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NATAL/RN
2019
GIOVANNI ALESSANDRO BEGOSSI
NATAL/RN
2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA
On June 9, 2019, the news outlet “The Intercept” began revealing a series of dia-
logues, obtained through an anonymous source, which suggest an illegal collabora-
tion between then Judge Sergio Moro and Deltan Dallagnol, prosecutor and member
of Operation Car Wash’s task force. This disclosure, which became known as “Vaza
Jato”, shed new light on the following sequence of events: i) former President Luiz
Inacio Lula da Silva’ condemnation for the crimes of corruption and money launder-
ing in the Guarujá triplex's case by Moro, with the consequent timely ineligibility of the
isolated leader in the election polls for the 2018 presidential race; ii) election of Jair
Messias Bolsonaro, second in the polls, to the Republic’s Presidency; and iii) Moro’s
nomination to take over the Ministry of Justice and Public Security by Bolsonaro. In
this context, this research’s objective is to answer the question: was the judiciary
used to define an election instead of popular sovereignty? To this end, a two-stage
legal discussion is proposed. The first, of a juridical-dogmatic nature, consists in con-
cretely investigating the content of the revealed dialogues in order to identify whether
or not Moro behaved irregularly, having as parameter the fundamental procedural
right to natural justice. The conclusion was that the risk of Moro having previously
intended to prosecute Lula and to effectively advise the prosecutors in detriment of
the defense is too high to be constitutionally tolerable, representing an unjustified
state intervention in Lula's fundamental procedural right to natural justice, the pro-
cess being null under the terms of art. 254, IV, and art. 564, I, both from the criminal
procedure code. From this intermediate conclusion, the research proceeded to the
second phase, of a predominantly sociological and political-scientific nature, consist-
ing in analyzing the potential political instrumentalization of the judiciary machine in
the Lula case, examining its hidden meaning for Brazilian democracy through the
concepts of lawfare, post-democracy and post-truth. The general conclusion was that
the judicial action in the Lula case fits in with the postulates of lawfare (political tim-
ing, reorganization of the judicial apparatus, application of double standards to the
law and mass and concentrated media), post-democracy (disappearance of limits to
the exercise of power, rhetorical recourse to the supposed exceptionality of the situa-
tion and to generic terms such as “fighting corruption” and “public security”, messian-
ism, spectacularization of the criminal trial and media construction of the “good
judge” figure) and post-truth (primacy of emotion over reason and facts, double
standard to evidence, alternative facts, conspiracy theories and projection). Thus,
there was a serious affront to the popular sovereignty embodied in the withdrawal of
the presidential race’s leading candidate through the illegal joint action of various le-
gal actors (prosecutors, judges, etc.) in partnership with the mainstream media.
Keywords: Luiz Inácio Lula da Silva. Sergio Moro. Lawfare. Post-democracy. Post-
truth.
LISTA DE SIGLAS
AP Ação Penal
BBC British Broadcasting Corporation
BSB Brasília
CBN Central Brasileira de Notícias
CCJ Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
CELAG Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica
CEO Chief Executive Officer
CF Constituição Federal
CLS Critical Legal Studies
CNJ Conselho Nacional de Justiça
CP Código Penal
CPC Código de Processo Civil
CPP Código de Processo Penal
EUA Estados Unidos da América
FHC Fernando Henrique Cardoso
FSP Folha de S.Paulo
HC Habeas Corpus
LJ Lava Jato
MBL Movimento Brasil Livre
MDB Movimento Democrático Brasileiro
MP Ministério Público
MPF Ministério Público Federal
MPSP Ministério Público do Estado de São Paulo
NSA National Security Agency
OAS Olivieri, Araújo e Suarez
ONU Organização das Nações Unidas
PDT Partido Democrático Trabalhista
PF Policia Federal
PGR Procuradoria-Geral da República
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PSL Partido Social Liberal
PT Partido dos Trabalhadores
RE Recurso Extraordinário
REsp Recurso Especial
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
TCF Tribunal Constitucional Federal
TRF-4 Tribunal Regional Federal da 4ª Região
TSE Tribunal Superior Eleitoral
UNODC Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime
US United States
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 16
2 O DIREITO FUNDAMENTAL PROCESSUAL AO JUIZ NATURAL ............ 21
2.1. PRELIMINARMENTE: SOBRE A ESCOLHA DO PARÂMETRO
NORMATIVO............................................................................................................. 21
2.2. CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA E BASE NORMATIVA ........................... 23
2.3. ÁREA DE PROTEÇÃO ................................................................................. 25
2.3.1. Competência ................................................................................................ 26
2.3.2. Independência e imparcialidade ................................................................... 29
2.4. INTERVENÇÃO ESTATAL NA ÁREA DE PROTEÇÃO E SUA
JUSTIFICAÇÃO CONSTITUCIONAL ........................................................................ 36
3 O FENÔMENO DA VAZA JATO E A SUPOSTA PARCIALIDADE DE
MORO NO CASO LULA ........................................................................................... 38
3.1. CONTEXTO FÁTICO E PROCESSUAL ....................................................... 38
3.2. PREMISSA: OS DIÁLOGOS SÃO VERDADEIROS? ................................... 39
3.2.1. Confirmação por diversos veículos de mídia ................................................ 40
3.2.2. Verossimilhança entre os diálogos e os atos processuais ............................ 42
3.2.3. Ausência de negativa veemente e confirmação implícita ............................. 44
3.2.4. Inexistência de prova contrária quando deveria haver ................................. 45
3.2.5. Refutação prévia: confissão forjada.............................................................. 46
3.2.6. Conclusão intermediária ............................................................................... 47
3.3. OS DIÁLOGOS REVELADOS PERMITEM CONCLUIR QUE MORO FOI
PARCIAL? ................................................................................................................. 48
3.3.1. Apreciação informal da denúncia ................................................................. 48
3.3.2. Definição conjunta de como lidar com a opinião pública .............................. 50
3.3.3. Indicação de testemunha e participação em fraude processual ................... 52
3.3.4. Sugestão de inversão de fases da Lava Jato e escolha da jurisdição .......... 54
3.3.5. Conclusão intermediária ............................................................................... 58
4 INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA DO JUDICIÁRIO NO CASO LULA E
SEUS IMPACTOS NA DEMOCRACIA BRASILEIRA .............................................. 60
4.1. O JUIZ .......................................................................................................... 64
4.1.1. Pós-verdade na estratégia discursiva sobre a Vaza Jato ............................. 64
4.1.2. Levantamento ilegal de sigilo telefônico envolvendo Dilma .......................... 69
4.1.3. Despacho durante férias contra soltura de Lula ........................................... 74
4.1.4. Indignação com investigação de FHC .......................................................... 77
4.1.5. “Tabelinhas” processuais com o MP............................................................. 78
4.1.6. Condução coercitiva de Lula sem recusa prévia .......................................... 80
4.1.7. Divulgação da delação de Palocci 06 dias antes das eleições ..................... 82
4.2. O TRIBUNAL ................................................................................................ 84
4.2.1. Rejeição simplista de representação contra Moro ........................................ 85
4.2.2. Elogio público de seu presidente a Moro antes do julgamento da apelação 86
4.2.3. Velocidade de tramitação variável ................................................................ 88
4.3. O ÓRGÃO ACUSATÓRIO: COMPLÔ CONTRA ENTREVISTA DE LULA NA
PRISÃO ..................................................................................................................... 90
5 CONCLUSÃO............................................................................................... 93
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 97
16
1 INTRODUÇÃO
Vamos supor que uma pessoa tenha sido condenada por um crime que de fa-
to cometeu e pelo qual deveria responder, não sendo o caso, p. ex., de exclusão de
culpabilidade. Porém, há ampla evidência de que o juiz agiu de forma parcial durante
o processo (digamos, aconselhando o Ministério Público). A consequência jurídica
seria a nulidade do processo. Ponto.
Agora vamos supor que um juiz parcial tenha se utilizado da máquina judiciá-
ria para afastar da corrida eleitoral pela Presidência da República um candidato de
cuja ideologia política discordava e que, de acordo com as pesquisas eleitorais, lide-
rava isoladamente as intenções de voto. Suponhamos ainda que, como consequên-
cia direta desse afastamento, seja eleito um outro candidato — candidato esse que,
segundo as pesquisas, perderia tanto no primeiro como em um eventual segundo
turno para aquele candidato afastado. Para completar o caso hipotético, considere-
mos que o candidato eleito nomeie como ministro de seu governo o juiz que conde-
nou seu adversário político. O juiz aceita.
Por mais distópico que esse cenário possa parecer, existe uma real chance
de ter sido exatamente o que aconteceu no curso do processo que culminou na con-
denação, em julho de 2017, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelos crimes
de corrupção e lavagem de dinheiro no caso do triplex em Guarujá/SP. Lula termi-
nou seu mandato com 87% de taxa de aprovação1 e liderava as intenções de voto
na corrida eleitoral de 20182, seguido por Jair Messias Bolsonaro. A sentença foi
proferida por Sergio Fernando Moro, então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba e
atual ministro da Justiça e Segurança Pública do Governo Bolsonaro,
Essa hipótese ganhou força após o veículo de comunicação The Intercept di-
vulgar uma série de diálogos que ficou conhecida como “Vaza Jato”. Os diálogos
sugerem uma colaboração ilegal, por meio do aplicativo de mensagens privadas Te-
legram, entre Moro e Deltan Martinazzo Dallagnol, procurador do Ministério Público
Federal e membro da filial de Curitiba da força-tarefa da Operação Lava Jato — a
maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro da história brasileira.
1
Cf. Bonin em matéria do G1 (2010, documento online não paginado).
2
Cf. Sá Pessoa em matéria da Folha de S.Paulo (2018, documento online não paginado).
17
“lawfare”. Outros conceitos aos quais recorreremos para explicar esse cenário são o
de pós-democracia, referente ao desaparecimento dos limites ao exercício do poder
que caracterizam o Estado Democrático de Direito, e o de pós-verdade, que remete
a “circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes em formar a opini-
ão pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal”3.
A opção metodológica por realizar essa análise bipartite (primeiro jurídico-
dogmática, depois sociológica e político-científica) se deu a partir da constatação da
falta de clareza epistemológica que hoje perpassa o debate público sobre o assunto.
Não raro, quando se argumenta que determinada atuação do Judiciário foi motivada
politicamente a ponto de representar uma quebra na separação de poderes, a res-
posta de muitos é que a lei ou a jurisprudência permitia (ou ao menos não vedava
expressamente) essa atuação, não havendo que se falar em parcialidade. Para evi-
tar esse intercâmbio discursivo entre direito e política que parece apagar as linhas
que os diferenciam, primeiro investigaremos se houve uma atuação ilegal para, só
então, estabelecida essa premissa, debater sobre uma eventual influência política.
Cabe fazer aqui algumas clarificações quanto ao nosso objeto de estudo. Esta
pesquisa não é sobre se Lula é culpado ou inocente. Tal juízo de culpabilidade exigi-
ria uma análise minuciosa das provas do processo — tarefa necessária, porém que
foge ao nosso escopo. Esta pesquisa é sobre se Lula teve ou não um julgamento
imparcial. Por isso mesmo, nós lidamos com o melhor cenário possível de quem de-
fende a flexibilização de garantias processuais em prol da “verdade real”: mesmo
que Lula fosse culpado (juízo de culpabilidade que preferimos não fazer por limita-
ções temporais), caso seu processo tenha sido conduzido por um juiz parcial, será
nulo.
Em que pese também caber uma análise da atuação do MPF em face de pa-
râmetros normativos como a impessoalidade, a moralidade e a transparência admi-
nistrativas, ou ainda em face do princípio do promotor natural, principalmente com
relação ao procurador Deltan Dallagnol4, a presente pesquisa foca, na parte jurídico-
3
Cf. Oxford Dictionaries (2016, documento online não paginado).
4
Dentre as mensagens divulgadas pelo The Intercept que envolvem Deltan Dallagnol, consta que,
entre outras coisas: a) Dallagnol e outros procuradores teriam investigado ministros do STF,
buscando informações bancárias deles e de suas cônjuges; e b) Dallagnol e outro procurador teriam
tirado proveito do prestígio adquirido na Lava Jato para lucrar com palestras, inclusive criando uma
empresa em nome das respectivas cônjuges: "Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos
valores altos de palestras para nós, escaparíamos das críticas, mas teria que ver o quanto
perderíamos em termos monetários". Cf. Moreira (2019, documento online não paginado).
19
dogmática, apenas nas supostas violações perpetradas pelo ex-juiz Moro. Tampou-
co é objeto desta pesquisa se debruçar sobre o caso Lula como um todo, avaliando
cada ato judicial e valorando cada prova. Optou-se, ao contrário, por partir da se-
guinte premissa: se for comprovada a parcialidade de Moro, o processo estará eiva-
do de nulidade mesmo que tenha havido cometimento de crime pelo acusado.
Quanto ao fato de a sentença condenatória de Moro ter sido confirmada em
segunda instância pela 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em 24
de janeiro de 2018, embora essa seja uma parte importante do panorama geral, não
acreditamos que a opção metodológica por não abordá-la invalide a presente pes-
quisa (que se pauta nos diálogos revelados pelo The Intercept, cujo conteúdo não
implica, em princípio, a 8ª Turma do TRF-4). A uma, porque Moro continua sendo o
ator judiciário mais relevante no caso e sua parcialidade já implicaria em nulidade 5. A
duas, porque não se pode descartar a possibilidade de ter ocorrido parcialidade no
próprio segundo grau6, a qual abordaremos no último capítulo. Cite-se, por exemplo,
a rapidez com que a sentença de Moro foi confirmada pelo tribunal. O fato de o pri-
meiro e o segundo grau terem funcionado com uma agilidade nunca antes vista lan-
ça suspeitas legítimas de uma possível motivação política por trás, nomeadamente,
a de inviabilizar a candidatura de Lula.
Outra clarificação necessária é a de que, em princípio, as mesmas premissas
trabalhadas nesta pesquisa sobre o caso Lula poderiam servir para arguir a nulidade
de todos os processos da Lava Jato em que Moro atuou de forma determinante (ca-
paz de influenciar no resultado final). Então, por que se limitar ao caso Lula? Por
5
Não é raro se ouvir o seguinte argumento: “não há que se falar em nulidade porque se Lula tivesse
sido condenado tão somente por Moro ser parcial, sem nenhuma prova, a condenação não teria sido
confirmada pelo TRF-4 e STJ”. A nosso ver, contudo, essa visão não representa a leitura mais
adequada por subestimar a intensidade com que a atuação de um juiz parcial no primeiro grau pode
afetar o julgamento de instâncias superiores, p. ex. negando a produção de certas provas. Como
veremos mais adiante, o direito fundamental processual ao juiz natural não comporta intervenções
estatais, que restarão sempre injustificadas constitucionalmente. Assim, são irrelevantes, para fins de
nulidade do processo, que instâncias superiores confirmem um julgamento parcial, que não pode ter
seu vício “convalidado”.
6
Em um dos diálogos, não relativo ao processo de Lula, Dallagnol cita João Pedro Gebran Neto, um
dos membros do TRF-4 e relator no julgamento da apelação de Lula: “Falei com ele umas duas
vezes, em encontros fortuitos, e ele mostrou preocupação em relação à prova de autoria sobre
Assad…”. O julgamento em segundo grau nesse caso ainda não tinha ocorrido. Em que pese esse
diálogo não provar que o encontro ocorreu ou que se deu dessa forma, dado o contexto dos diálogos
revelados, é um cartão amarelo-alaranjado, senão vermelho. Afinal, se uma das partes tem a
informação privilegiada que o julgador acha fraca determinada parte de sua tese, tentará fortalecê-la,
colocando essa parte em vantagem em relação à outra; a decisão só pode ser comunicada nos
autos. Cf. Molica et al. em matéria da Veja (2019, documento online não paginado).
20
7
“Art. 5° [...] LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;”.
8
Entendimento que decorre do princípio da proporcionalidade, visto que o direito de defesa deve
preponderar no confronto com o direito de punir, cf. Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2007,
p.162). O STF tem manifestações nesse sentido, como no caso MAGRI (RE 212081/RO).
9
A jurisprudência da Suprema Corte norte-americana mitigou os rigores da teoria dos frutos da árvore
envenenada, admitindo uma série de cláusulas de exclusão da nulidade com vistas ao justo equilíbrio
entre a proteção aos direitos fundamentais e a eficiência da persecução criminal, cf. Joshua apud
Silva Júnior (2015, i. 9.1.6.2). Dentre essas regras de exclusão, pode-se citar: i) a fonte independente;
ii) o descobrimento inevitável; iii) a boa-fé (good faith); iv) a doutrina do purged taint ou dos vícios
sanados; v) a prova benéfica em prol do acusado; vi) o princípio da proporcionalidade ou balancing
test; vii) a destruição da mentira do imputado; viii) a teoria do risco; ix) a plain view doctrine e os
campos abertos; x) a renúncia do interessado; xi) a infração constitucional alheia; e xii) a infração
constitucional por pessoas que não fazem parte do órgão policial. Em detalhes, v. Hairbedián apud
Silva Júnior (2015, i. 9.1.6.2).
21
10
Apesar do nome, não se trata de um conceito geral de direito natural. Nada obstante, a justiça
natural guarda raízes históricas que remontam à justificação divina da proteção processual, cf.
Shauer (1976, p. 48-50). Mais sobre isso no tópico sobre a área de proteção.
11
Cf. Shauer (1976, p. 48).
22
do processo legal, entre nós, recebe tratamento distinto: trata-se de um direito fun-
damental processual12 cujo conteúdo não se retira da CF, mas é ditado pelo legisla-
dor ordinário (daí a nomenclatura devido processo “legal”), respeitadas outras garan-
tias da CF (ex.: o legislador não pode deixar de prever o direito à ampla defesa, por
força do art. 5°, LV) — precisamente aquelas garantias que a cultura anglo-saxã
considera como parte de sua área de proteção.
Em outras palavras, entre nós, o problema da imparcialidade é mais bem
abordado tendo como parâmetro o direito ao juiz natural porque a esse direito foi
concedido um status autônomo; e, em sendo assim, a melhor técnica sugere esse
parâmetro porquanto mais específico. De qualquer forma, para a proposta desta
pesquisa, essa discussão teórica tem pouco impacto substancial na análise: esta-
mos tratando da hipótese de um juiz parcial, o que é vedado por qualquer ordena-
mento jurídico independentemente da classificação dogmática do direito. Não por
outro motivo, fomos buscar na experiência norte-americana e inglesa critérios norte-
adores para auxiliar na determinação do estado da arte em relação à avaliação da
parcialidade de dado juiz.
Ao lado do devido processo legal, a ampla defesa também figura como um
candidato em potencial a servir de parâmetro normativo. É certo que, caso tenha
havido parcialidade, muito provavelmente terá havido também cerceamento de defe-
sa (poderia-se até afirmar que com certeza haveria, dada a fundamentalidade de
uma garantia como a de um juiz imparcial). Contudo, também é certo que um juiz
imparcial também pode incorrer em cerceamento de defesa. Como o cerne da viola-
ção vem da parcialidade, deixamos de lado, portanto, o direito à ampla defesa como
parâmetro.
Por fim, resta analisar o princípio acusatório, explícito na CF em seu art. 129,
I, e apontado como um dos princípios fundamentais a nortear o processo penal bra-
sileiro13. Uma análise da doutrina especializada14 revela que o sistema acusatório
configura-se muito mais na congregação de vários direitos (como presunção de não
12
Cf. Martins (2019, p. 176). Mais sobre essa classificação doutrinária, a mesma do direito ao juiz
natural, no tópico a seguir.
13
Ao lado do devido processo legal, da presunção de não culpabilidade, intimidade, ampla defesa e
liberdade, cf. Silva Júnior (2015, i. 9).
14
Cf. Fortuna et al. apud Silva Júnior (2015, i. 9.3).
23
15
O sistema acusatório tem como principais características: i) órgão acusador distinto do julgador,
garantindo a imparcialidade do juiz; ii) paridade de armas entre o Ministério Público e a defesa; iii)
produção das provas pelas partes; iv) observância do princípio da presunção de inocência (não
culpabilidade); v) limitação da prisão processual; vi) contraditório entre as partes; vii) oralidade; e viii)
publicidade; cf. Fortuna et al. apud Silva Júnior (2015, i. 9.3.).
16
Cf. Martins (2019, p. 176).
17
“Art. 5º [...] LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;”.
18
“Art. 5º [...] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”.
19
“Art. 5º [...] LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”.
20
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:”.
24
garantida pelo sistema acusatório (art. 129, I, CF 21), assente na separação das figu-
ras de acusador e julgador, em contraposição ao já superado22 sistema inquisitório.
No fundo, dificilmente alguém argumentaria que a garantia de ser julgado por
um juiz independente e imparcial não tem índole constitucional, mesmo que implícita
e por meio de uma interpretação sistemática de todos os dispositivos citados. A CF
tampouco fala em proporcionalidade; não obstante, uma intervenção estatal na área
de proteção de um direito fundamental que não resista ao teste de proporcionalidade
será inconstitucional23.
No plano infraconstitucional, o direito ao juiz natural, no que tange à indepen-
dência e à imparcialidade, é encontrado no art. 8° do Decreto n° 678, de 6 de no-
vembro de 199224, e, com redação praticamente idêntica, no art. 14 do Decreto n°
592, de 6 de julho de 1992. Tais decretos internalizaram (conferindo cogência de
direito interno25), respectivamente, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(Pacto de São José da Costa Rica) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos. Também está presente na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (art. 35, I
26
), embora de maneira incipiente.
21
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação
penal pública, na forma da lei.”.
22
Apesar de o sistema acusatório ter sido superado formalmente, o processo penal brasileiro ainda
guarda resquícios inquisitoriais, tanto na cultura jurídica quanto na própria lei. Cite-se, por exemplo, o
art. 28 do Código de Processo Penal, que prevê a ingerência do juiz na decisão sobre se é o caso de
arquivamento do inquérito policial ao invés de apresentação de denúncia, podendo “discordar” das
razões invocadas pelo próprio titular da ação penal, o Ministério Público. Saliente-se que esse e
outros dispositivos do CPP, que é da década de 40 e foi outorgado, devem ser interpretados à luz da
nova ordem constitucional, cf. Silva Júnior (2015, i. 9.3.1.).
23
Cf. Martins e Dimoulis (2014, p. 188).
24
“Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável,
por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na
apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos
ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”.
25
Atualmente, o Brasil adota um sistema dualista: para se equiparar ao direito interno, o tratado
assinado deve passar pelo Congresso Nacional e, após, pelo presidente para ratificação (arts. 49, I, e
84, VIII, ambos da CF). Contudo, parte da doutrina internacionalista defende que, mesmo assim, o
Judiciário deveria ter uma perspectiva monista, “onde normas internas e internacionais convivem
numa única esfera, fazendo parte de uma única ciência, a jurídica, mas cujas segundas gozam de
primazia sobre as primeiras”, bastando a assinatura do tratado para que seu cumprimento seja
exigível internamente. Sobre isso: Bichara (2015, p. 6). Em que pese o mérito dessa discussão
teórica (com inegáveis implicações práticas), ela não impacta na presente pesquisa por terem os
tratados citados sido devidamente ratificados.
26
“Art. 35 - São deveres do magistrado: [...] I - Cumprir e fazer cumprir, com independência,
serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício;”.
25
27
Cf. Conselho Nacional de Justiça (2008).
28
Cf. UNODC (2007).
29
Cf. Conselho da Justiça Federal (2008).
30
Cf. Martins (2019, p. 208).
31
Seria possível também incluir, como manifestação do direito ao juiz natural, a vedação a tribunais
de exceção (art. 5º, XXXVII, CF), visto que não se exige qualquer competência, mas especialmente
uma competência prévia. Assim como ocorre com a anterioridade penal, a competência deve ser
anterior justamente pelo risco de perseguição que advém com a possibilidade de tribunais ad hoc.
Contudo, optou-se por não se analisar, ao menos dogmaticamente, a vedação a tribunais de exceção
por se tratar de uma situação muito específica (jurisdição formada após o fato a ser julgado por essa
mesma jurisdição), de modo que aprofundar essa linha de análise se mostraria pouco profícuo para
os fins desta pesquisa. Sem embargo, no capítulo IV veremos que o recurso retórico à suposta
excepcionalidade da situação no intuito de afastar direitos fundamentais poderia ser considerado um
tribunal de exceção informal.
26
vem, como será visto, ao fim último de garantir a confiabilidade nas decisões do Es-
tado-Juiz.
2.3.1. Competência
32
Cf. Martins (2019, p. 221).
33
Cf. Martins (2019, p. 221).
34
Muito embora ser mais antiga a existência do arquétipo do juiz, assente na figura de um terceiro
justo e imparcial que resolve uma disputa entre duas ou mais partes com base em critérios que não
se confundem com seu interesse pessoal (pense-se, por exemplo, nas referências bíblicas aos
julgamentos proferidos pelo Rei Salomão).
35
“No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or possessions, or outlawed or
exiled, or deprived of his standing in any way, nor will we proceed with force against him, or send
others to do so, except by the lawful judgment of his equals or by the law of the land.” Cf. British
Library (2014, documento online não paginado).
27
aplicável. No caso do Dr. Bonham, o princípio de que nenhum homem pode julgar
sua própria causa é expresso como um princípio do "direito e razão comuns" que
vincula até mesmo o Parlamento (isso é algo bastante forte para os ingleses). O
princípio aparece ainda mais claramente em City of London v. Wood e em Day v.
Savadge, no qual é caracterizado como uma força imutável. Ou seja: o princípio do
juiz natural, mais que advir de uma lei positiva, era considerado tão fundamental a
ponto de ser uma lei de Deus e da natureza36. Daí se chamar justiça natural.
Percebe-se, pois, que o surgimento de um sistema prévio de competências
está umbilicalmente ligado à ascensão histórica do próprio Estado de Direito (rule of
law, Rechtsstaat) como forma de proteger o indivíduo de eventuais arbitrariedades
estatais. Isso é especialmente importante considerando que o Estado monopolizou
historicamente o uso legítimo da força37. Não por outro motivo, os direitos fundamen-
tais são considerados direitos de “resistência” à intervenção estatal 38, que sempre
deve ser justificada constitucionalmente.
A ligação entre competência e Estado de Direito perpassa pela ideia de sepa-
ração de poderes. Segundo Lord Acton39, barão e historiador britânico do século
XIX, "[p]ower tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely" e “[e]verybody
likes to get as much power as circumstances allow, and nobody will vote for a self-
denying ordinance”. Já para Montesquieu40, a experiência constante mostra que toda
pessoa investida no poder está apta a abusar dele e a exercer sua autoridade até
ser confrontada com limites. É com base nessas ideias que as democracias liberais
ocidentais, confrontadas com esse problema da própria natureza do poder, convergi-
ram para a solução da separação de poderes.
Caso os poderes Legislativo e Executivo estivessem concentrados em uma
única pessoa ou órgão, a liberdade estaria comprometida na medida em que o
mesmo monarca ou senado poderia aprovar e executar leis tirânicas. Analogamente,
se o Judiciário não fosse separado dos demais poderes, eventuais violações a direi-
tos não seriam combatidas, dado que seriam julgadas pelos próprios violadores.
36
Cf. Shauer (1976, p. 50).
37
Não é nosso objetivo fazer um escorço histórico completo sobre o surgimento e consolidação do
Estado de Direito.
38
Cf. Schlink (2017, p. 4).
39
Cf. Acton Institute (2019).
40
Cf. Montesquieu (2005).
28
41
Em sentido contrário, a doutrina do Critical Legal Studies Movement denuncia o caráter ideológico
dissimulado do pensamento jurídico liberal, oculto sob a pretensão de ser apolítico e inadmitir
qualquer conteúdo ideológico. Os crits defendem, assim, que as decisões judiciais não são
politicamente neutras, mas uma verdadeira versão estilizada do discurso político (Law is politics). Em
detalhe: Gaudêncio (texto policopiado, p. 3-4). Em que pese não ser a proposta desta pesquisa
adentrar nesse debate jusfilosófico, por clareza epistemológica, achamos oportuno explicitar que
discordamos da premissa do CLS, que pode ser classificada como uma espécie de funcionalismo
jurídico que esvazia o direito de qualquer autonomia, formal e material, em relação à política. Em
detalhe: Castanheira Neves (1998, p. 26-27). Direito e política não se confundem (ou não deveriam
se confundir).
42
Os EUA fogem a essa regra, com quase 90% dos juízes eleitos, cf. Briffault (2004, p. 1).
43
Cf. Martins (2019. p. 211).
29
ência fixada por juiz incompetente em razão da matéria e na qual restou condenado
criminalmente o reclamante. O TCF admitiu a Reclamação Constitucional e julgou-a
procedente por violação ao juiz natural, tendo em vista não se poder excluir a possi-
bilidade de o órgão julgador ter outra composição caso a fixação da data da audiên-
cia não fosse feita pelo juiz incompetente.
A decisão do TCF foi acertada. A garantia do juiz natural tem justamente o fito
de evitar o perigo de a Justiça ser exposta a (e manipulada por) influências externas.
A mera possibilidade de isso acontecer, nascida da não observância estrita das
competências legais e com capacidade de influenciar na decisão, justifica sua nuli-
dade. Diz-se “com capacidade de influenciar” porque, caso a composição do órgão
julgador tivesse sido obrigatoriamente a mesma, não haveria que se falar em nulida-
de — não obstante, o ônus de demonstrar a ausência de nulidade, mesmo com o
descumprimento de uma norma legal, é do órgão acusador, não da defesa44.
44
De acordo com o art. 563 do CPP, para que um ato seja declarado nulo, faz-se necessária a
demonstração de que esse ato gerou efetivo prejuízo para uma das partes. Trata-se da clássica
doutrina do “pas de nullité sans grief”, que surgiu para evitar um excesso de formalismo. Nessa linha,
a posição dos tribunais superiores é a de que incumbe à defesa, no processo penal, apontar o
prejuízo específico que sofreu em virtude de determinada irregularidade. Pouco importa se tratar de
uma nulidade relativa ou absoluta — divisão que inclusive perdeu sentido com essa postura
jurisprudencial, visto que em ambos os casos a demonstração do prejuízo é necessária. Sobre isso:
Silva Júnior (2015, i. 9.5.2.3.2). Contudo, segundo esses mesmos tribunais, a demonstração do
prejuízo se resume a provar que aquele ato influenciou na decisão da causa. Basicamente, uma
prova diabólica. Conforme trabalhado em detalhes por Souza (2016, p. 58 s.), como nem tudo que
influenciou na decisão da causa está explícito na fundamentação da decisão, como provar algo que
tem a ver com o próprio inconsciente do magistrado? O problema é que isso leva ao fenômeno da
“relativização das nulidades”, assente numa lógica de instrumentalidade utilitarista incompatível com
o processo penal, em que devem vigorar limitações ao dever-poder de punir do Estado. É bem
verdade que não se pode regredir a um fetichismo da forma, em que qualquer tipo de irregularidade,
por menor e mais insignificante que seja, leva à nulidade. Por outro lado, é preciso reconhecer que o
atual tratamento jurisprudencial das nulidades no processo penal brasileiro abre margem para
arbitrariedades, sendo necessário um realinhamento constitucional do princípio do prejuízo a partir da
revalorização do procedimento. A forma, isto é, o rito previsto em lei, é antes de tudo uma forma de
proteção do acusado contra arbitrariedades estatais. Logo, o descumprimento, pelo próprio Estado,
de uma lei (que é uma garantia do acusado em face desse mesmo Estado), por si só, já é
presumidamente prejudicial. O modelo de processo previsto pelo legislador não é um mero conselho,
tampouco está à disposição do magistrado para escolher o que seguir e o que não seguir, qual
transgressão à lei leva à nulidade e qual não leva. Assim, ainda com Souza (2016, p. 58 s.),
acreditamos que são necessárias duas mudanças fundamentais. Em primeiro lugar, o prejuízo não
deve ser visto como elemento necessário para declaração da nulidade, mas como “elemento cuja
ausência indica a inexistência de nulidade”. Isso porque se deve presumir o que ordinariamente
acontece. Em sendo a norma penal uma garantia do acusado, sua violação, em regra, deve acarretar
nulidade — a presunção deve ser de prejuízo. Em segundo lugar, não é o acusado que deverá provar
que houve prejuízo. Pelo contrário, é ônus do MP caracterizar a ausência de prejuízo, atraindo a
necessidade de fundamentação do Estado-Juiz, que deve zelar pela legalidade, sobre se realmente o
prejuízo inexistiu.
30
45
Cf. Martins (2019, p. 208).
46
Na tentativa de descobrir quais seriam as regras mais justas possíveis para vigorar em uma
sociedade, John Rawls (1997, p. 146 ss.) elaborou a noção de “posição original”, uma situação inicial
em que pessoas racionais, em condição de igualdade, e visando promover seus interesses sem,
todavia, terem conhecimento do seu projeto racional de vida, aceitariam os princípios universais de
justiça como a melhor maneira de assegurar seus objetivos. Como indivíduos que conhecem suas
circunstâncias tendem a ser enviesados por suas preferências e experiências, na posição original as
pessoas estariam cobertas por um “véu da ignorância” que os impede de saber informações
arbitrárias como: classe social; talentos naturais, habilidades, inteligência e força; concepção de bem
etc. O que elas sabem são os fatos genéricos da sociedade, como relações políticas, princípios da
teoria econômica, base da organização social e psicologia humana. Assim, o véu da ignorância
possibilitaria, na visão de Rawls, a escolha unânime de uma concepção de justiça para reger a vida
em sociedade, numa genuína conciliação de interesses. Rawls sofreu duras críticas, tendo sido
acusado de descrever, na posição original, o norte-americano liberal típico, visto que o próprio Rawls
estava condicionado às suas experiências e que ninguém existe “no vácuo”. Levando essa crítica a
sério, Rawls (2000) reformulou sua teoria por meio da noção de “consenso sobreposto”. Segundo
essa ideia, pessoas concretas, mediante um exercício reflexivo, perceberiam que doutrinas
abrangentes e razoáveis ainda assim seriam as mais adequadas para uma concepção política de
justiça.
47
De acordo com a definição de “direito” no Dicionário de Política de Bobbio, Matteucci e Pasquino
(1998, p. 349): “Essas normas têm como escopo mínimo o impedimento de ações que possam levar
à destruição da sociedade, a solução dos conflitos que a ameaçam e que tornariam impossível a
própria sobrevivência do grupo se não fossem resolvidos, tendo também como objetivo a consecução
e a manutenção da ordem e da paz social”.
31
48
Noção contratualista que vem desde Hobbes (2003).
49
Cf. Ambos e Choukr apud Silva Júnior (2015, i. 1.4.5.1).
50
Trata-se de entidade independente, autônoma, sem fins lucrativos e voluntária, de propriedade de e
dirigida por seus membros, todos os quais são ou foram ministros da justiça ou juízes em seus
respectivos países ou em nível regional ou internacional, tendo por objetivo principal aprofundar e
ampliar a qualidade da administração da justiça. Seu surgimento se deu pela evidência de que, em
muitos países, as pessoas estavam perdendo a confiança no Judiciário, considerado corrupto ou
parcial em algumas circunstâncias. Cf. Judicial Integrity Group (documento online não datado, p. 1-2).
51
A versão final do documento, inicialmente esboçado em 2001, em Bangalore (Índia), foi
oficialmente aprovada em 2002, em Haia (Holanda).
32
cia dos ramos executivo e legislativo do governo”. Não só isso, além de ser isento de
influências, “deve também parecer livre delas, para um observador sensato”52.
Já no que se refere à imparcialidade, a declaração estabelece que o juiz deve
assegurar que sua própria conduta, dentro e fora dos tribunais, “mantém e intensifica
a confiança do público, dos profissionais legais e dos litigantes na imparcialidade do
Judiciário”. E adiciona: um juiz deve se considerar suspeito ou impedido de participar
não só nos casos em que entenda não ser habilitado a decidir o problema imparci-
almente, mas também “naqueles em que pode parecer a um observador sensato
como não-habilitado a decidir imparcialmente”. A noção de confiança é retomada ao
se abordar o princípio da integridade: “[a] justiça não deve meramente ser feita, mas
deve ser vista como tendo sido feita”53.
Com maior utilidade no capítulo IV desta pesquisa, em que se investigará
uma potencial motivação política (e ilegal) por trás da suposta parcialidade de Moro,
o princípio da idoneidade prevê que qualquer informação confidencial que chegue ao
juiz no exercício de sua função “não deve ser usada ou revelada pelo juiz para qual-
quer propósito não relacionado com os deveres do juiz”. Tampouco pode aceitar fa-
vores “com relação a qualquer coisa feita, a ser feita, ou omitida de ter sido feita pelo
juiz em conexão com o desempenho dos deveres judiciais”. Por fim, é permitido que
o juiz sirva como membro em corpo oficial, comissão governamental, comitê ou cor-
po consultivo, mas apenas “se essa participação não é inconsistente com a percep-
ção de imparcialidade e neutralidade54 política de um juiz”55.
Assim, deve ser assegurada a confiança das partes litigantes e da opinião
pública na racionalidade dos tribunais. Essa confiança restaria prejudicada caso o
cidadão acreditasse estar diante de um juiz engajado em razão de seu caso e sua
pessoa56. Como será visto nos capítulos III e IV, no caso Lula há uma potencial trí-
plice violação: i) ao sistema de competências (juiz escolher réu); ii) à imparcialidade
52
Cf. Conselho da Justiça Federal (2008, p. 45-64).
53
Cf. Conselho da Justiça Federal (2008, p. 65-92).
54
Por opção epistemológica, iremos nos eximir de utilizar o termo “neutralidade”, preferindo os termos
“imparcialidade” e “equidistância”. Isso porque trabalhar com a ideia de alguém “neutro” poderia dar a
impressão de que um juiz não possui quaisquer vieses decorrentes de sua experiência de vida e
visão de mundo. Nós discordamos dessa premissa, que tem o condão de potencialmente invisibilizar
as discussões sobre esses mesmos vieses.
55
Cf. Conselho da Justiça Federal (2008, p. 93-122).
56
Cf. Martins (2019, p. 219).
33
(juiz ajudar uma das partes); e iii) à independência (juiz receber um prêmio político
— nomeação para ministro — por sua atuação parcial).
Difícil é a tarefa, contudo, de avaliar se determinado juiz agiu de forma parci-
al. Como escapar da inevitável falibilidade de se perscrutar o animus subjetivo do
magistrado? Como evitar subjetivismo na própria análise do subjetivismo? Tenha-se
em mente que o que está em jogo é a própria legitimidade das decisões judiciais, de
modo que declarar a nulidade de um julgamento com base na parcialidade de um
magistrado, se feito de modo temerário, pode ter um nefasto efeito cascata de levar
os jurisdicionados a duvidar que suas decisões foram realmente imparciais, gerando
uma grave instabilidade social, política e econômica.
Dito isso, a experiência do direito anglo-saxão pode ser útil ao nos fornecer
alguns parâmetros norteadores. O precedente mais recente na jurisprudência da
Suprema Corte norte-americana é o Hugh M. Caperton et al. v. A.T. Massey Coal
Company, Inc., et al. Nesse leading case, o empresário Hugh M. Caperton, proprie-
tário da Harman Mine, buscou indenização em face de A.T. A Massey Coal Com-
pany, uma produtora de carvão concorrente, por esta ter se utilizado de manobras
ilegais para forçar a Harman Mine à falência57.
Em 2002, o júri proferiu um veredicto de US $ 50 milhões em favor de Caper-
ton. Antes de Massey recorrer à Suprema Corte de Apelações da Virgínia Ocidental,
foram realizadas eleições judiciais, em 2004. O CEO da Massey, Don Blankenship,
apoiou o advogado local Brent Benjamin na disputa com o juiz McGraw. A quantia
total58 doada por Blankenship à campanha de Benjamin excedeu as de todos os
demais doadores combinadas. Benjamin venceu a eleição.
A recém-constituída Suprema Corte de Apelações ouviu o apelo de Massey.
Em uma decisão por 3-2, o juiz Benjamin votou com a maioria para anular o veredic-
to do júri. Caperton moveu uma moção para desqualificar o juiz Benjamin devido às
doações de Blankenship à sua campanha (bem como outro juiz, por razões separa-
das). Massey respondeu com uma moção para desqualificar o juiz Starcher, que ha-
57
Para mais detalhes, v. os comentários na Harvard Law Review (2009-2010, p. 73 s.).
58
Conforme restou registrado na decisão colegiada, Blankenship doou US $ 1000 (o máximo legal) a
Benjamin diretamente e também contribuiu com US $ 2,5 milhões para um grupo independente
chamado "And For The Sake Of The Kids", que tinha como alvo o juiz McGraw, concorrente de
Benjamin, por uma decisão que restabeleceu a liberdade condicional de um molestador de crianças.
Além disso, Blankenship também gastou mais de US $ 500.000 em despesas com publicidade na
televisão e mala direta.
34
59
Cf. Suprema Corte dos EUA (2009, p. 1-2).
60
Cf. Suprema Corte dos EUA (2009, p. 2-3).
35
61
Cf. Suprema Corte dos EUA (2009, p. 3).
62
Cf. Shauer (1979, p. 48).
63
Cf. Shauer (1979, p. 55).
36
uma organização que é parte ou quando um juiz foi advogado de uma das partes em
um estágio anterior do caso64.
Entendemos que ambas as soluções (da Suprema Corte dos EUA e da juris-
prudência inglesa), nos casos em que a suposta parcialidade não é movida por inte-
resses pecuniários, são confluentes na sua essência, muito embora o modo como a
problemática foi enfrentada tenha sido ligeiramente mais sofisticado nos EUA. Essa
essência, que nos será bastante útil para balizar a discussão do capítulo III, é a de
que uma investigação acerca da suposta parcialidade de um juiz prescinde de averi-
guar se o juiz foi ou não parcial no caso concreto (olhar a mente do juiz). Ao contrá-
rio, deve-se realizar um julgamento objetivo, mediante uma avaliação realista das
fraquezas e tendências psicológicas das pessoas, para saber se um juiz médio em
sua posição provavelmente seria imparcial ou se existe um potencial de enviesa-
mento inconstitucional.
64
Cf. Shauer (1979, p. 56).
65
Cf. Dimoulis e Martins (2014, 195 ss.).
66
Cf. Martins (2019, p. 209-211).
37
67
Retomaremos esse ponto no capítulo IV ao falarmos sobre pós-democracia.
38
Em julho de 2017, o ex-presidente Lula foi condenado pelo então juiz Sergio
Moro a 09 anos e 06 meses de prisão pelos crimes de corrupção e lavagem de di-
nheiro no caso do triplex em Guarujá/SP. Em janeiro de 2018, a 8ª Turma do TRF-4
ampliou a pena para 12 anos e um mês. Como o STF havia mudado seu entendi-
mento (em decisão longe de ser incontroversa) pela possibilidade de se iniciar o
cumprimento de pena após a condenação em segunda instância, Lula foi preso em
07 de abril de 2018. Em abril de 2019, o STJ reduziu a pena para 08 anos, 10 meses
e 20 dias.
Na noite de 09 de junho de 2019, o veículo de comunicação The Intercept di-
vulgou o primeiro de uma série de diálogos cujos supostos protagonistas são Deltan
Dallagnol, procurador do MPF e membro da força-tarefa da Operação Lava Jato em
Curitiba, e Moro, então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba e atual ministro da Justi-
ça e Segurança Pública. O teor da extensa comunicação escrita mantida entre essas
autoridades — que chegou à imprensa por fonte mantida em sigilo —, se verdadeiro,
sugere uma malversação do sistema acusatório consubstanciada numa colaboração
oculta entre os órgãos acusador e julgador.
Mesmo antes dos diálogos do The Intercept, um considerável número de juris-
tas já havia demonstrado reservas quanto a algumas das medidas tomadas pelo Ju-
ízo da 13ª Vara Federal de Curitiba. Cite-se, por exemplo, a determinação de condu-
ção coercitiva de Lula para prestar depoimento, inclusive sem negativa prévia, e a
divulgação para a grande mídia, por um juiz de primeira instância, de uma conversa
obtida ilegalmente entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff (voltaremos a es-
ses episódios no capítulo IV). Nesse contexto, a “Vaza Jato”, como ficou conhecida
a divulgação dos referidos diálogos, jogou nova luz ao ocorrido, tendo as vozes em
prol da nulidade do processo e da imediata soltura de Lula aumentado em quantida-
de e intensidade.
39
68
Além do caso do triplex, outros processos de Lula que contaram com a atuação de Moro também
podem vir a ter a nulidade declarada, como o processo que investigou a reforma do sítio em Atibaia
(SP) — em grau de recurso à época da conclusão desta pesquisa —, em que Lula foi sentenciado no
dia 06 de fevereiro de 2019 pela juíza substituta Gabriela Hardt a 12 anos e 11 meses de prisão. Há,
ainda, um terceiro caso em que Lula foi acusado de receber propina da Odebrecht para aquisição de
terreno para a sede do Instituto Lula. Moro aceitou a denúncia em dezembro de 2016, mas ainda não
havia sido proferida sentença até a conclusão desta pesquisa. Cf. Madeiro em matéria da UOL (2019,
documento online não paginado).
69
Cf. BBC News Brasil (2019, documento online não paginado).
70
Cf. Affonso e Macedo em matéria do Estadão (2019, documento online não paginado).
40
O The Intercept permitiu o acesso ao material que lhe foi entregue por uma
fonte anônima a vários veículos midiáticos de renome e de diferentes tendências
políticas (p. ex.: El País, Folha de S.Paulo e Veja). O resultado foi a certificação da
autenticidade do material por cada um desses veículos. Não se trata, aqui, de usar
uma reportagem como prova, mas de reconhecer que diversos jornais de credibili-
dade reconhecida e de orientações políticas divergentes, cada qual usando seus
71
Em 12 de junho de 2019, a força-tarefa do MPF (2019, documento online não paginado) divulgou
em nota: “A divulgação de supostos diálogos obtidos por meio absolutamente ilícito, agravada por
esse contexto de sequestro de contas virtuais, torna impossível aferir se houve edições, alterações,
acréscimos ou supressões no material alegadamente obtido. Além disso, diálogos inteiros podem ter
sido forjados pelo hacker ao se passar por autoridades e seus interlocutores. Uma informação
conseguida por um hackeamento traz consigo dúvidas inafastáveis quanto à sua autenticidade, o que
inevitavelmente também dará vazão à divulgação de fake news.”.
72
Cf. Greenwald em matéria do The Intercept (2019, documento online não paginado).
41
próprios métodos jornalísticos, apontaram todos para uma mesma conclusão. Mas
não nos contentemos com esse argumento de autoridade e vejamos quais são os
pontos específicos levantados por esses veículos para defenderem a veracidade do
material.
No dia 23 de junho de 2019, a Folha de S.Paulo publicou um editorial73 expli-
cando as razões pelas quais decidiu trabalhar em parceria com o The Intercept. No
editorial, a Folha relata que, dentre outros métodos que permitiram concluir que não
há indício de adulteração, seus repórteres buscaram nomes de jornalistas da própria
Folha no acervo obtido, tendo encontrado mensagens que realmente foram trocadas
por esses profissionais com integrantes da força-tarefa nos últimos anos.
Alguém negaria que, dada a repercussão internacional da Vaza Jato, que já é
considerada um dos acontecimentos mais relevantes da história brasileira recente,
uma reportagem demonstrando que o material é incongruente e apresenta sinais de
adulteração seria muito valioso do ponto de vista jornalístico? Se isso é verdade,
não seria plausível afirmar que seria do interesse comercial da Folha (e também da
Veja e El País), que tiveram acesso e analisaram mensagens que datam desde
2014, apontar qualquer sinal de inconformidade? Logo, também não seria plausível
afirmar que, se após perscrutar mensagens trocadas ao longo de meia década, ne-
nhum desses jornais foi capaz de achar uma única discrepância sequer, é porque
essas discrepâncias não existem?
O El País, por sua vez, publicou no dia 23 de julho de 2019 um artigo74 em
que apontava a semelhança entre a posição adotada pela procuradora Jerusa Viecili
nas mensagens investigadas e num artigo publicado por ela no próprio El País no
dia 28 de outubro, referente à crítica de que a força-tarefa não condenou posições
antidemocráticas de Bolsonaro, o que poderia levantar suspeitas de apoio tácito da
Lava Jato ao então presidenciável. Em resumo, o jornal espanhol demonstra que as
críticas feitas pela procuradora nas mensagens equivalem ao artigo que decidiu pu-
blicar no El País defendendo a exata mesma posição.
Já o Correio Braziliense publicou, também no dia 23 de julho de 2019, uma
entrevista75 com um procurador do MPF que era membro de alguns dos grupos de
73
Cf. Folha de S.Paulo (2019, documento online não paginado).
74
Cf. Jiménez em matéria do El País (2019, documento online não paginado).
75
Cf. Souza em matéria do Correio Braziliense (2019, documento online não paginado).
42
76
Cf. Redação da Veja (2019, documento online não paginado).
77
Cf. Greenwald et al. em matéria da Veja (2019, documento online não paginado).
78
Cf. Oliveira em matéria do El País (2019, documento online não paginado).
43
79
Cf. Rocha; Farah; Motta em matéria do BuzzFeed News (2019, documento online não paginado).
80
Em casos de erros ortográficos ou grafias estranhas, muitos recomendam a utilização da
expressão “sic” entre colchetes para sinalizar que se trata da grafia original do autor citado, e não de
um erro de digitação de quem citou. Contudo, por estarmos analisando diálogos obtidos de um
aplicativo de mensagens privadas, a linguagem coloquial, a falta de acentuação e o uso corriqueiro
de abreviações nos obrigaria a inserir essa expressão diversas vezes numa mesma frase,
prejudicando sua compreensão. Por isso, optamos por não sinalizar os desvios da norma padrão
presentes nos diálogos analisados nesta pesquisa.
81
O executivo da Toyo Setal Augusto Mendonça, o operador de propinas Mário Góes e o ex-gerente
da Petrobras Pedro Barusco.
44
bro, visivelmente descontente: “[o]lha está um pouco difícil de entender umas coisas.
Por que o MPF recorreu das condenações dos colaboradores Augusto, Barusco e
Mario Goes na ação penal 5012331-04? O efeito pratico é impedir a execução da
pena”.
Dallagnol, algumas horas depois, ainda tenta argumentar sobre a necessida-
de do recurso, mas Moro não se convenceu:
Também não deve passar despercebido que Moro (assim como Dallagnol)
jamais negou de modo contundente os diálogos — ao contrário, tentou justificá-los e
ainda os admitiu tacitamente. Tampouco apontou de modo específico uma única fra-
se que teria sido forjada ou adulterada, se limitando a contestar genericamente a
autenticidade do material. Não se trata, aqui, de acusar uma pessoa com base em
um aspecto tão subjetivo como o modo que ela reagiu a uma acusação para deter-
minar a veracidade dessa mesma acusação, mas de apontar algumas incongruên-
cias que corroboram ainda mais às evidências que estamos tratando neste tópico.
O cerne da controvérsia é a acusação de que Moro não cumpriu seu papel de
juiz, tendo se comportado mais como parte. Trata-se de uma acusação gravíssima.
Para fazermos uma analogia, é como se um administrador estivesse sendo acusado
de roubar dinheiro da sua empresa ou um político de receber propina para votar a
favor de determinado projeto de lei.
45
82
Cf. Folha de S.Paulo (2019, documento online não paginado).
83
Cf. Vassallo e Macedo em matéria do Estadão (2019, documento online não paginado).
46
Essa conveniência é suspeita por si só, mas a situação fica ainda mais grave
pelo teor público dessas mensagens. Se eram comunicações entre dois servidores
públicos sobre um assunto público (processos judiciais em curso dos quais eram
atores), será que é razoável considerar normal o fato de que esses servidores des-
truíram todas as evidências que poderiam corroborar sua alegação de que o material
teria sido adulterado, ainda mais quando isso os deixa na (cômoda) posição de
questionar a autenticidade do arquivo sem que possa haver uma evidência contrá-
ria?
Como bem apontado pelo The Intercept84, “tão escandalosa e antiética quanto
a conduta revelada nas mensagens” é a justificativa apresentada para explicar a im-
possibilidade de se produzir qualquer evidência para corroborar insinuações vagas
de adulteração: “nós destruímos permanentemente todas as provas, mesmo que o
material seja relativo a processos judiciais pendentes e ao nosso trabalho de inte-
resse público”. Afinal, mesmo que a intenção fosse remover esse material de seus
telefones para evitar ataques de hackers, por que não salvar tais transcrições (por
exemplo, numa cópia física) de modo que pudessem permanecer acessíveis por tri-
bunais ou pelo registro histórico das atividades de autoridades públicas?
Por precaução, é necessário abordar uma hipótese levantada pelo jornal The
Intercept85: segundo uma fonte anônima, a Polícia Federal estaria considerando rea-
lizar uma operação visando a obter uma confissão de adulteração de um suposto
“hacker”.
Mesmo que tal confissão surja após a publicação desta pesquisa, é necessá-
rio apontar que ela possuiria baixíssima plausibilidade frente a todos os critérios
apresentados neste tópico e sumarizados na conclusão intermediária a seguir, em
especial após a possibilidade de uma confissão forjada ter chegado ao The Inter-
cept.
84
Cf. Greenwald e Demori em matéria do The Intercept (2019, documento online não paginado).
85
Cf. Greenwald e Demori em matéria do The Intercept (2019, documento online não paginado).
47
86
Para Thomas Bayes (1701-61), estatístico e filósofo inglês, a probabilidade de verdade de uma
proposição é determinada pelo acúmulo incremental de evidências. Cf. Levitin apud d’Ancona (2018,
p. 109).
87
Para Oliver Wendell Holmes: “O melhor teste da verdade é o poder do pensamento ser aceito na
concorrência do mercado, e essa verdade é o único terreno sobre o qual a vontade (dos homens)
pode ser posta em prática seguramente”. Cf. d’Ancona (2018, p. 59).
88
Novamente: como já salientado na introdução, a CF veda a utilização de provas obtidas por meio
ilícito para incriminar alguém. Não se trata de exigir de Moro que prove sua inocência sob pena de
considerá-lo culpado, o que certamente seria regredir em relação à racionalidade das garantias
penais aprimoradas ao longo da história. Mas é possível utilizá-las em favor dos réus.
89
Em detalhes, v. Greenwald (2014).
90
O jornalista citou ainda, na entrevista ao Roda Viva (2019), dois outros casos de jornalismo no
mundo democrático baseado em fontes que adquiriram informações de maneira ilícita,
nomeadamente: o dos Pentagon Papers e o de Hillary Clinton. No primeiro, foram enviados ao The
New York Times documentos obtidos ilicitamente que mostravam que o governo dos EUA estava
mentindo sobre a Guerra do Vietnã. No segundo, os jornais publicaram informações hackeadas de
Hillary Clinton durante a corrida presidencial em 2016. E concluiu: “[o] jornalismo mais importante e
mais premiado muitas vezes vem de fonte que cometeu crime [para obter a informação]”.
48
91
Estratégia típica da pós-verdade, conforme discutiremos em tópico próprio. Em detalhe, v. Lipstadt
apud d’Ancona (2018, p. 75).
92
Cf. Martins, Rafael e Greenwald em matéria do The Intercept (2019, documento online não
paginado).
49
setembro (02 dias depois da apresentação da denúncia), que utilizara provas indire-
tas, o que atrairia a crítica de ausência de provas. Sugeriu a Moro, pois, que esses
pontos fossem abordados no recebimento da denúncia93:
Ainda, como a prova é indireta, ‘juristas’ como Lenio Streck e Reinaldo Aze-
vedo falam de falta de provas. Creio que isso vai passar só quando eventu-
almente a página for virada para a próxima fase, com o eventual recebimen-
to da denúncia, em que talvez caiba, se entender pertinente no contexto da
decisão, abordar esses pontos[.]
93
Para uma maior clareza, o procedimento comum ordinário no processo penal pode ser resumido
nas seguintes etapas: i) oferecimento da denúncia pelo MP ou queixa-crime pelo particular; ii)
recebimento pelo juiz da denúncia ou queixa-crime, ou sua rejeição liminar; iii) citação do acusado; iv)
resposta à acusação pelo acusado; v) possibilidade de absolvição sumária; vi) possibilidade de
rejeição da denúncia ou queixa-crime; e vii) audiência de instrução, debates e julgamento. Em
detalhes, v. Badaró (2015, p. 592).
94
Cf. Santos em artigo no site Justificando (2019, documento online não paginado).
50
Com relação ao juízo prévio sobre a prova, em uma análise a contrario sensu,
se Moro afirma que as críticas sobre a falta de provas são desproporcionais, o signi-
ficado disso é que as provas são suficientes. Já no que se refere ao espírito de cola-
boração, em uma interpretação gramatical da expressão “Siga firme” — composta
por um verbo (seguir) no imperativo, expressando uma ordem, e um adjetivo (apesar
de tratar-se mais de um advérbio, já que o sentido era de “seguir firmemente“ ou “de
modo firme”) —, não é desarrazoado afirmar que se trata de um sentimento de segu-
rança e confiança que Moro objetiva passar a Dallagnol, sugerindo que seus esfor-
ços estavam sendo empregados de forma correta. Em outras palavras, adiantando
sua decisão por receber a denúncia.
95
Cf. Partido dos Trabalhadores (2019, documento online não paginado).
96
Cf. Martins, Santi e Greenwald em matéria do The Intercept (2019, documento online não
paginado).
97
Cf. CartaCapital (2019, documento online não paginado).
98
Cf. Martins et al. em matéria do The Intercept (2019, documento online não paginado).
51
99
Cf. Folha de S.Paulo (2017, documento online não paginado).
52
Conforme as partes 04100 e 05101 dos diálogos do The Intercept, Moro teria
enviado a seguinte mensagem a Dallagnol em 07 de dezembro de 2015:
Nós lá na 13ª Vara Federal, pela notoriedade das investigações, nós rece-
bíamos várias dessas por dia. Eu recebi aquela informação e, aí assim, va-
mos dizer, foi até um descuido meu, apenas passei pelo aplicativo. Mas não
tem nenhuma anormalidade nisso. Não havia nem ação penal em curso[.]
Ou seja, mesmo para aquele leitor que não tenha se convencido pelo tópico
sobre a validade dos diálogos, esse diálogo foi confirmado pelo próprio Moro. Ade-
100
Cf. Martins, Santi e Greenwald (2019, documento online não paginado).
101
Cf. The Intercept (2019, documento online não paginado).
102
Cf. Mattoso em matéria da Folha de S.Paulo (documento online não paginado).
53
Contudo, os dispositivos legais citados por Moro não se aplicam nesse caso.
Isso porque tratam de uma comunicação formal da notícia-crime dentro do processo,
de forma transparente. No caso do diálogo acima, por outro lado, Moro repassou por
Telegram, fora dos autos e privadamente (procedimento que uma interpretação a
contrario sensu dos dispositivos citados desautoriza), uma possível fonte que pode-
ria instruir o caso do MP contra Lula, o mesmo caso que viria a julgar. Não só isso,
de forma temerária, relativiza a necessidade de equidistância em relação às partes
como uma mera formalidade, e sua transgressão como mero descuido, nunca um
ilícito. Retomaremos isso no capítulo IV, mas saliente-se desde já que até textos
tendencialmente democráticos podem justificar arbitrariedades nas mãos de intér-
pretes autoritários107.
Além da indicação de testemunha, o diálogo continua com Dallagnol relatan-
do a Moro que o denunciante com a suposta pista sobre Lula se recusara a falar
com o MP, apresentando uma solução: “Estou pensando em fazer uma intimação
103
Cf. Rocha e Marques em matéria da Veja (2019, documento online não paginado).
104
Cf. Folha de S.Paulo (2019, documento online não paginado).
105
“Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a
existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos
necessários ao oferecimento da denúncia.”.
106
“Art. 7º Se, no exercício de suas funções, os juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que
possam ensejar a propositura da ação civil, remeterão peças ao Ministério Público para as
providências cabíveis.”.
107
Cf. Casara (2017, p. 107).
54
oficial até, com base em notícia apócrifa”. Ao que Moro responde: "Melhor formalizar
entao", conferindo chancela judicial a uma simulação processual.
A notícia apócrifa à qual o diálogo se refere nada mais é que a chamada de-
núncia anônima (via “disque-denúncia”, p. ex.). Ela ocorre quando alguém, sem se
identificar, relata para as autoridades (Delegado de Polícia, MP etc.) a prática de
determinado crime. Apesar de, por si só, essa denúncia anônima não ser idônea pa-
ra deflagrar a instauração de inquérito policial, ela é uma dica inicial para que as au-
toridades procurem mais elementos que possam formar uma justa causa108.
Ocorre que, no caso acima, não se trata de uma denúncia anônima legítima.
A pessoa que faria essa denúncia não mais quer fazê-la, e Dallagnol sugere fraudar
uma notícia apócrifa para obrigá-la a depor. Ou seja, o conteúdo da “denúncia anô-
nima” (fabricada) que justificaria Dallagnol chamar alguém para depor é o próprio
conteúdo que essa pessoa forneceria. E Moro, no papel a quem o ordenamento jurí-
dico reserva a função de julgar transgressões à lei (juiz), não só não repreende a
fraude processual, mas dá seu aval. Se não for o juiz a impor limites ao órgão acu-
sador, que é parcial por natureza, obrigando-o a seguir a lei no seu afã investigató-
rio, quem o fará? Nas palavras do poeta romano Juvenal109: Quis custodiet ipsos
custodes? Quem guardará os guardiões?
21 de fevereiro de 2016
Moro – 01:09:56 – Olá Diante dos últimos . desdobramentos talvez fosse o
caso de inverter a ordem da duas [fases da operação Lava Jato] planejadas
Deltan – 11:12:04 – O problema é o risco de nos atropelarem em SP ou em
BSB. Queríamos antes, mas tem a festa do PT… Uma semana pode fazer
108
Cf. Badaró (2015, p. 124).
109
Em “Sátiras”, coleção de poemas do final do Século I e início do Século II.
110
Cf. The Intercept (2019, documento online não paginado).
55
27 de fevereiro de 2016
Deltan – 12:37:48 – Há uma reclamação sobre competência com ela [Minis-
tra Rosa Weber, do STF]. Defesa alega que MPF e MPSP estão investigan-
do mesmo fato e cabe ao STF decidir então pede suspensão das inv [inves-
tigação] até decisão quanto a quem é competente
Moro – 12:41:32 – Humm. Até onde tenho presente, ela é pessoa seria. Nao
tem tb a tendência de entrar em bola dividida. Mas claro, tudo é possível.
13 de março de 2016
Moro – 20:50:01 – Nobre, isso nao pode vazar, mas é bastante provavel
que a acao penal de sp seja declinada para cá se o LL nao virar Ministro an-
tes
Deltan – 22:15:50 – Ok
Deltan – 22:15:55 – Obrigado!
mais de 05 termos de depoimento por dia, o último deles iniciado às 23h15min 111.
Em outras palavras, havia uma corrida entre os procuradores pelo “privilégio” de
acusar Lula.
Com relação à inversão das fases, o diálogo entre Moro e Dallagnol coincide
com a movimentação oficial referente à deflagração da operação Aletheia, na qual
ocorreu a condução coercitiva do ex-presidente Lula. Comparando os diálogos aos
autos da Aletheia112, percebe-se que o diálogo (que aconteceu entre a madrugada e
o início da tarde do domingo de 21 de fevereiro) se deu menos de 24 horas após o
MPF requerer, numa peça de 89 páginas, autorização para busca e apreensão em
30 endereços de Lula, familiares e pessoas ligadas a ele, sem contudo requerer ne-
nhuma medida adicional sobre Lula. Em resumo, em que pese a força-tarefa ter se
limitado a pedir a Moro uma busca e apreensão em imóveis de Lula, Moro achou
melhor não postergar a condução coercitiva, que ficaria (e de fato ficou) para depois,
conforme documento protocolado pelo MPF em 24 de fevereiro. Tudo isso num con-
texto de se compreender qual seria a melhor forma de atrair a competência para Cu-
ritiba em detrimento de SP ou de Brasília.
Para garantir que o caso de Lula ficaria em Curitiba, Dallagnol criou uma co-
nexão entre o caso do triplex e o caso da Petrobras, que já estava sendo julgado por
Moro. A tese do MP era de que o triplex teria sido reformado pela empreiteira OAS e
doado a Lula como propina em contratos com a Petrobras, imputando-se a Lula os
crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Num contexto de duras críticas
e chacotas da opinião pública referentes à fragilidade da denúncia (“não temos pro-
va, mas temos convicção”113) e ao PowerPoint que apresentou na entrevista coleti-
va, Dallagnol confessou a Moro, além de que “a denúncia é baseada em muita prova
indireta de autoria” (como já abordado no tópico sobre a apreciação informal da de-
núncia), que:
111
Rocha e Motta em matéria do BuzzFeed News (2019, documento online não paginado).
112
Rocha e Motta em matéria do BuzzFeed News (2019, documento online não paginado).
113
Frase que não foi literalmente dita na entrevista, sendo uma sumarização dos críticos com base na
fala de Dallagnol. Cf. matéria do G1 (2019, documento online não paginado).
57
114
Cf. Estado de Minas (2016, documento online não paginado).
115
Cf. Affonso et al. em matéria do Estadão (2016, documento online não paginado).
58
Diante do exposto, tendo em vista que (i) Moro apreciou informalmente a de-
núncia contra Lula, adiantando decisão de mérito sobre suficiência das provas; (ii)
ajudou a definir a estratégia de atuação midiática de uma das partes contra a outra,
inclusive utilizando-se de linguagem depreciativa; (iii) indicou, de modo confesso e
afastando qualquer dúvida sobre a autenticidade ao menos dessas mensagens em
específico, uma testemunha para fortalecer o caso contra o réu que viria a julgar,
além de aquiescer com flagrante desrespeito à lei quando deveria repreendê-lo, em
verdadeira simulação processual; e (iv) demonstrou um mínimo de interesse em ga-
rantir a competência do juízo de Curitiba; conclui-se que — do ponto de vista de um
59
juiz médio, prescindindo-se de uma análise subjetiva sobre a psique do juiz concreto
— o risco de Moro ter tido a intenção prévia de julgar Lula e de ter efetivamente
aconselhado o MP em prejuízo da defesa é alto demais para ser constitucionalmente
tolerável. Não só isso, mesmo no melhor cenário possível, em que Moro não teria a
intenção de ser parcial, os pontos acima elencados têm o condão de serem percebi-
dos como uma atuação parcial aos olhos de um observador sensato, afetando a ne-
cessária confiança no Judiciário. Assim, Moro incorreu em uma intervenção estatal
injustificada no direito fundamental processual de Lula ao juiz natural e, mais especi-
ficamente, no disposto no art. 254, IV116, c/c art. 564, I117, ambos do CPP.
116
“Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das
partes: IV - se tiver aconselhado qualquer das partes;”.
117
“Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: I - por incompetência, suspeição ou suborno
do juiz;”.
60
118
A pesquisa tem margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos. Foram
ouvidos 8.433 eleitores em 313 municípios de 20 e 21 de agosto. O nível de confiança utilizado é de
95%, ou seja, há uma probabilidade de 95% de os resultados retratarem de modo fidedigno o
momento eleitoral da época (considerando a margem de erro).
Cf. matéria do G1 (2018, documento online não paginado).
61
119
É verdade que Moro condenou diversos outros políticos, porém isso não invalida o fato de que
ficou conhecido no Brasil principalmente por julgar o caso de Lula, maior líder político do PT e que
poderia voltar a ser eleito em 2018. O “antipetismo” foi um dos sentimentos cultivados na campanha
eleitoral de Bolsonaro e do qual Moro se tornou um símbolo.
120
A expressão costuma ser atribuída ao cientista político inglês Colin Crouch, que focou sua análise
na transferência do poder decisório para as grandes corporações (um “governo das finanças”). Essa
visão é mais adequada ao Norte global, que possui historicamente um maior compromisso com os
direitos fundamentais e que assistiu tentativas mais consistentes de implementação do Estado do
Bem-Estar Social. Porém, a pós-democracia revela-se ainda mais problemática em países da
América Latina e da África (o Sul global), em que sequer existe a fachada democrática descrita por
Crouch na medida em que concepções abertamente autoritárias e a não concretização de direitos
básicos ameaçam os próprios valores da democracia liberal. Em detalhes, v. Casara (2017, p. 23-25).
121
Cf. Canotilho (1997, p. 100).
122
Cf. Casara (2017, p. 23).
62
motivado à luz das provas e da lei, mas antes ocorre a desconsideração de direitos
fundamentais a partir de uma “fundamentação” nos moldes da pós-verdade.
“Pós-verdade”, por sua vez, foi eleita pela Oxford Dictionaries123 como sua pa-
lavra do ano em 2016 (ano em que ocorreu a eleição de Trump, o Brexit, a denúncia
de Lula na Lava Jato e o impeachment de Dilma) e é definida como “circunstâncias
em que os fatos objetivos são menos influentes em formar a opinião pública do que
os apelos à emoção e à crença pessoal”. Trata-se de uma nova fase de combate
político, baseada no populismo e no desmoronamento do valor da verdade, capaz
de abalar as próprias bases das instituições democráticas124.
Diz-se que o Estado Pós-Democrático adere aos postulados da pós-verdade
porque o desapego a limites ocorre muitas vezes em nome de slogans atraentes
para a população, como “interesse público”, “combate à corrupção”, “segurança pú-
blica”, dentre outros termos gerais passíveis de instrumentalização para exercer um
maior controle social125. Mesmo que não haja comprovação fática de que certas
ações (desde decisões arbitrárias até projetos de lei que visam ao endurecimento
das penas) levam aos resultados prometidos (diminuição da criminalidade, aumento
da segurança etc.), esses chavões são explorados por lideranças carismáticas e
pouco democráticas, cuja atuação messiânica ocorre sem limites como a separação
de poderes e respeito aos direitos fundamentais126. Esse “salvador da pátria” pode
vir na forma de um juiz midiático (“messianismo jurídico”), um militar que faz apologia
a ditaduras (“messianismo bélico”) ou um empresário bem-sucedido (“messianismo
empreendedor”)127. No Brasil, esse quadro ocorre com ainda maior facilidade pela
forte tradição autoritária128. Nesse contexto, não surpreende que, segundo o Datafo-
123
Cf. Oxford Dictionaries (2016, documento online não paginado).
124
Cf. d’Ancona (2018, p.14).
125
Cf. Casara (2017, p. 71-72).
126
Daí o perigo de se afirmar que a finalidade do processo penal é encontrar a “verdade real”. A uma,
porque a “verdade” é um todo, impassível de ser atingida (dentro e fora do processo penal) pela
própria falibilidade humana, cf. Carnelutti (1995, p. 83). A duas, porque a verdade cada vez mais
transmuta-se na pós-verdade, sujeita a manipulação.
127
Cf. Casara (2017, p. 182).
128
De acordo com Casara (2017), a pós-democracia tomou corpo no Brasil com o julgamento do
Mensalão (AP 470), perpassando pela Operação Lava Jato e pelo impeachment de Dilma, episódios
que teriam em comum a manipulação do significante “corrupção” para afastar direitos fundamentais.
63
lha, 57% dos brasileiros concordem com a afirmação “bandido bom é bandido mor-
to”129.
Tais slogans são utilizados para justificar discursivamente até mesmo a cola-
boração entre os órgãos acusatório e decisório e a desconsideração das formas
processuais, que passam a ser percebidas como obstáculos a serem superados em
prol da eficiência repressiva contra os que são considerados “inimigos”. Em suma, a
ilegalidade (e por que não dizer, corrupção) é praticada em nome do combate à essa
mesma ilegalidade ou corrupção. Se antes o paradigma era o da concepção liberal
do Sistema de Justiça Criminal, voltado à racionalização e contenção do exercício
do poder penal, no Estado Pós-Democrático tais limites são afastados no afã de
confirmar a hipótese acusatória.
Já lawfare pode ser definido130 como o uso indevido de instrumentos legais
com o objetivo de perseguição política, destruição da imagem pública e desqualifica-
ção de um adversário político. Por meio da combinação de ações aparentemente
legais com uma ampla cobertura midiática, procura-se pressionar o réu e até mesmo
seus familiares para torná-lo mais vulnerável a acusações sem provas, uma vez que
não conta com apoio popular. Para tanto, o papel dos meios de comunicação em
massa, que vai desde elaborar hipóteses acusatórias até (pré-)julgar os acusados
sem os limites que a lei impõe ao Judiciário, é essencial. Não raro, os julgamentos
midiáticos, que antecedem os julgamentos jurídicos, influenciam estes na medida
em que muitos juízes também querem ser “festejados” pela mídia131.
Nesse contexto, três dinâmicas e um ator-chave convergem para a constru-
ção do lawfare132: i) timing político, consubstanciado na utilização, como arma, do
processo judicial em momentos específicos de alto custo político para a pessoa ou
grupo desacreditado; ii) reorganização do aparato judicial, com o posicionamento em
espaços-chave, pelas elites que detêm o controle do Estado, de técnicos (advoga-
dos, juízes, promotores) comprometidos politicamente com essas elites; iii) aplicação
129
Cf. matéria do G1 (2016, documento online não paginado).
130
Cf. paper do Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica (CELAG) sobre Lawfare e
judicialização da política na América Latina (2017, documento online, p. 1-12). O termo tem sua
origem em um livro de 1999 sobre estratégia militar, significando originalmente "um método não
convencional de guerra no qual a lei é usada como um meio para atingir um objetivo militar". Cf.
Holzer em artigo no Harvard National Security Journal (2012, documento online não paginado).
131
Cf. Casara (2017, p. 99).
132
Cf. artigo no CELAG (2017, documento online, p. 1-12).
64
de duplos padrões à lei, em que embora vários casos de corrupção venham à tona,
alguns são escolhidos para se acompanhar mais de perto, enquanto outros são tor-
nados invisíveis ou mesmo descartados; e iv) meios de comunicação massivos e
concentrados133, que atuam na manipulação da opinião pública por meio da amplia-
ção de alguns casos e invisibilização de outros, construindo consentimentos artifici-
ais. Conforme veremos adiante, todos esses elementos estão presentes no caso
Lula e na Lava Jato como um todo.
Uma última nota metodológica antes de prosseguirmos. No capítulo anterior,
fomos mais restritos com relação ao objeto da análise, tanto do ponto de vista subje-
tivo (apenas analisamos as ações de Moro, não de Dallagnol, outros procuradores
implicados pelo diálogos ou do TRF-4) quanto objetivo (apenas aquelas ações com
ligação direta com o caso Lula). Neste capítulo, de forma a não limitar a análise no
sentido macro, nos permitimos ampliar o escopo da pesquisa para abarcar as ações
de três atores: o juiz, o tribunal e o órgão acusatório.
4.1. O juiz
133
Cinco famílias controlam metade dos 50 veículos de comunicação com maior audiência no Brasil,
de acordo com a pesquisa Media Ownership Monitor ou MOM, financiada pelo governo da Alemanha
e realizada em conjunto pela ONG brasileira Intervozes e a Repórteres Sem Fronteiras (RSF),
baseada na França. O maior é o Grupo Globo, da família Marinho, que detém nove desses 50
maiores veículos. Segundo os autores da pesquisa, uma “dimensão central da concentração na mídia
brasileira” é a propriedade cruzada. O caso dos Marinho é o mais conhecido, mas se reproduz com
outras famílias: seu conglomerado vai desde emissoras de rádio (CBN e Rádio Globo), TV aberta
(rede Globo, líder de audiência) e fechada (GloboNews e outros 30 canais), até jornais, revistas e
sites como O Globo, Extra, Valor Econômico e a revista Época. Para evitar que o conteúdo
transmitido à população corresponda unicamente à vontade dessas famílias, o parágrafo 5º do art.
220 da CF prevê que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser
objeto de monopólio ou oligopólio”. Porém, este artigo e outros que dizem respeito à comunicação
social nunca foram regulamentados pelo Congresso, resultando em um marco legal ineficiente
combinado com a ausência de fiscalização pelas autoridades competentes mesmo das leis já
existentes. Em detalhes, v. matéria da CartaCapital. Saliente-se que 32 deputados federais e 8
senadores da 55ª legislatura (2015-2019) são proprietários de emissoras de rádio e TV, cf. matéria do
Media Ownership Monitor Brasil (2019, documento online não paginado).
134
Cf. Delgado em matéria da Valor (2019, documento online não paginado).
65
09/06/2019
Às 21h55 em nota divulgada pelo Ministério da Justiça
"Sobre supostas mensagens que me envolveriam publicadas pelo site The
Intercept neste domingo, 9 de junho, lamenta-se a falta de indicação de fon-
te de pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procura-
dores. Assim como a postura do site que não entrou em contato antes da
publicação, contrariando regra básica do jornalismo"
"Quanto ao conteúdo das mensagens que me citam, não se vislumbra qual-
quer anormalidade ou direcionamento da atuação enquanto magistrado,
apesar de terem sido retiradas de contexto e do sensacionalismo das maté-
rias, que ignoram o gigantesco esquema de corrupção revelado pela Ope-
ração Lava Jato."
10/06/2019
Post no Twitter
"Muito barulho por conta de publicação por site de supostas mensagens ob-
tidas por meios criminosos de celulares de procuradores da Lava Jato. Lei-
tura atenta revela que não tem nada ali apesar das matérias sensacionalis-
tas."
11/06/2019
Post no Twitter
"Além de juízes e procuradores, jornalistas também tiveram celulares
hackeados pelo mesmo grupo criminoso."
11/06/2019
Às 14h30, em nota divulgada pelo Ministério da Justiça "O ministro da Justi-
ça Sergio Moro esteve reunido na manhã de hoje com o presidente Jair Bol-
sonaro quando falaram sobe a invasão criminosa de celulares de juízes,
procuradores e jornalistas. O ministro rechaçou a divulgação de possíveis
conversas privadas obtidas por meio ilegal e explicou que a Polícia Federal
está investigando a invasão criminosa. A conversa foi bastante tranquila. O
ministro fez todas as ponderações ao presidente, que entendeu as questões
que envolvem o caso."
135
Cf. Martins, Santi e Greenwald em matéria do The Intercept (2019, documento online não
paginado).
66
13/06/2019
Em entrevista a O Estado de S.Paulo
"Fui vítima de um ataque criminoso de hackers. Clonaram meu telefone,
tentaram obter dados do meu aparelho celular, de aplicativos. Até onde te-
nho conhecimento, não foram obtidos dados. Mas os procuradores foram ví-
timas de hackers e agora está havendo essa divulgação indevida. Estou ab-
solutamente tranquilo em relação à natureza Das minhas comunicações."
"Às vezes surgia a necessidade de coisas muita urgentes, era comum você
ser contatado, seja verbalmente, seja por aplicativos, mas com demandas
lícitas. A questão do aplicativo é apenas um meio."
"Eu fico numa situação delicada porque eu não posso reconhecer a autenti-
cidade dessas mensagens, porque é assim, em vez de eles apresentarem
tudo, e que a gente possa verificar a integridade desse material, eles estão
com essa ideia de apresentar paulatinamente. E eu não excluo a possibili-
dade de serem inseridos trechos modificados, porque eles não se dignaram
nem sequer a apresentar o material a autoridades independentes para veri-
ficação."
"Não tenho essas mensagens. Veja, são fatos que aconteceram dois três
anos atrás. Não tenho memória de tudo. Vejo algumas coisas que podem
ter sido coisas que eu tenha dito. Agora podem ter inserções maliciosas. En-
tão fica muito complicado."
14/06/2019
Post no Twitter
"Para o site aliado a hackers criminosos: Publiquem tudo se quiserem. Agi
dentro da legalidade. Não vou pedir desculpas por ter cumprido o meu de-
ver e ter aplicado a lei contra a corrupção e o crime organizado."
No mesmo dia, admitiu que poderia “ter havido um descuido formal”, chegan-
do a dizer que se trata de “um grupo criminoso contratado para atacar as instituições
brasileiras”.
14/06/2019
Entrevista a jornalistas
"Eventualmente pode ter havido um descuido formal, mas isso não é ne-
nhum ilícito, se é a indagação nesse sentido. Eu não cometi nenhum ilícito e
estou absolutamente tranquilo de todos os atos que cometi enquanto juiz da
Lava Jato."
"A Polícia Federal está empenhada, mas essas investigações às vezes le-
vam algum tempo dada a dificuldade de rastrear. Eu não acredito que seja
67
um autor só, acho que é um grupo criminoso contratado para atacar as insti-
tuições brasileiras."
15/06/2019
Às 9h18, em nota divulgada pelo Ministério da Justiça
"O Ministro da Justiça e Segurança Pública não reconhece a autenticidade e
não comentará supostas mensagens de autoridades públicas colhidas por
meio de invasão criminosa de hackers e que podem ter sido adulteradas e
editadas. Reitera-se a necessidade de que o suposto material, obtido de
maneira criminosa, seja apresentado a autoridade independente para que
sua integridade seja certificada."
19/06/2019
Em audiência na CCJ do Senado
"Tenho sido cobrado sobre as autenticidades, eu não tenho essas mensa-
gens. Essas mensagens podem ser adulteradas"
"Esse veículo não teve a dignidade de apresentar essas mensagens para
serem verificadas"
"Ali não há nada que denote qualquer quebra de imparcialidade ou anorma-
lidade"
"Não estou com medo não. Divulguem tudo de uma vez"
136
Pomerantsev apud d’Ancona (2018, p.36).
137
Duplipensar, na literatura de George Orwell, é o ato de aceitar simultaneamente duas crenças
mutuamente contraditórias como corretas.
68
Deltan – 22:19:29 – E parabéns pelo imenso apoio público hoje. Você hoje
não é mais apenas um juiz, mas um grande líder brasileiro (ainda que isso
138
A força dos sentimentos pode ser observada na eleição de Trump, na vitória do Brexit, no
terraplanismo e na negação do aquecimento global, do holocausto e até da eficácia das vacinas.
Todos esses fenômenos possuem o denominador comum da pós-verdade, em especial a utilização
de uma narrativa que, embora não lastreada em fatos verificáveis, possuem simplicidade e
ressonância emocional, tão desejados pelos cidadãos frente à ordem bruta das complexidades da
vida moderna. A campanha a favor do Brexit, emblemática nesse sentido, “[f]oi a política da pós-
verdade em seu estado mais puro: o triunfo do visceral sobre o racional, do enganosamente simples
sobre o honestamente complexo”. Em detalhes: d’Ancona (2018, p. 25-29).
139
Aaronovitch apud d’Ancona (2018, p. 64).
140
Hofstadter apud d’Ancona (2018, p. 62).
69
não tenha sido buscado). Seus sinais conduzirão multidões, inclusive para
reformas de que o Brasil precisa, nos sistemas político e de justiça criminal.
Sei que vê isso como uma grande responsabilidade e fico contente porque
todos conhecemos sua competência, equilíbrio e dedicação.
Moro – 22:31:53 – Fiz uma manifestação oficial. Parabens a todos nós.
Moro – 22:48:46 – Ainda desconfio muito de nossa capacidade institucional
de limpar o congresso. O melhor seria o congresso se autolimpar mas isso
nao está no horizonte. E nao sei se o stf tem força suficiente para processar
e condenar tantos e tao poderosos
[...]
Deltan – 23:14:53 – Preciso que Vc assuma mais as 10 medidas ou outras
mudanças em que acredite também, se entender que isso não trará proble-
mas sérios. A sociedade quer mudanças, quer um novo caminho, e espera
líderes sérios e reconhecidos que apontem o caminho. Você é o cara. Não é
por nós nem pelo caso (embora afete diretamente os resultados do caso),
mas pela sociedade e pelo futuro do país.
Também merece destaque a forma temerária com que Moro relativiza a ne-
cessidade de equidistância em relação às partes como uma mera formalidade, e sua
transgressão como mero “descuido formal”, nunca um ilícito. A lei, em especial no
processo penal, é uma proteção do cidadão perante o Estado, que deve atuar dentro
dos limites legais. O desaparecimento desses limites é uma das características da
chamada “pós-democracia”.
141
Cf. Uribe em matéria na Folha de S.Paulo (2016, documento online não paginado).
142
Cf. matéria do The Intercept (2019, documento online não paginado).
70
Não havia reparado antes no ponto, mas não vejo maior relevância.
Como havia justa causa e autorização legal para a interceptação, não vis-
lumbro maiores problemas no ocorrido, valendo, portanto, o já consignado
na decisão do evento 135.
143
Cf. Rodas em matéria do Consultor Jurídico (2016, documento online não paginado).
144
Cf. Casara (2017, p. 107).
145
Cf. Balthazar et al. em matéria da Folha de S.Paulo (2019, documento online não paginado).
71
9.mar.2016
Rodrigo Prado
16:02:49 Ela ofereceu mesmo pra ele
16:03:07 E ele esta pensando
16:03:07 Talvez aceite
16:04:01 Nao só por causa da LJ mas para salvar o Governo dela
16:04:33 Cai isso numa conversa dele com Gilberto Carvalho
14.mar.2016
Prado
[...]
20:25:15 Voces pensam em eprocar isso quando?
20:26:44 Se for uma emergencia, fechamos o relatorio do jeito que esta,
mas muitas ligacoes so estao com resumo. E o Russo pediu expressamente
que todas fossem transcritas.
20:27:16 Estamos tentando fazer o melhor possivel, porque esse relatorio
vai fazer um strike em BSB
Senhores: Dilma ligou para Lula avisando que enviou uma pessoa para en-
tregar em mãos o termo de posse de Lula. Ela diz para ele ficar com esse
termo de posse e só usar em ‘caso de necessidade’... Estão preocupados
se vamos tentar prendê-lo antes de publicarem no Diário Oficial a nomeação
do Lula.
146
Porém, como não foi revelado esse diálogo, não pudemos confirmar essa informação. Cf. Gaspari
em matéria da Folha de S.Paulo (2019, documento online não paginado).
72
Uma semana após a conversa (29), Moro pediu “respeitosas escusas” ao ex-
ministro STF Teori Zavascki pelo ato, que poderia “ser considerado incorreto, ou
mesmo sendo correto, possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessá-
rios”147. As informações foram enviadas a pedido de Zavascki, que havia determina-
do a suspensão das investigações da Operação Lava Jato envolvendo Lula e o en-
vio dos processos ao STF:
147
Cf. Richter em matéria do Agência Brasil (2016, documento online não paginado).
73
148
Cf. matéria do UOL (2017, documento online não paginado).
149
Em que pese as investigações acerca da possibilidade de homicídio terem sido arquivadas após a
conclusão do MP e da PF de que se tratava de um acidente, essa versão não é inconteste. Cf.
Ameni, Albuquerque e Takahashi em matéria do site Pragmatismo Político (2017, documento online
não paginado).
150
Cf. Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica (2017, p. 1-12).
151
Cf. d'Ancona (2018, p. 24-25).
74
dios poderia ser considerado legítimo, numa batalha pela opinião pública — afetada
pelo já citado fenômeno de “resignação cognitiva”.
Em 09 de abril de 2019, o ex-juiz e agora ministro Moro voltou a falar sobre a
divulgação das conversas em entrevista ao programa “Conversa com Bial”152:
152
Cf. Oliveira em matéria do Justificando (2019, documento online não paginado).
153
Cf. Casara (2017, p. 131).
154
Cf. Marques Neto (1994, p. 30-50).
75
Outro episódio que remete a uma possível perseguição jurídica de Lula foi a
batalha de decisões do dia 08 de julho de 2018. Às 09h05min, acolhendo um pedido
de habeas corpus feito por integrantes do Partido dos Trabalhadores, o desembar-
gador do TRF-4 Rogério Favreto determinou a soltura de Lula em regime de plan-
tão155. Favreto considerou a pré-candidatura de Lula à presidência da República
como fato novo a autorizar a soltura:
155
Para consulta: HC nº 5025614-40.2018.4.04.0000/PR.
156
Cf. cronologia feita por Agence France-Presse (AFP) na matéria da Exame (2018, documento
online não paginado).
76
Para evitar maior tumulto para a tramitação deste habeas corpus, até por-
que a decisão proferida em caráter de plantão poderia ser revista por mim,
juiz natural para este processo, em qualquer momento, determino que a au-
toridade coatora e a Polícia Federal do Paraná se abstenham de praticar
qualquer ato que modifique a decisão colegiada da 8ª Turma.
157
Cf. Falcão em matéria do JOTA (2018, documento online não paginado).
77
158
De acordo com o PolitiFact, site de fact-checking ganhador do Prêmio Pulitzer, 69% das
declarações de Trump são “predominantemente falsas”, “falsas” ou “mentirosas”. Cf. d’Ancona (2018,
p.20).
159
Cf. d’Ancona (2018, p. 57).
160
Cf. Martins em matéria do The Intercept (2019, documento online não paginado).
78
O diálogo ocorreu um dia depois de o Jornal Nacional ter veiculado uma re-
portagem com suspeitas contra FHC161.
É preciso relembrar que a Lava Jato vinha recebendo uma série de críticas
sobre sua suposta seletividade. A ideia de que a operação poupava certos políticos
era potencializada, ainda, por aparições de Moro sorrindo em eventos ao lado de
Aécio Neves e Michel Temer, ambos com acusações de corrupção pendentes.
Por mais que Moro e a força-tarefa tenham negado, em diversas manifesta-
ções oficiais e entrevistas, que a Lava Jato possuía um viés político, essa tese perde
força ante ao diálogo acima. Nele, Dallagnol afirma acreditar que a força-tarefa de
Brasília propositalmente não considerou a prescrição do caso de FHC “talvez para
passar recado de imparcialidade”.
Também não merece passar despercebido a preocupação explícita de Moro
com essa estratégia. Para Moro, mesmo que outros procuradores da força-tarefa
tenham passado adiante uma investigação sabidamente inócua, porquanto prescrita,
para manipular a opinião pública a acreditar que a operação era imparcial (sem
qualquer risco real a FHC), ainda assim esse curso de ação deveria ser evitado por
atingir um parceiro político. Ou seja, ao mesmo tempo em que Lula era alvo de uma
atuação parcial do Judiciário para o prejudicar, FHC era alvo de uma atuação parcial
do Judiciário para o beneficiar, numa aplicação de um “duplo padrão à lei” típica do
lawfare. Esse quadro fortalece a tese de que a operação Lava Jato foi, desde o co-
meço, sobre uma “caça” ao PT e ao seu líder maior162.
161
Cf. matéria do G1 (2017, documento online não paginado).
162
Cf. Souza (2017, p. 185).
163
Cf. GREENWALD et al. em matéria do The Intercept (2019, documento online não paginado).
79
164
Cf. Alexander em matéria do The Telegraph (2016, documento online não paginado).
165
Cf. Haynes e Boadle em matéria do Reuters (2016, documento online não paginado).
166
“Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou
qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à
sua presença.”.
167
Diz-se à época porque o STF (2016, documento online não paginado), em acórdão publicado em
22/05/2019, julgou procedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental 395 para
pronunciar a não recepção da expressão "para o interrogatório", constante do art. 260 do CPP, e
declarar a incompatibilidade com a CF da condução coercitiva de investigados ou de réus para
interrogatório, que de qualquer forma poderiam se manter em silêncio.
168
Cf. decisão da 13ª Vara Federal de Curitiba (2016, documento online, p. 1-4).
169
Parte da doutrina já advogava pela não recepção do dispositivo em prol do direito ao silêncio, cf.
Silva Júnior (2015, i, 9.5.2.3).
81
Por outro lado, nesse caso, apontado motivo circusntancial relevante para
justificar a diligência, qual seja evitar possíveis tumultos como o havido re-
centemente perante o Fórum Criminal de Barra Funda, em São Paulo,
quando houve confronto entre manifestantes políticos favoráveis e desfavo-
ráreis ao ex-Presidente e que reclamou a intervenção da Polícia Militar.
170
Cf. Casara (2017, p. 13-14).
171
Cf. Casara (2017, p. 167).
82
172
Cf. matéria do Consultor Jurídico (2017, documento online não paginado).
173
Cf. Grillo em matéria da Época (2016, documento online não paginado).
174
Um dos mais emblemáticos exemplos de neutralidade perniciosa foi o chamado “Climategate”, a
divulgação seletiva em 2009 de partes de e-mails e arquivos hackeados de uma universidade inglesa
de forma a sugerir um acobertamento acadêmico de que o aquecimento global seria uma farsa.
Mesmo após a comprovação de que os arquivos não minaram o consenso científico a respeito de
mudança climática, o estrago já havia sido feito: um levantamento da Universidade de Yale revelou
que o apoio do público à ciência do aquecimento global caiu de 71% para 57% entre 2008 e 2010.
Saliente-se que já foi comprovada a existência de uma indústria multibilionária da desinformação,
que, diferentemente do lobby legítimo, procura sistematicamente difundir mentiras por meio de
organizações de fachada a favor de grupos de interesse específicos, confundindo o público e criando
controvérsia onde antes não havia. Um exemplo disso é a Tobacco Industry Research Committee,
organismo criado em 1954 e patrocinado pela indústria do tabaco para contestar o vínculo entre o ato
de fumar e as doenças pulmonares. Em detalhes: d’Ancona (2018, p.46-48).
83
175
Cf. Balthazar em matéria da Folha de S.Paulo (2018, documento online não paginado).
176
Cf. Balthazar; Martins em matéria da Folha de S.Paulo (2019, documento online não paginado).
177
Cf. Balthazar; Martins em matéria da Folha de S.Paulo (2019, documento online não paginado).
178
O termo italiano “omertà” remete a um código de silêncio, uma das maiores dificuldades das
autoridades em descobrir e penetrar organizações criminosas, como era o caso da máfia siciliana
Cosa Nostra (investigada na Operação Mãos Limpas, recorrentemente comparada com a Lava Jato).
Em detalhe: Fonseca (2017, p. 47-52).
84
4.2. O tribunal
179
Cf. decisão do Conselho Nacional de Justiça (2018, documento online, p. 1-7).
85
É bem verdade que, com relação ao TRF-4, não existe uma “smoking gun”
(uma evidência definitiva) como parece haver contra Moro. Contudo, o tribunal con-
correu para a prisão tempestiva de Lula mediante uma série de atuações juridica-
mente controversas que não podem ser ignoradas. Uma delas é a rejeição da repre-
sentação contra Moro protocolada pela defesa de Lula após a divulgação do áudio
da conversa com Dilma. A representação foi arquivada nos seguintes termos180:
Ou seja, mesmo que uma interceptação telefônica seja ilegal, e mesmo que
envolva a então presidente da República, para o TRF-4 é justificável levantar o sigilo
por conta do “interesse geral” (slogan pós-democrático), mesmo havendo preceden-
te no STF dizendo expressamente o contrário181. Também não merecia Moro, que
desrespeitou a lei, ser sequer investigado pela possível desproporcionalidade de seu
ato pelo simples fato de o STF só ter dito depois que ele não poderia ter agido dessa
forma.
180
Cf. matéria do Consultor Jurídico (2016, documento online não paginado).
181
O STF já havia se pronunciado sobre o episódio, considerando irregular “a divulgação pública das
conversações do modo como se operou, especialmente daquelas que sequer têm relação com o
objeto da investigação criminal” (Rcl 23.457). O Plenário, por unanimidade, seguiu o entendimento do
então ministro Teori Zavascki de que era “descabida a invocação do interesse público” para divulgar
conversas de autoridades sem autorização judicial do foro competente. Cf. matéria do Consultor
Jurídico (2016, documento online não paginado).
86
Pouco após ser proferida a sentença condenatória por Moro, o então presi-
dente do TRF-4, desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, concedeu
uma entrevista182 ao jornal Estadão. Lenz não julgou a apelação de Lula no caso do
triplex, tarefa que ficou a cargo da 8ª turma do tribunal, mas era o responsável por,
posteriormente, julgar a admissibilidade de eventuais recursos aos tribunais superio-
res visando a reformar a decisão da turma. Além disso, foi também responsável por
decidir a já mencionada batalha de decisões entre Favreto e Gebran e Moro. Agora,
é também responsável por julgar a apelação de Lula no caso do sítio de Atibaia,
após ter se tornado o novo integrante da 8ª Turma183 e o pedido de suspeição feito
pela defesa de Lula ter sido negado184. Vejamos alguns pontos dessa entrevista (gri-
fos no original para demarcar as falas do Estadão e de Lenz):
Estado – Tão logo saiu a sentença em que o juiz Sérgio Moro conde-
nou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a nove anos e seis meses
de prisão o sr. disse que era uma sentença “bem preparada”...
E, acrescento agora, tecnicamente irrepreensível. Pode-se gostar dela, ou
não. Aqueles que não gostarem e por ela se sentiram atingidos tem os re-
cursos próprios para se insurgir.
O sr. gostou?
Gostei. Isso eu não vou negar.
182
Cf. Carvalho em matéria do Estadão (2017, documento online não paginado).
183
Cf. Lopes em matéria do UOL (2019, documento online não paginado).
184
Cf. em matéria do Consultor Jurídico (2019, documento online não paginado).
87
tância dessa sentença para a história do Brasil à sentença que o juiz Márcio
Moraes proferiu no caso Herzog, sem nenhuma comparação com o momen-
to político. É uma sentença que vai entrar para a história do Brasil. E não
quero fazer nenhuma conotação de apologia. Estou fazendo um exame ob-
jetivo.
[...]
[...]
[...]
mente prejudicando sua progressão na carreira185. Essa pressão política (no sentido
de política interna do Tribunal, política corporativa) exercida por Lenz não pode ser
tomada como algo normal. Saliente-se que o próprio Lenz afirma não ter lido a prova
dos autos, mas que a sentença é “tecnicamente irrepreensível”, que “vai entrar para
a história do Brasil” e que “o juiz Moro fez exame minucioso e irretocável da prova
dos autos”, o que é no mínimo contraditório. Como afirmar que Moro fez um exame
irretocável da prova dos autos sem ter lido a prova dos autos?
Não só isso, essa declaração tem o condão de mobilizar a opinião pública
(afinal, era uma entrevista a um jornal) sobre a força da sentença de Moro. O Esta-
dão, inclusive, dedicou vários parágrafos a enaltecer Lenz pela quantidade de livros
que lê e de línguas que fala. Aos olhos do cidadão comum, se uma pessoa tão eru-
dita assim está dizendo que a sentença é irrepreensível, histórica e irretocável, isso
tem o efeito indireto de atrair, ao menos da grande massa (que já está sobre a in-
fluência da mídia comercial há tempos), senão o ódio, mas ao menos o ceticismo em
relação a algum desembargador do TRF-4 que porventura ousasse se insurgir con-
tra uma decisão desse calibre. Existe uma relação entre o julgamento prévio pela
mídia (que por sua vez gera o julgamento prévio pela população) e o julgamento pe-
los juízes, pois existe um duplo enviesamento mesmo em nível subconsciente: deci-
dir de uma forma pode tornar um juiz festejado186 pelos meios de comunicação de
massa e pelo povo, ao passo que decidir de outra forma pode significar exatamente
o oposto.
185
Cf. Casara (2017, p. 43-44).
186
Cf. Casara (2017, p. 99).
187
Cf. Menezes em matéria do Aos Fatos (2017, documento online não paginado).
89
188
Essa rapidez se deu, entre outros fatores, por ter havido uma unanimidade na apelação que não é
comum no colegiado, sobretudo na Lava Jato, na qual 68% das decisões saem sem que os
desembargadores tenham avaliações iguais, cf. Simões e Capelo em matéria da Época (2018,
documento online não paginado). Ou seja, três em cada dez casos têm unanimidade no julgamento
da apelação e o de Lula foi um deles. Além disso, o TRF-4 julgou o caso de Lula antes de sete ações
da Lava Jato cujos recursos chegaram primeiro, cf. Marques em matéria da Folha de S.Paulo (2018,
documento online não paginado). Em sentido contrário ao TRF-4 ter agido com timing político,
registre-se os seguintes argumentos, presentes em matéria de Garcia e Bianchi no site UOL (2017,
documento online não paginado): i) o tribunal não precisaria seguir uma ordem cronológica, visto que
os processos tramitam de acordo com a complexidade e ineditismo de cada um e o art. 12 do CPC
afirma que essa observância é preferencial; ii) é normal o tribunal ser mais rápido quando se tem
conhecimento prévio do caso a partir de recursos da defesa na primeira instância, de modo que o
relator no tribunal já era familiarizado com as particularidades do processo.
189
Cf. matéria na Veja (2018, documento online não paginado).
190
Cf. Richter e Vilela em matéria da Agência Brasil (2018, documento online não paginado).
191
Cf. matéria do Consultor Jurídico (2018, documento online não paginado).
90
192
Cf. Noce em matéria do Justificando (2018, documento online não paginado).
193
Cf. STF (2018, documento online não paginado).
194
Cf. Greenwald e Pougy em matéria do The Intercept (2019, documento online não paginado).
195
Hofstadter apud d’Ancona (2018, p. 62).
91
De acordo com o The Intercerpt, longe de ser um episódio isolado, essa tôni-
ca perpassou uma discussão de horas sobre quais seriam as melhores estratégias
para prejudicar o PT. Após descartarem a possibilidade de impedir a entrevista, os
procuradores passaram a focar em como diminuir seus efeitos políticos. O procura-
dor Januário Paludo propôs: “Plano a: tentar recurso no próprio stf, possibilidade Ze-
ro. Plano b: abrir para todos fazerem a entrevista no mesmo dia. Vai ser uma zona
mas diminui a chance da entrevista ser direcionada.”.
Já o procurador Athayde Ribeiro Costa sugeriu que, como o ministro não ha-
via indicado expressamente a data em que a entrevista deveria acontecer, a Polícia
Federal a viabilizasse apenas após as eleições (que ocorreram no dia 07 de outubro
de 2018, 09 dias depois). Assim, evitaria-se o ganho político ao PT sem, contudo,
descumprir a decisão: “N tem data. So a pf agendar pra dps das eleicoes. Estara
cumprindo a decisao”. E adiciona: “E se forcarem antes, desnuda ainda mais o cara-
ter eleitoreiro”.
Outra sugestão foi a do procurador Julio Noronha, para quem uma coletiva de
imprensa seria o ideal. Assim, além de diluir o foco da entrevista, ainda haveria a
chance de inviabilizá-la operacionalmente:
196
Cf. matéria de O Antagonista (2018, documento online não paginado).
197
Cf. matéria da Folha de S.Paulo (2019, documento online não paginado).
198
Cf. Casara (2017, p. 95).
93
5 CONCLUSÃO
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