Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
i i
Santo Agostinho no
pensamento de J.-L. Marion:
uma leitura de “Dieu sans
l’Être”
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
i i
i i
i i
i i
Covilhã, 2008
F ICHA T ÉCNICA
Título: Santo Agostinho no pensamento de J.-L. Marion: uma leitura de
“Dieu sans l’Être”
Autor: Maria Manuela Martins
Colecção: Artigos L USO S OFIA
Design da Capa: António Rodrigues Tomé
Composição & Paginação: Ângelo Milhano
Universidade da Beira Interior
Covilhã, 2008
i i
i i
i i
i i
i i
i i
i i
i i
Conteúdo
I – A OBRA DE J.-L. MARION 4
1 - ‘Dieu sans l’être’: os pressupostos 6
2 - Os conceitos: ídolo/ícone 14
3 - A hipoteca ontológica e a encruzilhada do Ser 20
II – A RELAÇÃO ENTRE O ÍCONE E O ÍDOLO... 25
1 - A visão - Do ’intuitus/contuitus’ ao Conceito 27
2 - O ícone e o silêncio 32
III – DEUS COMO AMOR (caritas - agapè) 36
1 - Deus - amor como inversão e transgressão do ídolo 39
2 - Deus enquanto caritas... 42
∗
O artigo que aqui apresentamos é, de facto, um estudo mais desenvolvido do tra-
balho que apresentámos no Seminário de Metafísica, dirigido pelo professor Gilbert
Gérard, em Louvain-la-Neuve, no Institut supérieur de philosophie de l’Université
Catholique de Louvain, em 1993, no quadro de um D.E.A.
i i
i i
i i
i i
I
A OBRA DE J.-L. MARION
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
sans l’être, obra que provocou nos meios intelectuais e filosóficos, além
fronteiras do Hexágono, uma onda de reacção e de ampla discussão nos
mais diversificados e diferentes níveis5 . É o próprio J.-L. Marion que
no dá conta desta imensa controvérsia, num artigo que será igualmente
objecto da nossa discussão neste contexto6 .
Em exergo da sua obra Dieu sans l’être, J.-L. Marion coloca a seguinte
máxima: ”Seul l’amour n’a pas à être. Et Dieu aime sans l’être” e, nas
páginas introdutórias seguintes, citando, desta vez, Pascal e Heidegger,
onde ambos reafirmam a proeminência do amor em relação ao ser, co-
5
Damos alguns exemplos desta ampla discussão: J.-L. Schlegel, “Dieu sans l’être.
A propôs de J. L. Marion”, in Esprit, 1984, nž 86, pp. 26-36; R. Kearney, “A dialogue
with Jean Luc Marion”, in Philosophy today, vol. 48/1, 2004, pp. 12-26; R. Virgou-
lay, “Dieu ou l’être? Relecture de Heidegger en marge de J.-L. Marion, Dieu sans
l’être”, in Recherches de science religieuse, 72/2, 1984, pp. 163-198 ; M. B. Ewbank,
“Of Idols, Icons, and Aquinas’s Esse : reflections on Jean-Luc Marion”, in Internati-
onal Quarterly Philosophical, vol. 42, 2002, nž 2, pp. 161-175; E. Falque,“Larvatus
pro Deo. Phénoménologie et théologie chez J.-L. Marion”, in Gregorianum, 86, 1
(2005), pp. 45-62; J.-Guy Pagé, “Dieu et l’être”, in Laval théologique et philosophi-
que, XXXVIII, 1, 1981, pp. 33-43; I. P. Sheldon, “The Philosophy of Icons”, in
The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy. Cambridge,
Cambridge University Press, 1980, pp. 506-517; G. Ladner, Images and Ideas in the
Middle Ages. Rome, Edizioni di Storia e Letteratura, 1983, vol. I, pp. 73-111.
6
J.-L. Marion, “De la mort de Dieu aux noms divins: l’itinéraire théologique de
la métaphysique”, in L’être et Dieu. Travaux du C.E. R. I. T., Éditions du Cerf, 1986
p.129: “La thèse avancée dans le texte qu’on vient de lire - qui reprend l’intention
de notre ouvrage ’Dieu sans l’être’ - continue à susciter des discussions, ce qui est
flatteur mais aussi des contresens, ce qui est inutile”. Informamos que este artigo
teve uma primeira publicação em Laval théologique et philosophique, 41, 1 1985, pp.
25-41.
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
dição, para quem, Deus é mais do que Ser, Ele é amor16 . Sendo assim,
a primazia do nome divino não será dado a Deus como Ser mas antes
como Amor (agapè), atestando a palavra da carta de São João, 4, 8:
”Deus caritas est”. Compreendemos, portanto, conquanto o âmbito da
reflexão empreendida por J.-L. Marion, se insere numa fonte originária
do pensamento, na tradição da Metafísica ocidental e que o seu lugar
originário e originador se encontra essencialmente nesta busca radical
de Deus que consiste mais do que em Ser, mas antes em amar. ”’Deus
é amor”, ou dever-se-ia glosar: aquilo que faz com que ”Deus” seja
Deus, consiste, mais radicalmente, em amar do que em ser”17 . Todavia,
podíamos perguntar: em que medida esta tradição foi suficientemente
desenvolvida e trabalhada pelos autores da Patrística e, na época pos-
terior, a Idade Média, até aos tempos modernos, de tal forma que J.-L.
Marion não faz mais do que desenvolver e alargar o seu campo de com-
preensão e de desocultação, deixando ver, claramente, como uma certa
tradição está patente na metafísica da modernidade, com a tão procla-
mada ’morte de Deus’? Por outras palavras, será que o filósofo J.-L.
Marion não fez mais do que revelar a sua filiação à recepção da mística
do Pseudo-Dionísio e portanto, da tradição neoplatónica e da qual ele
quer ser simplesmente o porta-voz, como um simples continuador?, ou
será que, ao contrário, J.-L. Marion inscreve-se nesta tradição mas que
até aqui foi insuficientemente explorada pelo pensamento filosófico,
desde a época Patrística, passando pela Idade Média, reencontrando-
se nos nossos dias, numa outra forma de ’teologia negativa’, e sobre
a qual, há muito mais a explorar e a ultrapassar, do que simplesmente
a continuar? O capítulo terceiro, que fala precisamente, da croisée de
l’être, , pretende responder a esta questão, de tal forma que, a intrin-
16
Na longa tradição filosófica, poderíamos constatar uma dupla orientação meta-
física, em particular aquela que se origina aquando do reencontro entre helenismo e
judeo-cristianismo; uma metafísica que dá primazia ao Ser e à Essência e uma outra
metafísica que dá primazia ao Bem, e para a qual o ser não é senão uma derivação do
Bem. A leitura de J.-L. Marion nesta obra, consiste, no fundo a resgatar esta dupla
cumplicidade no seio da longa ’História do Ser’.
17
J.-L. Marion, Dieu sans l’être, p. 111.
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
2 - Os conceitos: ídolo/ícone
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
se perceber pelo ’brilho do visível’ sem que ele atraia, para si, propri-
amente o que é visível, mas aquilo pelo qual o visível se torna visível.
O eikôn denota, por isso mesmo, duas dimensões: A. o brilho, isto é, o
meio invisível e inefável por meio do qual se vê alguma coisa; B. a dis-
tância que vai do visível até ao invisível, por meio do visível. ”O ícone
abre-se a um rosto, onde a vista do homem não considera nada, mas
remonta do infinito do visível ao invisível, pela graça do visível”25 . A
diferença entre estes dois momentos, instaura uma fenomenologia dis-
tinta e complexa entre ídolo e ícone, ou seja, entre a visibilidade que se
vê e a visibilidade que intenciona o que se vê, de forma a fazer apelo
àquilo que não se vê. Na verdade, o ídolo e o ícone indicam uma ma-
neira de ser dos entes26 . Na fenomenologia husserliana, a importância
do olhar e da visibilidade como lugar por excelência de um saber que se
mede essencialmente pela sua ’visée’, pela sua capacidade de trespas-
sar o meio diáfano, que representa o olhar do espírito e a luz do olhar é
um bom testemunho deste eidôlon27 .
Mas, para entendermos a relação harmoniosa e simultaneamente
conflituosa, entre o ídolo e o ícone, é necessário um terceiro elemento,
capaz de os revelar, e de manifestar o valor simbólico de cada um. ”(Ě)
faz alusão ao pensamento de Platão, no Timeu, a partir do qual, se pode encontrar
ecos no pensamento Patrístico e, remontando no tempo, até em S. Paulo, Col. 1,15.
Cf. Timeu, 92 c 7. Mas, neste contexto, trata-se da valorização do ícone e, inevitavel-
mente, do invisível relativamente ao visível; no entanto, esta não é a única direcção
do pensamento de Platão, relativamente ao ícone. Veja-se por exemplo, em vários
contextos da República, do Fédon, do Fedro e do Sofista, onde é o eidos e o eidôlon
que tem lugar de destaque. De igual modo em Plotino, nas Enéadas, encontramos
o eidôlon como sinónimo de imagem e de simulacro. Quanto ao eikôn, também nos
aparece, em alguns contextos das Enéadas: I, 2, 7; II, 6, 3; III, 5, 9; IV, 4, 10; VI, 3,
1.
25
J.-L. Marion, Dieu sans l’être, p. 31. ”L’icône s’ouvre sur un visage, où la vue
de l’homme n’envisage rien, mais remonte à l’infini du visible à l’invisible par la
grâce du visible”.
26
J.-L. Marion, Dieu sans l’être, p. 15.
27
E. Husserl, Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Phi-
losophie, ğ 92. Erstes Buch. Herausgegeben W. Biemel. Haag, Martinus, 1950, S.
228-229, trad, fr. Idées I, ğ 92, pp. 317-318.
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
,num ídolo. Por isso mesmo, quanto mais intensa se fizer a figuração
do divino, menos ’Deus’ atingiremos. Desta feita, a crítica que se possa
efectuar a este conceito ’Deus’, será o exacto equivalente ao conteúdo
deste mesmo conceito. O ateísmo conceptual não é senão o resultado
da crítica que faz ao conceito que ele contém. É por esta razão que este
’ateísmo conceptual’, do qual deriva o ateísmo sociológico, vale o que
vale em função do conceito operatório de ’Deus’ e, por conseguinte,
perde toda a sua pertinência demonstrativa, limitando-o portanto, a um
conceito regional de ’Deus’41 .
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
ídolo, reforçando por isso, as ”aporias da causa sui”. Apesar desta crí-
tica, Marion reabilita o pensamento de Tomás de Aquino, que, no seu
ponto de partida ter-se-ia distanciado da doutrina do Pseudo-Dionísio,
mas que por outros contextos tomasianos, se poderá aproximar quando
a questão do ser se liga directamente com a questão de Deus enquanto
Cristo e enquanto agapè, como possibilidade de transgressão do ser42 .
. Esses contextos não são completamente explorados em Dieu sans
l’être, mas Marion dá-nos conta dessa intenção noutro passo da sua
obra43 .
Para reforçar a sua tese sobre Tomás de Aquino e sobre a ambigui-
dade revelada pelo pensamento metafísico do Aquinata, Marion evoca
a concepção metafísica, na época moderna, que consolida firmemente
esta metafísica enquanto representativa de um discurso teiológico e de
uma onto-teo-logia. ”A metafísica, com efeito, não tem necessidade al-
guma da teologia da fé para enunciar os nomes divinos: ”Deus” como
fundamento último, com Leibniz; ”Deus” como ”Deus moral”, com
Kant, Fichte e Nietzsche; “Deus” enfim, sobretudo como causa sui com
Descartes, Espinosa e, no fundo, toda a metafísica”44 . A inevitável ’li-
42
J.-L. Marion, Dieu sans l’être, pp. 122-123.
43
J.-L. Marion, De la mort de Dieu aux noms divins: l’itinéraire théologique de la
métaphysique, in L’être et Dieu, p. 128 : ”Et sans doute la substitution de l’être au
bien, comme premier nom divin, devrait s’analyser aussi comme une simple variation
de la même ténèbre lumineuse (ce qui, je dois le reconnaître, n’est pas assez dit
et vu dans Dieu sans l’être). -Ensuite, on remarquera que S. Thomas n’inclut pas,
au contraire de ses successeurs et particulièrement de Suarez, Dieu dans l’objet de
la métaphysique ; loin de le définir comme subjectum scientiae, comme sujet de la
science métaphysique, il le reconnaît seulement principium subjecti, principe du sujet
de cette science (In Boethii de Trinitate, q. 5). Consulte-se a este propósito também o
artigo de Marion, Saint Thomas d’Aquin et l’onto-théo-logie, in Revue thomiste, XCV,
1995, pp. 31-66. Saliente-se a este respeito que todo o debate está na leitura orientade
de São Tomás do texto De divinis nominibus do Pseudo-Dionísio, em particular o
capítulo V, 1-2. Cf. S. Dionysii Areopagitae De Divinis nominibus. Ed. J.-P. Migne,
Patrologia Graeca 3.
44
J.-L. Marion, Dieu sans l’être, p. 97: ”La métaphysique en effet n’a nul besoin
de la théologie de la foi pour énoncer des noms divins : “Dieu” comme fondement
ultime, avec Leibniz ; ”Dieu” comme ”Dieu” moral, avec Kant, Fichte et Nietzsche ;
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
II
A RELAÇÃO ENTRE O ÍCONE E O ÍDOLO
E A DUPLA TRINDADE NO HOMEM
SEGUNDO AGOSTINHO
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
51
Segundo certos autores da patrística grega, a imagem e a semelhança do homem
face de Deus é pensada segundo uma imagem da imagem: εἰκών εἰκόνος. H. A
imagem de Deus é o Filho e nós somos a imagem da imagem. Cf. Clemens Alexandri
Alexandrinis Opera Omnia, Stromates, V, 14 94 (PG 8) Orígenes fala igualmente do
homem enquanto imagem de imagem.
52
Joannis Damasceni Opera Omnia, Orationes pro sacris imaginibus, III, 17, ğ
353 (PG 94, col. 1337).
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
vontade que reúne tudo a fim de formar uma unidade55 . Com efeito, po-
demos notar que, quer na primeira trindade, quer na segunda trindade,
é importante para Agostinho a questão do ver aquilo que é da ordem
do olhar, em relação a um mundo invisível. A terminologia que utiliza
J.-L. Marion mantém uma certa analogia com a terminologia agostini-
ana. Coincidência ou não, é mais do que evidente. Para Marion, o olhar
é aquilo que cria o ídolo e fixar o olhar significa por sua vez a inten-
ção daquilo que é visado positivamente e a delimitação desse mesmo
olhar para que surja o ídolo. O ídolo é então a imagem deste olhar, o
que significa que o ídolo, visto ser uma imagem deste olhar, não tem
consistência ôntica, porque é um espelho e não um retrato, isto é, não
é uma imagem por si mesma, mas é antes, uma imagem do que é vi-
sado no olhar. Este espelho é algo que revela a capacidade do sujeito
que percepciona (percepcionante) e ’trespassante’; é um olhar ’atra-
vessante’ (perçant) e agudo que nos possibilita, quer o olhar, quer a
imagem produzida pela intenção do sujeito que vê e o visível fornecido
pelo objecto. Declara Marion: ”Antes do ídolo, o olhar trespassava em
transparência o visível. Em rigor, o olhar não via o visível, visto ele
não cessar de o transparecer - de o trespassar em olhar trespassante”56 .
Como podemos nós então relacionar o ídolo do qual nos fala J.-L. Ma-
rion e a dupla trindade de que nos fala Agostinho? Com efeito, pode-
mos estabelecer a relação em três sequências de que dávamos já conta
no início desta reflexão:
1. Ao nível da representação como tal, no quadro de uma ontolo-
gia epistemológica e de uma cosmologia. Trata-se da crítica de Ma-
rion ao ens, concebido como Deus enquanto causa sui. Assim como
rem illam objectam sensui sentiremus: tertio, quod in ea re quae videtur, quamdiu
videtur sensum detinet oculorum, id est animi intentio”.
55
Obra completas de San Agustín, La Trinidad, XI, 3,6 (BAC p. 527-28): ”Sed pro
illa specie corporis quae sentiebatur extrinsecus, succedit memoria retinens illam
speciem quam per corporis sensum combibit anima; proque illa visione quae foris
erat cum sensus ex corpore sensibili formaretur, succedit intus similis visio, cum ex
eo quod memoria tenet, formatur acies animi, et absentia corpora cogitantur”.
56
J.-L. Marion, Dieu sans l’être, p. 20
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
2 - O ícone e o silêncio
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
III
DEUS COMO AMOR
(caritas - agapè)
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
se efectue um salto entre aquilo que nós somos e aquilo que nós conhe-
cemos, por meio da nossa representação e assim limitemos no nosso
conhecimento de Deus, o conhecimento que Deus faz d’Ele mesmo.
Mas esta identificação entre aquilo que é dito por uma linguagem me-
tafísica e aquilo que é dado pela fé é um dos exemplos idolátricos da
representação de Deus ; o outro exemplo, é aquele que não faz a distin-
ção no acto mesmo de representar Deus, entre aquilo que pertence ao
sujeito e aquilo que não lhe pertence. Esta identificação é também uma
idolatria. Retomando as palavras de J.-L. Marion, podemos entender
que :
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
Será que pensar Deus como o Ser por excelência e aceder a um possível
conhecimento da sua existência e da sua essência, é o lugar exclusivo
da metafísica? E se isso se verifica, será que todos os conceitos que
se possam formar sobre Deus, da sua existência enquanto Ser e da sua
não existência, escaparão a um simples conceito regional74 , e por con-
sequência, que nós nos confrontaremos necessariamente com um ser
consistente, donde tudo lhe deve a existência? Mas, por outro lado,
será que pensar Deus e Ser enquanto idênticos, releva mais do domí-
nio da metafísica, e portanto, do domínio da filosofia, ou será que o
Ser é também compreensível e desenvolvido na Revelação ainda que
pensado de forma diferente?
Será que a tese de J.-L. Marion sobre o Ser é de bani-lo absoluta-
mente da metafísica? E, admitindo isto, será que é o amor que substitui
o Ser e por consequência, será que o amor é mais do que um conceito
que transborda, quer por sua vez da conceptualidade do Ser e da sua re-
gionalidade epistémica, e de qualquer configuração possível? Isto sig-
nifica que o amor pode ser o novo hiper-conceito (ele é mais do que um
conceito na linguagem evangélica) que origina uma outra metafísica e
será que ele pode criar as relações mais válidas entre metafísica e teo-
74
J.-L. Marion fala do conceito regional a respeito do ateísmo conceptual, o qual,
negando Deus, formula assim um conceito entendido como a ’morte de Deus’. Mas,
visto que este conceito é definido pela sua incompletude e pelo seu carácter de fi-
nitude, então, este conceito não é senão um conceito que não pode aniquilar outros
conceitos possíveis sobre a ’morte de Deus’. ”Et puisque ce concept de mort de Dieu,
n’est qu’un concept, alors il peut se vérifier deux chose: 1. que ce concept peut être
nié sans que la véracité ontique de Dieu soit atteint; 2. que ce concept permet aussi sa
négation à l’intérieur de sa propre définition, c’est-à-dire, la mort de Dieu transporte
en soi-même la possibilité de la mort de la mort de Dieu. La mort de Dieu implique
directement la mort de la ”mort de Dieu” puisque à chaque fois, en disqualifiant un
concept défini de Dieu, elle ouvre de nouveau le lexique indéfini d’autres concepts
possibles pour nommer un Dieu toujours autrement pensable, autrement dit”. Cf.
J.-L. Marion, Dieu sans l’être, p.107.
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
como o ’outro’ do ser? Ora o amor, o dom, pelo qual o ser é dado,
permanece também um dom para nós e por consequência, a doação do
ser é também sempre deficitário daquilo que Deus é n’Ele mesmo. Não
é porque Deus é amor que não existe uma incompreensibilidade deste
mesmo amor quando ele se dá a nós ou ainda quando ele ainda não
se revelou. Desta forma, visto que o dom é unicamente ce par quoi
que ce soit, então o dom é a condição de existência do ser e de tudo
aquilo que vem à existência. ”para que o que quer que seja, seja, é
necessário que ele seja dado; ou antes, é necessário que um ente apa-
reça como uma doação, portanto um doado, portanto, um dom”77 . Na
verdade, visto que o dom é por sua vez o lugar originário que possibi-
lita o pensamento do ser e por sua vez o que possibilita a existência do
ente como ente, daqui se segue que pensar Deus como amor permanece
sempre deficiente, porque o conceito de amor é sempre pensado sob as
grandes figuras da metafísica. Esta unilateralidade da qual nós falámos
anteriormente é exprimida por J.-L. Marion da seguinte forma:
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
entendemos por meio de uma analogia, capaz de nos dar conta do que
ela é, na sua essência e na sua real existência. É a fé, segundo Agos-
tinho, o preâmbulo do amor que nos permite amar, sem que contudo,
Deus seja visto por nós e segundo o nosso olhar humano. Devemos
assinalar, todavia, que a concepção de Deus como amor em Agostinho
não apresenta unicamente a dimensão absolutamente transcendente e
inefável de Deus, inapreensível n’Ele mesmo e invisível. Podemos,
contudo, encontrar algumas analogias de uma certa trindade na cria-
tura humana. É nisso mesmo que consiste a similitudo Dei no homem.
Então coloquemos a questão: será que esta similitude não será também
idolátrica para Marion? Segundo o filósofo francês, isso não acontece.
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
quando ele quer desenvolver o amor da substância divina que passa ne-
cessariamente pelas concepções que eu tenho do amor e também pela
experiência amorosa que eu experimento com os outros, então, o amor
é compreendido a partir da alma humana e a partir do sujeito amante.
Por outras palavras, como nomear Deus como amor não idolátrico, por-
que Ele é inefável e, todavia, ao descobrirmos os atributos deste amor
nos tornamos idolátricos, pois, o amor é compreendido sempre segundo
a nossa própria visão? E então em que é que consiste o pré-metafísico?
Naquilo que não é idolátrico e portanto, o amor enquanto agapè, iden-
tificado com Deus, mas distante do Ser e permanecendo como pré-
metafísico, ou será que o cruzamento do ser com o amor deverá de-
terminar qual a ’parte’ que é pré-metafísica e qual a ’parte que não é
pré-metafísica? Para além disso, a crítica de Marion, tendo a ousadia
de efectuar uma ’história do ser’, em que o ídolo e o ícone representam
o conceito nos seus limites, pretende elevar e identificá-los a uma com-
preensão das figuras da metafísica. Será que em todos os casos estas
mesmas figuras são o resultado de uma idolatria no interior da metafí-
sica? Além do mais, será que ao entender-se esta metafísica como uma
representação idolátrica e onto-teo-lógica, que tem como único ponto
de partida a subjectividade, não acaba por reduzi-la ao máximo do seu
paroxismo, a que a filosofia moderna a tinha levado?
Se o amor enquanto dom é o lugar por excelência da encruzilhada
entre o ente e a ousia enquanto ser, não faz já aparecer um lugar origi-
nário metafísico por excelência? O conceito de substância possibilita
que o ente se inscreva na diferença face ao ser e também que ele pode
inscrever-se em todo o questionamento sobre o ser. E J.-L. Marion
acrescenta: ”o único emprego do vocábulo filosófico por excelência de
ousia em todo o Novo Testamento”, fá-lo pensar como um vocábulo
pré-filosófico: pode ser entendido como presença e disponibilidade,
mas também como dom, que dá o Ser e o ente96 . Mas desde que se
pensa Deus como amor, será que podemos fazê-lo advir a nós unica-
mente através da sua doação invisível, sem que um mínimo da nossa
96
J.-L. Marion, Dieu sans l’être, pp. 146.
www.lusosofia.net
i i
i i
i i
i i
97
J.-L. Marion, Dieu sans l’être, pp. 91-92: Qu’il faille libérer “Dieu” de la
question sur/de l’Être, mais que cette libération contrevienne aussi aux conditions
de la pensée, en un sens, nul plus que Heidegger ne l’a fait soupçonner. L’énormité
de notre proposition - libérer ”Dieu” de l’Être - ne pourra devenir tolérable, donc
simplement envisageable que si d’abord elle se formule assez rigoureusement pour
admettre des réserves précises, pour offrir un paradoxe mesurable. Aussi doit-on
suivre l’établissement heideggerien du chiasme entre “Dieu” et l’Être, ne fût-ce que
pour apprendre à le déplacer”.
www.lusosofia.net
i i
i i