evidência em
diversos momentos de sua obra. Um dos destaques de sua análise é quando ele apresenta a
origem histórica das Teorias dos Cinco Elementos e as Teorias das duas Forças (Yin e Yang)
no universo. A passagem seguinte indica um tipo de resolução de problemas de períodos,
postulando que:

It goes back to a thinker of whom we have not yet had occasion to say much,
though he may be considered the real founder of all Chinese scientific
thought, namely, Tsou Yen. The exact dates of his birth and death are not
known, but he must be placed approximately between - 350 and - 270. If he
was not the sole originator of the Five-Element theory, he systematised and
stabilised ideas on the subject which had been floating about, especially in
the eastern seaboard States of Chhi and Yen, for not more than a century at
most before his time. These datings of course contradict the traditional view,
which accepted as genuine the whole of the Hung Fan chapter of the Shu
Ching (Historical Classic) (see below, p. 242), and so placed the origins of
the theory in the early Chou time, but they those which modem research
indicates to be correct (NEEDHAM, 1956, p. 232).

As análises de Needham não se limitam em comparar elementos das obras de


diversos autores tanto ocidentais quanto chineses sobre a ciência e tecnologia chinesa, mas
também faz um estudo comparativo com elementos da cultura europeia. Por essa linha de
pesquisa Needham desenvolve um tipo de mapa panorâmico do seu objeto de estudos,
tocando em múltiplos assuntos sobre a China, envolvendo praticamente todos os sinólogos e
177

autores com trabalhos reconhecidos mundialmente. Os principais fundamentos sobre as


teorias das forças Yin e Yang, além da estrutura da obra Clássico das Mutações (Yijing), se
baseiam resumidamente na obra de Granet, mas Needham amplia as análises aproximando-as
de outras obras e autores, o que enriquece seu trabalho sobre a ciência e tecnologia chinesa.
Needham (1956) não apenas relaciona o Clássico das Mutações (Yijing) com a alquimia
chinesa, mas também com a medicina chinesa e até mesmo com a matemática apresentada por
Leibniz.

3.3.1 A contestação dos argumentos de Granet

A proposta aqui não é negar os trabalhos de Granet sobre a China, mas apresentar
em seu método certas afirmações que o sinólogo fez ou seguiu de autores anteriores a ele e
que atuam na sinologia ocidental quase que como verdades absolutas principalmente por
Granet ter participado da constituição moderna das pesquisas sobre a China. Assumimos aqui,
também apoiados em Needham (1956, p. 217), que diz “Granet, who was basically a
sociological analyst of myths, had drawn an unforgettable picture of the peasant society, the
aenolithic proto-feudalism, of the early Chou period, the time of the Shih Ching folksongs”,
que Granet fez uma pesquisa em sociologia chinesa e que o modelo de sinologia que ele
seguiu não se separou das pesquisas anteriormente feitas em filologia, sendo esta uma das
afirmações que contestamos sobre Granet.
No período em que Granet desenvolveu sua pesquisa sobre o pensamento chinês,
este objeto de estudos era totalmente excluído da filosofia europeia, ou seja, para os
estudiosos daquele tempo (séc. XIX) a China não produziu nada que se comparasse aos
estudos em filosofia, como os reconhecidos sobre a Grécia antiga. Uma discussão anterior aos
trabalhos de Granet ocorreu nas correspondências entre Humboldt e Abel-Rémusat
destacando justamente a questão sobre o modo que os chineses estruturavam o pensamento,
por meio de sua suposta gramática. A obra O Pensamento Chinês, de Granet, não diz nada
sobre os resultados desse debate, que ocorreu no momento da fundação da sinologia ocidental,
mesmo assim, Granet afirmou que a língua chinesa não era própria para a abstração das ideias.
Uma das passagens da obra de Granet que retoma o assunto da não abstração das
ideias é onde ele afirma:

Mostrarei, mais adiante, que a língua chinesa não parece organizar-se para
exprimir conceitos. Aos signos abstratos que podem ajudar a especificar as
idéias, ela prefere símbolos ricos em sugestões práticas; estes, em vez de
uma acepção definida, possuem uma eficácia indeterminada: não visam a
178

permitir identificações precisas, mas sim, acompanhando uma adesão global


do pensamento, uma espécie de conversão total da conduta (GRANET, 1997,
p. 15).

A questão da não abstração das ideias apresentada por Granet é fundamental nas
discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat, que por sua vez retomaram uma perspectiva
essencial da filosofia europeia, que excluía o pensamento chinês da concepção filosófica
grega. Pela afirmação de Granet sobre o assunto, era importante ele ter citado ou
contextualizado o referido debate, independentemente de ele ter comentado que, pela falta e
dificuldade de vocabulário filosófico na língua chinesa, não trataria de um estudo visando um
manual de filosofia chinesa. Na nossa concepção, para afirmar uma suposta qualidade da
língua chinesa que determina o pensamento chinês, sendo a não abstração, é imprescindível a
citação de Humboldt e Abel-Rémusat, ou então, falar da negação da filosofia chinesa para
certos esclarecimentos. Needham (1956) assume a questão da filosofia chinesa em um estudo
comparado com a filosofia ocidental, superando seus antecessores e abrindo caminho para
novos debates.
Ainda dentro da concepção de filosofia, podemos apresentar aqui uma das
passagens da obra de Granet que apontam para um processo de afirmação da filosofia chinesa
no meio científico como a que denota:

A filosofia chinesa (ao menos na parte conhecida de sua história) é


dominada pelas noções de Yin e Yang. Todos os intérpretes reconhecem isso.
Todos também consideram esses emblemas com o toque de respeito que se
liga aos termos filosóficos e que impõe ver neles a expressão de um
pensamento erudito. Inclinados a interpretar o Yin e o Yang conferindo-lhes
o valor estrito que parece convir às criações doutrinárias, eles se apressam
em qualificar esses símbolos chineses retirando termos da linguagem
definida dos filósofos do Ocidente. Por isso declaram, muito simplesmente,
ora que o Yin e o Yang são forças, ora que são substâncias. Os que os tratam
como forças - essa é, em geral, a opinião dos críticos chineses
contemporâneos - encontram nisso a vantagem de aproximar esses antigos
emblemas dos símbolos de que se serve a física moderna. Os outros - trata-se
dos ocidentais - pretendem reagir contra essa interpretação anacrônica.
Assim, afirmam (muito pelo contrário) que o Yin e o Yang são substâncias -
sem pensar em se perguntar se na filosofia da antiga China observa-se a
menor aparência de uma distinção entre substâncias e forças. (GRANET,
1997, p. 83).

Apesar dessa discussão sobre os conceitos Yin e Yang dentro do âmbito filosófico,
Granet prefere manter o foco na utilidade destes símbolos dentro das teorias da adivinhação e
da concepção metafísica. Contrariamente, Needham (1956) apresentou uma análise que não
somente faz uma aproximação da filosofia chinesa com a ocidental, mas também aponta tanto
179

para uma concepção folclórica, defendida por Granet, quanto científica das teorias antigas
chinesas como o Yin e Yang, dentre outras.
Não é necessário refletirmos mais sobre a questão da língua chinesa na
perspectiva de Granet, por já termos discutido o assunto em capítulo anterior, além disso, a
base da argumentação de Granet é referente à propriedade da não abstração do sistema oral e
escrito de comunicação da China, o que remete às discussões apresentadas por Humboldt e
Abel-Rémusat, que permaneceram sem uma conclusão coerente, pelo fato da morte de
Rémusat, principal sinólogo crítico e influenciador dos trabalhos de Humboldt.
Quanto à filologia, é criticada por Granet pela sua imprecisão da ordem
cronológica dos fatos e interpretações superficiais. É certo que para uma pesquisa em
sociologia chinesa a melhor ferramenta de análise são os fatos sociais. A questão é se este
instrumento supre sozinho a falta da preparação e interpretação ou tradução do material
escrito selecionado, como foi o caso da filologia aplicada nos clássicos chineses, do Pré-
Império até o último Império Qing. Granet, assim como muitos outros sinólogos ocidentais,
desconsidera os trabalhos em filologia desenvolvidos pelos chineses, conforme apresenta
Wang Li (1981), que foram realizados na história da China desde as primeiras descobertas dos
materiais escritos, ou seja, todos os livros que foram enviados para a Europa na época de
valorização das obras chinesas, não contando os traduzidos pelos missionários, passaram por
um longo processo de confecção a partir da descoberta dos rolos ou tiras de bambu até o
material próprio para a leitura e esse trabalho foi exclusivamente dos filólogos chineses.
Podemos afirmar que Granet está certo em criticar as análises dos filólogos
ocidentais que se distanciaram das fontes primárias encontradas na China e se limitaram a
fazer uso das teorias da linguística ocidental, criticada por Wang Li por negligenciar as
análises já realizadas pelos especialistas chineses em sua língua. O problema é que Granet faz
o mesmo ao utilizar a ciência ocidental, no caso da sociologia, para pesquisar a civilização
chinesa e indiretamente faz uso do material desenvolvido tanto pelos filólogos chineses
quanto pelos ocidentais na produção de sua obra. Para evitar o uso do material já
desenvolvido pelos filólogos ocidentais seria preciso selecionar todo o material em chinês e
traduzi-lo para a língua ocidental, fazendo uma análise minuciosa dos elementos encontrados
nas obras, com o uso do método dos fatos sociais, na perspectiva de Granet. A bibliografia da
obra O Pensamento Chinês, de Granet, aponta o contrário, pois muitos dos livros pesquisados
já partem de traduções do chinês ou de outro idioma. Por outro lado, negar os trabalhos
realizados pelos filólogos chineses até o período Qing, conforme a crítica de Wang Li, é
praticamente impossível, devido ao longo processo histórico que envolve o material na China.
180

A referida negligência dos trabalhos realizados pelos especialistas chineses, segundo esse
sinólogo, trata-se de não citar seus nomes, tomando o material como se fosse encontrado pela
primeira vez e estivesse em estado bruto.

3.4 Novas perspectivas dos estudos sobre a China

Os estudos atuais sobre a China no Ocidente, de forma geral, apresentam vários


trabalhos com temas muito distintos. Com o crescimento econômico da China em destaque
mundial é evidente que uma quantidade cada vez maior de pesquisadores acompanhe de perto
as suas conquistas, com o principal interesse de entender a cultura, sociedade, economia,
língua, filosofia, etc., desse país em variados períodos da história. Podemos afirmar que a
sinologia ocidental não evoluiu no seu método que envolve todas as áreas de estudo possíveis,
mas desenvolveu sua perspectiva em relação ao objeto de estudos, ou seja, a sua forma de
considerar a China se mantém multidisciplinar e com o aperfeiçoamento das áreas científicas,
juntamente com a tecnologia, cada vez mais o Ocidente vem conhecendo a China, a partir de
seus recortes temáticos.
Apesar do desenvolvimento evidente das áreas de estudo que consideram a China
como objeto, a sinologia ocidental não se constituiu como área científica da mesma forma que
a sinologia chinesa. As novas perspectivas dos estudos sobre a China no Ocidente seguem
perfeitamente o modelo de pesquisa apresentado por Needham, reunindo especialistas em
diversas áreas para pesquisar e produzir trabalhos cada vez mais detalhados e científicos sobre
a China. O principal diferencial desse método é a participação e contribuição de estudiosos
chineses, indo além das pesquisas anteriores que se limitavam à aplicação de métodos
ocidentais para análises de materiais e fenômenos chineses.
Um trabalho importante para citarmos como exemplo de novidade em pesquisas
modernas sobre a China é o livro La pensée en Chine aujourd’hui, de Anne Cheng (2007).
Nessa obra a sinóloga e especialista em história e filosofia chinesas apresenta um trabalho que
reúne artigos de especialistas em várias áreas de conhecimento com foco na China. O livro
mencionado contém os seguintes temas: na introdução - “Pour en finir avec le mythe de
l’altérité (Anne Cheng); Primeira parte – Dynamiques de la modernité, composta por –
Modernité de Wang Fuzhi (1619-1692) (Jacques Gernet); La conception chinoise de l’histoire
(Léon Vandermeersch) ; De Confucius au romancier Jin Yong (Nicolas Zufferey); Liu
Xiaobo : le retour de la morale (Jean-Philippe Béja); Segunda parte – L’invention des
catégories modernes : philosophie, religion, médecine, contendo os artigos – Les tribulations
181

de la « philosophie chinoise » en Chine (Anne Cheng); L’invention des « religions » en Chine


moderne (Vincent Goossaert); La médecine chinoise traditionnelle en République populaire
de Chine : d’une « tradition inventée » à une « modernité alternative » (Elisabeth Hsu);
Terceira parte – Questions d’identité : l’écriture et la langue, tratando dos temas – L’écriture
chinoise : mise au point (Viviane Alleton); Identité de la langue, identité de la Chine (Chu
Xiaoquan); La « sinité » : l’identité chinoise en question (Zhang Yinde); Où en est la pensée
taiwanaise ? Une histoire en constante réécriture (Damien Morier-Genoud) e por fim
Dépasser l’altérité, que trata do Penser sur la science avec les mathématiques de la Chine
ancienne (Karine Chemla).
Analisando a obra de Anne Cheng é possível notar que um tema comum que
demonstra certa relação com os artigos citados é o que fala sobre a modernidade da China,
mapeando o pensamento chinês atual, mas é impossível descrever o chinês moderno sem
pesquisar as raízes de sua história, porque a sua tradição cultural evoluiu e muitos modelos de
análise ocidental não se enquadram ou não funcionam para entender a China e o problema não
está em seu método. É necessário desconstruir os estereótipos que os próprios pesquisadores
ocidentais criaram sobre a China e sua história, começando pelas missões jesuítas. No meio
acadêmico percebemos que ocorreu uma continuidade interpretativa dos fenômenos chineses
pelos orientalistas, que inevitavelmente influenciou os sinólogos, como notamos nas
discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat (1999), além dos relatos de Adrian Chan (2010).
As reflexões de Anne Cheng (2007) tratam mais da questão da desconstrução do
chinês idealizado pelo europeu, que simplesmente desprezou e depreciou a civilização chinesa
em comparação com o modelo especialmente iluminista, em contradição com o valor
atribuído aos materiais tidos como exóticos encontrados naquele país, produzidos na
concepção dos europeus pela técnica chinesa e não pela ciência. Uma passagem na obra
analisada que explica a principal proposta da autora é que:

Pourquoi la pensée chinoise? Nous avons là par excellence un objet


essentialisé, souvent appréhendé hors de l’espace et du temps, nimbé dans
l’aura exotique de la « Chine éternelle ». Le processus de réduction de
réalités complexes à une essence, à un objet intellectuel commode à
manipuler et à monnayer, a été fort bien décrit par Edward Said qui
l’explique, dans L’Orientalisme, par le rejet de ce qui n’est pas soi dans une
altérité radicale. Le réflexe du « nous et les autres »55, précise Said, est
d’autant plus difficile à combattre qu’il nous est d’une nécessité quasi vitale
pour fonder notre identité, ou tout simplement pour exister : « L’identité

55
Conforme nota de Anne Cheng (2007, p. 392), L’expression est de Tzvetan Todorov, cf. Nous et les autres. La
réflexion française sur la diversité humaine, Paris, Le Seuil, 1989.
182

humaine est non seulement ni naturelle ni stable, mais résulte d’une


construction intellectuelle, quand elle n’est pas inventée de toutes pièces. [...]
En tant que système de pensée, l’orientalisme aborde une réalité humaine
hétérogène, dynamique et complexe à partir d’un point de vue essentialiste
dépourvu de sens critique ; ceci présuppose une réalité orientale permanente
et une essence occidentale non moins permanente, qui contemple l’Orient de
loin, et pour ainsi dire de haut (SAID, Edward W., Postface de 1994 à
L’Orientalisme. L’Orient créé par l’Occident, nouvelle édition augmentée,
Paris, Le Seuil, 1997, p. 359-360 apud CHENG, 2007, p. 8). »

Nessa citação percebemos que a atualidade dos estudos sobre a China passa
constantemente por trabalhos de revisão daquilo que foi produzido no Ocidente sobre esta
nação, buscando corrigir interpretações equivocadas. Em comparação com a sinologia chinesa
de Wang Li (1981), a revisão e preparação de material por meio da filologia são fundamentais
para evitar a produção de elementos que poderiam alterar totalmente o conteúdo das obras e
dificultar a sua utilidade como material de estudos para a sinologia e também para outras
áreas de conhecimento. É importante lembrar que a filologia tem a função de organizar o
material adequadamente, ficando aberta para as novas descobertas que possibilitem resolver
questões não concluídas por falta de novos elementos, que podem ser encontrados em outros
momentos das investigações, ou seja, a filologia é um instrumento em constante processo de
resolução de problemas históricos.
No caso dos trabalhos de Anne Cheng e sua equipe, da mesma forma que a obra
de Needham e tantos outros sinólogos ocidentais modernos, uma análise mais criteriosa e
crítica dos fenômenos chineses encontra a barreira da desmistificação, o que não envolve
negar completamente os trabalhos antigos. O importante é observar o material existente com
uma nova perspectiva e considerando a realidade própria das pesquisas produzidas pelos
especialistas chineses em comparação com os estudos realizados no Ocidente. Para as
pesquisas em sinologia ocidental, com um objeto tão grande como o caso do estudo da China,
é mais do que necessário um trabalho multidisciplinar.
A análise do pensamento chinês atual, realizada por Anne Cheng (2007), retoma a
questão da negação da filosofia chinesa pelos especialistas ocidentais, indicando um debate
novo sobre o assunto, mas que para os chineses não há novidades, pois os propósitos dos
estudos sobre seus filósofos estão muito além da necessidade de reconhecer o pensamento
chinês como adequado para a abstração das ideias e a teorização científica. Conforme afirma
Anne Cheng (2007):

Certes, de tels propôs nous paraissent aujourd’hui marqués du sceau d’une


mentalité coloniale mais aussi, de manière plus large, d’une ignorance
183

caricaturale. Ignorance qui persiste cependant largement en notre début du


XXI siècle, malgré les progrès indéniables de la discipline sinologique
depuis un siècle, et qui continue d’engendrer les mêmes préjugés.
N’entendons-nous pas seriner à longueur de journée que les Chinois sont
avant tout pragmatiques et que seule comptent pour eux l’efficacité, les
finalités pratiques, au détriment de l’abstraction et du détachement propres à
l’esprit philosophique et scientifique ? En affirmant que la langue chinoise,
dont il n’avait de toute évidence aucune connaissance, excluait « toute
philosophie, toute science, toute religion » au sens occidental de ces termes,
Renan définissait le programme de notre volume qui s’est donné pour but de
démythifier les principales voies par lesquelles le public occidental
d’aujourd’hui accède à la culture chinoise : écriture, politique,
confucianisme, philosophie, médecine, religions...(CHENG, 2007, p. 10-11).

A passagem citada indica a lacuna existente na sinologia ocidental e que esta


ocupa o tempo das pesquisas na resolução de problemas básicos que atrapalham as análises. O
panorama das pesquisas atuais sobre a China, conforme apresenta Anne Cheng (2007), é
importante para reconstituir informações precisas da história chinesa e organizar materiais e
elementos mais definidos e esclarecedores para as investigações, o que possibilita aproximar
da realidade chinesa antiga e compreender a atualidade, ou seja, exatamente a proposta das
pesquisas em sinologia chinesa, tratando esta de um objeto muito menor e mais definido.
Segundo a afirmativa de Anne Cheng (2007):

Notre travail se veut un témoignage de ce que sont les études chinoises


contemporaines sous deux aspects indissociables et complémentaires: la
réflexion de sinologues sur l'évolution des idées en Chine, et celle
d'intellectuels chinois sur leur propre tradition. De toute évidence, il eût été
vain de prétendre à une quelconque exhaustivité. Plutôt qu'un panorama de
type encyclopédique, nous proposons une série de coups de sonde dans la
pensée en Chine restituée et réhabilitée en tant que réalité vivante et
perpétuellement mouvante, en acte ici et maintenant, inscrite dans un temps
historique et un espace anthropologique (CHENG, 2007, p. 12).

Podemos afirmar que as novas perspectivas da sinologia ocidental se baseiam em


apresentar fatos anteriormente mal interpretados ou pesquisas incompletas a respeito da China,
agora com uma proposta mais crítica e com ampla liberdade de comparação e discussão no
meio acadêmico. Percebemos na citação acima que Anne Cheng reconhece o trabalho que ela
e sua equipe realizaram como cansativo e amplo. Concordamos com a opinião da autora,
principalmente, na questão de buscar desconstruir a imagem da China desenvolvida durante
longo tempo pelo europeu. Tanto Anne Cheng quanto Needham foram fundamentais e
produtivos em suas investigações e propósitos para a sinologia ocidental, além de inovadores
no método referente à multidisciplinaridade que exige a área.
Diferentemente de estudar os clássicos chineses como a sinologia chinesa, a
184

sinologia ocidental atualmente foca nas questões polêmicas da história da China, como a
identidade histórica chinesa e a constituição da república, em oposição ao império. Na obra de
Anne Cheng (2007), o artigo de Jacques Gernet fala sobre Wang Fuzhi (séc. XVII) e as
características de seu pensamento moderno, destacado por sua perspectiva da vida das
sociedades humanas, sendo precursor das teorias contemporâneas da biologia e da sociologia
chinesa. Gernet faz uso da sua experiência em história social e intelectual para pesquisar a
China moderna.
Léon Vandermeersch, segundo Anne Cheng (2007), estuda a origem e evolução
do gênero historiográfico na China, contextualizando com a filosofia chinesa e sua concepção
atual. Esse autor apresenta diferenças entre a concepção dos estudos históricos chineses em
relação ao que é concebido no Ocidente para essa área. É uma abordagem muito importante
para os estudos modernos que, como afirmava Granet, continham dificuldades cronológicas
para estabelecer uma história da China. Esse trabalho revela a revisão de fontes primárias
chinesas e organização sistêmica do material sobre o assunto, trabalho fundamental do
historiador. Vandermeersch também trata da questão sobre a cosmologia chinesa, importante
para desmistificar aquilo que foi concebido pela interpretação figurista.
Nicolas Zufferey, de acordo com Anne Cheng (2007), apresenta um estudo sobre
o confucionismo e o seu desenvolvimento na história da China até a modernidade, indicando
aspectos desse tema que permanecem na política atual, confirmando o propósito de Confúcio
na atuação exclusiva na política e educação da civilização chinesa. Abordar o confucionismo
na perspectiva moderna é fundamental para estabelecer distinção e clareza naquilo que foi
influenciado pelos missionários em contato com esse assunto, na busca de aproximação com o
cristianismo, o que criou um objeto de estudo totalmente distinto do contexto chinês na
antiguidade, gerando confusões nos estudos modernos. Trabalhos como o de Zuffery servem
para compreendermos o papel de Confúcio para a política chinesa e seu valor atribuído pelos
sinólogos chineses em relação ao estudo dos clássicos, além disso, Confúcio atuou
diretamente no objeto de estudos dessa área na China. A partir de pesquisa como esta é
possível entender a aproximação comparativa que alguns pesquisadores chineses fazem entre
Confúcio e Karl Marx, abrindo caminhos para compreendermos o que Wang Li (1981), dentre
outros sinólogos chineses, quer dizer sobre a importância do marxismo-leninismo para os
estudos modernos na China.
Seguindo um estudo antropológico e da história intelectual da China
contemporânea, segundo Anne Cheng (2007), Joël Thoraval investiga o desenvolvimento
atual dos debates intelectuais na China e entra na questão do pragmatismo americano
185

introduzido no país e que influenciou nas reflexões dos estudiosos chineses modernos.
Comparativamente, Wang Li (1981) fez menção sobre o pragmatismo de Karlgren, como
principal influenciador do desenvolvimento da linguística chinesa. Thoraval não cita Karlgren,
mas dá referências de John Dewey e sua aproximação com a China na época do Movimento 4
de Maio, de 1919. Para a nossa análise, o fato indica um contexto de contatos entre estudiosos
ocidentais com a China, levando com eles não apenas o conhecimento específico de sua área
de especialização, mas também suas bases filosóficas.
Jean-Phillippe Béja, com base em Anne Cheng (2007), especialista em política e
sociedade chinesa contemporânea, faz um estudo crítico das políticas da China popular, com
foco no escritor Liu Xiaobo (1955) e sua relação com a política, ou seja, seu principal objeto
de estudos para a produção do artigo da obra aqui analisada é o intelectual chinês e sua
participação nos assuntos políticos do país, visando detalhar as situações polêmicas e entender
as reações em jogo. Apesar de seu objeto ser a política chinesa, o estudo é distinto da
sinologia chinesa, resumidamente, que parte das análises dos clássicos e da produção textual
do meio imperial para estabelecer um estudo comparado com as necessidades atuais. O
método utilizado por Béja parece ser próprio de sua área de domínio, pois ele parte de um
recorte atual ou de um momento relacionado com a modernidade e pesquisa os fenômenos
que envolvem o seu tema.
Anne Cheng (2007) também produz um artigo que tem como proposta de pesquisa
a filosofia chinesa a partir do Japão (séc. XX), fazendo um levantamento da história dessa
área de conhecimento, com o apoio dos trabalhos de Hu Shi e de Feng Youlan (1920-1930),
sendo esses estudiosos chineses tidos como referência para diversas pesquisas da China
contemporânea. A sua questão principal é descrever os problemas que fizeram parte da
exclusão do pensamento chinês da história da filosofia ocidental, indicando a necessidade de
análises mais críticas do que foi concebido como filosofia na Europa dos Iluministas (XVII-
XVIII) e a classificação dos antigos estudiosos chineses e suas produções que foram negadas
de serem comparadas ou chamadas de filosofia (séc. XIX). Esse tema é muito atual e
importante para definir não apenas a filosofia chinesa, mas a própria filosofia e seu objeto de
investigação. O método utilizado por Anne Cheng busca um caminho inverso ao dos
especialistas ocidentais, aproximando a história do termo filosofia do que está em jogo na
constituição da filosofia chinesa no meio letrado chinês, ou seja, para a autora existe uma
relação direta do assunto com a identidade chinesa.
De acordo com Anne Cheng (2007), Vincent Goossaert, pesquisador de história
social e religiosa da China, analisa a invenção do conceito de religião conforme concebido
186

pelo Ocidente moderno e introduzido na China (séc. XIX-XX), que buscou reinventar e
inventar novas religiões no país. Essa perspectiva apresenta a novidade de descrever o
conceito de religião e delimitar as crenças chinesas, muito diferente do figurismo, que se
apoiou e impôs o modelo cristão de religião na China, sem a possibilidade de um estudo
crítico. O método do autor também segue ao da história comparada das religiões.
Semelhantemente ao pesquisador anterior, segundo Anne Cheng (2007), Elisabeth
Hsu analisou a reinvenção da medicina tradicional chinesa no período de instauração da
República Popular da China (1949), assim como os fenômenos relacionados com o assunto,
tais como as práticas corporais e ervas medicinais chinesas. Com o estabelecimento da
República surgiram alternativas que pudessem fazer parte do projeto comunista, segundo a
autora, com o propósito de caracterizar a nação diante do mundo, além dos interesses
econômicos e políticos para um tipo de modernidade. O método dessa pesquisa é baseado na
antropologia, área de domínio da pesquisadora.
Com o artigo de Viviane Alleton, a obra de Anne Cheng (2007), apresenta a
questão da linguística, tema fundamental para a fundação da sinologia ocidental e chinesa,
mas com perspectivas distintas de abordagem e problematização. Alleton concebe a
linguística chinesa em uma análise comparada do sistema de escrita, entre o alfabético e o
ideográfico, abordando a questão da identidade chinesa que representam seus caracteres. Esse
tipo de estudo ajudaria muito na elaboração das teorias de Humboldt sobre a gramática
chinesa, mas isso não serve como fator comparativo, pela distância entre os períodos e
diferenças de recursos para o desenvolvimento teórico adequado. Humboldt foi precursor nos
estudos da língua chinesa para um modelo de sua teoria da linguagem. A proposta de Alleton
revela os avanços da linguística na consideração do objeto língua chinesa, eliminando muitos
dos principais equívocos na sua interpretação como sistema de comunicação comum.
Conforme Anne Cheng (2007), o linguista chinês Chu Xiaoquan também analisa a
língua escrita chinesa, como um sistema abstrato das ideias, revisando a questão da identidade
chinesa e apresentando as mudanças e adaptações que a escrita sofreu durante o período de
exigências das novas políticas de modernização, tendo como uma das regras a adoção de um
sistema fonético de transcrição e pronúncia da língua. Esse linguista cita o sinólogo e também
linguista chinês Wang Li para indicar as propostas de uso do sistema alfabético romanizado
pinyin, com o objetivo de adequar a sociedade chinesa aos padrões mundiais da época. Os
exemplos dos artigos sobre a língua chinesa, produzidos pelos chineses, revelam os avanços
da linguística chinesa, tão desejados por Wang Li (1981), deixando evidente que houve o
aperfeiçoamento do instrumento da sinologia chinesa, ou seja, a filologia chinesa.
187

Zhang Yinde, segundo Anne Cheng (2007), especialista em literatura comparada,


apresentou as necessidades e problemas da China na busca de construir uma identidade
nacional aos moldes mundiais. A perspectiva de Zhang Yinde indica o choque de ideias
existente na China que debatiam uma alternativa chinesa para a modernização, dentro do
modelo ocidental. Fazendo uma aproximação, Wang Li (1981) descreveu o ambiente político
que é assunto da pesquisa de Zhang, destacando uma modernidade que para os chineses vinha
de fora. A sinologia chinesa negava esse aspecto e apontava para os valores da cultura chinesa,
que estavam nos clássicos antigos e que a partir deles viria o desenvolvimento da China, ou
seja, buscar na própria cultura as bases da modernidade chinesa. O artigo de Zhang Yinde é
importante para compreendermos um contexto conflituoso da política chinesa em oposição
aos ideais ocidentais. A China certamente não aderiu completamente ao modelo político
imposto pelo Ocidente.
Quanto ao Damien Morier-Genoud, conforme Anne Cheng (2007), e a questão do
pensamento taiwanês, em seu estudo de história social e intelectual de Taiwan, percebemos o
método próprio de sua especialidade aplicado na pesquisa. O tema envolve as adequações
políticas durante o período de conflitos entre a China Continental e Taiwan, exigindo
coletânea de fontes historiográficas para a elaboração de contextos políticos muito distintos
que foram constituídos. A produção desse tipo de artigo indica as amplas proporções das
pesquisas em sinologia ocidental, definindo seu aspecto metodológico multidisciplinar.
Karine Chemla, na obra coordenada por Anne Cheng (2007), também apresenta
uma perspectiva nova, ao abordar a história da matemática na China. Seu tema envolve os
aspectos construídos pela cultura ocidental de que na China não existiram análises abstratas
capazes da elaboração de teorias como da matemática, que a língua chinesa não era própria
para a ciência. Granet foi um dos principais propagadores dessa ideia e Chemla, em seu artigo,
demonstra que essa afirmação não se sustenta na atualidade das pesquisas sobre a China.
Conforme Chemla, Granet se apoiou em uma concepção positivista para tratar de seu estudo,
fazendo um prejulgamento do seu objeto.
As novas perspectivas sobre os estudos da China reforçam o grande leque
temático que faz parte da sinologia ocidental, destacando cada vez mais o crescimento de
interesses e a necessidade de pesquisas como as citadas na obra de Anne Cheng, assim como
os estudos feitos por Needham. Se esse é o modelo de sinologia ocidental atual, conforme a
nossa pesquisa busca destacar, resta definir e delimitar esta área, não como científica no
sentido próprio do termo, mas como a qualidade de um grupo que tem como objeto a China,
por meio de recortes específicos, segundo a metodologia das áreas envolvidas.
188

3.4.1 Novas descobertas em sinologia

Consideramos as novas descobertas em sinologia, o que também foi observado


por Needham (1956), referente às descobertas arqueológicas mais recentes, visto que são
materiais capazes de alterar qualquer panorama desenvolvido em pesquisas anteriores aos
fatos. Um exemplo que demonstra esse aspecto é o que Wang Li (1981) descreveu sobre as
descobertas das escritas nas carapaças de tartaruga, que ocorreram posteriormente aos
artefatos de bronze com escritas antigas, mesmo sendo elementos anteriores ao metal,
comprovando e refutando análises previamente feitas no material pelos pesquisadores
chineses.
Uma das importantes descobertas arqueológicas que determinou os rumos da
sinologia ocidental contemporânea, principalmente, por refutar afirmações categóricas
defendidas e transmitidas dentro dos estudos da área, foi o livro com o título traduzido como
Les Neuf Chapitres sur les procédures mathématiques (Jiuzhang suanshu), (datado
aproximadamente do século I a.C.). Foi descoberto pelos arqueólogos em 1984 (na tumba de
186 a.C.). É considerado um clássico da matemática chinesa do Pré-Império, com
comentários de Liu Hui (263) e Li Chunfeng (656). O trabalho de recuperação e tradução
dessa obra aproxima perfeitamente o modelo de sinologia ocidental da sinologia chinesa,
apresentando também resultados que esclareceram questões atuais da história da sinologia
ocidental, recuperando uma das principais características defendidas pela concepção científica,
especialmente, em relação à propriedade de abstração que a língua chinesa possui, tendo essa
condição sido negada, conforme demonstram as discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat,
e transmitida nas reflexões feitas por Granet na sinologia moderna. Chemla faz uma crítica
direta a Granet, por uma de suas afirmações de que os chineses desconheciam a matemática,
possuindo um pensamento com características práticas e não abstratas.
Analisando a obra de Karine Chemla (2004), podemos iniciar basicamente por sua
característica estrutural, como segue: Première partie – textes de présentations - Chapitre A -
Présentation générale des Neuf chapitres et de leurs commentaires (Karine Chemla); Chapitre
B - Histoire des Neuf chapitres (Guo Shuchun); Chapitre C - Travaux d'édition critique et de
recherche sur Les Neuf chapitres (Guo Shuchun); Chapitre D - La langue mathématique des
Neuf chapitres et les problèmes de sa traduction (Karine Chemla); Deuxième partie – Édition
critique et traduction, avertissement pour la lecture de la traduction; Préface de Liu Hui, texte
chinois et traduction; Chapitre premier – Champ rectangulaire, présentation : Guo Shuchun,
texte chinois et traduction; Chapitre 2 – Petit mil et grains décortiqués, présentation : Karine
189

Chemla; Chapitre 4 – Petite largeur, présentation : Guo Shuchun, texte chinois et traduction;
Chapitre 6 – Paiement de l’impôt de manière égalitaire en fonction du transport, présentation :
Karine Chemla, texte chinois et traduction; Chapitre 7 – Excédent et déficit, présentation :
Guo Shuchun, texte chinois et traduction; Chapitre 8 – Fangcheng, présentation : Guo
Shuchun, texte chinois et traduction; Chapitre 9 – Base et hauteur, présentation : Karine
Chemla, annexe, texte chinois et traduction; Notes à la traduction, Karine Chemla.
Conforme podemos notar, a obra de Karine Chemla e Guo Shuchun é um trabalho
conjunto de tradução do chinês para o francês, detalhe importante para a nossa análise, visto
que, além de tratar diretamente da fonte primária para a versão, é material fundamental para
as pesquisas comuns em sinologia ocidental e chinesa. No caso da sinologia ocidental
verificamos a resolução de problemas históricos básicos sobre a concepção da matemática
chinesa, relacionada diretamente com o pensamento chinês, próprio para a ciência. Quanto à
sinologia chinesa, podemos deduzir a filosofia da matemática, por sua teorização, além da
política de cálculos, certamente aplicada no ensino antigo da China e na administração
imperial, dentre outras utilidades. Essa dedução é evidente no texto da obra, pela descrição e
comentários dos autores.
Supomos que o clássico Les Neuf Chapitres passou por uma preparação em
filologia chinesa, antes de ter sido traduzido para o francês. Uma passagem que pode reforçar
a nossa opinião é o comentário de Chemla, em Anne Cheng (2007), que diz:

Avec les commentateurs, nous disposons de témoins éminemment précieux.


Ils attestent la manière dont des lecteurs de la Chine ancienne ont interprété
Les Neuf Chapitres, et ils explicitent les valeurs théoriques importantes à
leurs yeux, tout en nous fournissant des raisons de penser qu’elles ont
également présidé à la composition du Classique. Car, à la différence des
commentaires, plus prolixes, les ouvrages les plus anciens enchaînent, sans
explication, des problèmes et des procédures permettant de les résoudre.
Ainsi, n’étaient les exégètes, nous serions bien en peine d’argumenter une
interprétation des Neuf Chapitres qui puisse dépasser la simple lecture des
énoncés et des listes d’opérations (CHENG, 2007, p. 373-374).

Nessa passagem, Chemla classifica de exegetas os interpretadores do clássico, o


que para a nossa perspectiva se refere aos filólogos, sendo esta uma das funções deles,
segundo Wang Li (1981). Outra observação é que a obra não foi simplesmente descoberta e
passada diretamente para a tradução na China, pois isso vai além de uma tradição no país.
Concordamos que seria muito difícil traduzir uma obra antiga chinesa, mesmo dominando a
língua, sem referências que indicassem a utilidade e valores das unidades numéricas, por
exemplo, próprias de seu tempo e cultura. Os filólogos figuristas foram capazes desse feito na
190

tradução de Clássicos chineses, assumindo uma interpretação própria. Podemos classificar


como novas descobertas da sinologia ocidental a consideração dos trabalhos prévios
realizados pelos filólogos chineses no Neuf chapitres. Podemos notar na bibliografia dessa
obra que filólogos e sinólogos chineses famosos são citados, como Wang Guowei e Wang Li,
dentre outros, o que reforça as nossas convicções, além disso, nos anexos do clássico
observamos uma Tableau historique des éditions des Neuf chapitres (CHEMLA/GUO, 2004),
com a cronologia das edições, indicando os trabalhos realizados muito antes da tradução para
o francês.
No prefácio da obra de Chemla/Guo (2004), Geoffrey Lloyd, da Needham
Research Institute, Cambridge, inicia com uma importante observação da utilidade do Neuf
Chapitres, afirmando que:

Le Jiuzhang suanshu - un titre que l'on s'accorde à traduire par Les Neuf
chapitres sur les procédures mathématiques - n'est pas seulement l'un des
textes mathématiques chinois qui ont exercé le plus d'influence, objet d'une
importante tradition de commentaires à partir de Liu Hui (263). Il est aussi
un document précieux pour une histoire des mathématiques comparative à
l'échelle du monde. C'est à différents niveaux et à divers titres, en effet, qu'il
est susceptible d'être apprécié. Notons en premier lieu, que de nombreux
chercheurs se sont satisfaits dans le passé d'une évaluation du texte qu'il faut
bien considérer maintenant comme très superficielle: il s'agirait
essentiellement, selon eux, d'un manuel pratique, d'un guide pour les
fonctionnaires et, plus généralement, pour tous ceux qui se trouvaient
confrontés à l'un des nombreux problèmes de mathématiques qui y sont
traités. Par ailleurs, on peut également admirer ce texte pour sa profondeur
au point de vue mathématique et sa maîtrise d'algorithmes et de procédures
fondamentaux. Enfin, et c'est là le plus important au point de vue de sa
signification au plan mondial, il peut être apprécié pour le modèle de
systématisation des mathématiques qu'il propose (CHEMLA/GUO, 2004, p.
9).

Uma obra como o Neuf Chapitres não se limita ao estudo da matemática chinesa,
um exemplo é a análise feita por Chemla, em Anne Cheng (2007), para desconstruir a
concepção equivocada defendida por Granet. Esse material, após uma criteriosa análise crítica
dos especialistas chineses, se torna importante objeto de pesquisa para historiadores, filósofos,
matemáticos, etc., sendo este o caminho metodológico da sinologia chinesa e Chemla parece
ter tido contato com o sistema chinês. Conforme o que Chemla/Guo (2004) registram sobre as
condições preliminares de tratamento da obra, afirmando:

Composé aux environs des débuts de l'ère commune, il devait, peu après sa
mise en forme définitive, être considéré comme un « Classique (jing) », au
sens que la critique littéraire de la Chine ancienne a donné à ce terme.
191

Corrélativement, Les Neuf chapitres - comme nous en abrégerons


régulièrement le titre tout au long de ce livre - firent l'objet de nombreuse
commentaires au fil des siècles. Certains d'entre eux furent sélectionnés par
la tradition écrite pour être transmis avec l'ouvrage. Ainsi, tous les témoins
qui nous permettent d'en reconstituer le texte aujourd'hui comportent les
commentaires achevés par Liu Hui en 263, ainsi que ceux rédigés par une
équipe d'érudits sous la direction de Li Chunfeng et présentés au trône en
656. C'est pourquoi, contrairement à une coutume qui consiste, en Occident,
à arracher les textes canoniques aux environnements textuels concrets dans
lesquels ils furent abordés dans l'Empire du Milieu, le lecteur trouvera ici
l'ouvrage tel que la tradition écrite de la Chine ancienne l'a élaboré: le
Classique accompagné de ces deux commentaires (CHEMLA/GUO, 2004, p.
16).

É fundamental destacar dessa passagem o costume ocidental contrário ao


tratamento dos textos dado pelos especialistas chineses. Provavelmente essa diferença se trata
da forma própria de a filologia chinesa cuidar dos artefatos escritos, como relíquias da cultura
resgatada dos antigos. A obra Les Neuf Chapitres pode ser considerada a maior descoberta
arqueológica para a sinologia ocidental e principal ponte de relação com a sinologia chinesa,
pela semelhança evidente do instrumento de preparação e conservação do material para ser
submetido às pesquisas. Outra importante função da obra aqui considerada é a sua ligação
direta com as questões formuladas por Leibniz, sendo útil para solucionar suas antigas
inquietações sobre a ciência chinesa, a partir da matemática.
Podemos constatar na obra analisada a referência de clássicos importantes para a
história da sinologia ocidental, como apresenta o seguinte parágrafo:

Penchons-nous auparavant sur la manière dont Liu Hui justifie l'introduction


des blocs au moment même où il y recourt pour la première fois, en
commentaire à l'extraction de la racine cubique (problème 4.22). Citant un
texte philosophique clef qu'est le « Grand commentaire» (Xici zhuan) du
Classique du changement (Yijing) - avec un énoncé que nous marquons en
italiques -, il déclare : « Comme la parole (yan) n’épuise pas le sens (yi),
pour expliquer ici les points clefs, il faut utiliser des blocs, c'est alors
seulement que l'on arrive à comprendre » (CHEMLA/GUO, 2004, p. 34).

Passagens como essa recriam não apenas a história da matemática chinesa, mas a
história da China, da ciência chinesa, das escolas de pensamento, ou seja, importantes fontes
de esclarecimento das bases necessárias para entendermos a civilização chinesa. Um exemplo
de contexto histórico existente na obra de Chemla/Guo (2004) é a descrição do período em
que o Neuf Chapitres foi produzido e utilizado, como no trecho que destaca:

La Chine de l'époque, et ce depuis la fin des Han, se trouvait en proie à de


grandes transformations sociales. Les rapports économiques s'y
192

caractérisaient essentiellement par le servage, qui s'exerçait dans de vastes


domaines. Les grandes familles et la caste des lettrés occupaient le centre de
la scène. Dans le domaine de la pensée et de la culture, les études
contournées des Classiques confucéens ainsi que les superstitions des
apocryphes, qui avaient fleuri au cours des deux périodes Han, avaient, elles,
quitté la scène historique. La position des Confucéens se dégrada
notablement tandis que la pratique d'argumentations, débattant en premier
lieu des trois mystères (San xuan) (le Yijing, le Laozi, le Zhuangzi), gagna en
importance. On vit ainsi renaître ce climat fiévreux qui avait disparu depuis
le temps des rivalités entre les cent écoles de l'époque des Royaumes
Combattants. Les diverses écoles réprimées des siècles durant, après que
l'empereur Qinshihuang eut fait brûler les livres canoniques et enterrer
vivants les lettrés, que l'empereur Wu des Han « eut pratiqué le culte exclusif
du confucianisme en discréditant les autres écoles », les Taoïstes, les
Nominalistes, les Légistes et les Mohistes, relevèrent à nouveau la tête et
firent l'objet d'un intérêt certain. L'époque abonda, elle aussi, en hommes de
talent. Mentionnons pour mémoire les politiciens et stratèges comme Cao
Cao, Zhuge Liang, Zhou Yu, les penseurs comme Zheng Xuan, Ji Kang, He
Yan, Wang Bi, l'astronome Liu Hong, les mathématiciens Liu Hui, Zhao
Shuang, le spécialiste en mécanique MaJun, le cartographe Pei Xiu, les
médecins Hua Tuo, Wang Shuhe, les hommes de lettres Cao Zhi, Cao Pi, les
sept sages de l'ère de règne Jian'an au nombre desquels Wang Can qui, tous,
virent le jour au cours de cette période. La plupart d'entre eux,
particulièrement précoces, réalisèrent leurs oeuvres immortelles entre vingt
et trente ans (CHEMLA/GUO, 2004, p. 61).

É inegável o valor histórico e científico que o clássico Neuf Chapitres possui. A


descoberta de obras como esta é importante para o trabalho de reformulação das bases da
sinologia ocidental e Chemla/Guo (2004) demonstram na tradução conjunta dela que o
intercâmbio acadêmico entre a China e os países ocidentais é fundamental para o
desenvolvimento científico em geral. Notamos que ao realizar aproximações acadêmicas com
a China retornamos aos antigos interesses defendidos por Leibniz, em um momento
conflituoso entre a sinologia e a política religiosa, sendo realizados tardiamente.
Para a sinologia chinesa a obra Neuf Chapitres também é tida como uma
importante descoberta, pela época do material e conteúdo rico em informações sobre a
política e a filosofia chinesa antiga. A passagem seguinte fala sobre algumas referências
filosóficas do material, como:

Par ailleurs, Liu Hui avait une bonne connaissance des différentes écoles de
pensée de l'époque pré-Qin. Il excellait à puiser idées et matériaux dans leurs
textes fondamentaux ainsi que dans les livres des deux dynasties Han. Dans
son commentaire, mis à part les matériaux cités de sources qu'il explicite lui-
même - le Mozi, le Mémoire sur l'examen des travaux artisanaux (Kao gong
ji), le Commentaire de Maître Zuo (aux Annales de Printemps et Automnes)
(Zuoshi zhuan), il utilise aussi abondamment idées et formulations du Zhouyi
(ou Yijing, Classique du changement), du Guanzi, du Lunyu (Entretiens de
Confucius), du Laozi, du Zhuangzi, du Zhouli (Les Rites des Zhou) ainsi que
193

du Huainanzi, du Shiji (Mémoires historiques), du Lunheng (Discours pesés),


et autres livres. Il s'en saisit sans effort, les mettant à profit pour ses propres
créations mathématiques, sans laisser de trace de la couture. Par exemple,
son affirmation, lors d'une découpe en parties infiniment petites, du fait qu'il
arrive un moment où on ne peut pas couper vient tout droit de la conception
de l'insécable chez Mozi. L'idée qu'il formule en affirmant: « l'extrême du fin,
on le dit infime; infime, il n'a donc pas de forme» vient clairement du
passage où Zhuangzi écrit que «l'extrême du subtil, on le dit infime», «
l'infime n'a pas de forme ». Et lorsque Liu Hui réfute la procédure de
l'extraction de la racine sphérique, dans Les Neuf chapitres, son style est tout
à fait le même que celui de Wang Chong lorsque, dans son Lunheng, il réfute
le saint qui sait mille choses anciennes et connaît dix mille générations
(CHEMLA/GUO, 2004, p. 61-62).

Além das bases da filosofia chinesa utilizadas por Liu Hui em seus comentários,
ele era matemático e, segundo Chemla/Guo (2004, p. 62), se apoiava na ideia de pesquisar a
verdade com base nos fatos tal como se apresentam. Toda a fundamentação histórica
pesquisada e desenvolvida pelos autores sobre o Neuf Chapitres serve de exemplo de material
para ser estudado e com conteúdo ainda para ser descoberto pela sinologia moderna. O
método empregado na produção da tradução desse material também é fundamental para
indicar a possibilidade do uso sistêmico da filologia como instrumento de análise da sinologia
ocidental, da mesma forma que os especialistas chineses o fazem. Entendemos que para um
estudo mais detalhado e seguro sobre temas essenciais da China é necessário estabelecer
análises comparadas com as fontes bibliográficas produzidas pelos sinólogos chineses e
também buscar compreender como eles produziam e produzem suas pesquisas dentro de seus
costumes e cultura.
194

Capítulo 4: Wang Li e a sinologia na China

4.1 Introdução à sinologia na antiguidade chinesa

A sinologia antiga chinesa é classificada como hanxue, por Wang Li (1981), que
também faz referência ao termo xiaoxue, relacionando-o à antiga forma de tratar os textos
antigos, isto é, a maneira com que na antiguidade chinesa se classificavam os estudos em
filologia. Os chineses do período anterior ao movimento estudantil anti-imperialista, cultural e
político, ocorrido em 4 de maio de 1919, em Beijing, faziam pesquisas sobre a língua com
base na filologia chinesa, selecionando obras clássicas e realizando análises minuciosas a seu
respeito, semelhante ao modo com que os filólogos ocidentais tratavam suas pesquisas na
mesma área.
O tema da linguagem está diretamente relacionado à sinologia, sendo necessário
observar A História da Linguística Chinesa (WANG LI, 1981), na perspectiva inversa ao
objeto de estudo do autor, para extrair de seu trabalho não somente os argumentos que
comprovam o desenvolvimento da linguística desde a China Antiga, mas aspectos que
indicam o uso dessa área, especialmente da filologia, em sua produção – fato que demarca a
própria sinologia chinesa. Assim, é preciso ter em mente o papel da filologia enquanto
instrumento da sinologia para destacar o pensamento político ou filosófico que contribuiu
para a formação e a evolução deste instrumento, até o estágio atual, e no caso da linguística,
com influência dos métodos ocidentais. Wang Li constrói a sinologia chinesa como área de
estudos, quando relata a história da linguística chinesa. Um dos componentes fundamentais
desse trabalho é a descrição da própria filologia e sua importância nesse campo.
Podemos afirmar, com base em Wang Li (1981), que a sinologia chinesa antiga se
preocupou com a conservação das opiniões dos antigos letrados. Seus propósitos eram:
resgatar o conteúdo de obras antigas, tornar clara a linguagem escrita dos antepassados,
confirmar a autenticidade dos documentos, fazer comparações da forma de escrita dos antigos
para determinar sua evolução e, principalmente, estabelecer a compreensão das escolas de
pensamento, como verdadeiras e valiosas heranças para as gerações posteriores. Assim,
proporcionaria a continuidade de certos padrões culturais de grande prestígio, porém sem
deixar de passar por revisões e reedições, com o apoio de ideias mais atuais. Um exemplo é o
que faz o próprio Wang Li, em suas análises, ao apontar valores e defeitos de obras tidas
como fundamentais aos estudos da língua chinesa antiga e moderna.
195

O estudo da língua chinesa, enquanto objeto de Wang Li, serviu para obter suas
conclusões sobre as ideias produzidas pelos antigos, nas pesquisas em sinologia. A partir
dessa perspectiva, é possível notar que os estudiosos citados por Wang Li (1981), receberam
destaque por suas convicções filosóficas e pela elaboração de teorias da linguagem, que
serviram de base para a estruturação e o desenvolvimento dos estudos e para a conservação da
língua chinesa, destacando ainda, de certa forma, a política educacional da China Antiga. Para
Wang Li, entender as escolas de pensamento da antiguidade é a prioridade da sinologia
chinesa, abrangendo as questões políticas e/ou filosóficas, visto seguirem padrões tradicionais
de valor histórico dentro das instituições imperiais e também no âmbito social, servindo como
meio de educação da sociedade chinesa, – fato notado por Granet, em seus estudos sobre o
pensamento chinês.
Durante o Pré-Império, os estudos filológicos não tiveram sucesso, pois
pressupõe-se que a sinologia chinesa estivesse em formação no período, uma vez que se
verificam pesquisas e interesses iniciais. Os antigos sinólogos chineses do período da
Primavera e Outono (770-476 a.C) e dos Reinos Combatentes (475-221 a.C), na dinastia Zhou,
por meio do uso da filologia (xiaoxue), deram atenção aos livros de alfabetização infantil,
pelo valor dado à transmissão dos saberes. No reino de Qin, já existia o livro didático
Shizhoupian para o ensino de seus habitantes (WANG LI, 1981). Havia também aqueles que
se interessavam pelos clássicos confucianos, dando mais atenção às glosas, em busca de uma
explicação sobre a linguagem dos antigos. Um dos livros mais importantes sobre o assunto foi
o Dicionário das Formas e Estudo dos Caracteres, de Xu Shen (100-121 d.C). Outra obra
clássica que indica a valorização do ensino pelos ancestrais são os Anais da Arte Literária – O
livro Han, sobre o qual Wang Li (1981, p. 9) afirma: “os textos antigos devem ser lidos com
elegância, explicando hoje as línguas antigas para podermos compreendê-las”56. Julga-se que
o livro Erya (autores desconhecidos, antes do séc. II a.C), por exemplo, tenha sido produzido
por mais de um autor, além de ter misturado materiais de vários lugares e buscado conservar
os ensinamentos dos antepassados. Tal fato pode confirmar não apenas a utilidade da filologia
na época, mas também os objetivos da sinologia chinesa desde sua origem. Ou seja, permite
estudar o pensamento dos antigos por meio da análise de suas produções textuais.
Dominar a glossologia – um dos componentes da filologia – era um meio de
assegurar as interpretações dos clássicos, muito apreciadas pelos estudiosos desse material
(WANG LI, 1981). A sinologia chinesa requer um estudo criterioso dos clássicos antigos e

56
Original:“古文读应尔雅,故解古今语而可知也”(p. 9).
196

um constante apoio em dicionários que melhor resgatem o significado das glosas de épocas
determinadas. Não se pode negligenciar tal método, devido ao risco de interpretações
anacrônicas e comprometimento total do trabalho sinológico, semelhante, por exemplo, ao
fato que inspirou a mudança de método da filologia para o fato social, atribuída ao sinólogo
francês Granet, por perceber não somente falhas na definição do contexto histórico do
material, mas pelas interpretações comumente introduzidas pelos ocidentais a partir da
perspectiva europeia. Wang Li salienta que no período da obra Erya (antes do século II a.C.),
os sábios transmitiam o significado das palavras oralmente, e que eram especialistas na
explicação dos clássicos e de todas as obras do período Pré-Imperial. O Erya poderia dar
margem a distorções, necessitando sempre maior atenção ao significado da época, uma vez
que era impossível estabelecer as más influências (WANG LI, 1981).
Percebem-se, assim, as dificuldades em recorrer apenas a esse tipo de obra, na
China, para elaboração de um estudo sinológico, o que se resolvia com o apoio e a
comparação dos relatos contidos em outras obras raras. No caso da sinologia ocidental, a
ocorrência desse tipo de distorção vai além das fronteiras culturais, o que aumenta as
impossibilidades, conforme comentada por Wang Li (1981).
Podemos afirmar que a sinologia chinesa, segundo Wang Li (1981), preocupou-se
com o material selecionado e utilizado para a educação das crianças do Império, uma vez que
havia um padrão de ensino e avaliação restrito ao meio governamental, que premiava quem
possuísse melhor desempenho, com cargos públicos, e punia os que cometiam falhas, sendo
tanto os benefícios como as condenações levados ao extremo. A sinologia, nesse contexto,
tinha como princípio organizar a política educacional que preservava os moldes
tradicionalmente valorizados pelo sistema administrativo da China Antiga, regulamentado
pelo Imperador e implementado por meio da aplicação de provas públicas. O ensino
direcionado às crianças que possuíam alguma aproximação com o Império, certamente,
proporcionou a estruturação e a padronização de uma língua imperial (língua dos mandarins
ou funcionários públicos chineses). No período das missões, Ricci havia sido aconselhado a
aprender essa língua, e a maioria dos eunucos utilizados pelos jesuítas dominavam tal sistema,
possivelmente, porque trabalhavam junto aos ministros e no Império. Além disso, o interesse
dos missionários era de se aproximar do Imperador e conquistar alguns privilégios neste meio,
que favorecessem a estadia na China e a expansão dos ideais cristãos. A produção das obras
também seguia o padrão estabelecido pelo Império, e a língua escrita foi um meio seguro de
estabelecer uma forma padrão, devido a sua propriedade de mudança mais lenta e gradual.
A opinião de Xunzi, própria da filosofia da linguagem, citada por Wang Li (1981),
197

indica uma concepção idêntica a de pensadores ocidentais modernos, como William Labov,
sobre as relações das línguas e etnias, além das características simultaneamente estáveis e
evolutivas da língua. É interessante notar que Xunzi elaborou suas premissas há mais de 2.000
anos, na antiguidade chinesa. Mas este episódio da história da China não parece ter recebido
atenção e valor dos sinólogos ocidentais. Wang Li afirma que Xunzi apresentou, em suas
reflexões, princípios iguais aos do Ocidente sobre o pensamento lógico, e afirma não existir
qualquer influência desses povos no período. A referida discussão é um exemplo
característico da sinologia chinesa, que constrói a história da China, com base nas produções
dos filósofos e suas obras. Segundo Wang Li (1981), o período dos Reinos Combatentes foi o
mais importante para a filosofia chinesa antiga, devido às raras reflexões e produções da
época.
A sinologia de Wang Li reuniu registros da primeira obra, cujo título e conteúdo
se referem aos Dialetos, de Yang Xiong (53 a.C.-18 d.C.), indicando o método de pesquisa de
campo dos períodos Zhou e Qin, que buscou reunir as línguas comuns de várias etnias, por
meio da coleta de dados. Com base em Wang Li, desde a antiguidade, Yang Xiong parece ter
desenvolvido uma forma de transcrição para representar a pronúncia e as variações que
indicavam as diferenças dos dialetos de seu tempo, mesmo com a falta de sinais fonéticos da
língua chinesa, possivelmente, utilizando-se da pronúncia dos caracteres conforme lidos. Com
isso, realizou um feito inédito para a ciência das línguas da China, o que demonstra ter sido o
primeiro cientista chinês a produzir um livro tão importante para a história da língua Han,
além de valioso para os estudos da linguagem no mundo, mesmo não tendo sido reconhecido
no ambiente acadêmico ocidental (WANG LI, 1981). O método da sinologia de Wang Li
recupera o mérito dos autores e obras da China Antiga, além de apresentar uma atividade
científica bastante estruturada para o período de sua realização. Ao revelar a atuação de
pensadores como Xunzi e Yang Xiong, dentre outros, Wang Li constrói a história de um
contexto típico de pesquisadores acadêmicos, existente na China Antiga. A sinologia chinesa
demonstra atuar especificamente no meio letrado, por apoiar-se na produção escrita e, através
dela, estabelecer um panorama da história dos autores e suas linhas de pensamento, que
contribuíram para um tipo de ciência da China Antiga, tal como a filologia.
Wang Li (1981) apresenta as Escolas de Shengxun, da dinastia Han, como locais
onde havia o interesse pelas origens do significado real dos textos, e comenta que Mêncio,
mesmo não fazendo referência ao estudo etimológico, assim como Platão, mencionou o
sentido real das palavras, demonstrando que os antigos chineses faziam uso de algumas de
mesma pronúncia para explicar outras .
198

O método comparativo de Wang Li, em relação à filosofia ocidental, indica a


preocupação do sinólogo em apontar o valor histórico e cultural dos antigos pensadores da
China e fazer uma conexão com os princípios científicos em destaque, em seu tempo. Wang
Li não desprestigia os estudiosos de seu país, em relação aos do Ocidente, ao contrário, faz
um paralelo interessante entre os pensamentos chineses e ocidentais, e apresenta, além das
diferenças, os aspectos similares, que colocam os estudiosos chineses em uma classificação de
excelência para os padrões acadêmicos do século XX, no mundo.
É evidente que a seleção do material, para a sinologia chinesa antiga, era
fundamental para o melhor desenvolvimento das pesquisas na área e, devido ao tema e objeto
de estudo propostos por Wang Li, envolvendo necessariamente a língua escrita e seu processo
evolutivo na história da China, teve como foco o âmbito específico das produções teóricas
sobre a linguagem, além dos relatos das determinações próprias da política de educação do
país. Acreditamos que tal fato constitua uma política linguística da China Antiga, com
objetivos de fixar uma língua padrão e torná-la instrumento de comunicação e registro
administrativo do Império, ou seja, de adotar uma língua oficial. Tal política expandiu-se até a
China contemporânea, considerando Wang Li como principal membro desse tipo de pesquisa,
já que realizou a coleta de dados e analisou as propostas, além de mapear a evolução da
linguística chinesa, n’A História da Linguística Chinesa.
Wang Li comenta inúmera quantidade de livros, muitos deles dicionários antigos,
além de seus autores e sua pertinência ao desenvolvimento dos estudos da língua chinesa, de
modo geral. Considerando que o papel do dicionário é reunir as palavras que recebem certo
status de prestígio e utilidade, tanto da sociedade quanto, principalmente, do governo de um
país, representando um meio onde a língua recebe certa estabilidade, a análise comparativa
desse material demonstra um caminho mais seguro para a filologia e a sinologia, por
proporcionar o levantamento de dados fundamentais sobre os autores e suas linhas de
pensamento, além de retratar os processos de mudança da língua escrita, no tempo e espaço,
ao compará-los.
Uma vez que a sinologia chinesa depende do material escrito para suas análises, é
evidente que a história dessa área bem como da linguística apresenta caminhos diretamente
proporcionais em suas evoluções, especialmente pela abordagem do tema na obra de Wang Li
(1981), o que torna o material de grande importância para a apresentação de sua definição. O
método estrutural da sinologia de Wang Li delimitou os pontos positivos e negativos do
material e dos autores analisados, estabelecendo uma aproximação comparativa com as
teorias mais modernas do conhecimento desse autor, sem desmerecer o avanço obtido pelos
199

antigos em seus respectivos momentos históricos, destacando-os como precursores e


contribuintes do desenvolvimento científico no país e estabelecendo uma ligação direta destes
com a linguística chinesa moderna.
Na perspectiva de Wang Li (1981) a sinologia chinesa permitiu apresentar
aspectos da língua chinesa que indicaram o desinteresse dos antigos pela forma de escrita
alfabética, afirmando que o chinês é uma língua analítica, isto é, cuja forma muda muito
pouco. Esta afirmação possui relação com o tema de discussão das correspondências entre
Humboldt e Rémusat (século XIX), referente à língua não flexional dos chineses. Uma das
principais características da sinologia de Wang Li é fazer a ponte entre os métodos antigos e
modernos chineses, além de propor uma relação da perspectiva chinesa com a ocidental,
demonstrando que é possível realizar um estudo sinológico aos moldes da China,
considerando o material e os autores – em sua maioria, sinólogos famosos do Ocidente.
A sinologia concebida por Wang Li apresenta uma mudança de interesse, por
parte dos chineses, em relação ao estudo da linguagem, a partir dos contatos com a gramática
do sânscrito da Índia, – que não atraiu a atenção dos antigos chineses (século II ou III), até a
aproximação dos budistas, – proporcionando o desenvolvimento de métodos de soletração
fonética, por inspirar a atenção ao som das palavras. Posteriormente, surgiram os dicionários
de rimas, com o sistema fanqie, aprimorados pela preocupação da fonologia com a criação das
poesias da dinastia Sui e Tang (WANG LI, 1981). O método de atenção ao som da língua,
recente na história da China, foi introduzido pelo budismo, por meio da sinologia de Wang Li,
conforme se pode notar na seguinte citação, atribuída ao Zheng Qiao:

A diferença da pronúncia para os budistas está no som e não nas palavras; a


diferença das palavras para os chineses está nos caracteres e não no som.
Propositadamente, os livros budistas são muito simples, sendo apenas
submetidos aos ouvidos, sem muita diferença, também sem unidade e
coerência, além de possuírem uma pronúncia qualquer, sem limites. Os
chineses sofrem por não diferenciar os sons (WANG LI, 1981, p. 70)57.

Assim, a sinologia de Wang Li demonstra que os chineses souberam aproveitar e


se adaptar às influências dos ocidentais em benefício de suas ciências, sem abandonar
totalmente as concepções antigas e culturais, mas introduzindo aspectos que auxiliaram na
compreensão do pensamento ocidental, categorizando e registrando o pensamento chinês no
decorrer de sua história. Conforme apontou Wang Li, a linguística chinesa recebeu influência

Original : “梵人别音,在音不在字;华人别字,在字不在音。故梵书甚简,只是数个屈曲耳,差别不
57

多,亦不成文理,而有无穷之音焉。华人苦不别音”(p. 70).
200

parcial do campo da fonologia da Índia e total do campo da linguística ocidental. Mas, assim
como o autor, temos a convicção de que, no campo da sinologia, principalmente do período
Qing, foi a China que apresentou os estudos sobre seu país aos sinólogos ocidentais, e estes,
assim como fizeram no estudo da língua chinesa, limitaram-se aos seus pontos de vista e
metodologia. Wang Li (1981) faz uso de conceitos ocidentais como feudalismo, marxismo e
libertação para apontar uma concepção político-ideológica – certamente, introduzida na China,
e adotada por ele por meio de seus estudos na França – que demonstrava a ciência ocidental
como avançada. Entretanto, tal fato não interferiu no destaque aos autores chineses e seus
feitos (WANG LI, 1981).

4.1.1 A filologia e a linguística como base da sinologia chinesa

N’A História da Linguística Chinesa, Wang Li (1981) apresenta uma discussão,


comum em seu tempo, sobre os aspectos distintos entre a filologia e o campo da linguística,
visto que a primeira se preocupa com a escrita e a segunda, com a língua, de modo mais
abrangente. O fato é que a filologia pertence à área da linguística histórica, que se concentra
no estudo das mudanças linguísticas em um tempo e espaço determinados. A filologia
pertence, assim, ao campo maior da linguística, o que Wang Li também aponta como uma
opinião da China Antiga. Com a proposta de descrever a evolução da linguística chinesa na
história, Wang Li toca necessariamente no assunto da sinologia chinesa. O sinólogo chinês
estuda as concepções filosóficas ou políticas de sua civilização, estabelecendo uma ligação
entre a atualidade evolutiva da ciência e a produção teórica da China.
O desenvolvimento científico do estudo da língua chinesa é apresentado por
Wang Li (1981), partindo da necessidade de pesquisar a produção e o acúmulo de material
teórico, desde o período Pré-imperial até a libertação da China. Nesta perspectiva, Wang Li
afirma que a China detém experiência e conhecimento avançado sobre a filologia a nível
mundial, por conta de ter sido o foco específico da sinologia do país durante tantos anos: a
partir das investigações da escrita, considerando o descobrimento da escrita nas carapaças de
tartaruga, nos artefatos de bronze e pergaminhos de bambu. Tomando a filologia chinesa
antiga como início da história da ciência propriamente dita, Wang Li revela que a estrutura da
área é composta pela glossologia, a dialetologia, a paleografia, a etimologia e a lexicografia,
tendo evoluído posteriormente com os estudos da fonética, da fonologia e da gramática
chinesa, especificamente, através do contato com os povos estrangeiros, como indianos e
201

europeus.
É evidente que falar sobre filologia não somente faz referência à história dessa
ciência, por ser parte da grande área linguística, como também apresenta o instrumento
fundamental para a realização das pesquisas em sinologia na China, principalmente por
constituir o foco da sinologia chinesa construída por Wang Li.
A linguística, como base da sinologia chinesa, revela que, possivelmente devido
ao desenvolvimento de seu instrumento, a sinologia possa se apresentar de forma diferente, na
atualidade, considerando o fato de os chineses terem mantido o método antigo de investigação,
isto é, apoiado exclusivamente na produção escrita. Descrevendo a estrutura do trabalho de
Wang Li, considerando os momentos de transição, é possível destacar algumas mudanças
específicas da sinologia numa relação direta com o desenvolvimento da linguística. A partir
dos materiais existentes no Pré-império e das exigências que surgiram na busca da
padronização do ensino, – que influenciou diretamente a seleção e o domínio do conteúdo
adequado a essa política, baseado nos ensinamentos antigos –, a filologia foi um importante
instrumento para a efetivação desse tipo de trabalho. Considerando que a padronização e a
eficiência da educação estavam relacionadas à conservação da administração do Império, – de
onde decorrem as provas dos mandarins –, é possível deduzir que tanto o instrumento quanto
a sinologia deviam ser constantemente aperfeiçoados e revistos, com o intuito de evitar falhas
e severas punições por parte do Imperador, além de visar à conquista de méritos por parte dos
participantes das provas.
A participação dos filósofos da China Antiga foi fundamental, enquanto meio
flexível para as discussões sobre a língua chinesa e suas propriedades, muitas vezes
consideradas por Wang Li como assuntos do âmbito da linguística. Estas discussões não
apenas permitiam possibilidades de compreensão da ferramenta social de comunicação, oral e
escrita, como também geravam obras importantes para a aplicação das regras, exatamente
como ocorre com as gramáticas das línguas nacionais, o que permite relacionar com a função
da filologia chinesa antiga, conforme descrito por Wang Li (1981).
A preocupação com a criação de uma língua comum (putonghua, ou mandarim
como é traduzido no ocidente) não é novidade, já que desde o período imperial os chineses
concentravam-se em uma língua unificada, tendo a escrita como maior representante.
Estudiosos como Xunzi, Yang Xiong, Mêncio etc, perceberam as variações dialetais
existentes em suas épocas, que serviram de referência aos estudos da história da língua Han
(WANG LI, 1981).
Existentes no período Han do Oeste, além do método que considerava oito tipos
202

de caligrafia, a exigência para a realização das provas aplicadas aos adolescentes de dezesseis
anos, – obrigados a decorar e a recitar nove mil caracteres, com o objetivo de assumirem o
cargo de historiadores oficiais –, foi abolida no período Han do Leste. Tal fato comprova a
relação entre o instrumento de controle da língua e a política de ensino do Império, haja vista
a decadência do desempenho em transmitir saberes, quando da renúncia em aplicar os antigos
métodos, o que também prejudicou a compreensão de livros antigos. O Dicionário das
Formas e Estudo dos Caracteres, de Xu Shen (100-121 d.C.), é considerado o melhor
material utilizado na recuperação dos padrões (WANG LI, 1981).
Assim, fica claro, quando Wang Li apresenta a ideia de evolução da língua, que,
para estabelecer um padrão normativo para o ensino e conservação do conhecimento dos
antigos, certas regras básicas não podiam ser negligenciadas. O método de Xu Shen
abandonou antigos caracteres incompreensíveis e que não mantinham uma base comum.
Quanto mais a China foi-se unificando, maiores eram as diferenças dialetais, fato
ao qual, as pessoas não deram tanta importância, uma vez que a língua escrita não era
alfabética, evitando o prejuízo de sua compreensão. Com o surgimento do sistema fanqie
(após as dinastias Han e Ming), como um tipo de soletração dos caracteres, de influência
budista, a China passou a dar atenção ao sistema fonético. Os dicionários de rimas surgiram
no período Sui e Tang, convenientes à composição de poesias das escolas poéticas da época,
que exigia a padronização e a explicação do gênero literário (WANG LI, 1981).
A produção e o estudo de dicionários (classificados como lexicografia) sempre
constituiu uma forma de representar e fixar um momento da língua de prestígio ou nacional,
para qualquer civilização. Ricci, em sua estadia na China, percebeu a importância de se
produzir um dicionário bilíngue, tendo escrito o primeiro dicionário português-chinês da
história, o que facilitou seus estudos da língua mandarim. A importância dos dicionários foi
tamanha, em termos de política linguística, que um dos mais influentes materiais produzidos
na história da China foi o Dicionário do Imperador Kanxi (Dinastia Qing), – o mesmo
imperador que desejava expandir o intercâmbio com a Europa, tendo-se aproximado do Rei
Luís XIV, por intermédio de Bouvet (WANG LI, 1981). Este material baseou-se em outros
dicionários produzidos em épocas anteriores, o que indica a tentativa de conservação e padrão
de um sistema de língua.
Segundo Wang Li (1981), os estudos dos caracteres chineses eram feitos,
inicialmente, a partir de registros encontrados nos artefatos de bronze, mas com a posterior
descoberta das escritas em carapaças de tartaruga, a paleografia e também as pesquisas em
filologia desenvolveram-se muito, certamente, pela necessidade de materiais de comparação.
203

Quanto mais a sinologia chinesa se mostra dependente do material escrito, mais cresce a
necessidade de seleção e análise minuciosas desse material. A importância da linguística,
enquanto grande área, para a sinologia está nesta afirmação. Ao reconhecer o processo
evolutivo da língua oral e principalmente escrita, os pesquisadores chineses certamente
perceberam que, para um estudo sinológico, a melhor fonte de informações ainda eram os
registros escritos, por proporcionarem o manuseio e a visualização das mudanças e do próprio
conteúdo informacional, relativos a um longo período de tempo, e com a possibilidade de se
acrescentarem e compararem informações novas dentro do processo natural da pesquisa,
tendo em vista que, na concepção científica, argumentos são propensos a contestação ou
reafirmação. Wang Li (1981) apresenta várias comparações que servem de exemplo a esse
tipo de afirmação, apontando méritos e falhas dos pensadores antigos, já que este é um dos
principais pontos da sinologia chinesa.
O grande mérito desta área e que demonstra o modo de pensar desse povo é a
assimilação de novidades, no caso da linguística ocidental, sem se desligar completamente das
tradições antigas e das raízes culturais da China. Wang Li (1981) apresenta esse ponto de
vista em sua obra, e também indica que esse tipo de opinião não foi unânime na sociedade
chinesa, dando exemplos de alterações radicais proporcionadas pelas influências ocidentais na
China, em relação às quais foi contrário, afirmando que o abandono das conquistas históricas
chinesas favorecia a ideia de que a modernidade e o progresso vinham exclusivamente do
exterior.
Aplicando o método da sinologia chinesa ao material produzido por Wang Li, é
possível identificar o patriotismo do autor, engajado no desejo de recuperar e demonstrar para
a China o que os iludidos com os benefícios do Ocidente almejavam conquistar, isto é, que o
eurocentrismo vinha ganhando força no país. Wang Li estudou no exterior buscando entender
outras concepções de mundo, mas acabou por introduzir em seu país o pensamento de que era
possível encontrar na história da China os valores comuns exaltados no Ocidente, fato que
consideramos como grande mérito de sua sinologia.
O valor da filologia e da linguística, enquanto base da sinologia chinesa, vai além
do simples instrumento de análise, pois serviu para apresentar os estudos dessas ciências
consagradas muito antes dos próprios títulos concebidos aos classificados como descobridores
desses sistemas, no Ocidente. Wang Li é sutil, porém pontual ao criticar o aproveitamento do
material e do conhecimento adquiridos pelo ocidental em seus contatos na China.
O sinólogo também se inclui como personagem d’A História da Linguística
Chinesa, ao apresentar de forma resumida sua autobiografia, em que assume a participação no
204

desenvolvimento das pesquisas sobre a gramática chinesa. Teve grande influência da


Filosofia da Gramática, de Otto Jespersen (1924), da Teoria da Linguagem, de Vendryes
(1921) e do linguista americano Leonard Bloomfield, na elaboração e na definição da
gramática chinesa. Tal fato auxiliou na construção da história da linguística chinesa, em
relação ao instrumento e objeto de análise da sinologia, enquanto área responsável pelo
processo de investigação.
Wang Li não é historiador por formação, mas seu conhecimento em sinologia lhe
permite organizar o material e expor os momentos de transição que apontam para o
desenvolvimento da linguística chinesa. Ao adotar o ponto de vista de pensadores ocidentais,
distinto do de Saussure, Wang Li destaca seu pensamento crítico ao método comumente
aplicado na China, e bastante seguido por pesquisadores chineses na análise da língua chinesa,
baseado na obra Curso de Linguística Geral. Ressalta que, para um sistema como o chinês,
era preciso elaborar uma nova teoria da linguagem, motivo de sua preferência por sinólogos
europeus que trataram da língua chinesa, de alguma forma, com o objetivo de perceber os
pontos positivos e negativos. Wang Li possuía, portanto, uma perspectiva bastante distinta e
única para o seu tempo, em relação à língua e à sociedade chinesa.
A escolha de alguns sinólogos europeus para os relatos comparativos não foi
aleatória, já que os três citados por Wang Li possuíam algum trabalho referente à língua
chinesa, analisados pelo autor com o mesmo método aplicado aos autores chineses. Ele ainda
afirma que embora fossem muitos os sinólogos da Europa Ocidental, poucos influenciaram a
linguística chinesa. Os sinólogos que receberam a atenção de Wang Li foram:

B. Karlgren, sueco, professor e diretor da Universidade de Gotemburgo,


curador do Museu de Estudos Arqueológicos do Extremo Oriente. Suas
principais obras são: Pesquisas de Fonologia Chinesa (1926), Os Idiomas
Tibetano e Chinês (1931), As Pesquisas do Clássico das Poesias (1932),
Word Families in Chinese (1934), Grammar Serica, Script and Phonetics in
Chinese and Sino-gapanes (1940), Língua Chinesa (1949), Teoria
Simplificada da Fonética da Língua Chinesa do Período Médio e Início do
Antigo (1954) etc – Henri Maspero, francês, autor de Pesquisas Históricas
da Pronúncia do Vietnã (1912), Dialetos de Changan, da Dinastia Tang
(1920) – Walter Simon, alemão, com o Sobre a Reconstrução do Som das
Consoantes Finais da Língua Chinesa Antiga (1928) (WANG LI, 1981, p.
152)58.

Original: “高本汉(1889—1978)
58
,瑞典人,哥德堡大学教授、校长,远东考古博物馆馆长。主要著作
有《中国音韵学研究》(1926)(1)、《藏语和汉语》(1931)、《诗经研究》(1932)、《汉语中的词族》
(Word Families in Chinese, 1934)(2)、《中日汉字形声论》(Grammata Serica, Script and Phonetic in

Chinese and Sino-Japanese, 1940)《汉语》(1949)
、《中古及上古汉语音学简论》 (1954)等。
亨利-马伯乐,法国人,所著有《越南语音史研究》(1912)、《唐代长安方言》(1920)等。伏尔特-西门,
德国人,已入英国籍,所著有《关于上古汉语辅音韵尾的重建》 (1928)等”(p. 152).
205

Todos esses sinólogos buscaram analisar criteriosamente a língua chinesa, mas,


conforme afirma Wang Li (1981), mantiveram suas pesquisas apoiadas no Curso de
Linguística Geral (SAUSSURE, 1916) e na teoria da linguística comparada, do ponto de vista
exclusivamente ocidental. O sinólogo chinês identificou nesses trabalhos o que se aproxima
de um modelo de teoria da linguagem produzida na China Antiga, e foi capaz de delimitar as
melhores propostas chinesas para explicar a gramática e desenvolver a linguística de seu país.
Os fatores que Wang Li considera como essenciais para o avanço dos estudos em linguística
chinesa são: a história do desenvolvimento social da China e a particularidade única da língua
Han escrita. Tomando esses dois tópicos de investigação como importantes meios de
esclarecer o desenvolvimento da linguística chinesa, podemos deduzir que estudar algum
aspecto da história da China sem considerar o seu processo de evolução social e as
características peculiares da escrita Han pode comprometer o resultado final do trabalho
sinológico.
O foco da abordagem sinológica de Wang Li está no estabelecimento de uma
conexão dos estudos antigos em filologia com a gramática da língua chinesa moderna. Esse
interesse é comprovado não somente pela ênfase na linguística, mas também por meio de seus
artigos, como Investigação Elementar da Gramática Chinesa, e de sua tese (1936) sobre os
dialetos de Bobai, sua terra natal. Wang Li cita o estudioso Ma Jianzhong, formado na
Universidade de Paris e adepto do catolicismo, o que aponta o resultado das missões jesuítas
na China. Ma Jianzhong é um exemplo da ponte entre o antigo e o moderno, pois era
especialista em filologia chinesa, além de ter estudado latim e francês, legislação, ciências
naturais e transformação de energia fotoelétrica em sonora. Fazendo uma aproximação com a
sinologia ocidental, Ma Jianzhong seria um excelente contato para a compreensão do método
de sinologia chinesa na época. Mas, segundo Wang Li (1981), o efeito foi contrário, já que se
engajou na política da China, trabalhando com as Relações Exteriores, e realizando o que
pretendia Leibniz. Mesmo possuindo tais méritos, foi derrotado na política e seu material de
gramática não foi aceito pela cultura do país.
Wang Li afirma ter analisado a gramática da língua chinesa do sinólogo alemão
Gabelentz (1881) e sugere que Ma Jiangzhong tenha copiado seu modelo ao comparar as
semelhanças entre a gramática do latim e a do chinês. Wang Li resgatou e baseou-se na
proposta de Ma, sendo considerado o precursor da gramática chinesa moderna e da
linguística, de modo geral. Ele foi contra a imitação do sistema ocidental e defendeu um
estudo comparado originalmente chinês, sem negar as possibilidades de estudos aproximados
206

por meio de métodos ocidentais, mas de maneira secundária e aplicados com cautela.
Conforme se pode notar na leitura d’A História da Linguística Chinesa, Wang Li (1981)
adquiriu conhecimento da linguística ocidental, mas se preocupou em mostrar aos chineses
que seus ancestrais atuaram de forma análoga e tipicamente de acordo com a tradição dos
letrados chineses, contestando, por meio da sinologia chinesa, qualquer argumento negativo
referente ao pensamento científico dos chineses, propagado pelos sinólogos ocidentais.

4.2 A intervenção da sinologia europeia na sinologia chinesa

Tomando a sinologia europeia, conforme concebida por Mungello (1989), é


possível destacar que sua intervenção na sinologia chinesa possui duas condições de
ocorrência: através do intercâmbio de pesquisadores chineses na Europa, ou pelos avançados
estudos sinológicos europeus. Embora o contato inicial dos missionários europeus com a
China, e suas pesquisas em dialetos e línguas das etnias chinesas, Wang Li (1981) afirma que,
além dos objetivos serem religiosos, a maioria dos jesuítas não era linguista e suas obras sobre
o assunto eram insatisfatórias. Tal fato não poderia ter influenciado o instrumento da
sinologia chinesa, nem mesmo os propósitos tradicionais desta área na China.
Com o uso da filologia pela sinologia chinesa é conveniente deduzir que a
abertura desta área na China para uma possível intervenção da sinologia europeia teria melhor
efeito com alguma influência em seu instrumento. Como a sinologia europeia estava em
processo de formação, desde o auxílio dos materiais produzidos pelas missões na China, até o
avanço dos estudos europeus, com destaque para Leibniz, fica evidente que a busca de
informações partia mais dos europeus do que dos letrados chineses. Com base em Wang Li
(1981), é possível determinar que, com a influência dos estudiosos europeus na linguística
chinesa, o método filológico empregado gerou avanços consideráveis, favorecendo
diretamente a sinologia chinesa, devido à introdução de uma nova perspectiva sobre o estudo
da linguagem. Tal influência possibilitou meios de apontar novas formas de análise da língua
chinesa, aprimorando o instrumento da sinologia chinesa, considerando inclusive o aspecto
estrutural e gramatical nas análises dos clássicos.
É possível ainda afirmar que a filologia funcionava como um tipo de gramática,
ou estudo das normas da língua chinesa, desde o Pré-Império. Com o contato dos sutras
budistas, os chineses passaram a conhecer a “declaração” (shengming), como era chamada a
gramática do sânscrito. Porém, tal fato não inspirou os chineses a pesquisar ou produzir
207

material sobre a gramática da língua chinesa, o que, em nossa opinião, influenciaria, em


algum aspecto, o instrumento da sinologia na China. Ainda que, na dinastia Song, tivesse
existido um sistema parecido com uma classificação gramatical do chinês, ele se distanciou
dessa proposta. O primeiro livro que se referiu a uma gramática originalmente chinesa foi a
Gramática de Ma (Mashiwentong), de Ma Jianzhong (1898). Segundo Wang Li (1981, p.
142), Ma Jianzhong não possuía conhecimento em linguística e sua obra era baseada na
gramática ocidental, fato desprestigiado pelos chineses. Isto indica que os chineses não
aceitavam as intervenções diretas ou indiretas dos ocidentais. Os méritos do autor estão em
comparar a língua chinesa com a estrangeira e estabelecer aspectos diferentes entre elas. Além
disso, o autor era especialista em língua chinesa antiga e, mesmo sugerindo certa imitação
entre os sistemas, seu trabalho foi original e único, à época.
No contexto de uma análise em sinologia comparada, podemos afirmar que Wang
Li defendeu o trabalho de Ma Jianzhong por reconhecer nele uma atitude rara para o tipo de
estudo, na China. O sinólogo chinês não discorda da existência de imitações no trabalho de
Ma, mas valoriza as características propriamente chinesas de que esse autor se utilizou. Um
ponto importante para a sinologia foi a questão levantada por Wang Li (1981, p. 145), na
tentativa de estabelecer o valor da Gramática de Ma: “se Ma copiou o sistema de análise da
gramática da língua chinesa produzida pelo sinólogo alemão Gabelentz (1881), por que ambos
eram tão distintos?”59
Considerando a perspectiva de Wang Li a respeito da introdução de um estudo
gramatical próprio da China por Ma Jianzhong, nota-se o intercâmbio desse especialista com
a Europa e, naturalmente, a influência efetivada por meio desse processo. Mas não se pode
negar que já existia uma tentativa de explicar a língua chinesa por parte dos sinólogos
europeus, o que aponta a continuidade dos interesses sobre a China, a partir de Leibniz, em
termos de estudos avançados e acadêmicos sobre o assunto. Wang Li (1981) classifica os
estudos gramaticais da China em duas etapas: o período de surgimento (1898-1935), com Ma
Jianzhong, Yang Shuda e Li Jinxi, e o período de desenvolvimento (1936-1948), com Wang
Li, Lü Shuxiang e Gao Mingkai.
Todos esses pesquisadores, cada um ao seu modo, aproveitaram o contato com os
estudos gramaticais do Ocidente, aproximando-os, comparativamente, à gramática da língua
chinesa. Um ponto em comum entre todos é que mantiveram características originais da
língua chinesa e, principalmente, dos estudos antigos do país; além disso, buscaram

59
Original: “马建忠如果生搬硬套西洋语法,为什么不像加贝伦兹之所为呢?”(p. 145).
208

inicialmente um estudo comparado com a língua inglesa, para o qual Wang Li exigiu cautela.
A principal contribuição dos estudiosos chineses, no período de introdução, foi a inserção da
língua inglesa e o desenvolvimento de estudos elementares sobre a gramática do chinês,
buscando estabelecer um meio de compreensão do europeu e aprimorar os estudos na China.
A relação desses estudos com o instrumento da sinologia fica evidente na citação referente ao
trabalho de Yang Shuda (1928), que menciona um “‘novo discurso explicativo sobre os
clássicos’ para fazer um tipo novo de método de organização” (WANG LI, 1981, p. 147)60,
referindo-se diretamente à filologia chinesa.
De maneira pontual, é possível destacar o papel de Ma Jianzhong como introdutor
da gramática chinesa, e de Wang Li como importante pesquisador e propagador da gramática
moderna da língua chinesa.
A proposta de Wang Li era elaborar estudos em gramática comparada com os
vários dialetos existentes na China, constituindo um grande avanço para a linguística nacional.
Influenciado, principalmente, pela Filosofia da Gramática, de Jespersen (1924), Wang Li
desenvolveu aspectos fundamentais dos estudos da língua chinesa. Um ponto que apresenta a
intervenção da sinologia europeia na sinologia chinesa, de acordo com a obra de Wang Li
(1981), é o fato de todos esses pesquisadores chineses apoiarem-se inevitavelmente no Curso
de Linguística Geral, de Saussure (1916), o que delimita a influência dos estudos ocidentais
introduzida na filologia chinesa. A introdução das teorias da linguagem desenvolvidas na
Europa e aplicadas nos estudos da língua chinesa pelos sinólogos ocidentais, atraiu os
interesses dos estudiosos chineses. Mas é preciso considerar separadamente os métodos entre
um estudo linguístico, próprio da sinologia chinesa focado no material escrito, e um estudo da
sinologia ocidental focado, praticamente, em tudo o que esteja relacionado à China, sem um
instrumento definido e um objeto mais específico para as análises.
É pela afirmação determinante do foco (língua escrita) e do objeto (filosofia ou
política) das pesquisas em sinologia chinesa que buscamos apresentar a intervenção da
sinologia europeia na chinesa. Consideramos ainda a impossibilidade de existência de um
método eficaz aplicado pelos sinólogos europeus em suas pesquisas, que pudesse ter alterado
a forma das investigações tradicionais dos chineses, que não fosse pelo instrumento. Tal
opinião fundamenta-se na discussão estabelecida entre Humboldt e Abel-Rémusat (1821-
1831), referente à língua chinesa, e que deu origem aos estudos em sinologia ocidental.

Original: 《词诠》等于一部“新经传释词”
60
。即以《高等国文法》而论,也等于拿一部“新经传释词”
进行一种新的列法 (p. 147).
209

A perspectiva da sinologia chinesa justifica os motivos pelos quais Wang Li


selecionou alguns sinólogos específicos que produziram obras sobre a língua escrita chinesa,
já que para ele esse tipo de trabalho raramente influenciou a linguística chinesa. O caráter de
raridade dá aos sinólogos, citados por Wang Li, uma posição privilegiada na sinologia
comparada, pois delimita certos valores respeitados que se aproximaram da sinologia chinesa.
As características prestigiadas pela tradição da sinologia chinesa e apontadas na obra de Wang
Li a Karlgren, como principal sinólogo nessa linha de pesquisa, além de Maspero e Simon,
como autores complementares, comprova a dificuldade da ciência ocidental em desvencilhar-
se do eurocentrismo e explorar melhor a China, do ponto de vista da ciência chinesa.
Do século XIX ao XX, a sinologia chinesa recebeu grande influência da sinologia
europeia, pela introdução das teorias da linguística na China. Consideramos que sinólogos,
como Karlgren, que receberam atenção e apresentação especial nas pesquisas de Wang Li
(1981), com base no Curso de Linguística Geral (SAUSSURE, 1916), demonstraram outras
propostas de investigação dos escritos e principalmente dos clássicos antigos. Este tipo de
pesquisa gerou interesse dos estudiosos chineses, como Ma Jianzhong e o próprio Wang Li,
proporcionando o desenvolvimento da gramática e da linguística chinesa, de modo geral, o
que aprimorou o instrumento de análise da sinologia da China. Tal fato comprova-se pelo uso
da filologia com características modernas, em sua obra A História da Linguística Chinesa, em
que faz uma análise crítica dos livros e autores antigos, com base na perspectiva da linguística
histórica e da filosofia da gramática ocidental, destacando as possíveis inovações no método
em sinologia chinesa.
A sinologia construída por Wang Li apresenta o que podemos denominar de
política de desenvolvimento científico chinês. Segundo o autor, com o fim da Guerra do Ópio,
os intelectuais chineses consideraram que a modernização e as reformas da nação só seriam
possíveis com o aprendizado no exterior. Isto justifica o interesse pela entrada da ciência
ocidental na China. Wang Li, ao apresentar opiniões sobre a origem do sistema fanqie, como
forma de representação sonora da língua, tendo sido influenciado pelos textos budistas, afirma
que o povo Han era perito em incorporar características de culturas externas na língua chinesa,
o que se aplica facilmente às ciências ocidentais. Julgamos Wang Li e sua obra exemplos da
realização dessa política de desenvolvimento científico chinês, pois ele absorveu as teorias da
linguística ocidental e as uniu com a forma de estudos tradicionais da China.
A partir dos contatos das missões na China até os intercâmbios acadêmicos, como
os realizados por Ma Jianzhong e Wang Li, é possível afirmar que os intelectuais chineses
sempre buscaram assimilar do Ocidente o que fosse favorável para a cultura de seu povo, –
210

fato que preocupava Leibniz quando aconselhou Bouvet, em uma de suas cartas, a apresentar
outra proposta que favorecesse a continuidade dos contatos com o Imperador, como a respeito
da história das artes chinesas, pois previa que, tão logo este obtivesse as informações de seu
interesse referentes à teoria das ciências europeias, a aproximação da China com a Europa
seria encerrada ou dificultada (FLORENTINO NETO, 2016).
Em vários momentos da história da China, é possível notar que os chineses,
frequentemente, buscavam adquirir dos outros países o que era importante para o seu povo. É
o caso do sistema gramatical do sânscrito – não necessário à época –, mas cuja representação
fonética começou a receber atenção. Da mesma forma, ocorreu na estruturação da história da
linguística chinesa e da produção de estudos em gramática moderna do chinês, atribuídas a
Wang Li, caracterizando um dos avanços científicos do país.
A intervenção da sinologia europeia dá-se de modo superficial na sinologia
chinesa, e arriscamos afirmar que nada tenha acontecido a partir dela nos estudos na China.
Ao que diz respeito à metodologia de pesquisa, por outro lado, ao utilizar as teorias da
linguística geral nos estudos da língua chinesa, os sinólogos ocidentais apresentaram aos
chineses uma forma de aperfeiçoar o instrumento da sinologia nacional, além de possibilitar a
aproximação para a compreensão das línguas faladas na Europa, o que provavelmente ajudou
nos estudos das modernizações.
Observando os momentos de transição da sinologia, fica evidente que a área não
possuía estruturas definidas e próprias, na Europa, para ser reconhecida e atuar como ciência;
além disso, o método dos ocidentais frequentemente desconsiderava o desenvolvimento
científico dos chineses, o que fez com que os próprios intelectuais da China se sentissem
inferiorizados, diante da forte propaganda de uma suposta modernidade ocidental.
Wang Li é fundamental para a história do desenvolvimento científico da China,
pois mostra que os letrados da antiguidade chinesa já produziam estudos avançados sobre a
linguística chinesa, mas que a maioria só precisava ser valorizado e divulgado no país.
Supomos que tal reconhecimento pudesse ocorrer não apenas na China, mas também na
Europa.
Wang Li (1981) demonstra compreender o conceito ocidental do “moderno”, e
nessa perspectiva, juntamente com a história da China e com o desenvolvimento da
civilização letrada, buscou comprovar que a sociedade chinesa também evoluiu aos moldes de
sua cultura e produziu importantes pesquisas. Além disso, Wang Li afirma que os ocidentais
se aproveitaram desse material em suas investigações e cometeram erros de interpretação que
211

impossibilitaram o entendimento dos estudos realizados pelos intelectuais chineses, antigos e


modernos, em linguística chinesa.
Segundo Wang Li, o sinólogo que mais influenciou a linguística chinesa foi B.
Karlgren, cujos estudos se apoiaram no material produzido pelos intelectuais da antiguidade
chinesa e que circulavam entre os chineses da dinastia Qing. Na opinião de Wang Li, a
sinologia ocidental recebeu mais influência linguística dos sinólogos de Qing, do que os
chineses, e deixa claro que a língua, embora exclusivamente escrita, era pesquisada desde a
China Antiga. Assim como ocorreu com a fonologia de influência indiana, as teorias
linguísticas ocidentais serviram unicamente para o desenvolvimento desses estudos,
acrescentando uma nova perspectiva, absorvida e introduzida na cultura do povo Han.
A obra de Wang Li confirma nosso ponto de vista de que a modernidade – que os
chineses acreditavam que salvaria a China, após a Guerra do Ópio – não vinha
necessariamente dos ocidentais, mas que o país já possuía um longo processo de
desenvolvimento e precisava ser revisto. Neste aspecto, a mudança de perspectiva apresentada
pelos ocidentais aos chineses serviu para uma autoavaliação das condições em que o país se
encontrava e da construção estrutural e histórica da ciência nacional, isto é, serviu para
aproveitar as críticas frequentemente feitas pelos sinólogos europeus e atuar em defesa dos
argumentos. Acadêmicos chineses, como Wang Li, seguiram uma política de preservação da
cultura e da educação da China, não para exibi-las, em resposta aos ocidentais, mas para
reunir e propagar os valores originalmente chineses ao seu povo, constituindo a busca de
construir a identidade nacional, principalmente após a queda do último governo imperial.

4.2.1 A sinologia da dinastia Qing na formação da ciência ocidental

Conforme constatado na história dos primeiros contatos dos ocidentais com a


China, nas tentativas de estabelecer a aproximação e possível comunicação com os letrados
chineses, os missionários eram todos especialistas em alguma ciência. Esta estratégia
destacou-se com os denominados “matemáticos do Rei”, enviados para estabelecer estudos
exclusivamente sobre as ciências chinesas, conforme determinação do Rei Luís XIV, da
França, o que ampliaria as vantagens comerciais, devido ao conhecimento das técnicas e
invenções existentes na China, naquela época. É preciso esclarecer que, nos tempos das
viagens marítimas e expedições coloniais, qualquer invenção ou proposta teórica referente à
troca de mercadorias que beneficiasse o andamento comercial e favorecesse os contatos
212

diplomáticos era muito bem aceito e valorizado, especialmente no momento em que os


objetivos eram diminuir a supremacia de Portugal e Espanha.
Segundo Wang Li (1981), a preocupação com o conhecimento produzido pelos
letrados chineses e principalmente a transmissão desse material, na educação infantil, eram
consideradas prioridades no sistema administrativo imperial chinês. Aprender a ler era
fundamental desde o Pré-Império e os antigos pesquisadores da China empenharam-se em
compreender a ciência da escrita, por meio da filologia (xiaoxue).
Na dinastia Zhou, as crianças (exclusivamente, membros do Império) iniciavam o
aprendizado a partir de oito anos de idade. A estrutura do ensino dividia-se em: 1) os cinco
rituais, 2) os seis instrumentos, 3) as cinco artilharias, 4) as cinco montarias, 5) as seis
caligrafias e 6) os nove cálculos matemáticos. A partir desta classificação do ensino antigo, é
possível entender que a administração chinesa possuía um avançado sistema de organização e
transmissão dos saberes, que por sua vez precisava, frequentemente, de avaliação e
preservação. A filologia, que equivalia à área da linguística, ocupou um papel importante
durante 2.000 anos de história da China (WANG LI, 1981).
As pesquisas sobre paleografia chinesa ocuparam-se, primeiramente, dos estudos
da escrita nos artefatos de bronze, na dinastia Song, e posteriormente, da escrita nas carapaças
de tartaruga, realizadas na dinastia Qing. Tais fatos históricos são muito distintos e distantes e
foram investigados em momentos opostos, pela própria descoberta arqueológica, em 1899. A
dinastia Qing é considerada o período de ouro da filologia chinesa, devido às pesquisas
realizadas pelos letrados chineses e ao desenvolvimento dos estudos em caligrafia, fonologia e
glossologia, apoiados também nas descobertas recentes das carapaças (WANG LI, 1981). Este
período também pode ser considerado importante para o desenvolvimento da sinologia
chinesa, por apresentar condições muito distintas das pesquisas feitas pelos antigos letrados,
além de demonstrar o auge do aprimoramento da filologia chinesa do final da era imperial,
que se manteve mesmo após a extinção de Qing.
Segundo Wang Li (1981), as pesquisas dos caracteres antigos, antes do
descobrimento das carapaças de tartaruga, eram feitas nos principais dicionários produzidos
pelos antigos letrados. Um dos mais famosos foi o Dicionário das Formas e Estudo dos
Caracteres (Shuowenjiezi), de Xu Shen (100-121 d.C.). Após as descobertas arqueológicas de
1899, os pesquisadores chineses puderam comprovar a evolução da escrita em bronze, além
de avançar ainda mais nos estudos filológicos e paleográficos. As dinastias Ming (1368-1644)
e Qing (1644-1911) são historicamente reconhecidas como períodos de maior contato de
ocidentais com a China, onde certamente manusearam os livros que circulavam entre os
213

letrados chineses, já que o conhecimento produzido por esse povo até essa época era de
grande interesse da Igreja e do reinado europeu.
O desenvolvimento científico ocidental, mesmo não tendo relação direta com a
sinologia da dinastia Qing, beneficiou-se do conhecimento acumulado até aquele momento,
na China. No final da dinastia Ming, existiam obras europeias em circulação na China,
propagadas pelos sinólogos chineses Jiang Yong e Dai Zhen, que imitavam a astronomia da
Europa Ocidental, enquanto os letrados do período Qing fugiam de uma realidade mais
científica, focados unicamente no estudo dos clássicos, o que demonstra uma relação com o
passado, não favorecendo os avanços das pesquisas. Pode-se dizer que naquele tempo ocorria
uma fusão das ideias ocidentais com as chinesas, o que Wang Li (1981) julga como
consequência do capitalismo, que motivou o desenvolvimento da linguística da dinastia Qing
e consequentemente a própria sinologia chinesa.
Mencionando a importante relação de mestre e discípulo entre os sinólogos do
final do período Ming até o período Qing, Wang Li (1981, p. 140) mostra que as pesquisas em
sinologia chinesa eram bastante avançadas e resultaram em muitas obras importantes na
China:

As pesquisas da “sucessão, de mestre para discípulo, da sinologia” da


dinastia Qing, é algo que contém muitos princípios. No campo da “filologia”
(xiaoxue) diz: “o discípulo de Jiang Yong foi Dai Zhen, o discípulo de Dai
Zhen foi Duan Yucai, Kong Guangsen e Wang Niansun, também, o critério
de Wang Yinzhi e Wang Niansun era a relação de pai e filho. Yu Yue foi
discípulo particular dos Wang, o discípulo de Yu Yue foi Zhang Binglin, o
discípulo de Zhang Binglin foi Huang Kan. Quanto a outras pessoas, mesmo
que não havia relação de aluno e mestre, também estavam na ciência
recebendo mutuamente uma profunda influência. Assim, foi possível traçar
suas origens, a vantagem é pegar objetos excelentes e dar continuidade; fazer
do aprendizado como um acúmulo de pagamentos, depois utilizá-lo, por isso,
o discípulo não precisava ser inferior ao mestre, o mestre não necessitava ser
talentoso com o discípulo. O desenvolvimento científico da dinastia Qing,
também foi um dos motivos”61.

Nota-se que, no período de contato entre a China e o Ocidente, existia um sistema


hereditário de ensino, na sinologia do país. Segundo Wang Li (1981, p. 152), “os materiais da
China acrescidos de pontos de vista da linguística ocidental, certamente, tiveram o ponto de

Original: 清代研究“汉学师承”
61
,这是很有道理的。就小学方面说:江永的弟子有戴震,戴震的弟子有
段玉裁、孔广森、王念孙,而王引之与王念孙则是父子关系。俞樾是私淑王氏父子的,俞樾的弟子有章
炳麟,章炳麟的弟子有黄侃。其他各人,即使是没有师生关系,也是在学术上递相接受了深刻 yingxiang
的。这样一脉相传,有利于把优良的东西继承下来;为学如积薪,后来居上,所以弟子不必不如师,师
不必贤于弟子。清代学术的发达,这也是原因之一 (p. 140).
214

partida geral das pesquisas de língua chinesa dos sinólogos da Europa Ocidental”62. Tomando
a sinologia ocidental como área científica, cujo início se dá nas primeiras décadas do século
XIX, conforme afirmam Humboldt e Rémusat (1821-1831), e comparando-a com as
necessidades de informação dessa área na Europa, fica claro que a sinologia de Qing
contribuiu totalmente para a formação dessa ciência no Ocidente, assim como outras
informações adquiridas pelas missões na China serviram de fundamento principal para outras
ciências europeias. Os interesses pelas ciências contemporâneas na China também tiveram
início a partir de estudos gramaticais, certamente, por proporcionarem a compreensão de
culturas ocidentais, expandindo-se também para outras redes de interesse da sociedade
chinesa.
Alguns estudiosos ocidentais, como Edkins, Volpicelli e Kcihuest, pesquisaram a
história da pronúncia da língua chinesa, tendo produzido artigos sem características
especializadas, na opinião de Wang Li. Após o ano de 1900, Schaank publicou a Fonética da
Língua Chinesa Antiga com qualidade científica; Pelliot, no período de 1911 a 1914, publicou
muitas teses e artigos; e Maspero, em 1912, produziu as Pesquisas Históricas da Pronúncia
do Vietnã. Karlgren compôs Pesquisas de Fonologia Chinesa, (1915-1926), e Maspero
publicou Dialetos de Changan, da Dinastia Tang, em 1920. Karlgren aproveitou parte desse
material no Pesquisas de Fonologia Chinesa, em 1926 (WANG LI, 1981).
Nas primeiras décadas do final do Império Qing, é possível perceber que os
sinólogos ocidentais vinham produzindo diversas obras referentes à língua chinesa, ou à
alguma característica próxima dela. Tais estudos sobre a China podem ser considerados
avançados já que Karlgren, por exemplo, realizou pesquisas de campo, no país, viajando e
colhendo exemplares para suas análises. Em relação à sinologia comparada, Karlgren superou
as pesquisas da maioria dos sinólogos ocidentais de seu tempo, tendo sido reconhecido
também pelos sinólogos chineses. Entretanto, Wang Li (1981) analisa também os aspectos
negativos das investigações do sinólogo europeu, verificando falhas.
É importante registrar que Karlgren atuou de forma exclusiva em suas pesquisas
sobre os dialetos antigos da China, selecionando materiais, como Rimas Amplas, Rimas
Correspondentes, Dicionário de Kanxi etc. Também viajou pesquisando dialetos em Shanxi,
Gansu, Henan, Taiyuan, Datong, Taigu, Xingxian, Wenshui, Fengtai, Xian, Sanshui, Lanzhou,
Pingliang, Kaifeng, Huaiqing, Guangzhou, Kejia, Shantou, Fuzhou, Shanghai, Nanjing,
Sichuan etc; além de pesquisar termos emprestados de línguas estrangeiras, como de Wu,

62
Original: “中国的材料加上西方语言学的观点,就是西欧汉学家研究汉语的总出发点” (p. 152).
215

Han, da Coreia do Norte e do Vietnã (WANG LI, 1981). Karlgren foi um dos autores citados
pelo sinólogo moderno Granet (1997), que optou por seus estudos sobre o Clássico das
Poesias, deixando de lado os estudos mais abrangentes da linguística histórica do autor.
Maspero também possui relação direta com os trabalhos de Granet, o que indica a
continuidade da influência da sinologia da dinastia Qing, contextualizada por esses sinólogos
no desenvolvimento dessa ciência no Ocidente, além de constituir a base para os estudos
científicos sobre a China, considerando que, por meio das pesquisas da língua chinesa, os
europeus adquiriram informações valiosas sobre essa civilização, transportadas por meio da
língua.
Karlgren (1923) buscou reconstruir a pronúncia antiga da China, em seu
Dicionário de Análises, tendo-se deparado com os problemas já debatidos pelos especialistas
chineses sobre a língua chinesa antiga. mas sem criar nada novo na divisão das rimas antigas.
Karlgren foi apontado por Wang Li (1981) como desprovido de proficiência em língua
chinesa, por meio de frases sem sucesso em que tenta exemplificar as estruturas gramaticais.
Um dos erros cometidos por Karlgren foi inventar frases em chinês para suas análises
gramaticais, embora tenha realizado ótimas análises e progressos na lexicografia chinesa, com
a proposta de classificação das famílias das palavras. Recebeu forte influência da linguística
chinesa, por meio da fonologia desenvolvida no país. Sua obra Pesquisas de Fonologia
Chinesa foi traduzida para o chinês, em 1940, por Zhao Yuanren, Li Fanggui e Luo Changpei,
que a revisaram e fizeram correções, com seu próprio consentimento (WANG LI, 1981).
É fundamental destacar que essa aproximação acadêmica foi decisiva para
estabelecer os padrões apreciados nas culturas chinesa e europeia, em matéria de ciência.
Além disso, neste contato dá-se uma relação direta com a linguística e a sinologia moderna, já
que Zhao Yuanren foi orientador de Wang Li, na China. Assim, falar da influência da
sinologia de Qing na ciência ocidental também é referir-se ao desenvolvimento desta área na
China.
Segundo Wang Li (1981), a maioria dos estudiosos chineses adotou o método
proposto por Karlgren e, a partir de sua influência, puderam avançar nas pesquisas em
linguística chinesa. Um dos pontos negativos da influência de Karlgren foi seu ponto de vista
metafísico e pragmático. Ele negou os benefícios que possuíam os materiais chineses,
comprometendo a influência dada pelos estudiosos chineses neste trabalho. Ainda que tenham
manifestado o sentimento de desvalorização das influências europeias na cultura chinesa,
como comprova a obra de Ma Jianzhong, por exemplo, os intelectuais chineses parecem
selecionar de forma criteriosa as produções que se aproximam das bases prestigiadas pela
216

cultura chinesa e que proporcionam algum tipo de benefício social, como as contribuições de
Karlgren. Parece que no âmbito acadêmico chinês existia a necessidade de inovações, mas
que não prejudicassem o desenvolvimento da ciência local, – aspecto que atraiu a atenção dos
estudiosos chineses em relação ao material produzido por Karlgren.
Em contrapartida, a sinologia ocidental frequentemente desconsiderava a evolução
científica produzida pelos chineses e focava no material antigo existente, sempre aplicando
análises baseadas em suas perspectivas sobre ciência. Karlgren agiu da mesma forma que
outros estudiosos de seu tempo, mas seu diferencial foi respeitar e se apoiar no material
produzido pelos intelectuais chineses, até o momento, o que o colocou em evidência no meio
acadêmico chinês. No entanto, não quer dizer que ele tenha compreendido e aceitado os
benefícios desse material para o andamento das pesquisas. Com experiência em linguística
histórica, Karlgren tinha todas as ferramentas necessárias para analisar os materiais existentes
na China e organizar adequadamente o que ele pôde reunir, além de compreender a função da
filologia, indispensável para perceber as bases da sinologia chinesa.
Não apenas a forma de tratamento do material chinês como também o
conhecimento da linguística histórica, introduzida por Karlgren na China, chamou a atenção
dos estudiosos chineses. Supomos que o excesso de confiança em seu conhecimento impediu
Karlgren de abrir-se ao intercâmbio intelectual na China, o que poderia proporcionar o
completo conhecimento dos métodos empregados pelos sinólogos chineses, não se limitando
a encontrar fenômenos semelhantes aos que ele conhecia em sua área e próprios das línguas
europeias.
É possível afirmar que a sinologia da dinastia Qing se encontrava bastante
evoluída, pelo material reunido, pela fonologia introduzida a partir do budismo e pela
descoberta, no período, das carapaças de tartaruga, que ampliaram os estudos teóricos e
práticos realizados com a filologia. Além disso, foi no final da dinastia Qing que a gramática
chinesa se desenvolveu (WANG LI, 1981). Os estudiosos ocidentais, em contato com o
Império Qing, encontraram tanto o material produzido pelos antigos chineses como a
produção científica em completa atividade e discussão, o que consideramos propício para tais
pesquisadores, e totalmente contrário ao que encontravam na Grécia ou em Roma, por
exemplo, em que a maior parte do material se encontrava em ruínas e bastante fragmentada.
Tais estudos eram muito iniciais, mas mesmo nessas condições a linguística ocidental do
século XVIII ao XX se encontrava bastante desenvolvida. A situação mais favorável aos
cientistas ocidentais em contato com a sinologia de Qing é a existência, à época, de
especialistas chineses, conhecedores da filologia chinesa e que conservavam uma tradição de
217

pesquisas, em completa atuação, como no caso de Karlgren que presenciou a tradução de sua
obra para o chinês, tendo participado das revisões e apontado falhas.
Após o contato com os estudos de Karlgren, os intelectuais chineses produziram
vários livros e artigos sob influência do sinólogo ocidental, e ampliaram os estudos indo além
do próprio autor. Segundo Wang Li (1981), a maioria das opiniões desenvolvidas pelos
chineses não foi aceita por Karlgren, o que comprova sua convicção no próprio conhecimento,
e mostra sua recusa às possibilidades culturais e científicas.
Wang Li (1981) apresenta um panorama histórico do desenvolvimento dos
estudos da língua chinesa na China, por meio da estruturação de sua obra e da construção da
sinologia chinesa. A sinologia chinesa moderna reconhece totalmente a história da linguística
nacional e o período de influência do Ocidente nesse processo, o que é considerado um
benefício à sua ciência.
No caso da ciência ocidental, é evidente que Karlgren, dentre outros
pesquisadores, aproveitou não apenas o material, mas também as teorias fundamentalmente
chinesas no avanço de suas pesquisas. Entretanto, sinólogos como Karlgren, Maspero e
Simon parecem não ter admitido que seus trabalhos tenham sido beneficiados pelo contato
com a sinologia de Qing. Limitaram-se a dar ênfase ao material adquirido como objetos de
estudo que se pode recolher em qualquer ambiente, sem mencionar ou dar atenção ao
conhecimento científico existente na China e impregnado no referido material, e sem
considerar a história social e os aspectos únicos de sua escrita, que careciam de propostas
conjuntas e inovadoras para o seu entendimento.
A história da linguística chinesa pode ser dividida em quatro períodos, compostos
por duas fases: a primeira refere-se à cultura do feudalismo, que vai da dinastia Han até o
final de Qing; a segunda, à cultura do capitalismo, que vai de 1899 a 1949. Os quatro períodos
são: 1) o período de estudo dos clássicos confucianos, 2) o período do budismo e do
idealismo, em que além dos clássicos, o foco era a fonologia, 3) o período de retorno ao
estudo dos clássicos confucianos, que haviam se distanciado da sinologia, apoiados no
pensamento dos letrados de Song, e 4) o período do avanço dos estudos ocidentais no oriente,
em que a linguística da burguesia era a principal corrente, considerada como o período de
auge da linguística chinesa (WANG LI, 1981).
Em relação à sinologia ocidental, é possível notar, pela análise da obra Lettres
Édifiantes et Curieuses sur La Langue Chinoise, referente às discussões entre Humboldt e
Abel-Rémusat (1821-1831), que Rousseau e Thouard (1999) apresentam notas referentes aos
principais sinólogos ocidentais, como Karlgren, Maspero, Simon, Granet etc, revelando suas
218

opiniões em relação à China. Podemos afirmar que, mesmo interpretadas pelo método
europeu, as influências da sinologia de Qing foram trazidas para a ciência ocidental.
Considerando os sinólogos, também citados por Wang Li (1981), apresentamos a nota 89 de
Rousseau e Thouard (1999, p. 293, grifos dos autores), referente à questão sobre as partes do
discurso chinês:

Marcel Granet <Quelques particularités de la langue et de la pensée chinoise>


[...], soutenait qu’il n’y a en chinois ancien <pour ainsi dire aucune
differenciation de parties du discours> [...]. C’est aussi la thèse de H.
Maspero, tant pour langue écrite, dans [...], que pour la langue parlée [...]. Il
développe surtout son point de vue dans un compte rendu de Walter Simon
[...]. Maspero y considère que <le chinois n’a pas de classes de mots et les
différenciations nécessaires à l’expression de la pensée se font par des
procédés qui n’ont rien à faire avec les classes de mots> [...]. Il rappelle
qu’Abel-Rémusat contestait qu’on puísse employer en chinois tout nom
comme verbe et tout verbe comme nom [...], <le chinois met un complément
direct ou un affixe d’aspect derrière n’importe quel nom et en fait par cela
seul un verbe> [...]. Il conclut ainsi: <le trait que je trouve le plus frappant
dans l’interprétation de la grammaire chinoise pour les Occidentaux, c’est
que sous des formules d’apparence très différente, ils ont toujours essayé
d’exposer cette divergence fondamentale entre nos langues et celle des
Chinois, que, ce que nous exprimons par les classes de mots s’exprime en
chinois par des procedes de relation.>; Gabelentz ou Karlgren <conservent
en apparence les notions de classes de mots et de catégories grammaticales
en les dépouillant de tout contenu reel dans l’application qu’ils en font au
chinois> [...].
A l’opposé, Walter Simon, dans l’article <Has the Chinese Parts of Speech>,
qu’attaquait précisément Maspero, affirme l’existence de <word categories>
en chinois. Il dénonce comme une erreur – d’ailleurs justement relevée par
Abel-Rémusat dans ses notes – l’opinion de Humboldt selon qui <a piece of
Chinese consisted of a series of short and simple sentences for the
understanding of which a differentiation of the words by grammatical forms
would not be necessary> [...]. Simon lui oppose la thèse de G. von der
Gabelentz, pour qui <the existence of grammatical categories is proved by
the fact that Chinese words differ in their syntactical behaviour> [...], mais
en considérant que cette thèse implique aussi l’assertion <that a
differentiation of word-categories need not necessarily be effected by sound>,
il la relie à la position de Humboldt, <who, when speaking of the
characteristics of grammatical categories, expressly mentions, besides
inherent marks [des marques inhérentes aux mots mêmes], also the order of
words and what he calls la liaison de la phrase. Although Humboldt in this
passage makes no difference between the parts of speech and other
grammatical forms, what he calls liaison de la phrase seems to be near what
Gabelentz calls syntactical behaviour. We might even go so far as to declare
in the spirit of Humboldt that such abstract characterization of word-
categories manifested by nothing else but the function of the words in a
sentence could even be considered as superior to the somewhat crude
characterization by sound;> [...].
La position radical (et très humboldtienne), de Maspero sera également
contestée par Bernhard Karlgren dans un court article <The parts of Speech
and the Chinese language> [...]. Karlgren la declare voulue <pour épater le
219

bourgeois> [...]. Pour lui au contraire <the speakers of Archaic Chinese


(Classical Chinese)><had just as clear a perception of the distinction noun:
verb as the modern Chinese (and the Europeans) and frequently expressed it
grammatically either by extra formantia or by sound changes in the word
stem> [...]. Il est donc des cas parfaitement clairs de parallélisme entre indo-
européen et chinois, parmi lesquels <the fondamental distinction between the
parts of speech noun: verb>, et il est alors légitime d’appliquer [...].

É possível constatar que existia um debate intenso entre os sinólogos ocidentais,


que chegou inclusive à sinologia moderna de Granet. A posição conquistada na China por
Karlgren demonstra que o conhecimento adquirido em contato com a sinologia de Qing
manteve-se presente nas discussões científicas ocidentais – influência de certa forma positiva,
mas que não foi dado o devido valor aos autores chineses que dedicaram atenção ao material
reunido até o final da Dinastia Qing. A teoria da linguagem de Xunzi, na China Antiga, não
teve descendente; além disso, nem mesmo a gramática do sânscrito foi capaz de servir de
estímulo aos letrados chineses para a elaboração desse tipo de trabalho; estudos gramaticais
da língua chinesa só parecem ter ocorrido com a obra de Ma Jianzhong, com base na
gramática ocidental (WANG LI, 1981).
O momento de contato da sinologia de Qing com a sinologia ocidental foi
bastante propício ao desenvolvimento científico, de modo geral, pois tanto a China quanto a
Europa possuíam interesses comuns, e vinham pesquisando o país de maneira distinta. No
caso do trabalho de Karlgren, especificamente, o foco foi a pronúncia antiga, que também
estava em destaque entre os intelectuais chineses da época. Segundo Wang Li (1981), os
métodos de subjetivismo e pragmatismo de Karlgren foram essenciais para o desenvolvimento
da linguística chinesa, por auxiliarem no foco das pesquisas dos chineses. A única referência
dada por Karlgren (1949, p. 33 apud WANG LI, 1981, p. 152) ao aproveitamento do material
produzido pelos estudiosos chineses foi o relato sobre o processo de suas pesquisas:

[...] por isso, eu ordenei a mim mesmo que seguisse estes trabalhos iniciais
dos estudiosos ilustres (segundo os letrados da dinastia Qing), além de pegar
os métodos de linguística ocidentais modernos e aplicar nos materiais
coletados por eles, conforme mais reconstruções de um adequado sistema de
pronúncia da língua chinesa do período antigo, realizando eficientemente
pesquisas das bases necessárias aos dialetos63.

Original: “因此,我责成我自己追随着这些显赫的学者们(按:指清儒)的开路工作,而把现代西方
63

语言学的方法应用到他们所搜集的材料上去,一便重建一个相当古的阶段的汉语语音系统,作为有效地
研究方言的必要基础”(p. 152).
220

Ainda de acordo com Wang Li (1981), o ponto forte das pesquisas de Karlgren foi
à fonologia chinesa antiga, mesmo tendo precisado de correções dos intelectuais da China. A
preocupação dos sinólogos ocidentais em descobrir algo sobre a gramática chinesa foi
importante, mas, como afirma Wang Li (1981), entre os próprios chineses não havia um
modelo de comparação e o conhecimento da gramática chinesa de Karlgren era muito inferior
para servir de base. Neste aspecto, a obra de Ma Jianzhong (1898) foi autêntica, mesmo
tendo-se apoiado no inglês e na comparação com a gramática do latim. O fato é que nenhum
sinólogo ocidental buscou estudar o caminho traçado por Ma Jianzhong na elaboração deste
livro, o que poderia auxiliar no desenvolvimento das pesquisas no Ocidente e contribuir com
os estudos na China, como fez Wang Li.

4.3 A concepção chinesa de sinologia em Wang Li

Wang Li (1981) concebe a sinologia chinesa como uma área científica de estudo
da ideologia política ou filosófica dos chineses. Em relação ao que o autor apresenta sobre os
aspectos políticos dos autores e das obras, na sinologia chinesa, é possível destacar diálogos
extraídos de obras antigas, como no caso da Yanyuan – Os Analetos, que apresenta a resposta
de Confúcio (480-350 a.C.) à pergunta de Ji Kangzi, a respeito de política: “A política é a
retidão, se alguém que é líder for correto, quem se atreve a não ser correto?”64 Nesta conversa,
a política para Confúcio parece tratar de uma conduta normativa, isto é, uma regra segundo a
qual aquele que estiver no comando deve ser respeitado e todos os outros devem cumprir suas
determinações. As regras políticas também estão nas palavras usadas para determiná-las,
como na narrativa de Mêncio sobre os termos referentes às taxas territoriais, em que é
indicada uma palavra, de uso mais geral, que une o entendimento entre os territórios. Nota-se,
assim, que a política serve para uniformizar a língua. Um exemplo de conduta política na
explicação da forma dos caracteres pode ser observado na palavra “marcial” (wu), composta
por “parar” (zhi) e “armas” (ge), significando que “somente cessando a matança é que se
merece ser chamado “militar” (wu)” (WANG LI, 1981, p 2) 65 . Evidencia-se uma política
educacional, ou uma regra de conduta civilizatória, como citada por Granet (1997), mas é
preciso ressaltar que a regra era aplicada ao ambiente do Império, e não à população comum.
Para esclarecer aspectos próprios de trabalhos em filologia antiga, Wang Li (1981)
dá exemplos comuns da sinologia chinesa, apresentando fatos com objetivos políticos ou
64
Original: “政就是正,你带头端正自己,谁敢不端正呢?(p. 1).
65
Original: “只有停止干戈才够得上称为‘武’(p. 2).
221

filosóficos, que poderiam ter contribuído no desenvolvimento desse instrumento e mesmo da


linguística. O sinólogo toma esses exemplos como princípios de interpretações da filologia,
mas consciente de que os autores não eram filólogos, o que não descarta a utilidade desse
material para a filologia. O exemplo de Xun Linfu é importante para indicar a concepção de
sinologia chinesa de Wang Li. No argumento, esclarecido no Clássico das Poesias (Shijing),
ele diz que os “funcionários públicos que atuam no mesmo cargo são chamados de liao”
(XUN LINFU, ?-593 a.C apud WANG LI, 1981, p. 10). Mêncio (340-250 a.C) realiza uma
manobra muito interessante na obra Liang Hui Wang para evitar a possível incompreensão do
Duque de Jing, pelo uso do termo chujun, que significa “obedecer ao soberano”, na
composição de uma música encomendada pelo líder, o que poderia gerar severa punição se
resultasse em desconforto, pois chu também significa “animal doméstico” (WANG LI, 1981).
Notamos que, os dois exemplos apresentam uma realidade política, comum na
China Antiga, que se refere ao controle e valor da língua escrita pelo Império. Uma vez que as
punições pudessem levar inclusive à morte, o uso da língua oral e escrita era completamente
controlado, exclusivamente no meio governamental, o que exigia maior desenvoltura no uso.
Wang Li (1981) atesta que esse sistema deixou de existir, com o passar do tempo, gerando
certa liberdade, por um lado, mas também a dificuldade da leitura de textos antigos,
prejudicando a política educacional, por outro.
Outro exemplo interessante é o do filósofo Xunzi, que elaborou teorias
linguísticas na antiguidade chinesa. Embora suas teorias sejam muito atuais no Ocidente, a
partir de pressupostos desenvolvidos por linguistas ocidentais e, considerando a época de
Xunzi, nenhum sinólogo europeu mencionou o autor e suas obras, na questão da língua
chinesa (WANG LI, 1981). Os livros de alfabetização infantil da China Antiga indicam o
empenho em transmitir regras e comportamento ético. A escrita e seu conteúdo eram
prioridade da política de educação dos antigos, restrita ao Império. A permanência do ensino
nesse meio fortalece as bases administrativas do país e controla o povo por meio da imposição
de regras. Neste caso, a educação imperial limitou a população comum, cuja única opção era
seguir normas.
A sinologia construída por Wang Li concentra-se prioritariamente no meio
educacional, devido ao tema de sua pesquisa, mas poderia ter sido direcionada a outros
âmbitos, que tivessem a política ou a filosofia como fundamentos. Em nossa perspectiva,
tomar estes dois temas como foco delimita o objeto da sinologia chinesa, além de abrir
possibilidades para várias propostas de pesquisa sobre a China.
222

Observando os conceitos de política e filosofia, na obra de Wang Li (1981), nota-


se a semelhança à compreensão ocidental. Os tópicos se complementam, se tomarmos a
política como regra ou organização nacional e a filosofia como reflexão sobre assuntos
diversos com o propósito de aprimorar o conhecimento, o que pode servir para a elaboração
de teorias que se tornam regras administrativas, conforme seleção rigorosa aplicada pelo
governo. O filósofo Confúcio, por exemplo, refletiu sobre as falhas administrativas do
Império, que tinham relação com a conduta moral e ética, e constatou a necessidade do
desenvolvimento da educação, para resgatar os princípios fundamentais dos antigos letrados e
recuperar a ordem cívica. De modo geral, o país já era populoso e formado a partir de guerras
e da união de várias etnias, o que requeria um governo forte e de conduta exemplar, além de a
elaboração de leis, para as quais os intelectuais eram imprescindíveis, o que resultou no rigor
das provas ministeriais.
O conservadorismo dos princípios antigos fez com que o pensamento dos ilustres
letrados fosse valorizado e transmitido, mas também prejudicou as discussões sobre o
progresso já existente no país e suas necessidades de influências ocidentais ou não. Além
disso, nem todo material produzido pelos antigos estava correto e precisava de revisões,
necessitando de especialistas em filologia na China. Mas, não é pelo fato de as leis antigas
serem severas que não existiam falsificações ou mesmo subornos (WANG LI, 1981).
Conforme afirma Wang Li (1981), na introdução d’A História da Linguística
Chinesa, o propósito da sinologia chinesa é apresentar as escolas de pensamento que existiam
na China antiga, relacionadas à linguística, seus autores e obras, e discutir as influências
recebidas e transmitidas às novas gerações, até a atualidade.
A sinologia, na concepção de Wang Li, tem como foco as ideais de
desenvolvimento da China, a partir de suas bases culturais, o que não exclui totalmente a
influência europeia recebida, já que esta serviu de modelo para a busca de algo semelhante ou
diferente da modernização ocidental na história da China. Para ele, falar em sinologia chinesa
é necessariamente referir-se às escolas de pensamento, de modo geral, e no campo da política,
é tratar das questões relacionadas com a administração do país. O autor cita algumas das
escolas da China Antiga, como a Escola de Lógica ou Escola de Nomeações, do Pré-império,
e a Escola de Discussões, de Mozi; além de comentar que, no período dos Reinos
Combatentes, cem escolas de pensamento ficaram em contenda, o que o apontou como o
período de ouro da filosofia chinesa. É pertinente afirmar que as escolas de pensamento não
só produziam os saberes como eram responsáveis por sua conservação e transmissão, o que
certamente une a filosofia à política educacional, considerada uma relação comum e
223

importante para a sinologia chinesa. Havia também, no Pré-Império, as Escolas dos Clássicos,
que tratavam desse material, pesquisando os significados antigos. As Escolas de Shengxun
preocupavam-se basicamente com o significado dos “dez troncos celestes”, portanto tinham
relação direta com a astronomia chinesa. O pensamento político era propagado pela Escola
Confucionista (WANG LI, 1981).
Além das escolas de pensamento, o foco da sinologia chinesa são os filósofos e
autores de livros que relatam tanto as importantes teorias elaboradas por eles quanto as regras
de conduta aplicadas na sociedade chinesa, que para o interesse de Wang Li estão
centralizadas nos intelectuais da antiguidade até seu período acadêmico, motivo da inclusão
do próprio autor como contribuinte do desenvolvimento da linguística e também da sinologia
chinesa. A estruturação da história, por Wang Li (1981), relacionando os filósofos e autores
aos períodos do feudalismo e do capitalismo, demonstra a influência ocidental recebida pelo
sinólogo chinês. Ele afirma que, antes da libertação da China, uma minoria adepta ao
marxismo não seguia o modelo da linguística ocidental, e que, além disso, quando a China
aceitou o capitalismo não existiam as ideias marxistas no país. O principal responsável por
introduzir esse tipo de pensamento na China foi o sinólogo Karlgren (WANG LI, 1981).
Aplicando o método da sinologia chinesa à obra de Wang Li (1981), é possível
afirmar que o pensamento político do sinólogo é favorável ao partido comunista chinês, por
indicar as melhorias conquistadas pela linguística chinesa após a libertação, sem precedentes,
em sua opinião. Ele também cita o marxismo-leninismo e Mao Zedong como pensamentos
guia para as pesquisas da época, além de tomá-los como base de suas perspectivas futuras, em
relação ao desenvolvimento científico chinês. A linguística da nova geração, segundo Wang
Li (1981), tem como objetivo as pesquisas científicas para a construção do socialismo
nacional, e dentre as prioridades estão a ampliação dos estudos da gramática da língua chinesa,
a produção de uma obra mais completa da história da língua chinesa, e o aprimoramento das
pesquisas dos dialetos e da linguística pragmática; além de outras expectativas propostas pelo
sinólogo, cuja maior seria o reconhecimento mundial da linguística chinesa, devido aos
avanços conquistados nas pesquisas pelos estudiosos chineses.
Ainda que Wang Li não tenha declarado, sua pesquisa indica um pensamento
focado na educação do país, o que seria próprio do confucionismo, em nossa busca de definir
a linha de pensamento do sinólogo dentro da tradição chinesa. Além disso, o foco nos estudos
dos clássicos Han refere-se ao estudo especializado da sinologia chinesa nas obras de
Confúcio. Supomos que apenas a conduta política do governo, em processo de formação da
República Popular da China, não foi o suficiente para inspirar o caminho seguido por Wang
224

Li em suas pesquisas, especialmente, pela valorização de aspectos antigos da China, aplicando


um método moderno e não totalmente ocidental. O que fez foi buscar na antiguidade chinesa
as características de desenvolvimento das ciências próprias de seu país. Assim, não introduziu
ou copiou a modernização ocidental, como era desejo dos intelectuais de seu tempo, mas fez
um levantamento do que era digno de valor para a sua cultura e apontou as influências
ocidentais que contribuíram com os interesses da sociedade acadêmica e com a política
educacional.
Em uma análise comparativa, é possível destacar as diferenças entre a concepção
de sinologia chinesa e ocidental, não somente pelo uso da filologia, também utilizada pelos
sinólogos ocidentais no início dos trabalhos, com foco no conhecimento europeu de mundo,
mas pelo método empregado. Considerando o pensamento chinês como foco analítico da
maioria dos sinólogos ocidentais modernos, este seria um ponto importante de aproximação
entre os interesses da sinologia chinesa. O fato é que o método da sinologia chinesa, na
concepção de Wang Li (1981), seleciona exclusivamente os aspectos pertinentes à filosofia e
(ou) à política das produções textuais dos autores chineses, mantendo um recorte possível de
estabelecer interpretações, dentro de uma perspectiva que é delimitada pelo assunto abordado,
como no caso da história da linguística chinesa.
No caso da sinologia ocidental, as perspectivas são variadas pela diversidade de
campos de interesse e de suas próprias concepções científicas. Assim, desconsidera as bases
científicas desenvolvidas na China e mesmo a história do desenvolvimento social dos
chineses, além de negligenciar as particularidades da língua chinesa, partindo de análises
próprias de línguas conhecidas pelos linguistas ocidentais.
Como se nota, a sinologia construída por Wang Li propõe um estudo sobre o
desenvolvimento científico da China, considerando suas bases históricas e sociais, além de
buscar estabelecer essas pesquisas na perspectiva chinesa, apresentando as características
peculiares dos estudos realizados pelos intelectuais do país, sem desmerecer algum
envolvimento ou influência vinda dos contatos com o Ocidente. Wang Li não toma a
sinologia ocidental como área científica com materiais pertinentes para serem considerados na
compreensão dos padrões da civilização chinesa, mas seleciona os estudiosos ocidentais que
se equiparam ou se aproximam da concepção chinesa de sinologia, e afirma que são raros os
que contribuíram com o desenvolvimento da linguística chinesa.
Mesmo os poucos sinólogos citados por Wang Li (1981) foram avaliados por suas
produções, conforme a sinologia chinesa, sendo destacadas as falhas cometidas por eles na
análise da língua chinesa. Conforme apresentado nas discussões entre Humboldt e Abel-
225

Rémusat, a principal questão que envolveu a origem da sinologia ocidental foi justamente de
ordem filosófica e gramatical (normas), ou seja, assuntos diretamente relacionados com a
sinologia chinesa construída por Wang Li e que apontam fatores culturais e históricos da
China não colocados no debate ocidental, pelo simples fato de o método de abordagem do
objeto de estudos ter sido totalmente a partir da concepção científica europeia.

4.3.1 Os sinólogos ocidentais em Wang Li e suas relações com a sinologia chinesa

N’A História da Linguística Chinesa, Wang Li (1981) produz um capítulo


específico sobre os estudos ocidentais e a influência, principalmente dos sinólogos da Europa
Ocidental, na China.
O interesse pelo conhecimento científico e técnico da China avançou cada vez
mais, desde o período das missões na Ásia. Os sinólogos ocidentais atuaram em várias áreas
de conhecimento a respeito da China, produzindo obras de diversas naturezas, em seus países
de origem, algumas servindo de base para o desenvolvimento mundial desta área. Os
sinólogos europeus, que realizaram suas pesquisas aproximando-se de algum aspecto da
sinologia chinesa, foram poucos, merecendo maior destaque suas linhas de investigação e
método. Selecionando os ocidentais citados por Wang Li (1981), para uma análise mais
detalhada, incluem-se: Karl Marx, Lenin, Bernhard Karlgren, Georg von der Gabelentz, Henri
Maspero, Walter Simon, Otto Jespersen, Joseph Vendryes, Leonard Bloomfield, Joseph
Edkins, Zenone Volpicelli, Kcihuest, Schaank e Paul Pelliot.
Analisando a posição de Marx na sinologia chinesa de Wang Li, é possível
afirmar que sua relação é de ordem política e filosófica, assim como o papel de Lenin, que
também não deixa de ser importante, pois participa do marxismo-leninismo referido pelo
autor. O sinólogo chinês cita O Capital, de Marx (1953, p. 107 apud WANG LI, 1981, p. 44),
que diz que “qualquer designação de coisas com a natureza da coisa não terá qualquer ponto
em comum” para explicar a crítica ao sistema Shengxun, o que indica a concordância de
Wang Li com o pensamento marxista. Outro exemplo que aproxima Marx da sinologia
chinesa é a afirmação de Wang Li (1981, p. 142) de que “com exceção de uma minoria do
Marxismo, a linguística chinesa, sempre, foi de acordo com os objetivos dos estudos da
linguística ocidental”. Wang Li parece fazer parte dessa minoria, devido à rejeição dos
estudos ocidentais e à ênfase nas pesquisas puramente chinesas. Neste caso, o marxismo-
leninismo influenciou seu método, sendo esse o motivo de ele incluí-lo como pensamento
226

guia para a compreensão do desenvolvimento das línguas, juntamente com Mao Zedong. A
relação de Marx e Lenin com a sinologia chinesa construída por Wang Li está em sua
fundamentação metodológica, constituindo também a linha de pensamento moderno para a
construção do socialismo chinês.
Quanto a Karlgren, já ficou bastante evidente que sua participação na sinologia
chinesa foi de influenciador do desenvolvimento da linguística chinesa, principalmente no
âmbito da fonologia, tendo esta relação direta com o instrumento de análise da sinologia.
Wang Li dedicou uma seção especificamente aos trabalhos desse sinólogo, apresentando
também seus pontos fracos, que poderiam desfavorecer suas contribuições, como o fato de
não aceitar a maioria das opiniões dos pesquisadores chineses. Na opinião de Wang Li, a
China recebeu tanto os princípios como o método do sinólogo europeu, submetendo seus
trabalhos a correções, pelos estudiosos chineses. Além do marxismo, Karlgren introduziu na
China o método do subjetivismo e do pragmatismo, fundamental para a sinologia moderna de
Wang Li. A linguística histórica também foi apresentada aos chineses por Karlgren, e esse
sinólogo foi referência em Granet (1997), destacando-se, em nossa opinião, como
intermediador entre a sinologia chinesa e a ocidental modernas.
Wang Li (1981) refere-se ao sinólogo alemão Gabelentz apenas para contestar que
Ma Jianzhong tenha copiado seu modelo de gramática da língua chinesa, uma vez que se
baseou completamente na gramática da língua inglesa. Na opinião de Wang Li, o sistema de
Ma Jianzhong era muito diferente e merecia ser melhor analisado. Esta questão reforça o
desejo de Wang Li de distanciar-se das comparações, exclusivamente com os modelos
ocidentais, e voltar-se às propostas originais produzidas na China, indicando uma escolha não
apenas metodológica, mas política. Certamente, Wang Li, enquanto professor universitário na
China que passou pelo final da dinastia Qing e pelo período da República Popular da China,
buscava seguir a orientação do governo para o socialismo em processo de formação.
Maspero foi outro sinólogo fundamental nos trabalhos da sinologia moderna de
Granet (1997), e também foi referência na obra de Wang Li (1981). Na sinologia chinesa,
recebeu destaque secundário em relação a Karlgren, por suas obras focadas nas pronúncias
antigas das línguas do Vietnã e da dinastia Tang. Wang Li deu atenção às hipóteses
levantadas por pesquisadores, como Maspero, sobre o sistema de pronúncia apresentado no
dicionário antigo, conhecido como Rimas Correspondentes (WANG LI, 1981). É importante
registrar que a produção acadêmica desses sinólogos ocidentais atraiu o interesse dos
sinólogos chineses, demonstrando um tipo de intercâmbio de conhecimento entre a Europa e a
China.
227

Wang Li atesta a existência de um debate frequente entre Karlgren e Maspero, que


favoreceu a sinologia, de modo geral, e comenta que Maspero descobriu a existência de certas
pronúncias idênticas, no Rimas Correspondentes, que em sua opinião mereciam crédito.
Karlgren, por sua vez, argumentou que essa questão tinha sido contestada por ele, indicando
uma característica inflexível de sua parte nos debates científicos da época, e confirmando sua
desconsideração em relação à opinião dos sinólogos chineses, o que o caracterizou como
improdutivo para um intercâmbio. Wang Li (1981) afirma ter consultado a Linguística
Histórica do Vietnã, de Maspero (1912), para produzir o artigo Pesquisas das Línguas
Chinesa e Vietnamita (1948), o que confirma a importância desse sinólogo para a sinologia
chinesa, além de alguns aspectos de suas pesquisas estarem de acordo com a opinião dos
chineses.
Em relação ao sinólogo Simon, Wang Li afirma que uma de suas principais obras
foi Sobre a Reconstrução do Som das Consoantes Finais da Língua Chinesa Antiga (1928).
Pelo tema do material, suas pesquisas relacionavam-se com língua chinesa antiga que, por sua
vez, tem relação com a sinologia chinesa. Além disso, Simon participou diretamente dos
debates de Karlgren, que se aproveitou das propostas surgidas e escreveu o artigo Algumas
Questões sobre a Língua Chinesa Antiga (1928). Segundo Wang Li, na China Antiga não
existiam estudiosos que se preocupavam com as carências peculiares da língua chinesa antiga,
como fizeram Karlgren e Simon, comprovando a relação deles com a sinologia chinesa. Além
disso, é provável que na época de Wang Li a fonologia da língua chinesa tenha passado a ser
ensinada na China por esses sinólogos.
O linguista estruturalista dinamarquês Jespersen, especialista na gramática do
inglês, possui relação com a sinologia chinesa, devido à influência na gramática da língua
chinesa moderna de Wang Li, por sua obra Filosofia da Gramática (1924), além de sua teoria
das “três qualidades da fala”66. Na obra do sinólogo e linguista chinês há um comentário sobre
as falhas existentes nessa teoria, mas sem apresentar detalhes, apenas informando que ele uniu
essa teoria com a “fala centralizada”67, de Bloomfield.

66
Jespersen foi crítico da gramática tradicional e elaborou uma teoria apoiada na função da linguagem. Para ele,
os fenômenos linguísticos podem ser investigados a partir das relações de forma, função e noção. Não importa a
classificação (substantivo, adjetivo, advérbio etc), o que interessa é determinar o valor da posição e o poder
relativo que cada palavra desempenha na fala (ALVARADO, Emiliano C. M. F., 1955-56, p. 99 e 113-114).
67
“Para os behavioristas, dentre os quais se destacava o linguista norte-americano Leonard Bloomfield, a
linguagem humana era interpretada como um condicionamento social, uma resposta que o organismo humano
produzia mediante os estímulos que recebia da interação social. Essa resposta, a partir da repetição constante e
mecânica, seria convertida em hábitos, que caracterizariam o comportamento linguístico de um falante”
(MARTELOTTA, Mário Eduardo, 2011, p. 128).
228

Wang Li criou um contraste entre as duas teorias, que fortaleceu seu método de
desenvolvimento da gramática da língua chinesa. Um fato comum entre ambos é a produção
de obras que também tratam da gramática da língua chinesa: Bloomfield (1935) escreveu
Language, em que faz um estudo comparado das línguas do mundo, notadamente, com base
em Jespersen, Karlgren, dentre outros; e Jespersen (1922) produziu a obra Language: its
nature development and origin, em que faz referência a Bloomfield e a Karlgren. Tais
produções sugerem a existência de um forte diálogo entre tais estudiosos, por meio do qual
Wang Li possivelmente tenha percebido compatibilidades com o processo histórico de estudo
da língua chinesa em seu país, adotando as bases desses sinólogos e linguistas para a
estruturação e a produção da história da linguística chinesa.
Conforme ele mesmo diz, na China não havia um modelo de estudo da gramática
que servisse de guia, motivo pelo qual valorizou a obra de Ma Jianzhong, buscando destacar
os aspectos originais da visão do autor. Supomos que, uma vez distintas, porém
complementares, as produções da linguística chinesa e da gramática chinesa eram prioridades
da sinologia chinesa, no tempo de Wang Li. Em termos de política, seria defender e deter uma
língua nacional, estabelecendo uma normatização do sistema para o ensino na China e no
mundo.
Wang Li não se baseou nos padrões existentes, difundidos em sua época mesmo
na China, ou seja, modelos que seguiam e até imitavam o sistema gramatical do inglês. Ele
reuniu as principais teorias de linguística, relacionadas à língua chinesa, e aplicou em seus
estudos, corrigindo as falhas cometidas pelos sinólogos ocidentais que se distanciaram da
concepção chinesa. A relação dos sinólogos ocidentais com a sinologia chinesa destaca-se
mais pelo trabalho de seleção realizado por Wang Li, do que pelo contato desses estudiosos
com a China, ou por suas intervenções nessa área, no país.
Assim como ocorreu com o interesse pela representação sonora dos caracteres
chineses, devido ao contato com os textos budistas, e com o interesse pelas rimas das poesias
da dinastia Tang, que favoreciam a fonologia chinesa, a gramática chinesa também se
desenvolveu pela necessidade de descobrir, na China, os avanços ocorridos em sua história e
que equivalessem ao que a cultura chinesa classificou como moderno. Tal fato não implica a
recusa aos moldes ocidentais, mas a compreensão de suas fundamentações teóricas e a busca
de semelhanças e diferenças de opiniões, na China, por meio de um estudo comparado que
determine um modelo original chinês.
O estudo das teorias ocidentais pelos intelectuais chineses seguiu o método
aplicado pela sinologia chinesa, com o apoio da filologia, selecionando as bases filosóficas e
229

(ou) políticas que melhor se adequassem aos costumes do povo chinês, inicialmente, no
governo e no ambiente acadêmico do país.
Na China, existiram alguns ocidentais preocupados com os estudos sobre a
história da pronúncia da língua chinesa, dentre eles Edkins, Volpicelli e Kcihuest, que
produziram artigos, mas sem qualquer caráter especializado. Em 1900, Schaank publicou
Fonética da Língua Chinesa Antiga, em Paris, que pode ser considerado de alto nível, na
opinião de Wang Li; depois, Pelliot publicou vários artigos de teses no Informativo e na
Revista Asiática, no período de 1911 a 1914 (WANG LI, 1981).
As produções iniciais, classificadas por Wang Li (1981), indicam seu processo de avaliação
de obras ocidentais, o que permite afirmar que procedeu desse modo para estabelecer os
caminhos de sua pesquisa de maneira segura, – procedimento comum na sinologia chinesa,
também presente nos métodos ocidentais de seleção e avaliação do material. Fica claro o foco
das pesquisas de Wang Li em determinar se os chineses antigos haviam produzido algum
estudo sobre a língua chinesa, podendo surgir exemplos tanto no material dos ocidentais como
nas obras chinesas. Consideramos este um dos principais motivos da relação entre os
sinólogos ocidentais com a sinologia chinesa construída por Wang Li, que se ampliou na
medida em que os materiais sobre gramática chinesa se tornaram escassos na China e as
produções dos sinólogos ocidentais um pouco mais confiáveis para os padrões chineses.
Consideramos confiável, pois mesmo os trabalhos de Karlgren, Maspero, Simon etc passaram
por análise rigorosa, recebendo correções e adaptações, na China.

4.4 A sinologia na China de hoje

Conforme apontam os registros, houve uma mudança considerável no instrumento


de análise da sinologia chinesa, devido à introdução dos estudos gramaticais e ao
desenvolvimento da linguística na China, a partir das pesquisas de Wang Li. Embora a
mudança de instrumento tenha sido expressiva, é possível que não tenha afetado o método de
análise da sinologia chinesa e nem alterado o foco na política ou filosofia.
Wang Li (1981) apresentou propostas futuras para o âmbito da linguística chinesa,
de modo geral, que representam avanços diretamente ligados ao instrumento da sinologia. Se
tais avanços foram aplicados, como é possível constatar no desenvolvimento do ensino da
língua chinesa na China e no mundo atualmente, por meio da expansão do Instituto Confúcio,
podemos deduzir que a sinologia chinesa sofreu uma enorme evolução, sendo mais precisa em
230

relação aos resultados das pesquisas no país. Neste caso, o foco e o método de análise podem
não ter sido alterados em função de outros, mas possibilitaram melhores resultados. Outra
dedução seria que, com o contato dos estudos chineses no Ocidente, possa ter ocorrido uma
adaptação às exigências apresentadas aos pesquisadores chineses por um determinado padrão
internacional de sinologia. Mesmo com as possíveis adequações que supomos ter ocorrido, da
parte dos chineses, certamente o foco e o método das pesquisas em sinologia chinesa não
mudaram, já que os intelectuais chineses perceberam a falta de foco nas pesquisas ocidentais,
e o método que seria uma mescla dos vários pertencentes às áreas que costumam compor a
sinologia ocidental.
Wang Li (1981) cita os sinólogos chineses que certamente contribuíram com o
desenvolvimento da sinologia na China atual, produzindo materiais que servem de base para
as pesquisas mais recentes, cujos temas, essenciais para os avanços da sinologia no âmbito
acadêmico chinês, também são consultados. Segundo Wang Li, no período de 1899 a 1949,
um total de 289 pesquisadores chineses (230 destes) e ocidentais se reuniram para investigar
as escritas das carapaças de tartarugas recém-descobertas. Os principais pesquisadores
chineses dessa época foram: Sun Yirang, Luo Zhenyu, Wang Guowei, Wang Xiang, Ye Yusen,
Shang Chengzuo, Guo Moruo, dentre outros. A principal contribuição desses sinólogos foi
para a paleografia chinesa, subárea da filologia. Além disso, segundo Wang Li, já existiam
pesquisas avançadas na escrita em bronze, e as descobertas da escrita em ossos foram
fundamentais para o desenvolvimento da sinologia chinesa, de modo geral, motivo pelo qual
tais sinólogos foram introdutores da modernização desse tipo de ciência na China.
A glossologia também serviu de base, dentro da filologia, para os avanços da
sinologia chinesa, e teve como principais pesquisadores, no país: Wang Niansun, Wang
Yinzhi, Hao Yixing, Yu Yue e Zhang Binglin. Em relação à gramática da língua chinesa, Wang
Li apresenta os sinólogos por períodos, quais sejam: o período de surgimento (1898-1935),
com Ma Jianzhong, Yang Shuda e Li Jinxi, e o período de desenvolvimento (1936-1948), com
o próprio Wang Li, juntamente com Lü Shuxiang e Gao Mingkai. Na linguística histórica e na
linguística descritiva68, os contribuintes nos avanços das pesquisas foram: Zhao Yuanren, 69 Li
Fanggui e Luo Changpei (WANG LI, 1981). Por meio da atuação de tais sinólogos e
linguistas para o desenvolvimento da linguística chinesa, pode-se investigar a ocorrência de
alguma alteração considerável na sinologia chinesa, que tenha atuado, de alguma forma, na

68
“A linguística descritiva também é chamada de linguística estatística, isto é a descrição estatística de algumas
línguas específicas, mas, sem se importar com a sua evolução histórica” (WANG LI, 1981, p. 162-163).
69
Orientador de Wang Li.
231

sua estrutura básica de pesquisa, ou não. Acreditamos que tenha havido um amplo
aperfeiçoamento do instrumento de análise da sinologia chinesa, como constatado até agora,
mas é preciso verificar se a área, tal como construída por Wang Li, também passou por
mudanças significativas, ou, se mantém sua concepção até o momento atual.
Com isso, é possível verificar, por meio de análise de material atualizado, o
aspecto em que se encontra a sinologia chinesa, em termos de instrumento, método e objeto
de investigação, na China de hoje. Quanto ao instrumento, fica evidente que o planejamento
em política linguística, conforme especificado por Calvet (2007), está diretamente relacionado
com a política atual da China e sua conduta administrativa. A política da nova China, segundo
Wang Li (1981), seguia as propostas de construção do socialismo, o que indica que tanto a
língua chinesa como a sinologia no país também se incluem nesta estratégia. O trabalho de
Wang Li em apresentar a modernização científica em processo foi essencial para a ampliação
dessa política, principalmente, nas universidades da China.
O modelo de análise limita-se ao que Wang Li apresentou como sinologia chinesa
n’A História da Linguística Chinesa e servirá de parâmetro fundamental para as comparações
com artigos e livros chineses, em que o foco de estudo seja típico da sinologia chinesa, e que
tenha relação com a política e (ou) a filosofia chinesa, com base nos clássicos, ou não.
Conforme crítica apresentada por Wang Li (1981), o fato de os sinólogos chineses terem-se
apoiado exclusivamente nos clássicos constitui um dos defeitos da linguística da dinastia
Qing, pois impediu que esta se tornasse uma ciência independente. Deduzimos, com isso, que
os estudos em sinologia na China, após o fim da dinastia Qing, tenham-se expandido para
além dos clássicos.
Wang Li indica o desejo de desenvolvimento da linguística chinesa, o que requer
pesquisas mais avançadas em sinologia, com foco em outros textos produzidos pelos chineses,
como o exemplo do artigo de Ma Jianzhong.
Considerando a obra Cultura e Filosofia do Oriente e Ocidente, do filósofo e
sinólogo chinês Liang Shuming (1999), é possível estabelecer um estudo sinológico
comparatiuvo do momento de transição da sinologia chinesa, a partir de Wang Li, buscando
uma relação de aproximação ou distanciamento de seu modelo com os trabalhos atuais na
China. Liang Shuming realiza, nessa obra, uma comparação entre as culturas e filosofias da
China, Índia e Ocidente, apresentando as questões fundamentais sobre os temas. O trabalho
do filósofo chinês é bastante amplo e, provavelmente, introdutório para o século XX. Para
esta análise selecionamos apenas o tema da filosofia chinesa, enquanto objeto da sinologia
construída por Wang Li.
232

O perfil acadêmico de Liang Shuming é muito semelhante ao de Wang Li, em


relação ao propósito de se dedicar às pesquisas do próprio país, com um olhar muito peculiar
de sua cultura, e por meio de estudos comparados com os estrangeiros. Liang Shuming (1893-
1988) viveu praticamente a mesma época de Wang Li. De 1917 a 1924, lecionou no
departamento de filosofia da Universidade de Beijing, dedicando-se aos movimentos sociais;
participou dos trabalhos do Instituto de Pesquisa de Henan (1929); fundou o Instituto de
Pesquisa de Construção de Shandong (1931)70; e produziu diversas obras importantes para as
pesquisas em sinologia chinesa.
Nosso foco, para as questões pontuais desta pesquisa, será na Cultura e Filosofia
do Oriente e Ocidente (1999). A obra está estruturada em cinco capítulos, distribuídos nos
seguintes tópicos: 1) Introdução, 2) Como é a cultura oriental? Como é a cultura ocidental?
(início), 3) Como é a cultura oriental? Como é a cultura ocidental? (fim), 4) Comparação das
filosofias indiana, chinesa e ocidental, e 5) A cultura do futuro no Mundo e a atitude que
devemos tomar hoje. O autor apoia-se em alguns pensadores e filósofos ocidentais, mas, ao
argumentar sobre a China, o filósofo mais citado é Confúcio 71 . Tal fato confirma o
pensamento de Wang Li sobre todos os sinólogos chineses serem especialistas nos clássicos
confucianos. Além disso, podemos afirmar que Liang Shuming era confucionista, por seguir
exclusivamente essa fundamentação teórica em sua obra. É importante destacar que Wang Li,
Liang Shuming e tantos outros sinólogos chineses do século XX são referências para as
gerações atuais, o que delimita as bases de comparação.
Na perspectiva de Liang Shuming (1999), analisando o conteúdo específico que
trata dos aspectos da filosofia chinesa, destacamos os temas abordados pelo autor sobre o
assunto: o status e a tendência da filosofia chinesa, a ideia geral da metafísica chinesa, os
conselhos de vida para Confúcio, a atitude descrente de Confúcio, a intuição de Confúcio, a
chamada benevolência de Confúcio, o princípio do bem no confucionismo, a maneira de
Confúcio não se importar com os prós e contras, a dúvida em falar da Grande Harmonia do
encontro dos ritos, a vida alegre para Confúcio, a crença para Confúcio, a vida do chinês.
Os subitens citados servem para exemplificar a linha de pesquisa em sinologia
chinesa do autor moderno. Podemos afirmar que Liang Shuming se apoia necessariamente no
instrumento da sinologia chinesa, apresentando suas reflexões pautadas nos clássicos
confucianos e fazendo uso deles em suas citações. Fica evidente que as reflexões filosóficas

70
Baseado na biografia de Liang Shuming apresentada na obra Cultura e Filosofia do Oriente e Ocidente
(1999), tradução livre do original em chinês.
71
Da página 126 até a 144, os subitens e conteúdo fazem referência a Confúcio, sem considerar as reflexões
apresentadas em outras partes da obra, que também citam o confucionismo.
233

de Liang Shuming servem, de modo flexível, para apresentar propostas ou opiniões políticas,
como apontado por Wang Li (1981). Além disso, o desejo de estabelecer uma ordem mundial,
como indicado no quinto capítulo, favorece a questão de uma política universal.
A ideia, aqui, não é expor a filosofia de Confúcio, conforme a opinião de Liang
Shuming, mas descrever o que caracteriza a sinologia chinesa, em comparação com a
construção de Wang Li. Embora Liang Shuming seja filósofo, não é isso que o qualifica como
sinólogo na China, mas os padrões comuns, conforme detalhados na obra A História da
Linguística Chinesa (WANG LI, 1981). Essa relação também vale para Wang Li e outros
sinólogos chineses.
Em relação à questão central apresentada por Liang Shuming (1999), com
destaque para as discussões envolvendo a cultura e a filosofia do Oriente e do Ocidente, o
autor declara-se incomodado com os comentários exagerados e elogiosos sobre o assunto, e
diz não concordar em guiar o povo chinês para esse caminho. O problema principal é o
mesmo comentado por Wang Li sobre o interesse dos chineses buscarem a modernidade
ocidental e distanciarem-se do desenvolvimento cultural chinês. O propósito de busca da
identidade nacional é evidente nas obras de ambos, e a nosso ver, justamente um dos
principais objetivos e diferenciais da sinologia chinesa, na atualidade, é resgatar os valores e
conquistas da China e apresentá-los aos chineses e ao mundo.
A pergunta de Liang Shuming (1999, p. 10), em um debate com os professores na
Universidade de Beijing, foi muito pontual: “o que todos chamam de cultura chinesa a ser
levada para o Ocidente?”, mas ficou sem resposta. Na opinião do sinólogo chinês, o que todos
gostam de ouvir são propostas bonitas, elogios e falsidades (LIANG, 1999).
O método de sinologia, apresentado por Liang Shuming (1999), tem como
destaque comparativo, ao que construiu Wang Li, a seleção de autores e obras de referência de
filósofos ocidentais e orientais, para estabelecer as contraposições pertinentes à filosofia, à
política e à cultura. Especificamente, em relação a antiga filosofia, política e cultura chinesas,
Liang Shuming apoia-se nos clássicos confucianos, que servem de base de comparação com a
Índia e o Ocidente, de acordo com sua proposta. Ele optou por um padrão bastante comum e
aceito pelos chineses, principalmente, no meio intelectual, e semelhante ao ambiente vivido
por Ricci, no final do período Ming, em relação a sua escolha pela adaptação do cristianismo
com o confucionismo.
Ao citar os clássicos em seu método, Liang Shuming (1999) apresenta obras que
passaram necessariamente por uma análise filológica, e além disso, demonstra dominar esse
234

instrumento, ao conduzir seus argumentos, baseado no significado mais próximo dos termos,
isto é, a consideração das glosas.
Fazer uso da filologia e ter os clássicos Han como material de análise, segundo
Wang Li (1981), é fundamental para definir a sinologia chinesa. Outro pré-requisito para
delimitar a sinologia chinesa é o estudo da filosofia chinesa, a fim de compreender a linha de
pensamento dos filósofos antigos e estabelecer sua relação com as escolas antigas e modernas,
desenvolvendo teorias que poderiam se tornar normas administrativas do governo, isto é,
selecionadas como regras para a política do país, a exemplo de Confúcio.
A política passa a buscar a regularidade das ideias e propostas possíveis de serem
implementadas, tendo em vista, principalmente, a grande diversidade de escolas de
pensamento existentes na China. Confúcio, apoiado em seus princípios filosóficos, buscou
construir essa regularidade para a conduta civilizatória, servindo de fundamentação para a
política educacional da sociedade chinesa. Liang Shuming, Wang Li e todos os sinólogos
chineses, que se empenharam em resgatar os valores culturais da China, apresentam essa
realidade da história do país.
Um dos argumentos apresentados na obra de Liang Shuming (1999), que tem
relação com as discussões políticas, no âmbito da filosofia e da grande área da sinologia
chinesa, é a referência ao artigo Minha Consciência sobre o Fim, de Chen Zhongfu (1934),
fundamentado nos princípios de Confúcio, e que trata do tipo de modelo cultural a ser adotado
pela China, diante das exigências do período de reformas do país. O tema central dessa
discussão é a condição de adoção ou não de um padrão “universal” pelo Oriente, na época.
Chen Zhongfu (1934 apud LIANG, 1999, p. 18) adverte:

Supondo que eu use o meu método na China, a doutrina de Confúcio, bastará


organizar a minha nação, organizar a minha sociedade, fazê-la se adaptar
para sobreviver no mundo de hoje. Então, depois de dez anos de reformas,
de revoluções sangrentas, de assembleias de planejamentos, de mudanças
das leis e de todo o novo governo, da nova educação, sem qualquer tipo de
falha, deve-se informar dos abandonos, justamente para o caso da construção
de uma nova nação e uma nova sociedade. Para essa nova nação e sociedade
o pensamento do Confúcio não pode mais ser compatível, existindo somente
na consciência, sendo determinado, caso contrário, não muda72.

Original: “倘吾人以中国之法,孔子之道,足以组织吾之国家,支配吾之社会,使适于今日世界之生
72

存,则凡十余年来之变法维新、流血革命、设国会、改法律及一切新政治、新教育无一非多事,应悉废
罢,万一欲建设新国家新社会,则对于此新国家新社会不可相容之孔教,不可不有彻底之觉悟,勇猛之
决心,否则不塞不流,不知不行”
235

Assim, a sinologia chinesa apresentada por Liang Shuming (1999) indica uma
discussão política e filosófica, própria do período de reformas da China, destacando também a
relação de adequação necessária para as mudanças naturais de um novo sistema de governo. A
citação, na obra de Liang Shuming, faz referência direta ao método da sinologia, conforme
construído por Wang Li, ao demonstrar a importância do filósofo ou letrado no meio
governamental, – especialidade comum entre os ministros do período imperial, em que todos
são versados e preparados para aconselhar o imperador nas questões mais diversas.
Lembrando que o conhecimento era atributo essencial a essa função, e que qualquer falha
cometida seria punida com a execução do ministro ou conselheiro. O costume dos letrados era
investigar, na cultura chinesa antiga, especificamente nos textos clássicos, os pensamentos
mais relevantes de seus autores, sempre mantendo a tradição transmitida pelos clássicos, de
onde vem a especialização de todos eles, neste material e também na filologia. O livro de
Liang Shuming exemplifica perfeitamente o modelo de sinologia proposto por Wang Li,
enfatizando seu padrão e definição como área científica da China.
Conforme foi possível constatar em um período de intercâmbio na Universidade
Beijing Jiaotong, China, em 2018, existem departamentos específicos de sinologia nas
principais instituições. Na Universidade Popular da China, também na capital chinesa, por
exemplo, o departamento possui o nome de Guoxueguan (Centro de Sinologia/Centro de
Clássicos Chineses). Neste departamento se observa que o termo Guoxue é traduzido para o
inglês, nas indicações do estabelecimento, como chinese classics, ou seja, faz referência direta
ao tipo de estudo que é realizado lá e comprova os argumentos apresentados por Wang Li
(1981) sobre a sinologia chinesa. No Centro de Sinologia, ou, Centro de Clássicos Chineses,
como também pode ser traduzido, também se encontra o uso da palavra Hanxue, citada na
obra de Wang Li e traduzida nas indicações em inglês nas repartições da instituição como
sinology, reforçando as nossas convicções sobre sinônimos e que se trata de estudos
exclusivos dos clássicos Han.
Dentro do Centro de Clássicos Chineses, logo na entrada, se vê o livro Daxue
(Grande Ensino), de Confúcio, com aproximadamente dois metros de altura, em madeira,
imitando os antigos rolos de bambu e ocupando toda a extensão da parede. Não há dúvidas de
que a sinologia chinesa ainda foca nos clássicos antigos e que as obras de Confúcio
representam um dos principais objetos de investigação dessa área na China.
Quanto ao material existente na China sobre a sinologia, encontramos uma
diversidade de livros em chinês com um rico conteúdo e temas sobre os estudos dos clássicos
chineses. Tivemos contato com obras totalmente elaboradas pelos sinólogos chineses para
236

facilitar o estudo dos clássicos antigos. Estas obras são divididas conforme o nível de
complexidade do tema. As facilidades para o estudo dos clássicos chineses na sinologia de
hoje vão desde a produção dos livros em formato para crianças, com apresentação de histórias
em quadrinhos, com CDs de áudio, até o uso da romanização oficial para a alfabetização na
China, conhecida como hanyupinyin (alfabeto fonético chinês). Os clássicos chineses para o
ensino avançado de sinologia são todos traduzidos para o chinês moderno (simplificado), com
glosas explicativas sobre os termos, relacionando o sentido deles na história, trabalho próprio
da filologia chinesa.
Sobre o tema proposto por Wang Li (1981) a respeito do estudo das teorias do
marxismo-leninismo e Mao Zedong como pensamentos guias das pesquisas chinesas, existe
atualmente na China departamentos especializados no assunto, conforme pudemos constatar,
mas percebemos que a aplicação dessas teorias atua diretamente no objeto de investigação da
sinologia chinesa (filosofia e política), não alterando o método próprio da área. Muitos
especialistas chineses fazem aproximações destas teorias com o confucionismo, dentre outros
filósofos chineses, o que caracteriza o desenvolvimento das pesquisas na sinologia chinesa.
Segundo a obra Fundamentos da Sinologia Chinesa: coletânea de explicações de
uma cultura longa e esplêndida (Guoxue Jichu: Youjiu Huihuangde Wenhua Jingcui Jiedu),
de Xu Gang, Yuan Xuemin e Jiang Xiubi (2016), a sinologia chinesa se apresenta totalmente
distinta da sinologia ocidental. A sinologia chinesa se apoia na ciência da cultura tradicional
chinesa. O método desta área se divide em quatro linhas de pesquisa que são: os clássicos, a
história, os filósofos e as coletâneas. Sobre os Clássicos, os autores especificam que “do que
foi produzido pelos nossos antepassados, devemos primeiro definir o que não muda, depois
resumir ou ampliar. Mais tarde a regra se expande pelas opiniões já estabelecidas (2016, p. 1).”
Sobre os Clássicos confucianos, Xu Gang, Yuan Xuemin e Jiang Xiubi (2016, p. 2)
afirmam que antigamente eram seis volumes: o Clássico das Poesias (Shijing), Clássico dos
Documentos (Shujing), o Clássico dos Ritos (Liji), o Clássico das Músicas (Yuejing), o
Clássico das Mutações (Yijing) e Os Anais da Primavera e Outono (Chunqiu), depois
ampliaram para treze volumes, acrescentando os Analectos (Lunyu), Erya, Xiujing, Mêncio etc.
O estudo dos Clássicos, conforme estes autores, tem como objetivo pesquisar o conhecimento
do confucionismo, organizando os clássicos do período Zhou Ocidental, até o império de Wu,
do Han Ocidental. O estudo dos clássicos confucianos é definido pelo ensino sistemático de
pacificação do povo e administração do país.
Sobre os registros históricos, segundo Xu Gang, Yuan Xuemin e Jiang Xiubi
(2016), o padrão se apoia nas palavras e atos dos imperadores e nos assuntos importantes para
237

o país, ou seja, a política, também registrada por Wang Li (1981). De acordo com a obra
Fundamentos da Sinologia Chinesa (2016, p. 2), a origem dos estudos históricos dos clássicos
confucianos segue as informações de grande relevância, como da obra Registros Históricos –
Cronologia dos Cinco Imperadores, de Si Maqian, Os Anais da Primavera e Outono
(Chunqiu), etc.
Quanto aos filósofos, Xu Gang, Yuan Xuemin e Jiang Xiubi (2016) afirmam que
se trata dos sábios das escolas clássicas do Pré-Império, como Laozi, Zhuangzi, Han Feizi,
Mozi, Xunzi, etc. Os filósofos do Pré-Império falaram do Confucionismo, Moismo, Taoismo,
Legalismo, etc. O propósito de pesquisar os filósofos da China antiga revela o principal objeto
da sinologia chinesa, comentado por Wang Li (1981), além disso, os autores da referida obra
aqui analisada, apesar de não se referirem ao instrumento filologia, que serve para tratar de
todo o material citados por eles, têm como foco de apresentação dos fundamentos da sinologia
chinesa o método e material analisado, o que complementa nossas afirmações.
Para concluir, comentando sobre as coletâneas consideradas pela sinologia
chinesa, segundo Xu Gang, Yuan Xuemin e Jiang Xiubi (2016), se apoia nas várias opiniões
existentes no material selecionado, como a poesia, a literatura, as composições, as canções, os
documentos, etc. Estes autores modernos apresentam na obra Fundamentos da Sinologia
Chinesa (2016) um trabalho semelhante ao realizado por Wang Li (1981), considerando a
mudança do sentido e forma das palavras chinesas desde a antiguidade e comparando com o
conteúdo dos clássicos chineses, buscando recuperar o significado original e conservando o
valor cultural. Um dos livros considerados pela coletânea e também citado como importante
para os estudos dos caracteres antigos é o Dicionário das Formas e Estudo dos Caracteres
(Shuowenjiezi), de Xu Shen (100-121 d.C.). Os detalhes sobre a sinologia chinesa moderna,
registrados na obra aqui analisada, confirmam as evidências de que o modelo de sinologia
chinesa apresentado por Wang Li (1981) não sofreu grandes alterações no seu método e
propósitos, mas desenvolveu o seu instrumento, com a introdução da linguística na China
pelos ocidentais e se caracteriza como distinto da sinologia ocidental.

Comentários finais

Logo, de acordo com o método da sinologia comparada foi possível destacar


características distintas entre a sinologia chinesa e a ocidental, tanto em sua criação na história
como também no seu aspecto atual. Certa aproximação das duas sinologias acontece no
238

período da proto-sinologia ocidental, por seu foco inicial nos Clássicos chineses, além do uso
da filologia como instrumento de análise deste material. Este método se manteve em voga
pela sinologia, conforme demonstrou Chavannes, mas foi excluído parcialmente dos estudos
por seu aluno, o sinólogo e sociólogo Granet, na sinologia moderna. Quanto às diferenças, vê-
se a interpretação figurista aplicada no material traduzido e estudado pelos intelectuais
europeus. Além disso, a negação da filosofia chinesa pelos acadêmicos ocidentais parece
manter-se na atualidade, o que prejudica e influencia as pesquisas em sinologia ocidental –
visto que ainda são raras as pesquisas que buscam considerar a perspectiva chinesa de
filosofia e sua evolução na história desta nação sem desapegar-se do universo construído no
Ocidente sobre a China, do contrário este país deixaria de ser visto como um mistério no meio
acadêmico.
Conforme esta pesquisa demonstrou, Leibniz foi um dos poucos, se não o único
na sua época, que indicou um caminho de pesquisa científica sobre a China cuja proposta
propunha descortinar as diferenças de modo a aproveitar aquilo que poderia ser benéfico para
a Europa em termos medicinais, técnicos, teóricos etc. Leibniz parece ter sido o primeiro
proto-sinólogo, vide sua experiência e ampla perspectiva científica da China. Seu principal
método foi a coleta de dados historiográficos e a troca de correspondências com os
missionários da China e estudiosos da Europa, além de sua interpretação filosófica dos
fenômenos.
Sobre as discussões entre Humboldt e Abel-Rémusat em relação às diferenças de
estrutura gramatical na formulação do pensamento em língua chinesa, constatou-se terem sido
fundamentais para a teoria da linguagem de Humboldt e também para os estudos em
antropologia comparada, além de fazer parte da fundação da sinologia ocidental. O principal
ponto negativo deste momento da sinologia ocidental foi tomar como base de comparação
apenas a filosofia ocidental, dando evidências do eurocentrismo que envolvia as pesquisas do
século XIX, e, ao mesmo tempo, servindo de base para a sinologia moderna de Granet.
Pode-se considerar Granet o inovador da sinologia moderna, por aplicar o método
da sociologia nos estudos da civilização chinesa. Do mesmo modo, constatou-se que Granet
definiu os estudos sobre a China como abertos para a multidisciplinaridade metodológica, fato
que desqualifica a sinologia como área científica. Nesta pesquisa ficou evidente o papel da
sinologia ocidental apenas como nomeação de grupos ou estudiosos com domínio específico
em uma certa área de estudos, cujo principal interesse fosse investigar aspectos da China, ou,
mais precisamente, do pensamento chinês. Conforme relatado neste trabalho, a filosofia em
formação como área científica negou o pensamento chinês como objeto possível de fazer
239

filosofia, o que também o comprometeu como objeto da sinologia. Esta questão é, todavia,
atual e requer estudos para que se consolide uma definição segura sobre o que vem a ser a
filosofia chinesa.
Quanto à sinologia chinesa, segundo apresentou Wang Li, as suas características
são bem definidas enquanto ciência que tem como objeto de estudos a filosofia e política
antiga da China, por meio da leitura e interpretação dos clássicos, com o uso da filologia
como instrumento de análise do material. A partir das pesquisas aqui realizadas pode-se
afirmar que para os estudiosos chineses a área denominada como sinologia trata
exclusivamente dos estudos dos clássicos antigos chineses, o que me parece acertado, já que
dessa forma define com clareza o tipo de trabalho realizado, além de se distanciar do termo
genérico classificado como sinologia.
Em 2018, pude visitar o Departamento de Sinologia da Universidade do Povo
(Renmindaxue), em Beijing. Neste Departamento o uso do termo Guoxue é traduzido para o
inglês como Chinese classics. Segundo tais as investigações, notei que Guoxue, antigamente,
indicava o Colégio Imperial, atualmente – com base em Xu Gang, Yuan Xuemin e Jiang
Xiubi (2016) –, refere-se ao estudo da cultura tradicional chinesa, que se apoia nos clássicos
antigos, dentre outros materiais historiográficos. Os interesses sobre Marxismo/Leninismo e
Maoismo apontados por Wang Li (1981) foram constatados nas mesmas investigações na
China como relacionados diretamente com o objeto da sinologia chinesa, ou seja, a filosofia e
a política, apresentando aspectos próprios da perspectiva chinesa em suas leituras, de modo a
confirmar a importância dos estudos dos clássicos e sua possibilidade de aplicação no
desenvolvimento das teorias e políticas da China moderna. A palavra Hanxue, conforme
citada por Wang Li, é mais específica aos estudos dos clássicos e pertence ao que podemos
denominar de grande área, ou, Escola de Clássicos Chineses (Guoxueyuan), por englobar
outras disciplinas, ainda que sem perder o foco dos clássicos. Esta sugestão de definição
parece atender a necessidade de esclarecimento sobre a função dos respectivos termos, além
de se apoiar na compreensão chinesa dos mesmos, o que não se distancia da concepção
apresentada por Wang Li (1981).
A sinologia comparada se torna importante para as delimitações tanto dos termos
que têm relação com os estudos sobre a China pelo mundo, considerando as interpretações
feitas a partir do período das missões jesuítas na China, até as propostas que surgem
atualmente no processo de definição de uma filosofia chinesa, respectivas bases da
constituição dos problemas que envolveram o surgimento da sinologia ocidental. Esta
pesquisa revelou a existência de um modelo inicial de sinologia, fundada por Abel-Rémusat
240

(séc. XIX), que teve o curso de língua e literatura chinesa como método de apoio desta área. A
partir deste modelo básico de sinologia ocidental e dos exemplos de sinologia moderna que
têm aspectos idênticos aos propostos por Granet, tomando métodos de outras áreas – como no
caso da sociologia, para o estudo do pensamento chinês –, é possível encontrar em outros
países, através do método comparativo, traços distintos ou semelhantes aos da sinologia. Com
base na sinologia chinesa de Wang Li (1981), tem-se, portanto, a certeza de que os chineses
possuem uma forma muito definida de pesquisar a China e um objeto mais delimitado de
estudo.
Neste estudo comparativo não se descartou a possibilidade de descoberta do
mesmo modelo de sinologia construído por Li (1981) em outro país, mas considerou-se que,
caso houvesse, seria muito provável que o fosse por influência da China, ou ainda, da
permanência do sistema de pesquisa de Chavannes, criticado por Granet e fortemente
influenciado pelo figurismo.
Conforme os contatos realizados na Universidade Beijing Jiaotong, com o Prof.
Kong Deli, Secretário Geral do Confúcio na China, especialista em Confúcio e em pesquisas
sobre sinologia chinesa, pode-se afirmar que os estudos dos clássicos confucianos ainda
permanecem em evidência, de acordo com o que apresentou Wang Li (1981), embora exista
hoje na China um amplo foco nos diversos materiais produzidos pelos antigos e a proposta de
discussões sobre a aplicabilidade da filosofia e política desenvolvida e resgatada nos livros
desde o Pré-império, ou seja, a cultura tradicional chinesa evoluiu e certamente se modernizou.
Pelo que se pôde notar nas pesquisas na China e pela oportunidade de participar
do Seminário Científico sobre o Pensamento Confuciano e a Educação Contemporânea,
organizado pelo Prof. Kong Deli, em janeiro de 2019, os projetos de implementação das
teorias antigas, no âmbito do ensino moderno, são abundantes e muito significativos. Um dos
principais temas das discussões tratou dos problemas existentes na educação moderna chinesa
no que tange à perda de valores morais dos jovens, devido ao foco na competição econômica
do mundo globalizado, o que prejudica o andamento do ensino e aprendizado, atingindo
diretamente os projetos de desenvolvimento educacional do país. Este evento retoma os
desejos apresentados por Wang Li (1981) sobre os avanços das pesquisas na China, não se
limitando à linguística chinesa, mas descortinando debates sobre as políticas educacionais – a
partir do rico conteúdo existente nos clássicos chineses – que definem a ciência nacional e a
expansão da cultura tradicional chinesa. Observou-se aí a real importância do objeto de
estudos da sinologia chinesa enquanto área de reflexão e teorização das realidades vividas no
241

passado a na atualidade, além de propostas por políticas eficientes para o momento moderno
chinês.
Como reflexão complementar, pode-se destacar o assunto referente à negação da
filosofia chinesa, que se distanciou completamente do que foi proposto por Leibniz quanto à
busca da compreensão e conciliação das diferenças chinesas, questão muito debatida na
querela dos ritos. A partir dos argumentos de Leibniz é possível afirmar que a sua concepção
científica sobre a civilização chinesa estava sempre aberta para o diálogo filosófico, na
tentativa de formular novas teorias, ou seja, ideias distantes da perspectiva dos missionários.
Fato que, se considerado, teria esclarecido muitos erros de interpretação que seguiram
influenciando a sinologia ocidental, ao atuar diretamente no objeto de teorização dos
fenômenos, a filosofia.
Este resumo panorâmico das bases que participaram da fundação da sinologia
ocidental parece importante para definir com mais exatidão os rumos dos estudos atuais sobre
a China, caso o assunto constitua uma área científica. Vale ressaltar que Needham, Granet,
Anne Cheng, Chemla e tantos outros sinólogos modernos perseguem um método interessante
de estudo sobre a China, que consiste no apoio da multidisciplinaridade, com o objetivo de
buscar compreender os diversos aspectos dessa civilização, ou, do pensamento chinês.
Todavia, é preciso esclarecer as lacunas históricas que ainda permanecem na constituição da
sinologia, como o que pode ser definido como filosofia chinesa ou não, ou ainda comparar a
filosofia chinesa antiga com a dos filósofos ocidentais, ou até analisar se os chineses (assim
como fez Wang Li em sua pesquisa) consideram a filosofia ocidental, e se ao fazê-lo buscam
traços semelhantes aos de seus antigos letrados. Resumindo, será que sabemos o bastante
sobre a filosofia chinesa para fazermos o mesmo, sem priorizar somente a concepção
ocidental de mundo?
Suponho que, a partir do modelo multidisciplinar de sinologia adotado no
Ocidente, muitas questões poderão ser solucionadas, especialmente se houver a participação
de estudiosos chineses em um intercâmbio científico e acadêmico. Por outro lado, o modelo
de sinologia chinesa construído por Wang Li (1981) parece limitado em seu recorte, ainda que
possa atender à necessidade de definição da área como ciência. É importante registrar que o
estudo dos clássicos chineses segue sendo uma tradição na China, na qual a maioria das obras
antigas encontradas em chinês moderno contam com explicações detalhadas do significado de
termos em suas respectivas épocas. Na China, existem escolas especializadas nos estudos dos
clássicos, que produzem material para diversos níveis de falantes do chinês, evidenciando a
proposta de preservação do material herdado dos antigos e a propagação da cultura tradicional,
242

além de gradativamente traduzidos a outros idiomas, passando assim a ser compreendidos por
estudiosos do mundo todo. Esta pesquisa tencionou evidenciar que o intercâmbio entre a
China e outros países faz-se essencial no sentido de um desenvolvimento do modelo de
sinologia existente no Ocidente, além de favorecer a compreensão da sinologia chinesa.
243

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