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Hora morta

Dorme em luz o silêncio


de meio-dia assombrado.
Fantasmas rondam as ruas
com seus longos reflexos
dourados no tremeluzir vazio
da explosão de vidros frios
estilhaçados de absorvente Sol.
Badaladas. Não de sinos.
Ressoam as pedras nas tumbas,
ecoam os sírios de altares.
Na plenitude do dia mais pleno
a morte vibra escorregadia
por entre as pedras em mosaico
da cidade fora do tempo,
anacrônica, ainda que tardia.

Manhã

Café, cigarro, toalha.


Pouca luz no cenário
e uma faca suja
de manteiga ordinária.
De papel, apenas um fólio.
Da caneta, o ultraje.

Ofício

Sólida fogueira de pedra


incinera a palavra.
A linha reta não cabe
no papel pautado,
em sua ânsia alada
de chegar ao fim, ao dobre
que a leve ao círculo
fechado e livre, o duplo.
A volta do cordeiro

Das dores duvidosas


E dúbias, desacredito.
Duas delas destinam-se
A destruir com denodo
A dádiva dos deuses,
Como se delas fosse.

A noite esplendente
tombou sobre o Sol.
Mordo a carne quente
e dura do lobo.
O cordeiro se tornou
feroz animal sedento
do sangue do algoz.
Que sangre demais,
o quanto puder
sair do corpo duro
de uma prisão etérea,
sem grades firmes
e perdão qualquer.

O rebento nasceu velho.


Por isso matreiro, ousado,
por isso mesmo perigoso,
sem crueldade. Ou melhor,
com a crueldade de ser livre
em meio ao emaranhado
de arame, grades feitas de suor,
daquilo que realmente
sou.

Sagrado

Os mortos santos
renovarão seus anjos
em altares inexistentes.

E um brado agônico
se levantará da terra
para arrombar as portas
do último mistério.

Manuscrito

A mão sobre o papel.


Nenhum risco. A mancha
anterior marca a data
distante, amarelada.

Mofo e poeira na pasta.


Morto o dono, o traço
vive. Paradoxalmente
a vida vem da morte.

Fonógrafo

Canto gregoriano
e chiado de agulha.
Nada é sagrado
entre as coisas sóbrias.

De onde deriva ainda


esse prazer imediato?
Das vozes, do olfato?

Algo longo como a chuva,


ou um ruído contínuo
sob leve e lento canto;

talvez imperfeito rastro


no sulco mais cuidadoso:
traço de harmonia da vida,
ou complemento necessário da arte?

Sensação
Florestas de ouro em mim
sopram ventos desiguais.
Ruiva montanha solapa
o crepúsculo .

Brotoejas de Sol na pele


nua, mesclam silêncios
nas cercas desdentadas.
Tudo poreja fumo e mofo.

Hemorragia

O dia verte vivo sangue


nas dobras das horas.
Não temos mais agoras,
nem veias, nem ritmo.

Passou o trem, o último,


por entre ramos de mangue.
O dia rompe as esporas
e o sol procura seu prumo.

Talvez o lodo seque


em crostas de barro, magras.
Talvez a manhã chegue ao termo.

Sombra e luz

Tanta luz! Tanta luz!


E os olhos cegos ainda se fecham
num respingar de cílios
inúteis, na sombra crua.

Tanta luz! Tanta luz!


E o contorno dos negros dias
no gotejar do tempo ainda se mexem,
estéreis, nas noites frias.
Demônio

Coisas que passam


abrem talhos. Como lava
e entulhos, que restam
no fundo de uma cava.

O demônio acelera
o passo, mesmo que leve,
no espaço. Ruído breve,
quase asa que se alça.

Presas, como aço


fértil, mordem o novo
fútil. Nada, só o traço fundo
do tempo engata o laço.

As garras rubras ardem


no desvão da escada
de cada gomo de segundo.

Poema ausente

Acordei nublado
como se nuvens
escuras e plúmbeas
podassem minha cabeça.

O impossível poema
não nasce agora,
apenas flutua sombrio
sobre os pensamentos.

Espero uma pluma


levantar-se no ar
e escrever no vento
palavras inaudíveis,
talvez impossíveis.
Acordei nublado,
eis meu lamento
pelo poema ausente.

Desconstrução

A luz da alfazema
cai oblíqua sobre as pedras.
Perde-se nos desvãos dos tijolos
e, artífice, mina os alicerces
do edifício. A grama cresce
e brotos tenros cobrem canteiros
para algo mágico e inteiro.
Numa gaiola próxima
um canário entoa trágico
seu triste canto amarelo gema

O grito

Só uma úvula
a clamar pelo tempo
uma dor nunca sentida
com tanto ardor.

Nem o uivo ululante


do vento
suporta o clamor
de cordas vocais
tão angustiantes.

Antes, se cala,
e deixa que o som
se propague
pelos ares.
Fera

O urro do leão abstrato


arrepia as ervas escondidas.
Como simples larvas perdidas:
as sementes de um retrato.

Nada há além do som oco


e do vento. Nas lavras ardentes,
ao relento, leve tom, rebentos
de galhos e ruídos roucos.

Do amor

Se o amor não fosse tão ódio,


o tempo não passaria tão largo,
e a amargura não dormiria sob o leito.

Com o corpo dolorido de lembranças


mesquinhas, o caco do copo quebrado
permanece profundo nas carnes geladas.

Se o amor não fosse tão ébrio


não se viveria tão sóbrio do óbvio.

Escuridão

O pequeno rumo da noite


em seu estrago estelar
gira cabeças em vão.

Pinga luz. Mas tão pouca,


que mal se vê o rodopio
do vento opaco. No escuro
a transparência é densa e vil.
O cego olha com os olhos
de quem vê a paisagem
em uma viagem não feita.
Só lhe resta, pobre escolha,
imaginar um cenário bem-feito,
de uma cena perfeita, imaginária

Sonho

A ponte encosta
o raio de luz. Silhueta
alta na tarde oposta.

De costas para a rua


a casa sonha. E sua
sangue pelas rachaduras
nuas no rosto exposto.

No mudo tombo da noite


a paisagem comete
seu crime passional.

Erótica

Num toque de bossa


ou no esboço de teu corpo,
rouco no agridoce
de uma bebida estranha,
desconhecida quase inexistente,
suspiro
doente
expectante respiro
ar porejante de calor suado
na estufa de um desejo
quase desdém ou ensejo
demente.
Relance

A noite chega sem alarde,


sem a comum alacridade
do dia tempestuoso.
Apenas as sombras
se alongam quietas,
até sumirem nas dobras
do dúbio horizonte,
inúteis e esquecidas.
Amanhã as sombras
sutis serão outras.

Há erva-daninha no jardim
antes geométrico e perfeito.
Assim, as flores enigmáticas
Jamais virão à luz sem defeito.

Bucólica

Corre um rio entre penhascos


a evitar cachoeiras e desvios.
Apesar de rápida e do frio, a água
é bem serena. Flutuam nela sete hibiscos
frescos.

Escorrega o curso tortuoso


a desviar pedras e cascalhos.
Ainda que lépida, a calha
só aumenta. Escoam nela quatro orquídeas
pálidas.

Desliza o leito audacioso


a procurar rumos e caminhos.
Mesmo que lúcida, a trama
se entretece. Evolam dela as três rosáceas
fúteis.

Risca uma linha pelas brancuras,


a rascunhar palavras e promessas.
Se bem que lógico, o verso
se esmaece. Ecoam dele infinitos cravos
brancos.

Na sombra, o jardim flutua


entre névoas tontas, despregadas
do solo úmido e aconchegante
de onde se desprendem as cores
tantas.

Purificação

O sangue do cordeiro humano,


imolado sobre o mármore dos ímpios,
clama uma vingança perene, pura e santa.
Não há mácula no gesto que fere
a mão torpe que sangra o justo.

No momento exato, o punhal desfere


o golpe certeiro, nada insano,
frio e sem culpa, dedos límpidos,
O olho em chamas, abrirá o ventre
da fera fria que jorrará água imunda.

Não há crime no golpe perfeito


que na alma imperceptível entre.
E a dor, se o algoz, ainda humano,
soará como um momento fúnebre
e intenso. Dura, seca, cruel, profunda.

E a vida será um delírio de febre funda,


sonhos maus entre gestos insanos.
Assim o sangue se purificará, lavado
pelo leito de suores e de mantos
molhados pela culpa, que os lençóis inunda.

Insone
O eco da noite se evola
entre as cordas de résteas de luz.
Não há vento. Não há Lua.
Apenas a mesma rua, relento,
hordas de sombras, ávidas
de cruas feridas de açoite.

Sequer um galho se abala, solene


na escuridão parada e morta.
A Via Láctea não brilha nunca
na tosca hora do insone.

A janela se fecha sobre


o nada, que parece cheio
de impossíveis cores de cobre.
Uma árvore estremece.
Entre pálpebras quase ardentes
uma frase se insinua, e adormece.

Ressoa como algo meu, uma partida:


doo minha larga e difícil vida
aos sempiternos deuses da dúvida.

Potência

Há um dia no fim do poço


esquecido do brilho e da água,
e do esforço ainda não concluído,
do Sol opaco e da fonte fluida.

Ainda não é luz. Só momento


que o fluxo livre leva e evidencia.
Sequer será calor. Só o palor
que a obscuridade emudece.

Solto no ar, parado, quase potência,


farfalha frouxo como folha fluida,
que balança, anseia, corre e dança
pelo espaço vivo que a sombra empresta.
Antagonismo

Vozes vagas e vermelhas,


vagam das veias velhas
e vazias, volteando ao vento
volúvel – poeira a rugir.
O Sol a pino rejeita a Lua,
que insiste. Busca nuances
na haste inquieta e fria e nua
de um arbusto alto, esguio.

Projetada, a sombra insiste


em se voltear em tranças
longas, a se contrapor ao estio.
Na hora impossível, um raio somente.

Dois astros em antagonismo


penetram no rio abjeto
do tempo. De minuto a minuto
imagens recobrem o ilusionismo.

O dia pouco a pouco avança.


Também a noite persegue o frio.
Sem agora, apenas a Lua lenta,
às margens de uma quase aliança.

Lavra de inverno

A noite coleia
no ar silencioso.

A fala mansa
da árvore frondosa
faz finos furos
na lousa antiga.
Nunca descansa.

Mãos tremem,
de premência única.
O caloso dedo,
Insiste no firme fim
de pôr no papel o frio
intenso. Só a ausência
de um antigo jardim.

Nada que sobrenada.


Só frio em essência,
A ciência do inverno,
sem geada, sem dor.

Uno

Haverá noites
sem conta
todas com açoites.

Numa delas,
o vinho encontrará
o fogo perfumado.
Síntese de luz,
arderá em alas
e logo chegará
ao céu desperto.

Sentirá o prazer
na luta de açoites,
que seduz, pelo engano
da unidade pronta.

Decomposição

Insano, imagino
a ímpia e insana
imagem impura.
Há um Sol sólido,
posto e turvo
no que escrevo.

No silêncio torto da mortalha,


uma janela se abre e bate.
chacoalha, e uma imagem se desfaz.
A fina penugem livre
da chuva se antepõe
à primeira estrela;
e há um céu imenso
escrito em letras lisas
e ainda mais tenso
naquilo que ainda vive.

No verso da folha amarela


uma voragem se decompõe
em miragem. E nenhuma estrela
Acompanha a Lua, que se põe.

Maresias

O vento sopra do mar mais puro e segue.


O areal não se move. Inerte e branco
ergue muros de imobilidade na ardência
das dunas. Paisagem ou reflexão? Talvez ciência.

O olhar passeia sobre o imaginário


e capta cenas, condensações de pensamentos,
recordações, utopias. Emoções de momento
que um fragmento fotográfico eclode
no divagar inquieto das sínteses
estranhas. Nas entranhas da imagem,
dilui a superfície homogênea
e expõe, numa arqueologia íntima
a sedução de uma iminente sedição.

Liberte-se o vento
e se movam as dunas.
Talvez o olhar cego de areia,
Na Lua Cheia,
possa ver os abismos
que a retina pura não fixa.

Hermético

O centro do círculo,
mais que um ponto,
tornou-se o invisível
da espiral eterna.

Apenas pobre átrio


fechado o evoca e retoma
o ciclo infernal
jamais fechado e pronto.

Coisa suma

O vento desnorteado
arredonda os indicadores
da bússola velha. Valha-me
o tempo de horrores!

No relógio há pó e mofo
entre os ponteiros. Parada
a corda arrebentada
parece ainda comandar
algum raro e pouco esforço.

Mas não há mais corda,


apenas vento em volutas,
móveis e violentas;
colunas de partículas dúbias,
doidas no espaço aberto.

As estações sem flores


aguardam um trem
que apita prosaico por trás
do morro. Mas não chega.

Passageiros imóveis
nada sabem do itinerário.
Norte ou Sul? Bússola
e relógio nada dizem:
objetos inúteis em bolsos
de naftalina.

Aos Infernos
Desço mais um passo, Beatriz,
em direção ao nada. Na treva
a única luz que vejo são as imagens
que se partem em fragmentos hostis,
com farpas, espinhos e voragens,
que seguem a torrente que me leva.
Já vislumbro o barqueiro sombrio,
à espera, com os remos aos ombros,
enquanto alucino passados de brilhos,
flocos leves, efêmeros, entre escombros.
Estranho passageiro sou. No úmido frio
da cratera em que entro ouço ainda estribilhos.
São ecos, talvez, do passado, d'antanho,
em que a dor se assemelhava à alegria
e o canto feliz de então, agora parece
lamento e angústia, lamento tamanho,
que a memória turva me envia
para alentar algum resto, aquele que perece.
Entre os dedos carrego a moeda,
cunhada com o metal da indiferença.
Pagamento mesquinho, para a travessia
tão esperada, ansiada após a queda
nas sombras vazias, sem esperança,
nem mesmo de um beijo em lápide fria.
Beatriz, ouço Cérbero já furioso
com a lenta caminhada, após o desembarque
titubeante. Falta-me a coragem, ou esperança
de recuperar, mesmo que ansioso,
o brilho de um olhar vacilante,
ou o falso amor de uma velha criança.

Cardápio
Vermelho de carne crua
meu dedo sangra em palavras
velhas. Calejada, a mão
ainda escreve sobre a linha.
Late um cão na rua, lateja
a carne. Sofreria não fosse
o tempero que arde sensual
na boca agora meio aberta;
de voz deserta; de sensação
sobeja. E a vida come-se
pelo rabo e defeca ainda
mais vida sobre a ladeira
da manhã que nasce inútil.
Pimenta, sal, talvez salsa
constroem rosbife nosso
de cada e todo e mesmo dia.

Lição de anatomia
As vísceras atentas
se encolhem ao olho meu.
São tantas!
Mas tão suaves!
No amor do corpo
tão leves se agitam.
Em cabeça, tronco e membros,
a vontade é quem se estira.

Noite
1.
Eis o verbo que se adjetivou
entre nós. Não há cálice amargo
nos passos das ruas barrentas
do vinho barato do sangue
regado em suor e calafrios.
Paramentados oficiamos
a missa da vida torpe
nas calçadas repisadas,
respingadas de nossa
própria lama, de nosso
pó barato e sempre inerte.
Sem incenso, sem sorte
rendemo-nos à onipotência
da carne e dos rituais mundanos.
2.
Um Cristo de barro tolo
desce a ladeira em procissão.
E vamos em paz:
que os loucos e imbecis
nos acompanhem.

Detergente
Vomito-me em palavras escorridas
pelo ralo da pia, em meio à gordura
e ao sabão asséptico do meio-dia.
Meio-dia! Hora dos mortos,
dizem. E talvez seja,
porque as palavras sujas
que descarrego em jorros
igualmente sujos
depositam-se em lápides
quotidianamente limpas.
(Ai! as mãos!
sempre sem luvas!)
Não por lapidares, mas porque
os túmulos reservam para si
a mediocridade das frases mortas,
hoje cobertas pelo musgo e fuligem.
Também pela placa nova
no brilho de bronze
que anuncia outro.
mais outro cadáver,
e ainda mais um
ainda fresco ou quase vivo.
Deixo sumirem as palavras
pelo ralo imundo da pia
porque a piedade se foi.
Restou dela um buraco,
um esgoto sem fundo,
fossa perdida onde as emoções
tornam-se biodegradáveis,
em meio a detergentes caros
e frases cáusticas.

Verso verde
Um verde viscoso
verte das calosas
mãos e espraia-se
por toda casa.
Na mesma hora
o relógio escorrega
da cômoda antiga,
congelando o tempo.
Indiferente, o verde avança,
encobrindo totalmente o verso.
Espelho e pêndulo
O espelho partiu-se
de cima abaixo,
sob o olhar tenso
que engole mares.
O menino olha e oscila,
como o velho pêndulo
do relógio dos tempos.
Olha, com olhar de espanto
os cacos que brilham,
Tremeluzentes.
Sua testa reflete a lua
e os olhos, como espelhos
brincam de copiar miragens.
Pé cá, pé lá, oscilando.
E a cena muda
se repete infinitamente.
E espelho e pêndulo
acumulam rugas sorrateiras
sob o cabelo, úmido de sono.

Pupilas
O olhar do outro
me penetra
como uma navalha
afiada.
Suas pupilas grandes
olham-me como
não me vendo,
ou se vendo,
não me importam.
Incomoda-me
ser visto, e vendo,
olho-me para o mundo
como algo indesejável.
Prefiro meu canto,
escuro e feio
como uma madrugada
delirante, em que
bruxos me transportam
para profundezas geladas.

Frio
Sinto na carne
a solidez do ar,
o corte do vento
de inverno.
As faces pálidas
partem-se ao contato
com as gotículas
de garoa, que
avermelha a pele
em quase sangue
puro.
Inseguro, caminho
pela rua, titubeante.
As partículas ínfimas
grudam-se aos cabelos
já molhados, gelados,
grudadas à cabeça
num visgo estonteante.
Os pássaros ainda não cantam.
O céu, ainda mal pintalgado
de vermelho, logo se enche
de brumas, plumas aquosas
no céu sem
cor.

Errância
Corre um barco louco
por meus cabelos
escorridos.
Olho e não vejo
cenas inauditas.
Tudo é água
e deságua
nos meus pés encardidos.
Ando. E a errância
me traz ao mesmo lugar.
As ruas tantas são tão longas,
como é longo o meu desejo
de não estar.

Cadência
O velho perdeu,
cedeu lugar à criança
que desconhece
os insultos do mundo.
Na clarividência
do sol a pino
alguém chora em desespero.
É uma cadência oblíqua
que se alastra pelos céus
vermelhos, já perdida
a transparência de um longo
inverno.
Desassossego
O fogo gela
meus pés ardentes.
Em chamas, clamo
aos ares por uma trégua.
Nada vem. Só ouço
o apito longínquo
de um trem, sobre dormentes,
a atravessar meu calabouço,
que bufa na fumaça,
cinza e inquietante,

(des) espera
Inclinado, escrevo desbragadamente
as palavras que me saem sem rumo,
sem prumo, sem
nada.
Apenas escrevo sobre o quarto
vazio e escuro, onde espero
que o sonho venha. Mas não vem.
Só o verbo se derrete e escorre
vazio, porque nessa hora
de absoluta solidão, nada
(ou tudo) tenho mais a dizer.

Pacto
Fiz um pacto com a morte,
de sorte que ela não vem
quando eu preciso. Gostaria
de reconsiderar essa adaga,
que não chega quando
deveria chegar a chaga,
o basta, o fim, as bifurcações;
a noite em mim perfurando carnes,
cutucando vermes imundos;
um rio correndo em minhas veias
e a teia da aranha negra, buscando
o absoluto.

Criação
Tenho um livro para ler.
Não lerei, porque escrevo,
e escrevo loucamente
sem nada dizer. A leveza
do momento me envolve
e me devolve para a cama
desfeita, onde espero
que a dor aumente
tanto, até que eu diga
basta, e desabe sobre o travesseiro.
Despedida
Quando chegar a hora
do sol posto, meu rosto
estará branco como cera.
Assim será, e não haverá
choro para o solitário
que se vai. Nada restará
do ser mesquinho,
que perdeu o prumo,
perdeu o caminho
e erra sem rumo
pelas brumas de uma
loucura
desejada.

Sem sono
Escorri pelo caminho
do sono e escorreguei.
Cada vez mais lúcido
ainda espero a hora
(e quem sabe, agora)
de fechar os olhos
e nada ver. Mas
a cada palavra escrita
acendo um fogo
que me excita
e arde ainda mais
em minha mente

Delírio
A carne podre se esfacela
na cela de um prisioneiro
em solitária. Pensa, mas
seus pensamentos se esvaziam
pela falta da fala.
Murmura sons inaudíveis,
tão estremecidos como
o corpo que se cobre
de feridas purulentas.
Resta pouco? Ou resta muito?
O mundo?
Jamais saberá.

Palavras
Tenho sede de palavras
não ditas. Elas secam
minha garganta e me fazem
arfar. Em solilóquio
observo o mundo,
mas não ouço nada,
porque aquilo que ouço
não me diz nada.
Palavras vãs, que vão
se perder ao primeiro
vento gelado de um outono
vulgar.

O menino debaixo da mesa - Leopoldo Comitti


Ilustração;
deviantART

III

Um gato gordo
e um ursinho de pelúcia
descansam na cama.

Uma pata afaga o pelo,


outra coça a orelha.

Ociosos olham o teto


 com olhos vivos de vidrilho.

(Que amores infantis são esses 


que nos tocam tão intensamente?) 

IV

Plantas na janela
balançando
ao toque de mão
nas avencas
de suas pernas.

Uma chaleira na cozinha


ferve a água
 do café da manhã.

– Menino bonito!
(alguém sussurra no vapor.)

A mesa na sala
sob o telhado sóbrio.

(Não durmo). 
E na xícara derramada 
gotas de gestos esparramam-se pela mesa 
como migalhas de pão.  
(Não ouço) 
o ruído da colherinha 
em rodeios delicados pela porcelana: 
camomila, camomila, camomila...

VI

Frágil cena.
Sem chá ou perfume 
o menino se encolhe debaixo da mesa 
sob pés, sobre pós, sob o dossel 
da toalha xadrez. 
Bicos de crochê azuis 
são filtros para o mundo, 
em que as pessoas são imensas 
os pés são imensos 
as vozes são imensas.

VII

Sob a mesa há penumbra. 


Sobre a mesa, a toalha sempre xadrez, 
como tabuleiro à espera 
de um jogo que o menino não joga.
Não. Ainda não desta vez.

Abre a caixa de sapatos: 


um a um surgem os reis, 
encantados em seus sonos de papel.

VIII

Um galho bate na janela. 


E bate de novo, novamente, 
e cansada a madeira estala.

(É um grilo, mãe: 
mãe, é um grilo.)

Chove. A luz se foi no estalo do raio. 


A escuridão arregala os olhos 
e treme. 

(Morreu alguém)
A lâmpada pisca, pisca e queima.

Uma lufada escancara a porta:


chuva, mato, grilo,
tudo entra.  
Um galho bate na janela 
e pelas frestas da vidraça 
entram assombrações.

(Ouça o grilo!
Morreu alguém, mãe.) 

Ansiedade
Procuro respirar,
por favor, somente um pouco
de ar, em lânguidas golfadas,
no engulho da garganta
gasta. Do ar rarefeito
vêm-me cenas insípidas,
mas sóbrias. Não engasgo.
grito e engulo a infância
magra e não esquecida.
Um trago somente.
Respiro. Não quero lembrar.
Uma pena se soltou, pendente,
no ar, e escreveu meu nome.
Pobre pena, perdeu seu tempo.

Cogito
Penso. Logo sou.
Não quero ser.
Por isso apago
o poema que nascia
pobre das impurezas
do tempo. Esmago
logo as asperezas
longínquas e pouco
puras.

Nada
Não quero escrever.
Mas preencher o papel é necessário.
Do nada para o nada.
Aliás escrever sobre o nada
é minha matéria.
No silêncio, tudo,
até a vida sobrenada,
esvazia, e as coisas
perdem o sentido.
O restante, é puro
escorregar de sombras
e água em pias bentas
no escuro.
Olvido.
Penumbra
Faz frio
e o cobertor que me cobre
é fino, mas fofo, almofadado.
Quero que ele cubra
as lembranças vivificadas
e rubras, sem mofo.
Na escada, alguém
desce, degrau por degrau de leve..
Lá embaixo não há ninguém,
a não ser o vulto breve
de algo que não deveria
estar ali.
Abraço-me e me aqueço,
mas não das lembranças sombrias.

Ao pó...
Verti meu sangue
sobre o corpo frio
e morto. Nada mais
há que se faça,
que se estanque,
ante o fúnebre fastio.
Tudo é fumaça
e pó, que se há
de levantar, ao vento frio,
a escura fumaça
de um outono vazio.

Estranhos
Dois gigantes
saem do meio
da terra e pisam
o ar que respiro.
Transpiro.
Abrem os braços grotescos
e tentam me abraçar
brutalmente.
Escorrego.
E num piscar vadio,
somem-se solitariamente.

Acerto
Subi ao monte
com o demônio
ao meu encalço.
Corro, mas tropeço.
Sinto seu bafo
nas narinas abertas
ao vento.
Nada mais faço.
Espero o momento
do encontro.
Clausura
Queria escrever o poema perfeito,
pendurado no ar rarefeito
de uma montanha longínqua.
Mas o ar é pesado
e a mão estanca.
Tento assim mesmo,
escondido no passado.
Já fui leve.
Hoje sou duro.
E me escondo no escuro
de um quarto fechado.

Vislumbre
Perdi deus nas esquinas.
do mundo.
Aos poucos se foi esvaindo
como o gelo que se transfigura
em água pura.
Tento recuperar a crença
na dança miúda
das pequenas coisas.
Meu olhar é impuro.
Se vejo a beleza,
vejo-a em si. Perjuro,
não creio mais no milagre
do toque divino.
Ou acredito
e insisto em não crer?

Inverno
Não quero estar
onde estou. Espero
a hora de me ir
para dentro do verso.
Sinto-me fora,
sinto-me frio,
sinto-me fátuo.
A hora ainda
não é agora.
Agora é a geada,
a chuva fina,
o frio que congela
aquilo que tenho
de mais precioso.

Vejo-me mais moço.


Ainda havia esperança
de transformar-me
em outra coisa,
algo mais que um delírio
insosso e sem lume, sem ver.
E nada veio, a não ser
a mágoa, a perda, o esvanecer,
o liquefazer-se em mil
águas.

Cecília
Suspendi o sol bem alto
para que não me atrapalhasse
os movimentos.
Ainda não haverá arrebol.
Murmuro palavras estranhas
que nem mesmo sei
o que significam.
Conjuro os espíritos do dia
para que me devolvam o meu tento:
o ar absoluto
de algo intenso, intenso e bento.
Não tenho calma. Tenho arestas,
e por elas, o tumulto que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Vejo-me mais moço.


Ainda havia esperança
de transformar-me
em outra coisa,
algo mais que um delírio
insosso e sem lume, sem ver.
E nada veio, a não ser
a mágoa, a perda, o esvanecer,
o liquefazer-se em mil
águas.

Inverno
Não quero estar
onde estou. Espero
a hora de me ir
para dentro do verso.
Sinto-me fora,
sinto-me frio,
sinto-me fátuo.
A hora ainda
não é agora.
Agora é a geada,
a chuva fina,
o frio que congela
aquilo que tenho
de mais precioso.

Contradição
O fugidio me assusta.
Sinto-me escorregar
pelas encostas, como a água
barrenta de uma chuva
violenta. Mas se me assusta,
dele vivo e com ele escrevo.
A palavra se escoa
pelos ralos dos sentidos
e se espraia pela página,
esvoaça pelas mentes
e jamais se assenta.

Insônia
À noite, a persiana dos meus olhos
se fecha, mas não consigo
dormir.
Reflito, deliro, voo pelas alturas
que só o dia há de trazer.
Mas o dia chega
e tudo é plano,
apesar de pleno
de uma vida veloz
que a minha vista não vê.

Nascituro
Sou barro,
sou terra,
sou o fim do dia
que se esconde na escuridão.
Sinto em mim as estrelas
que se penduram
na quina da lua
amarela e simples.
Aguardo a noite
com a vontade
de ver e dormir.
Se acordo no meio da noite
esquartejo a paisagem
que se esconde fugidia,
longe do dia que se alonga

1970
Mais um chute na bola.
Não importa se a bola
é uma cabeça ensanguentada
que ainda geme torturada.
Esse é um país que vai pra frente,
nas dívidas aculadas
pela Itaipu, que se agiganta
e pela transamazônica, uma picada
de erosão e desmatamento em meio à selva.
E a seleção canarinho traz a copa,
para alegria do Regime, que faz dela
uma metáfora para o falso cresciemento.
E os ricos ficam mais ricos,
e os pobres ficam a mais pobres.
Rola, rola cabeça pelos porôes
do DOI CODI. E o povo exangue
pensa que está tudo bem,
porque a seleção voltou vitoriosa
e a Dituadura segue furibunda.

Fantasmas
Há um fantasma no quarto.
esconde-se pelos armários
cheios de restos da infância.
Uma lança o transpassa
e ele sorri do susto
dos incautos. Há um fantasma
que corre pelas paredes
ou se despedaça pelos ares.
Não assusta mais, agora.
Apenas acena um adeus
e sai pela janela aberta.

Passagem
Gira no ar em piruetas
a sombra do menino
que já morreu.
Dele resta o sonho grisalho.
Arqueja outro dia
opaco e feio.
O sol perde seu brilho
e vai se aninhar
no leito febril, escondendo
as faces enxovalhadas
de uma dança senil.

Parto
O novo nasce
do nada que aparece na janela.
Uma pincelada aqui,
outra acolá, alguma textura
uma criaturinha pura
pula para a vida,
indefesa.
Olha o mundo
com os olhos mudos,
Mas só vê o velho,
Sisudo e fundo,
Pronto para o enxovalho.

Um palhaço
O palhaço não brinca.
Briga com o riso
numa irritante busca
de aplauso fácil,
com
piruetas, cambalhotas,
piadas irradiantes.
Acaba sempre vencido
pela bailarina russa.

Miragens
As sombras dos sonhos
são tão fátuas
que o fogo dos tempos as faz
fulgir
apesar de inócuas.
Não passam de mera miragem,
coragem de amarrar o barco
no ancoradouro da noite,
pousado em arco
esperando flecha ou bote
de serpente peçonhenta.

Velório
A loucura de um homem
está na hora da morte;
nas condolências e nos silêncios
que se espalham pela câmera
mortuária. O mutismo pesa
na carne podre que já
se esvai no cerne da cena,
da reza, do hábito de velar
mortos insepultos. O cinismo
se espraia nas palavras
baixas, e nas falsas lágrimas.
A vela queima, como se queima
a carne.

Águas
A transparência do ar
se faz opaca.
As nuvens carregam chuva,
que vem abundante e sólida.
Na fluência das águas
se vai o destino
dos desatinados. Estes
não se molham e não
pisam no barro vermelho
que se espalha.
E tudo sobe, cada
vez mais. Só não
sobe o silêncio
necessário para a hora
sóbria.

Hipocrisia
A solidão dos desesperados
é ainda pior do que a do órfão.
Este ainda tem a solidariedade
do mundo. Os loucos inquietos
não têm a piedade do cristão
hipócrita, que chora lágrimas
de fogo, que queimam
mais do que a chaga dos obliterados.

Agridoce
Amar? Amei-te e amo-te
tanto e quando
que já nem sei
da floresta do meu ser.
Nesta, um horizonte líquido e azul
desliza pelas bordas da tela
e se orienta em direção ao meu sul.
Nessa, um barco quebra o gelo
pintado, e alquebrado, soçobra
para um lado e naufraga lentamente.
Nesta paisagem inóspita e viscosa,
Continuo a dizer, no entanto,
que te amo, tanto e quanto,
nas imagens ansiosas insólitas.

Crepúsculo
O vento varre veloz
a varanda da velha casa.
Sinto-o no espelho
da vidraça empoeirada.
O sol pisca pachorrento
seus olhos emurchecidos
e tenta se esconder longe
das nuvens enodoadas
por um vento umedecido.
Por trás dos vidros,
vejo a noite que vem
lenta, longamente,
estirando os membros
de sombras e estrelas.
É triste vê-la.
Entrededos
Tenho nas mãos
o sangue da vida ácida.
Ele escorre por meus dedos
e levanta ao meu rosto
os meus medos e a pálida visão
do que foi o meu passado.
Os braços estão viscosos,
nervosos se alteram,
vibram com meu nojo.
Não há água que retire
a sensação sentida e vivida,
retida na retina de olhos,
como pobre e triste sina.

Trilhos
Um trem apita na estação.
A dormência de minhas mãos
chega à cabeça cansada. Pendo
o pescoço sobre o queixo piscoso
e ali fico, pesaroso. Tenho muito
em que pensar, mas um tropel
de cavalos dourados se mistura
ao meu louco meditar matinal.
Ainda não amanheceu, mas não há
estrelas. Apenas neblina.
Fora e dentro.
Um trem se vai na primeira curva.

A minha mãe, que hoje faz 90 anos


90 anos
Na agora hora do sol posto,
Minha mãe aguarda no porto
Um navio célere, que a levará
Muito além da linha do horizonte.
Sua ampulheta está quase cheia,
E os grãos minutos continuam a cair.
Mas ainda anda devagar, a ir,
Confiando em meus passos,
E em meus braços, que já não
São firmes, pois já ando com o olhar
Voltado para a areia que escorre
E percorre o orifício do tempo.
Em breve vou perdê-la.
Mas já me pego em, ao vê-la,
Sozinho e sem alguém que me guie.
Que a ampulheta, a areia, me espie.
Acostumado estou, e vou, sem confiança
Sem a esperança de ter braços e pernas
Que me amparem e se façam meus.

Mariposas
Ainda há luz em minha mente,
mas as mariposas insistem
em apagá-la em seu volteio
sem via, algo como que
suicida.
Ao afastá-las me vejo
suprimido da fala
que faz de mim um homem,
e gotas ácidas caem
sobre o papel dos sonhos.
Calo-me, porque as sombras são tantas
que não consigo afastá-las
com as mãos. E o meu verbo
é luz.

Lovecraft
(a meu mestre do estranho)
O quarto de hotel
não é geométrico.
Ou melhor, realmente
é... Mas obedece a algo
notável: uma geometria
enlouquecida, toda
própria. Rejuvenesce
o logos útil e físico
daquilo que é comum
e fútil. Ângulos impossíveis
tornam-se uma realidade
factível no cubículo
aparentemente cúbico.
Ora, quantas verdades
desdenháveis aqui se mostram

Caribdis: um poema inédito de Leopoldo Comitti

Ilustração: Sophia Adalaine Zhou

A espessa calmaria, espumante e úmida


toma conta do barco quase estagnado.
Nuvens negras, aos poucos, revolvem a embarcação,
que mal se move no mar
estranho.

O que era brisa se torna vento voraz agora é


violento.
E  gritos aflitos irritam as ondas
Que se alteiam velozes em torno do nada.
Vagas volumosas fazem daquilo que era quedo,
o medo.

Medra no ar trágicas impressões malignas,


e o tombadilho, antes cheio de molambos
marinheiros, vai-se esvaziando à medida
que o terror da tempestade aumenta
                                                       audaz.

A escuridão agora é espessa e lúgubre.


As ondas se movem ao vento ímpio
que desapruma o navio que parece
se encolher entre espumas e chuviscos
                                                       gélidos.

Da calmaria faz-se a tormenta,


que aumenta em rajadas imensas
a esbater-se contra o casco frágil,
ante a força das águas que se agitam
                                                       intensas.

Aos poucos, tudo roda e se enrosca


num girar louco e duradouro.
A frágil embarcação estala tremores
e acompanha o rodopio do intenso
redemoinho.
Já, não se sabe mais agora
o que é mar e o que é vento,
na rolagem veloz que se instala,
e do claro faz-se o escuro, senão
o negro.

Um sorvedouro imenso se abre


ante as ondas alteadas, e o giro
rompe o casco antes forte e altaneiro.
Gentes choram, gemem e clamam
horrorizadas.

Pouco a pouco suas vozes se somem


nas águas enfurecidas, e o silêncio
das bocas prenunciam o fim medonho.
A velocidade aumenta e a nau
                                                       maldita.

some-se no sorvedouro imenso.


Tudo é intenso e bruto.
Em pouco, nada mais há sobre
o mar, que se abre e  fecha
                                                       tumular.

Finalmente, a paisagem se estanca


e flutuam restos no mar em calma.
Esgotada a força do turbilhão,
não se vê mais nada que lembre o
                                                               aturdido
                                              

barco branco sobre o azul translúcido.


A calmaria retorna e tudo é pleno
na face do mar. Só o horizonte ainda vermelho
lembra que por ali passou a fúria
De um deus poderoso, em sua busca
insana.

Moenda
A roda se compõe
de doze pares,
todos amarfanhados
e estranhos.
Cantam cantigas de ontem.
Vieram de longe
e para longe irão.
Sob a luz da fogueira
batem os pés pesados
de fadiga e vontade.
Não se furtam ao ritual
de reter na garganta
a primeira estaca
da primeira tenda.

Ardor
Bebo da fonte do fogo
em golfadas profundas.
Queimo a garganta
sem pestanejar. Sou
pura ardência santa
no escuro da manhã
de inverno. Aos poucos
sentirei o inferno
que me subirá
pelas entranhas. Nada
mais me é estranho
ao paladar
profundo.

SACRO - LEOPOLDO COMITTI

Ilustração: holy spirit/Alexandra

Curvo-me sobre mim mesmo,


e uma água turva
escorre entre meus dedos,
despejando um filete firme
sobre um lago sacro.

Mais ao longe, frágeis


Dédalos alçam voo plácido,
erguendo seus rostos pálidos
para o céu, como livres
e cálidas libélulas dóceis.

Sobrevoam os edifícios,
em volteios fáceis e límpidos.
Mas o sol inclemente
os fará deslizar até a superfície,
despedaçados e atônitos.

Tudo será breve, e a cera


dos tempos irá se misturar
ao lodo perpétuo. Quimera.

Mãos, asas e águas


permanecerão uma única
e mesma coisa: planura
úmida e fértil
para a perpétua continuidade.

Sombras chinesas
Os monstros artificiais
me encantam
por sua singeleza.
Seus dentes afilados,
perfilados, lembram linhas
puras e límpidas.
As presas, tão perfeitas
trazem sonhos ácidos
que nos assombram
pela nitidez. O torso
escameado, faz dos versos
singelas formas mal traçadas.
Nos monstros, tudo é detalhe,
entalhe, a loucura do artista,
que procura a perfeição
nas formas inexistentes.

Vendaval
O vertedouro das sombras
se abriu inteiro. Acolhe
alucinações que passam inclinadas
em direção a tudo, ou talvez
em rota rota a caminho do nada.
Assombrações sobrenadam
o dia envelhecido e a cada raio
o céu derrama água, ainda mais,
como lágrimas de desespero.
A correnteza das valas carregam
com imenso esmero
infindas almas penadas,
que no barro se embolam,
loucas de tenso e impuro pavor.
E o vento vislumbra
a vela, acesa, com
a chama trêmula;
e a divide em dobras
de fogo fátuo e fero,
que iluminam fantasmas
nos miasmas do escuro.

Moenda lívida
A roda dentada
ainda gira e tritura
mentes. O moinho do mundo
é mudo. Só murmura
seu ruído mesquinho
e continua a girar
pelo mesmo caminho.
No plenilúneo há de parar,
mas as mentes agora moem
sonhos estranhos. Mesmo parado
o mó imundo oblitera
pensamentos.

Confissão
Do gosto louco e aposto
de falar de mim, a dizer
tenho pouco ou quase nada:
além do ser ou não ser:
mais Caim que Abel,
mais Lúcifer que Gabriel:
Eis-me assim.
Os pelotões infernais
me acompanham sempre
pelos feios caminhos
que não escolhi, não que lembre.
E daí?
Sigo-o como quem diz:
"as flores ainda
não estão murchas".
Amo a luz e a sombra,
Indistintamente,
e bebo-as, todas as duas
na mesma boca, que diz
lentamente amor ou perjúrio.
Sou límpido e profundo
da mesma forma que o lodo
no fundo de tudo, de todos.

Feérico
A noite escura girou seu canto
de encantamentos e assombrações.
Em cada esquina, fantoches
de alucinações procuram um lugar
à luz do poste, que enche tudo
de luto, com sua penumbra
fantasmagórica ao luar. Das silhuetas
estranhas saem demônios
das entranhas da noite,
a buscar outras almas penadas,
que caminham pesadamente
sobre a calçada suja e decadente.
Um vento endemoniado levanta
papéis e duendes escuros, a escorrer.
pela chuva penosa e quieta,
a inquietar ainda mais a noite.
Tudo é estranho, nos caminhos
tortos. Vultos inquietos, velozes
vultos perseguem almas impenitentes.
Algo tange entre redemoinhos,
e a lua, apesar das nuvens
e da água, clareia um pouco
os responsos de um sino ao longe.

Gourmet
Sei-me bruto e bruxo.
Transformo água em vinagre
e com ele tempero a salada
dos tempos, numa cilada.
Aos poucos, minha força de lírio
Falso se aprimora, no esmero
e um todo que, a cada passo,
faz da vida um gostoso delírio.
Como um rio cheio, espesso,
transponho as bordas de mim mesmo,
mudo os eternos ritos
e atravesso com gestos ternos
o umbral dos malditos.

Espinho
Deflorada, suja e triste
via a mancha de sangue
sobre a cama desfeita.
Sozinha, agora. Sobre a mesa
de cabeceira alguns trocados
e a escusa de um bilhete de adeus.
Não viera o prazer prometido
nem a prova de aventura proibida.
Apenas tristeza, enjoo e tontura
Mais adiante, um canivete
esquecido pelo homem indiferente.
Sem dúvida ou medo pegou-o.
Como em voo, com golpe certeiro
Cortou o pulso direito bem fundo.
Depois, deitou-se ao longo da banheira.
Abriu a água e se deixou levar
por um sono profundo e finalmente
tranquilizador. Precisava a alma lavar.
Rosas
As rosas violáceas e líquidas
florescem na ferida aberta.
Nada estanca este sangue
que jorra, gruda, agarra,
sobrepõe-se às outras cores
que aos poucos se esmaecem.
Nem os mosquitos e as dores
que se misturam à carne crua.

Sol de primavera
Tenros brotos de luz acordam
o rosto alegre do sol da manhã.
Ainda é frio. Tremem. Seduzem,
mas brincam nas bancas de revista
e florescem com as flores temporãs.
Na rua, as casas simples, de telhas
chãs, enfileiram-se e, rápido conduzem
ao rio, às velhas vielas sujas e egoístas
em mostrar a sombra, ainda a esta hora.
Mas as flores explodem em aromas
que a breve luz, ao penetrar silencioso,
produz, em múltiplas e muito calmas,
vasilhas de cerâmica, espalhadas,
como em súplica, pelo arenoso solo,
ou por amplas varandas alternadas.
É primavera, sim. Sem preparação
prévia, ou maior calor. Ela espera ainda
o consolo dos dias mais quentes
e os brotos a se abrirem, em bem-vinda
coloração, com rosto alegre de nubentes
afoitos.

Mosaico
Noite fria em Curitiba.
Tiritam as luminárias
sobre passos incertos
e bêbados. Canta o homem,
canta a lua, canta a rua,
e os insetos que voejam.
Uma névoa se estende
por sobre as calçadas
salpicadas de sereno.
O bêbado se vai,
e tudo continua igual
em sua amena friagem.
Picada
Uma aranha negra,
dessas que se emaranha
em densas teias escuras,
picou meu cérebro,
ainda entorpecido pela
noite lúgubre e funesta,
da janela vista e temida.
Que estranho poder
pode ter este líquido, negro
e viscoso, de clarear de imediato
a mente, como um gostoso,
ácido e vivo veneno.

Flores e grades
Enrosco-me ao sabor
da saudade, como as flores
que se trançam pelas grades,
em penetrante perfume.
Enlaço-me a mim mesmo.
Mas meus braços, que a esmo
ficaram, já não obedecem
a vontade. Só afagam, lassos,
uma enigmática flor murcha,
no enorme canto do jardim.

Água
O ópio da manhã
se esvaiu em sangue.
Lá nasce o sol
com raios tênues
e a cor se espalha
sobre os canteiros
de rosas pálidas.
Clareia. E uma neblina
fina encobre a festa
de cores. Vem o dia
insípido, inodoro e incolor.

Exangue
O sangue corre em minhas veias
mas quase não o sinto.
Apenas um deslizar lento
de compassiva entrega
a algo fatal e inexorável.
Só existe o frio que escorrega
por braços e pernas,
feia ferida quase chaga
que me escurece de dor.
Espero, espero e respiro
a flor que abre e recobre
um último e simples suspiro.

Fumaça
Ainda meio bêbado, enfermiço,
escreve palavras mal dormidas.
A cabeça pende sobre o papel,
como pende o papel de parede
mal colado, velho e quebradiço.
A fumaça do cigarro barato
arde em seus olhos vermelhos.
Lacrimeja de dor e choro.
Não pela fumaça, mas pelos
dias perdidos, atento, em vigília.
De nada adianta encher a bilha.
A vida escorre como velhos cabelos
brancos, calcinados como um muro.

Passos
As tábuas rangem
sob um poema.
São passadas rítmicas,
compassadas, imagem
que circula sobre
o mesmo assoalho
amarelo e liso e nobre.
O som é amortecido,
mas audível e claro
ao ouvido atento.
Um poema é um querer
violento de soltar palavras
sobre o caderno velho
e gasto. Um momento
que grava um segundo
de entender o ininteligível,
a vivência do relho, do impulso,
do bater do pé e do pulso
em perfeita consonância.
(Leopoldo Comitti)

Madrugada
Neblinas alvas silenciosamente
avançam calmas e insalubres
sobre as almas perdidas no tempo,
sonolentas .
Aqui e ali surge simplesmente
um recorte fantasmagórico e agônico
de paisagem, que flutua sem rumo,
lentamente.
Pique, repique, os sinos se remexem.
Uma igreja tristemente solitária
acorda badalando a mesma história, sempre,
imensamente.
As cumeeiras nadam nas gotículas,
entre as nuvens, e parecem se agitar,
num embaralhar de minúsculas imagens
inclementes.
E a cidade acorda em rios de rumos,
esfregando os olhos, por caminhos perdidos,
ainda ardidos pelo sono, mas pasmos,
finalmente.

Esquinas
A noite tornou-se
desassossego e desejo.
O corpo arde e sua,
em evidente febre,
como se estivesse
no cio, sem alarde,
sem lugar, na rua.
Só os grilos, cegos,
irritam os ouvidos
atentos, que tiritam
nas esquinas, desnudos,
e vibram vívidos, em solfejos .

Neblina sobre Rio Negro


Um pano branco e aveludado
cobre o casario ainda envolto
em sombras, deixando entrever
cacos de paisagem a pairar sobre
o rio: árvores disformes e díspares,
tetos enroscando-se nas nuvens
torres pontiagudas, lares, ares.
Abaixo de tudo ele coleia lento,
contornando, mudo, em vagares
e esgares a cidade antiga e mofa.
Mas ninguém o vê a correr em seu
leito. O claro leite envolve tudo e a neblina
castiga.
Com suas águas turvas ele está ali,
por baixo do branco cobertor
que aos, poucos em, estertor, se esvai.
Sob o alvo envolver de cambraia,
lentamente a se desfazer. Algo cai.
Vejo-o na lembrança, não mais nítida,
do menino que mergulha profundo,
nas águas que se projetam como lanças,
eternamente sob a neblina.

Garoa em Curitiba
A multidão não espera a garoa
passar,
a tiritar dentro dos casacos neutros,
de onde o frio não se escoa nunca.
Mas tudo se torna placenta branca
de nuvem e neblina. O sol, pálido
e mal nascido, não esquenta as
faces:
as esquinas são surpresas de gelo,
que cresce em lajotas, como poeira
leve .
Pessoas escoam acinzentadas,
como se o tempo lhes tirasse a cor
ou lhes tolhessem o gélido tato.
Sentem a dor em pés mal calçados,
mas passam, com o perfume do
inverno,
que insiste em, mais ameno, nunca
findar.
E a garoa cai sem parança.
Fininha, leve e plúmbea
pelas calçadas lisas, em
desesperança .
Curitiba anda assim mesmo,
como a desconhecer sua presença.

Maçãs
O menino velho esgotou-se
em rugas bem vincadas.
Já não existe o frescor
das coisas simples, ousadas
e naturais. Seriam as cãs?
Ou talvez a falta sentida
de novo o torpor exótico
de uma mordida em uma maçã
no, roubada do pé do vizinho?
Erótica e suculenta de sereno,
em algum um novo caminho?
Aridez plena
O deserto ácido
enternece
porque se faz árido.
Talvez pelo vazio
ainda virgem.
Um vazio a ser preenchido
por figuras etéreas,
ilusões de ótica,
imagens feéricas.
Todas palavras
do passado,
miragens elusivas,
poéticas, de inspiração
repletas.

A transubstanciação do eu
A palavra impura,
colocada no cadinho
do ourives é mero carvão.
Moída e remoída
torna-se uma pasta
sem cor e sem brilho.
Sou eu, ali
com a caneta no papel,
a escrever garatujas.
E as letras escorrem,
na cor cinza do que é pétreo.
porém, penso, volto a escrever.
E mais e mais silenciosas
vozes querem deslocar-se,
tornaram-se amarelas.
Por fim, deixo de lado
a massa informe e bruta.
Depois retorno ao início.
uma a uma toma forma,
não mais moídas, mas cinzeladas.
E o trabalho é árduo.
Ardem-me as mãos na labuta.
Podo, corto, suprimo, acrescento.
Finalmente surge o poema.
não é mais carvão,
mas palavras que brilham
como ouro.

Arame farpado
Minha vida se soltou,
como se fosse
um arame farpado.
Enrosco-me nas farpas
agudas e sangro.
Sangro azul pálido,
como pálido
se tornou meu rosto.
As feridas expostas atraem
insetos de um paul infecto,
no qual me afundo,
em hemorragia eterna.

Sensação
Um líquido viscoso,
escorre dos meus dedos.
Talvez a vida que se esvai
e expande-se pelo corpo
em amarelo ouro,
como se fosse precioso
metal entre penedos.

Poesia
Uma ave levantará alto voo,
bem acima do teto do mundo.
Cegará as nuvens com seu brilho,
e um arco-íris a receberá
meio cego; pois das cores terá
ainda outras, nunca vistas
pelo humano olho.

Certezas
A beleza nasce da insanidade
dos loucos e dos bêbados.
Nasce das cinzas dos sóbrios
e floresce no lodo dos impuros.
À lógica e à razão
oferecemos distância
e o texto irracional e belo.
Oferecemos também o prazer
a quem não tem coragem
de jogar ao vento as certezas.

Bibelôs de cristal
Cintilam na cristaleira:
entes belos, puros
e transparentes.
São frágeis criaturinhas
Feitas de areia e fornalha forte.
Foi preciso o fogo
para forjá-los.
Foi preciso a mão
para moldá-los.
Agora só precisam do olhar
para olhá-los sem logro e sentir
a fragilidade que é só deles,
mas que também de quem os lê.

Das impurezas do Belo


O belo é impuro porque belo.
Se não o fosse, seria angelical.
E não quero o prazer dos anjos,
dos elos divinais, mas entediantes.
Prefiro o prazer dos malditos
e mendicantes, que saem,
nauseantes,
pelas ruas a chorar impropérios.
Cada verso meu será um catar
de escolhos, de pedras afiadas
a nadar no fundo lodoso dos rios,
um escolher de palavras maltratadas.

Vísceras
O jorro de palavras
que me sai da boca
não sai da boca,
sai das vísceras.
Escorrego no nojo
de viver, vivendo.
Abandono-me ao viver,
vivendo. E sentindo.
Não fossem os sentidos...
Esses querem mais
e mais, sempre mais.
E esfolo-os ao contato
com a pedra fria
do desejo morto.
Esse jorro de palavras
que me sai da boca
não sai da boca, diria,
sai das vísceras.

O homem
A luz incerta da lâmpada
espanadeja as teias de aranha
e abre caminho para a sala.
Desperta do sono aquele
Que vê. E apanha o vulto,
Que do quarto se abala.
Nada vejo, a princípio.
Parece um solfejo de imagem:
só um homem que escreve
lutando contra as sombras que
somem.
Pestaneja, esfrega a testa
e suja-se do pó dos tempos.
Os livros diante do tampo da mesa
desandam sem mais contratempos,
mas pena miúda escorrega
e rola pelo chão e se enfia numa
fresta.
Os olhos escorregam pelos papéis
que se acumulam por toda a volta.
O que pensa esse homem?
Pergunto a mim, não pergunto a ele,
porque esse homem sou eu, o outro.

Horas passadas
Quero esconder-me
no ventre materno
e nascer-me de novo:
pequeno como um feto,
quase um ovo.
Vã tentativa. Apenas
sufoco no leito
a cinza das horas, de novo
passadas e repassadas.

A mão
A palavra sinuosa
escorrega dos meus dedos.
Nodosa. Pego-a? Deixo que se vá?
Espero-a em outras léguas?
Escrevo na mente poemas inteiros,
como certeiras setas,
rimas e ritmos, ideias, antíteses,
pleonasmos, quiasmas.
Mas nada ganha papel e tinta
ou a virtual letra da tela.
No vazio do quarto e no pleno
do cérebro, os versos planos
deslizam lentamente, perfeitos
e fluentemente encadeados.
São muitos. São fortes, são prontos.
Mas, basta abrir os olhos, a boca,
nada mais se retoca, sequer existe.
A mão estaca.
Desfaz-se rapidamente e
desaparece.
E aí, pergunto novamente:
Espero a palavra em outras léguas?
Ou espero a mão inteira
de outro poeta?

Febre
Sinto terrores sutis
dos horrores da noite
que se alonga, prepotente
(como líquidos azuis
Em marolas perfeitas).
Findou-se, e pálido e atento
gemo pelos clamores do sol.
Ainda há lua, mas nenhum
arrebol que aqueça o vento,
comum nas horas mortas.
Apenas uma fatia de rua...

Contradição
O sol nasce vermelho,
sobre trilhos de luz difusa
e um trem apita na curva.
O trem segue seu curso,
cortando leves e turvas
nuvens, serenamente em gestação.
O sol também segue seu curso,
cortando dormentes velhos sobre
trilhos jovens, em ligeira contradição.
As pessoas seguem seu curso,
levando sementes de esperança
pobre,
mas certeza alguma de chegar à
estação.

Espelho ácido
Um monstro cego
se apossou de minh’alma.
Bate-me, arrebenta-me, mas
aguilhoo-me nele. Me entrego.
Sou dele, ele é meu.
Somos espelho ácido
no escuro da mente
a girar coisas do mundo.
Abro os braços incertos
num gesto de libertação.
Então, ele me arrasta ainda mais
para as profundezas
de mim mesmo, a descoberto.
Reflito-o. Reflete-me.

Tempo feio
O vento uivou na poeira
enquanto a nuvem negra prenunciava
a vida em tempestade brava.
Raios, trovões, coriscos,
tudo volta do passado, na peneira
do tempo e das leituras.
Versos ariscos do barroco
vêm como triste tortura, tontura,
e misturam pensamentos, dores
de elementos, na imaginada figura
de uma metáfora, cuja existência
jamais terá as mesmas cores,
sem senso, e jamais quaisquer
alentos de ciência ou possível viver.
Chove muito lá fora, demais.
Dentro do peito, explode a
experiência
de outras tempestades verbais.

Grilos
Estrídulos, gritos estridentes,
no solfejo da manhã cambiante.
São os grilos estranhos, um revés,
que ao invés de assombrar
as noites, sob as janelas fechadas,
invadem o dia, excrescentes.
Vejo-os em seu soar, vozes
rachadas,
como um sinal que irradia
que o verão está próximo, enquanto
as pobres manhãs frias ainda
se acabam. Se estão a acabar.
Assim, o som vermelho entra
pelas narinas, fere-as férreas
e mostra seu cheiro acre,
como se de um envelope enigma
se tirasse o lacre, e as notas
ganhassem vida e consistência,
dignas de, por entre os objetos,
impor naturalmente sua existência
animal, infernal.
Sobre o amor
O amor cálido
ficou nas gotas
d’água, que caíram
sobre meu rosto,
como um rastro
de desejo, agora
já morto e frio.
De longos cabelos vieram,
e fixaram-se na memória,
velhas e ferruginosas,
mas copiosas, a caírem
no centro seco e frio
de uma história antiga.
Fixam-se como pregos
na madeira podre, apesar
de a memória recusar
seu contato e o apego
a algo que ainda está
a causar mais alguma dor,
lá, onde a mente não clama,
mas chama, presta, com
todo e incessante ardor.

Sensação
Agulhas vêm-me à cabeça.
Perfuram meu cérebro,
em dores finas e sutis.
Não sei o que são ou serão.
Só sei que querem mais
abrir caminho para palavras
não ditas, desditas, reditas.
Vomito eu mesmo
como quem lambe
o sangue do dedo
gangrenado e purulento.
Coice
Um galope incendeia
o quarto. São os soldados
da noite que empinam
as patas fortes e resfolegam.
Nuvens de guerra varam
as paredes sem sombras.
Não são sonhos, nem ideias,
mas o medo torpe
do despertar em desamparo.
O suor escorre, viscoso,
corroendo, decerto,
as aparas da velhice
e a dor do coice incerto.

Corte
Uma cor invisível
recobriu o céu
e uma gota de sangue
despencou desperta e tinta
sobre a mesa. Um corte.
Talvez linha fina e sensível,
um talho vivo no ser exangue.
E o primeiro raio de sol
penetrou pela janela
trazendo em si uma coorte
de demônios de luz,
a dançar freneticamente,
no momento único que reluz
-------------------------------------
imensamente.
Era o dia em noite
e a noite que se faz
de repente dia.
------------------------------------Somente.
Eu
Prefiro a loucura
à sanidade. Deixem-me
algum pouco de vaidade,
no retrato que já some.
Quero levar-me
por pensamentos absurdos,
mas lúcidos e novos.
Chega da monotonia
dos sóbrios. Um óbolo
ao senso comum.
Prefiro ser ébrio
da luz que não se vê.
Quero mais o desabar
das ideias fixas e mortas,
preconcebidas nos cemitérios,
em lápides áspides,
de mármore lavrado.
Louco, sou eu em mim

Picadeiro
Na serragem manchada
do picadeiro, passa
a turbulência do pânico
e emerge o vermelho do sangue.
O círculo se fecha sobre si mesmo,
deixando somente um ponto divino
oo centro. Eis aí o cênico:
a vida que voa com urgência,
até que o pé escorregue do fino
fio que se estende sobre o infinito.

Preguiça
A preguiça me enlaça
com seus tentáculos,
com sua clemência baça.
Preguiça de escrever.
Preguiça de não escrever.
Meio tonto de sono,
vejo velhos espetáculos
que em uníssono
saem do borralho,
esplendorosos, me convidando
ansiosos, para os ver.
Acordando ainda,
mesmo com a noite finda
estranho o barulho,
o marulho líquido e louco,
da caneta sobre o papel.

Frio
A vida acordou azeda,
pura ressaca na veia
do incauto insone.
Com a xícara cheia
e uns goles de café
quente, até há um alento.
Mas a mão, quase transparente,
se recusa a se abrir
completamente, até
que possa passar adiante
o pão nosso de cada dia.
Finalmente não resiste. Aconchega-
se
e dorme como se fenescesse.
Lá fora, restos de geada,
e o frio, frio e fome.
Heresia
O verso transpira
pelos poros da poesia.
Na madrugada, os galos
Já começaram a cantar,
Em estridente melodia.
Sigo-os, em sua melancolia,
E os meus poros porejam
Um visgo ardido e escuro.
Mudo, penso e escrevo:
nada me inspira,
não me atrevo a muito,
a não ser mais uma,
só mais uma heresia,
vivida no senso, no sóbrio,
no puro.

Mel
As dálias zunem. Imitam abelhas
zangadas, a zoar pelo espaço.
Elas, vão contornando o dia
com um leve sabor de mel.
Em colmeias cheias, os insetos,
proliferam, em alvéolos abarrotados
daquilo que já foi pólen e agora
se escondem, em espaços bem
fechados,
longe dos predadores malévolos.
Fora, o azul espesso predomina,
Ensaiando mais uma manhã
de cricrilos, ruídos, cores
e odores extasiados pelo fresco ar.
Talhas de sol levantam sons,
a voar pelos campos em tons
que entreabrem nuvens.
Migalhas
Nas trevas, a cabeça revolve
o tricô dos dias mal dormidos.
Na tremura da casa vazia
os objetos se envolvem
em lutas de migalhas carcomidas.
Elas são como pequenos insetos,
incertos de seu lugar na calmaria
das eternas madrugadas.
Apenas mariscos ariscos de fetos
de ideias, de óvulos imperfeitos.
Movem os móveis, desgarradas
e ao mesmo tempo simples,
como poeiras vivas em um templo.
São também velhas companheiras
de pensar. Porque pensar
é viver o vivido sem beiras
nem eiras. Só o vivido.

Recortes
O riacho corre
torto e tosco
pelo bosque.
A noite morre
empalada no topo
da árvore, que derrama
suas lágrimas de folhas
sobre as águas sujas
pelas patas de um potro
selvagem, a correr
em desabalada fuga:
quase visagem, com crinas
aladas, a escorrer pelos
raios do primeiro albor.
Amanhecer
Ansioso o dia
abre os olhos
meio vermelhos
de sono e sonho.
Nada existe a ver.
a não ser ruas
sujas de papéis velhos
e velhos mendigos.
Então, fecha os olhos,
observa as mãos nuas,
e volta a dormir ao sol.

Lavra
O medo rápido conduz
à raiva. Desfaz o fio,
de súbita Ariadne; produz
o Hades que se gruda
à pele seca e escura,
como queimada
pelo sol de janeiro.
Nada parece o que é,
mesmo sendo busca,
a nada nos traz, ou leva
por inteiro. Faz-se um
escavar profundo, porém
ligeiro, de um mundo
dedicado à lavra de signos
e silêncios a vir do nada.

Transgredir
A imagem oca, enigma,
se desloca pelo poema.
Não importa o vazio
interno. Só o extremo
poder de transgredir
o externo. Não reflete,
subverte, com cores de estio,
o fio do mundo concreto,
do olhar repleto de sustos,
de sussurros, ecos a rugir.

Coisas
Qual a força do que digo?
Sigo, no silêncio, a própria
vida. Percorro a casa,
em busca de algo resistente
e vivo.
No lusco-fusco do dia,
se esmaecem os contornos
e ângulos. Não há abrigo.
O armário está vazio.
Sumiram a louça, os entalhes,
os tarecos, os talheres.
São restos mortais da vida
que vem de presto, e vinda,
nos carrega e nos enlaça,
num abraço louco, mas fraco,
diante da imensidade vivida.

Luta
O sangue escorre, verte
das minhas palavras.
Porosas, elas exalam
enxofre, e escorrem
pelos braços inertes.
Forço o grito, mas este
sofre e não vem. Mudo,
penso nas mãos em chamas.
Tudo é fogo, tudo é luto
e a luta é vã para,
segurar o líquido viscoso
que desliza pelas aparas
de flechas pontiagudas.
Tudo é bruto, cruel e incerto.
O sangue já não jorra,
as veias estão vazias.

Versos
Estou farto de versos frouxos.
Quero mais a mordida
sangrenta de um tigre
em possessão. Quero a força
da palavra que mastigue,
engula e devolva a vida,
como um vítreo vaso
que brilhe mais, e intrigue.

Arfar
O cheiro excita o livro,
e as linhas se curvam sinuosas.
Logo as letras deslizam e maleáveis
se adequam aos olhos ansiosos.
Daí, o texto arfante
se deita discretamente.

Nobreza
O retrato da Condessa
jaz imóvel na estante.
Num instante líquido,
um espanador o limpa,
rápido.
Homessa!!!
Que poeira juntam
os mortos!

Lassidão
A preguiça
se enrosca,
encapsulada
no tempo imóvel.
A mente rosna
e enguiça. Por
mais que evite,
entre as rosas,
uma tosca treliça
se enreda na cor.
Saudades novas
Da infância?

Poeira
Não somente afetos deixados no
cais.
Tampouco somente efeitos virtuosos.
Mais ainda indeléveis defeitos, talvez.
Talvez as margens de delitos
estranhos.
E detritos certamente inúmeros, ainda
mais.
Um correr frágil e tacanho,
de letras e cores fortes
e o morrer ágil e urgente
de vícios virulentos e vibrantes,
no papel desfeito em pó.

Pingos
A noite embranquece de geada
e o pingo congela, despencado.
Na janela, a fina camada de gelo
transforma a placa plana e fria
em tapete de veludo e estrias.
Um pingo se dependura.
escorre e é sangue
sobre superfície dura.
Um uivo se ouve, ainda que mal
na curva distante, nas lonjuras,
acordando suplicantemente o sol.

Desfocado
A imagem não vinca,
jamais completa contornos.
É um simples e único
deslizar de arestas, trincas
e coincidir de objetos.
A imagem não cerca,
abrange, sem trajetos
prévios, só nuvens,
entrever de frestas virgens
e o dilacerar de claros tetos.

Fiat lux
Deus disse:
Faça-se a luz.
Depois, o verbo se fez carne
e habitou entre os livros,
deixando nos homens um estigma.
Livre da palavra, do eterno,
do mistério, do enigma,
deus inexistiu
para evitar outra tautologia.

Ruínas
Um estalo engole a velha
casa, que geme, torturada
num estertor de gargantas
e encanamentos perfurados,
como lembranças a vazar
pelos triturados escombros
da memória, entre achados
e perdidos.
Morre a casa, imóvel.
Morre a rua, esquecida.
Morre a lua luminosa
no céu.

Ruminação
O paladar da noite é acido
e tecido de palavras roucas.
Sinto-o ao morder a lua,
que, louca, derrama pingos úmidos.
Devoro a paisagem sombria
que me pesa no peito,
meio sem jeito, mas fria.
Os dentes cerrados mordem fios
de estranha mortalha roxa,
e os finos pedaços entalam
e se põem a arder como tocha.
Sou só, na noite poderosa.
Não haverá mais dias
a clamar pela sólida escuridão,
e a morrer lentamente no raio
de pias abissais de prosa pouca.

Dos infernos
Vem, Beatriz, resgatar-me
desta escuridão repleta
de rios de chumbo derretido
e tenazes atrozes a rasgar-me
o ventre, que se encolhe,
já que quase inexistente.
Vem, Senhora minha,
ungir de perfumes este corpo
fétido e marcado de feridas
purulentas. Estendido no chão
em brasa, sonho por mim
e vivo por ti, ainda.
Tudo em vão.
A passagem já está finda,
mas não te encontrei
nas cavernas mais profundas,
onde águas imundas apodrecem.
Vem a mim, minha linda esposa,
pois sabes o caminho
labiríntico deste inferno,
e caminhas segura, por entre
as serpes venenosas. Tira-me
daqui e leva-me para a luz
dos deuses do Sol, que entrevejo
ali, onde meu sonho acaba.
Ai! Beatriz, bem que te procurei.
Agora hei de esperar que me
encontres
entre as ervas espinhosas e as feras
que cantam seu canto estranho,
jamais o das esferas. Chorando te
peço:
vem, Beatriz, devolve-me a vida,
que a vaidade de encontrar-te
já me foi levado entre labirintos,
ferimentos e, sempre, o desejo
de, ainda mais, amar-te.

Sangue coagulado
As noite, com suas incógnitas,
mastigou-me a mente insensata,
em seus labirintos escuros, úmidos
e mofados. Seguiram-se os
membros.
Não sei se é dor o que sinto,
mas nasce dos dedos quebrados.
Sei e sinto que os versos,
que farei, nascerão diferentes,
mais frios, talvez, mas certamente,
com finos fios de sangue coagulado,
que não me nascem do corpo,
mas escorrem da mente

O que vai pela boca


Vou fumar, muito e muito
até
morrer de câncer ou enfisema.
Talvez seja a única forma
salutar
de aprendizado e intuito
de conseguir mais rápido
deglutir uma brasa acesa.
O fogo do nojo me consome,
e as ofensas se repetem
mesmo que os panos quentes
estejam sempre estendidos
pela casa, como compungidos
ante o combate inútil e inócuo
empreendido por uma fera que não
late,
mas morde, tira sangue
da vontade, até que o abate
esteja completo e finalmente sereno.
Só a morte antecipada acalma
o corpo que dói (nervos tensos
e ossos velhos) diante da guerra
na alma, a qual se tenta aplacar.
Inútil. A boca escancarada
abre-se apressada, pronta a matar
os sonhos, o prazer e a vontade.
Cidade em furor
O nojo enjoa.
Nauseados estamos
quando entrevemos
o inevitável mundo
das ruas
O lixo e a festa
se entrecruzam
nesta fresta de tempo
em que nada acontece
a não ser a sexualidade
que se veste de pudor
por baixo da fantasia.
Nem a noite fira arrefece
o furor dos pés e mãos
que brincam com passos
absurdos. Lá longe o surdo,
mais perto o bandeiro.
E o mundo inteiro parece
um cordão imenso, tenso,
mesmo que visto pela
tela de um televisor.

Oração em dúvida
Peço ao Deus, em quem não sei
se acredito, que estanque esta
veia que mancha a terra de sangue
e se espalha pelos veios abertos
por uma chuva que há muito
já veio e depois se foi, exangue.
Peço ao Deus, em quem não sei
se acredito, que faça surgir leite
nos seios da bruta selva africana,
e mate a fome, e sacie a sede
e aceite entre seus filhos aqueles
que já se foram em morte abrupta.
Peço ao Deus, em quem não sei
se acredito, que me traga o silêncio
das vozes que nos lares se fazem lei,
e suprima o choro, e os fatais vazios,
e os versos não permitidos e não
ditos,
para que a soberba e a ausência de
senso
não mate no ventre a Poesia
silenciosa,
e que ela fale, e erga a voz e não
emudeça
pela avareza de uma sensibilidade
plena

Um dia, a carne
No açougue, a carne
crua crua posta em postas
Apodrece. O sangue pútrido
escorre, negro, dos balcões
de madeira nua e suja.
Nos bolsões do calor da tarde
o cheiro infecto sobrepuja o aroma
de um canteiro de flores em
liberdade.
Voejam moscas.
mordem varejeiras.

Deslocamento
O corte surreal do sonho, súbito
deslizou duramente para a debilidade
da dúbia, desatinada e dura
realidade. Não suporto a estranheza
do dia dourado, em solstício
de verão. Seja, talvez, um certo
resquício do isolado viver deserto.
Quero adormecer de novo
e balançar entre relógios ilógicos
e flutuantes. Enlaçar contnte um
fremente
corpo a agitar as profundas, próprias
e perenes
águas de de um "ovo apunhalado".

Estou tonto.
Tonto e tanto.
Desde o amanhecer
(e ainda não são
oito horas) já fumei
mais de dez cigarros.
O sarro se agarra
na garganta e não ha ajuda
para o arfar do peito.
Hâ apenas que estremecer,
para compensar a ilusão
daquilo que ainda me mate, a
enternecer.
Sinto apenas o pulmão cansado
a esperar um pouco de ar
que ainda espero e sempre esperei.
Cansei da sobriedade
a cantar nos ouvidos moucos.
Prefiro a loucura dos loucos.
Natal
Traço a estrada da estrela
e grafo os traços finos
a trilha do menino frágil.
A luz frouxa se despenca
do alto incomensurável; é sutil,
mas nítida no escuro da noite.
A claridade pendente no espaço
está ofuscada pela miríade de
lâmpadas
coloridas, em árvores de vaidade,
e vitrines ainda não fechadas.

Abuso sexual
O menino branco, esquálido e
ingênuo
é empurrado para o porão escuro,
úmido e lúgubre. O outro, mais velho,
forte e velhaco, empurra-o para o
fundo,
e, moroso, aproveita-se das sombras
do antro
para retirar, uma a uma, as roupas
puídas e pobres do corpo magro.
Como um ogro, apalpa-o devagar,
provando com olhar de luxúria
a espúria experiências, com pompas
e exultância.
Joga-o ao chão poeirento e imundo,
de costas. Esparrama-se com fúria
sobre as costas magras e trêmulas.
Atraca-se finalmente e insere,
um pouco inseguro, o membro mal
formado, na pequena e estreita fenda
anal.
Um uivo ululante marca a cena,
a pena, a humilhante situação de
medo.
Num arremedo de adulto, refocila-se,
como se fosse um animal possante
sobre a presa caída, chorosa, triste
e indefesa. Despacha-se e corre feliz
para o sol inquieto da tarde em riste.
Nu e perplexo, o menino branco e
humilhado,
junta as roupas, poucas e
movimenta-se
com vagar, encostado em um pilar
rústico.
Rouco de lamento, pensa em voz alta
a falta de forças que o deixara ali,
sem defesa. Ainda impúbere, já sabe
de si.
A partir daquela festa medonha e
pagã,
vê a luz entre os tijolos e começa a
duvidar,
com toda a força e imensa dor, de
uma dor maior:
da propalada existência de um deus.
Só vê ausência.

Estigma
Sei que escrevo por enigmas,
que quase sempre sou hermético.
Mas como Hermes, levo a
mensagem,
não diretamente, mas por imagens.
Não está em mim ser diferente.
Talvez seja um estigma, de tal sorte
que sofro na pele a tristeza do
mundo,
mas me calo, fico mudo,
se tiver que expressá-la de maneira
simplista ou verborrágica.
Minha mente se insinua como peneira
que não permite que o trágico
se expresse de forma pobre,
cobre velho e já sem mágica.
Há de haver poesia mais alta,
para frisar ainda mais, muito mais,
aquilo que me penetra e me envolve.

Poema despretensioso em
homenagem a meus ex-alunos.
Café e cigarros
Voltei a fumar.
Voltei a fumar
Se saudade dos tempos,
Sem contratempos,
Em que meus únicos
Materiais didáticos
Eram os textos, um copo
De café já meio frio,
E um cigarro fervente na mão.
A tecnologia ficava de fora,
Como agora eu não poderia,
Pois mataram o professor,
O cigarro, e a fumaça que subia,
Morta hoje de morte súbita.
Mas nos dias de saudade
Inaudita, lembro-me bem
De que, mal ou bem,
]ao cruzar a porta da sala
De aula eu me transformava
Em outro. Um potro selvagem.
Não aquele cabisbaixo indivíduo,
A carregar o peso da Academia e do
mundo.
Virava tudo grande empatia
E súbito alumbramento
Que me era devolvido
Pelos olhos brilhantes dos alunos.
Aquele era eu. O outro,
Um depositário da maledicência
E pequenas maldades diárias.
Hoje a saudade é um cigarro
E uma xícara de café na área de
serviço,
Olhando para o nada do nada.
Sem olhos, sem fala, sem nexo, sem
magia.

Estação Poesia
Zoeiras e sibilos.
Leio certos versos
como quem é apanhado
por vento violento
que voeja longe demais.
A zoeira verborrágica
se esparrama, corre léguas,
levando apenas pó, sequer
uma lufada de frescor e sentido.
De repente, vira torvelinho,
que se enrosca em si mesmo,
repetindo rotas, enfiando-se
por grotas, perseguindo
um rumo incerto, que sempre o será.
Longe estão dos sibilos leves,
leques lentos, das brisas límpidas
(mesmo que às vezes tristes),
que nos arrepiam prazenteiramente.
Só aí a Primavera do poema
faz algum sentido e floresce
mesmo que entre espinhos em riste.

Responso
Enterre-me em público jardim,
coberto de pétalas pobres,
pálidas, quase podres. Estarei bem,
em meio ao vívido vivido.
Se quiser, pode perpetrar uma oração
inútil. Inútil, me prostrarei feliz,
fanado como uma plácida flor.
Perpétuo, enfim, aos olhos
maliciosos.
Ocioso, ouvirei o mundo imenso,
a girar em torno do nada.
Jogue-me de vez em quando
um ramo de flores fúnebres.
O olfato morto ainda sentirá a vida.

Oferta
A áspera pedra do altar
recebe o sangue, em sacrifício.
Satisfaz a uma deidade
quase já esquecida, a mostrar
que a dúvida persiste
no olhar de cada extremista.
Não é um cordeiro da paz.
Faz ali o gesto simbólico,
para seguir em frente,
diabólico e insinuante.
Na rua, os corpos quentes
se movem frenéticos,
sem nada saber do futuro iníquo.
Em breve, estarão frios.

Calor
Uma parede de pedras
produz na janela
uma cortina imensa
e fortuitamente sutil.
A vidraça continua
pensa, sem panos ou moldura,
revelando os ares da montanha.
Uma pequena nuvem se interpõe
na manhã simples, ondulando.
A temperatura aumenta
à medida que o sol sobe
sobre os picos estreitos.
Escaldantes, escarlates,
estonteantes,
Existentes. Suores são sagrados.

Signos
O poço redondo reflete a lua,
também estranha e amarela.
Nas profundezas medonhas, nelas
além do limite dos insetos e
batráquios,
a natureza marcou um ponto,
minúsculo, negro, surpreendente.
No fosso fétido, deixou sua marca,
para as Parcas que o divisam
saibam que ali há mistérios.
São mistérios concêntricos,
que se alargam ou se contraem,
mas lá estão, como presença divina,
ou como prova da existência
de algo amargo, que esteja no céu,
mas que se projeta na terra.

Alquimia
Não te dei uma rosa, mas uma
rosácea;
para compreenderes os detalhes
da arquitetura hermética.
Devolveste-me uma pintura,
cheia de signos e chama pura.
Eis-nos a trocar conquistas
não previstas, velhos sinais
de arcanos, de secretos entalhes
que aos olhos simples são arpejos
de uma lira já há muito esquecida.

Novidade na livraria
Acordei assustado, ausente, atônito,
afásico.
A noite diluiu meu acordado sonho,
tão bem tramado em palavras e cio,
antes de navegar num Hades
tristonho.
Há poucos dias, num jato, entre
nuvens,
dei-me conta de minha singular
ingenuidade,
típica em jovens, mas não para uma
estranho
velho, que ainda acredita em
honestidade
e ética, em todos os setores. Mais
uma vez
descobri-me ferido, por outros e por
mim
mesmo, na ânsia de dar-me a ler.
Se sou rigoroso, na crítica literária,
quando se trata de poesia, de tresler
a minha, falta-me o pé e a mente
analítica
falha, e volto, como sempre, a
esquecer
de quem ninguém quer ouvir, mas só
falar.
E daí retirar o lucro do orgulho polido
ou da argêntea avidez de moeda
alheia.

Periferia
O dia amanheceu bronco.
Sem céu, sem sol, sem luz,
com névoas untuosas e fúnebres.
A ausência de nuvens brancas
me embrutece e transporta
minha mente, aos trancos,
para um bairro sujo e lúgubre
de uma cidade esplêndida.

Uma imagem
Vale aquilo que me leva.
Louvo o valor da palavra
encantatória, que ressoa
suave ao ouvido, antes
desatento. Diante do som
que também traz sibilos
inaudíveis, prenhes de sentidos
supremos. Às vezes, um poema
poreja na cabeça, cintila,
destila beleza, plena;
mas de repente se esvai
e cai nas sombras dos umbrais.
Aquilo que resta , eis a imagem,
quase plumagem, de um corpo
que se espraia pelas pradarias
dos lençóis amarfanhados
e uma cascata de cabelos,
que esparrama espumas
travesseiro abaixo e se aloja
em um rosto ávido de amor atávico.

Tempestade

Vazo minhas velhas veias

com um punhal veloz

e afilado. Não há sangue.

Delas fogem vórtices velozes

de brumas, que em nuvens

negras, no horizonte se instalam.

Não estou no epicentro

da turbulência, como Gregório de


Matos,

que em relâmpagos, raios, coriscos,

confundiu queixosamente suas


dúvidas,

diante de um mundo que se desfazia.

Vejo-a de longe e espero que me


tome.

Mas ali estarei eu, somente eu,

que trago em mim o embaraço

da terra, da água, do fogo e do ar.

Há tempos deslizei pelo fundo falso

de teatros, cenários, tinta e cola.

Depois naveguei por mares


dantes navegados, sempre
escondendo

o rosto em complicadas metáforas,

ininteligíveis para o menino

que se escondia debaixo da mesa.

Virei cordeiro afoito, a devorar

lobos atônitos, mas já deixava

entrever minha cara, por trás

da máscara de fábula satisfeita.

Hoje sou eu, sou centro.

Do acadêmico sóbrio ou tonto,

nada restou; ou melhor, ainda

conservo o dom, o tom, a verve

do polêmico. Mas não há teoria

alheia no que escrevo. Devo

a mim mesmo a coragem

de dizer: este sou eu.

Mandei às favas o sujeito

poético, farsa bem engendrada

para quem não tem vontade

de se expor e simplesmente

dizer: eu. Como Fernando Pessoa

sou eu e sou muitos. Mas fingir

é um verbo múltiplo; e se finjo

o que sou, o sou duas vezes.

E que venha a crítica, ansiosa


por julgar e manter em suas mãos

o belo. Não me importo. Prêmios,

já os tive três vezes. Julgar, também

julguei um mesmo número. Agora,

longe de tudo, me satisfaço em dizer:

sou eu que escrevo, sou eu quem diz.

Isto é o que penso. E é isso o que


sou.

Por isso

não tenho medo da tempestade.

Leopoldo Comitti

A Mordida do Cordeiro

1.

Sinto a mordida,

não do lobo,

mas do cordeiro.

Manso e cordato,

abre a boca pequena

como quem afaga,

com os dentes frágeis

e ligeiro recato,

a carne que sangra,

crua.

2.

O pecado não nasce da luta

cativante entre Deus e o Diabo;

mas de longa criatividade

da firme e repetida disputa.

Não há fábula no cotidiano:

horas devoram minutos


numa carnificina eterna.

3.

Lobo e cordeiro andam juntos

no talho aberto da multidão

perene. Anjos! Eis os Demônios,

no avesso dos tempos anônimos

e na pele que sempre muda.

De lã se faz o pelo duro

e nos endurece no esquecido

silêncio da ferida aberta.

Fingimos mal, e o mal nos prende

na voz petrificada sob os muros

respingados de sangue impuro.

Da janela escancarada, um animal

nos espreita, sequioso do bote exato

no momento certo. Espera, e ainda

espera atento. Enfim nos rasga,

silencioso.

Falar de amor
Perdi a capacidade
de falar falar de amor,
amando.
Se o faço agora
é por puro desfastio
diante do etéreo
vazio
de uma vida quase sem
palavras.
Vejo tua imagem
a pairar no espaço,
ainda como era,
feita do espelhado frio do
aço.
Mas assim já não mais
serás. Certamente, diante
do espelho, só podes reconhecer
as rugas e as marcas
da vilania, tal e qual as de
Dorian Gray,
diante dos parcos resíduos
de uma mocidade perdida.
E os teus olhos apunhalarão
a fria superfície, da qual
já te esqueceste. Para a beleza
nasceste, mas a morte traz a efígie
da vida que viveste, de tal sorte
que as pregas e as cicatrizes te
levarão
ao ato atroz de conceber-te um
fim.

Limites
Queria saber os limites
do limite de mim mesmo.
Conhecer a sombra
que se afasta célere
em direção a algo
que não sei. Não posso
saber. Queria sentir
o deslocar-se do eu
em direções opostas:
uma para o desconhecido,
outra para o esvanecer.

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