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NAVE GAIA

Antonio Nobre e Ailton Krenak

cadernos
SELVAGEM
N av e G a i a
Antonio Nobre e Ailton Krenak

Desta vez, a nave se formou no dia 5 de março de 2021


para receber esse diálogo tão importante, falado em
português, com tradução simultânea para o inglês.
Na abertura ouvimos um canto por Carlos Papá e Cristina Takuá.

Antonio Nobre: Gostaria de começar contando um pouco sobre a


conversa que tive ontem com o Ailton, e foi uma surpresa para mim,
em ver como nossos mundos se cruzaram há um bom tempo, desde
que éramos muito jovens. Recentemente, li uma entrevista concedida
pelo Ailton, na qual ele contava a história da expulsão de sua família das
terras em Minas Gerais e para o lugar em que ele foi depois, onde nasci
e vivia, que é a região metropolitana de São Paulo.
Passei a maior parte da minha infância e adolescência dentro da
Mata Atlântica, em um sítio em Embu das Artes, na zona periférica da
grande metrópole de São Paulo. Lá, eu dormia com o barulho das co-
rujas, dos grilos. Não tinha cultura, mas havia esse contato. Meu bisavô,
Mané Nunes, era indígena. Ele saiu de uma tribo na Bahia e casou com
minha bisavó, que era negra e quilombola. Eles vêm do lado do meu
pai. Tenho 1/16 de sangue indígena, mas isso não aparece em minha
fisionomia, porque a outra metade inteira é europeia e veio da Itália.
Mas, o que me tocou de maneira muito peculiar foi sentir essa proximi-
dade, essa conexão, via floresta. Não tive fogueira com a transmissão do
saber ancestral. De certa forma, na minha cultura fomos educados pela
televisão. Mas eu tive a floresta. Depois, fiquei sabendo que o Ailton
frequentou as cercanias de Parelheiros e do Pico do Jaraguá, que dava
pra ver lá do nosso sítio em Embu. Os povos indígenas que viviam ali, os
Guaranis, tinham essa conexão. Meu irmão mais novo, que era guia de
ecoturismo, começou a interagir com eles. Descia a serra, o contraforte
da Serra do Mar coberto pela floresta e me relatava. Eu não tive contato
direto, mas ele tinha. Essa proximidade de origem é surpreendente. Até
alguns dias atrás eu nem sabia que ela existia.

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Eu imaginava o Ailton como muita gente imagina, na aldeia, no
meio da Amazônia. No caso, ele é de Minas Gerais. Mas, a imaginação
nos leva sempre àquela situação do indígena distante, remoto. Surpreen-
di-me ao saber o quanto estávamos próximos. Quando era adolescente,
despertou em mim uma vontade muito grande de lutar pela proteção da
natureza. Inspirei-me muito pela militância do José Lutzenberger, que
foi um ambientalista gaúcho que marcou a história. Lutamos contra a
construção de um aeroporto em Caucaia do Alto, que era uma região
de Mata Atlântica que seria destruída, um manancial para São Paulo. Foi
ali que comecei o ativismo, que mais tarde me levaria à ciência e a atuar
na Amazônia. Então, todo esse ambiente está em volta da maior metró-
pole da América do Sul, e, no caso, do contraforte da Serra do Mar, essa
floresta pristina aí ao nosso lado.
Estudei em São Paulo, mas, cresci dentro da floresta. Hoje posso di-
zer que tive inspirações a partir daí. Depois, passei vinte anos na Amazô-
nia, já atuando como cientista e morando em uma outra metrópole, um
décimo de São Paulo, que é Manaus. Mas, todo o tempo estava dentro
da floresta, e foi aí que tive esse privilégio de conhecer, com um pouco
mais de profundidade e contato, os povos indígenas amazônicos.
Sou um dos sócios do ISA – Instituto Socioambiental, então, tive
muita conexão na militância. O encontro com o Ailton, que considero
meu irmão, meu parente, é realmente abençoado no sentido de que tem
energias iluminadoras. Ontem participei de uma longa live com físicos e
matemáticos sobre assuntos acadêmicos: a formação de chuvas na Ama-
zônia, o funcionamento da atmosfera... E saí com a cabeça bem cansada.
Aí, conversei 20, 30 minutos com o Ailton, e, só de escutá-lo, me passou
uma energia de calma, de paz e de conexão. Senti-me em contato, deita-
do em Gaia. Senti que toda aquela intensidade intelectiva que estava me
ocupando naquele momento foi evaporando. No final dessa “terapia”
com o Ailton, eu já me percebia em um outro nível de cognição. Acho
que em sua narrativa, ele propicia filosofia, poesia e espiritualidade. Ail-
ton tem escrito sobre Ideias para adiar o fim do mundo, A vida não é útil, dois
livros maravilhosos, que estão agora nas paradas de sucesso, com alta
popularidade. O que os povos indígenas podem doar, e vêm doando ao
longo dos anos, é um segredo não apenas para adiar o fim do mundo, mas

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para que essa civilização se reencontre com sua natureza perdida, com o
divórcio que ocorreu entre uma atividade intelectiva muito desenvolvida
e o coração, o corpo e a natureza, que ficam oprimidos nesse processo.

Ailton Krenak: Foi muito providencial você trazer pra quem não
conhece, o fato de que a nossa maior metrópole brasileira está imersa na
Mata Atlântica. São Paulo só existe dentro da Mata Atlântica. Inclusive,
o planalto. Aquela chuva maravilhosa, a umidade, a atmosfera agradá-
vel. Os paulistas antigos tinham neblina, tinham fog. Ora, onde foi parar
aquela neblina? A neblina foi embora quando tiraram a Mata Atlântica.
A Mata Atlântica era o fabricante de neblina. Essa Mata Atlântica para a
qual nossos parentes Guarani cantam. Cantam para essa maravilha, por-
que ela cria uma atmosfera tão boa. O amanhecer é coberto por neblina.
Só que é uma neblina saudável, não é uma neblina doente. É uma névoa.
Aquela névoa, para os antigos aqui da nossa aldeia, era considerada um
remédio. De madrugada, os pais colhiam aquela névoa em uma vasilha
pequena e davam aquela água da névoa às crianças. Era uma vacina.
Olha que coisa maravilhosa: essa metrópole tinha uma vacina na atmos-
fera, doada pela Mata Atlântica. E destruíram noventa e tantos por cento
dessa cobertura florestal. Óbvio que a doença entrou. Tirou a proteção,
tirou a vacina. Imagina que coisa transcendente, aquela vacina de graça,
que Gaia ficava ali oferecendo para seus filhos. Nossos parentes Guarani
consideram a névoa da Mata Atlântica como uma medicina. Esse enten-
dimento se relaciona com o dos rios voadores, esse evento climático que
vem de lá dos Andes, que o Antonio Nobre ajudou muito a divulgar. O
que sai dos Andes, na verdade, é só uma névoa. É quando aquela névoa
encontra o calor da floresta, que gera densidade e vem trazer chuva para
o Sudeste - inclusive, para os paulistas, que já jogaram a névoa da Mata
Atlântica e agora dependem daquele “Rio Voador”, que vem de longe.
Se não despertarmos para essas perdas, para essa erosão, vai chegar uma
hora que não vai ter mais “Rio Voador”. O “Rio Voador” vai cair no meio
do caminho, e não vai chegar onde as pessoas anseiam tanto por ele.

Antonio Nobre: De fato, quando eu era criança, São Paulo era a


“terra da garoa” – ou da neblina. Eu nasci em uma região muito próxima

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à Serra do Mar, chamada Santo André. É uma parte do ABC Paulista. E
lá, a gente não via o céu, pois era o tempo todo a névoa, que vinha da
Mata Atlântica. Depois, onde morei no Embu, que é um pouco mais
removido do contraforte da Serra do Mar, não era tanta neblina. Mas
era muito confortável, como o Ailton bem falou. A floresta e a Mata
Atlântica nos davam esse conforto. É muito curioso. Até escutar o Ailton
falar sobre isso, não tinha feito essa ligação. É um trabalho que eu viria
a fazer muitos anos mais tarde – décadas, na verdade – sobre os rios voa-
dores, para popularizar esse transporte de umidade, essa imaginação da
floresta funcionando como uma bomba: ela puxa a umidade do oceano
para dentro do continente. Em algumas partes da Amazônia, quando
estamos no meio do período seco, diferente do que você vê no pote com
uma planta, que se não colocar água ela murcha, as árvores na Ama-
zônia doam vapor e umidade para o ar, durante o período seco. Elas
fazem algo que é não-intuitivo. Você imagina que a planta vai fechar os
estômatos, não vai transpirar durante a seca, porque ela poderia morrer.
Mas existe ali, ao colocar umidade no ar, um mecanismo fundamental
na natureza, que é a generosidade. Ao fazerem isso, as árvores criam
umidade suficiente na atmosfera para formar as nuvens. Estas, quando
o vapor se condensa, baixam a pressão sobre a Amazônia e produzem
uma sucção. Essa sucção é o que gera os rios voadores, que promove
esse fluxo do Oceano Atlântico para dentro do continente.
Então, é interessantíssimo ver que na natureza opera o mecanismo
da colaboração, da generosidade. Uma árvore atua no princípio da ab-
soluta generosidade, pois tudo o que ela oferece são serviços para todos
os outros seres. Inclusive, para outras árvores, a jusante no rio aéreo,
quando este flui da Amazônia, fazendo esse percurso que o Ailton des-
creveu. O Acre, onde o vento faz a curva ali próximo dos Andes, recebe
esses ares frios que vêm dos Andes e produz essa corrente aérea, muitas
vezes invisível, mas extremamente essencial para funcionar tudo o que
está rio abaixo.
Quero trazer uma comparação da minha origem europeia. Na Eu-
ropa, tinha muita floresta nos milênios antigos. Por alguma razão que
não nos cabe analisar agora, os europeus – principalmente do Oeste
–desmataram sem pagar o preço por terem desmatado. Hoje em dia,

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descobrimos que as florestas da Rússia e da Sibéria têm um papel impor-
tantíssimo nos rios voadores da Eurásia, que promoviam a umidificação
de toda essa região da Europa do Oeste, do Leste e Central.
O que está acontecendo agora é o seguinte: em 2017, a Rússia foi
o país que mais desmatou no mundo. Então, estão cortando florestas
na Rússia para os chineses fazerem papelão e embalagem de produtos
de consumo. O clima da Europa está mudando. Só que lá atrás, há 500
anos, quando os europeus vieram para cá, eles tinham desmatado suas
terras de origem sem pagar o preço que o desmatamento implica, que é
a desertificação. Aí eles chegaram aqui na América do Sul, e uma parte
importante deles chegou na porção Leste da América do Sul, onde es-
tava essa floresta maravilhosa, a Mata Atlântica – um milhão e meio de
quilômetros quadrados de Mata Atlântica – e saiu cortando tudo. Diria
que mais de 97% da Mata Atlântica desapareceu. E logo no começo,
tinha o pau-brasil, que foi levado para fazer tintura na Europa, desmata-
ram tudo. Dali vem o nome desse país também. Tem uma relação muito
importante aí.
Em seguida, o que aconteceu foi que perdemos essa neblina, esse
conforto local, mas assim como os europeus do Oeste, não pagamos o
preço que teríamos pago se não houvesse a Amazônia. No caso da Euro-
pa, foi a Rússia, foram as florestas russas, que começaram a ser desma-
tadas mais intensamente recentemente. No nosso caso aqui da América
do Sul, foi a Amazônia. A Amazônia proveu a “costa quente”, ou seja, a
proteção. A floresta Amazônica e seus rios voadores eram os padrinhos
que impediram a região Leste da América do Sul, toda destroçada, de
virar um deserto, uma zona árida.
Na realidade, é uma coincidência infeliz. Porque hoje você vai na
fronteira agrícola da Amazônia e encontra pessoas de olhos azuis, de ca-
belos loiros. Grande parte deles são europeus que vieram do Sul do Bra-
sil. E com essa cultura, essa ideia de que podem desmatar porque não há
consequência. Chegaram aqui e começaram a desmatar. Desmataram
o Rio Grande do Sul, depois se moveram. Quando eu era criança tinha
Peroba aqui, todo o madeiramento de telhado de casas, tudo era feito de
Peroba, uma espécie da Mata Atlântica, principalmente do Paraná. Tudo
destroçado. Aí foram subindo, Espírito Santo, Bahia. Acabaram com o

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Jacarandá da Bahia. A Amazônia do Leste já está praticamente destro-
çada, e agora estão entrando na Amazônia Oeste, o último resquício.
Vão encostar nos Andes, não vai sobrar nada. Ao conversar com essas
pessoas, o que você vê? A mesma mentalidade do europeu que veio de
lá há 500 anos. Viva, cultivada, ativa. “Não, como assim? Precisamos nos
desenvolver, precisamos tirar essa floresta, isso é um atraso.” Essa men-
talidade vem daquele tempo.
A história do Lobo Mau e da Chapeuzinho Vermelho vem daquela
cultura, que se transpôs para cá. O Lobo Mau porque nas florestas da
Europa tinham alcateias de lobos e as crianças pequenas podiam efe-
tivamente ser atacadas por estes. Então, a história do Lobo Mau e da
Chapeuzinho Vermelho era daqueles povos que queriam proteger seus
filhotes, para que eles ficassem com medo e não fossem para a floresta.
E essa mentalidade do Lobo Mau veio para cá: se você tem uma flores-
ta fechada, há risco, há perigo, há situações ameaçadoras. Pelas minhas
peregrinações na Amazônia – não tive a fortuna que o Davi Kopenawa
teve e outros indígenas que viveram dentro da floresta, nasceram e cres-
ceram nela – mas me lembro de um professor, um australiano, no meu
curso de mestrado, que nos forçou a pegar cobra na mão, nos forçou a
mergulhar no igarapé, entrar dentro da toca do jacaré.
Lembro que tínhamos muito medo, é claro. O desconhecido, os ani-
mais peçonhentos, o jacaré. Lembro que quando entrei nessa toca, esta-
va com uma lanterna subaquática e não vi nada. Aí, voltei e falei para o
professor Bill Magnusson, do INPA, lá de Manaus: “Bill, não tem nada”.
E ele respondeu: “Você está com medo. Tem que ir até o fundo da toca.”
Aí fui de novo, e passei um facho de luz. E de repente vi duas pérolas
laranjas. A boca do jacaré estava quase encostando na minha bochecha,
e o bicho quieto. Acho que ele estava mais assustado que eu. Depois, o
professor explicou que debaixo d’água, ele não abre a boca. Se está pró-
ximo da superfície, ele abre. Mas o jacaré consegue ficar até 5 horas sem
respirar. É um animal de sangue frio. Não é como os outros.
Nessas experiências de dormir na floresta nos estudos, fazíamos
aqueles acampamentos temporários, colocávamos as redes e à noite
escutávamos os bichos: paca, cotia, anta e até onça.
Ao longo dos anos, fui percebendo que muitas daquelas histórias
e crendices acerca de onças, cobras, piranhas, não eram dos indígenas.

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Eram dos caboclos. Tinha muita coisa de pessoas que se agregaram, que
chegaram na Amazônia muito tempo depois dos originais. Já nadei em
um rio que tinha muitas piranhas, via elas passarem por mim e não me
atacavam. Já encontrei uma vez uma onça. Ela coçou a barriga com a
pata traseira, meio sem graça, como um cachorro faria. Aí, ela olhou
assim, virou e foi embora. E eu também, virei e fui embora para o outro
lado. Porque a gente precisa também respeitar o oponente. Mas eu tinha
vontade de abraçar uma onça. Sei que elas não têm o bafo muito bom,
mas comecei a sentir esse amor de imersão.
Quando eu estava na floresta, andava de sandália. Porque aprendi
com esse professor, o Bill Magnusson, que você quer sentir o toque.
Quando você ama uma pessoa e interage com ela amorosamente, você
não a ama de roupa, né? Você tira a roupa para sentir o toque, sentir o
contato. Era o ensinamento desse professor, que não era indígena, um
australiano que tinha uma paixão, um amor muito grande pela floresta.
Comecei a desenvolver um senso que não é muito comum. Ando
em uma trilha e recebo um alerta se tem algum animal que é peçonhen-
to. Por exemplo, estou andando e parece que toca uma buzina dentro da
minha cabeça. Aí, eu paro e vejo que tem uma surucucu atravessando
na trilha. Aí eu falo “sai, cobrinha” e a cobrinha sai. Nunca tive medo da
floresta. Sempre senti que a floresta me abraça. Ela é como se fosse um
útero. Dá uma sensação de aconchego, de abraço. Tem animais peço-
nhentos? Tem. Tem cobra perigosa? Tem. Mas quando a gente se entre-
ga para Gaia, nossa parte sensorial se desenvolve ao ponto de começar a
ter essa capacidade que não me foi dada na educação. Nem tive a opor-
tunidade de desenvolvê-la na primeira infância, como muitos indígenas
têm. Pois é uma familiaridade para eles, que estão crescendo naquele
meio, sem ninguém falando do Lobo Mau, ou que a floresta é ameaça-
dora e perigosa. Sim, você tem que tomar cuidados, e alguns cuidados
são automáticos, fazem parte do metabolismo da sua interação com a
floresta. Esse foi meu amadurecimento tardio, de alguém que não teve
a educação indígena, mas teve a oportunidade de, em contato com os
indígenas, absorver isso. Queria poder compartilhar essa sensação com
todas as pessoas. Inclusive com os fazendeiros, que estão lá com medo
do Lobo Mau. Gostaria que eles pudessem ter essa experiência de inte-
ração com a grande floresta e com as sabedorias ancestrais.

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Ailton Krenak: Foi bom lembrar que em várias regiões do planeta,
a mudança que causamos na superfície do corpo de Gaia ao retirar as
florestas é um evento profundamente marcado pela cultura, pela me-
mória milenar. Talvez tenhamos 2 mil, 3.mil anos de alerta de que preci-
samos nos proteger em relação à Terra. Esse dano que a experiência cul-
tural foi calcando em diferentes culturas precisa ser reconhecido. Não
só saber que aconteceu, mas reconhecer. E para reconhecer, precisamos
atuar no interior do ambiente cultural de maneira crítica. Não dar conti-
nuidade a isso, não passar isso para nossos filhos, não reproduzir isso na
nossa relação uns com os outros. Gostaria de lembrar que em diferentes
períodos da história, o organismo de Gaia tem se restaurado dos danos
que causamos a ele. Gaia tem essa lembrança do amor incondicional
por nós, suas partes, suas constituições. Porque não estamos fora dela,
estamos dentro. Alguns amigos nossos, cientistas do campo da biologia
e dos estudos botânicos, têm observado a grande teia de regenerantes
de Gaia espalhada em diferentes ecossistemas, como nos oceanos ou nas
montanhas. Fabio Scarano traz a viagem de uma planta, que durante
muito tempo se desenvolveu numa paisagem de altitude, numa serra, e
com o passar do tempo, migra de um ponto alto para a restinga, na beira
do mar, fazendo seu trabalho de regenerante de Gaia.
Ontem, conversando com o Antonio Nobre, falamos sobre como a
mente consegue produzir não só narrativas que nos afastam dessa on-
tologia de um organismo vivo, resiliente, autorregenerante. Mas, além
disso, a mente também nos põe distante da Terra, imprime a ideia de
que se houve um tempo em que poderíamos estar misturados à Terra e
essa experiência passou. A própria ciência nos alertou sobre a existência
de micróbios, de vírus, da possibilidade do contato com algum ambiente
da Terra que possa trazer contágio aos humanos. Isso é uma coisa que
só a cabeça pode produzir, porque a Terra é saúde para esse corpo. Esse
corpo é poro do organismo da Terra. Esse organismo Terra somos nós
mesmos. Não vamos adoecer com ele, vamos nos regenerar com ele.
Tenho observado que, como flechas cruzando o espaço, os diálogos
que estabelecemos com pessoas como o Antonio Nobre, o Fabio Sca-
rano, o Jeremy Narby e o Emanuele Coccia, são visões regenerantes de
Gaia porque elas difundem um tipo de conhecimento e experiência que

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o senso comum tem medo. O senso comum prefere passar ao lado da
ideia de que Gaia é um organismo vivo, que os rios voadores estão ali
e que podemos perceber sua existência real. Que a neblina que vem da
Mata Atlântica é medicina, e que tudo o que precisamos como regene-
ração da vida a Terra proporciona.
O Antonio disse que preferia andar só de sandália, em vez de andar
de bota na floresta. Andar de bota na floresta é a pior escolha. A maioria
das pessoas que conheço que vive na floresta prefere andar com o pé no
chão mesmo, descalço. É claro que depois do contato cultural essa ideia
se torna mais atraente, as pessoas querem botar algum adorno. Imagine
a possibilidade de pegar um punhado de terra e botar na boca. Qualquer
coisa que tenha na terra, qualquer matéria que esteja nela e não seja
saudável para você botar na boca, é um produto nosso. Nós produzi-
mos, sujamos a Terra e ficamos com nojo dela. A terra não produz nada
que vá fazer mal para nós. Toda a criança gosta de pôr a mão na terra
e em seguida na boca. E ela faz isso com uma sabedoria orgânica, com
a sabedoria que ela herdou desses mesmos ancestrais que saíram por aí
produzindo histórias como Chapeuzinho Vermelho, ou histórias de que
podemos devastar esse planeta, pois estamos indo para outro lugar.
Semana passada fiquei impressionado ao ouvir a oferta de um mag-
nata chinês, que estaria associado a um projeto de instalar um SPA em
Marte. Ele já tem até o design desse projeto que receberia pessoas para
passar uma temporada em Marte. Ainda dizem que lá teria lanchonete,
boate, clube e academia. Fiquei imaginando por que alguém sairia de
um lugar maravilhoso como a Terra para frequentar um SPA em Mar-
te. De onde pode vir um desejo desse? Que abismo sensorial é esse que
alcançou alguém que quer fazer uma viagem para passar um tempo em
um SPA em Marte? É uma curiosidade extravagante que me faz lem-
brar de um livro chamado Crônicas Marcianas, que ganhei da Débora
Danowski, escrito por Ray Bradbury.
O autor viveu todo aquele período Flash Gordon, de viagens espa-
ciais, que influenciou muito a cultura global, mas principalmente os Es-
tados Unidos, onde a ideia de habitar outros planetas ainda é um verda-
deiro delírio. Crônicas Marcianas tem várias histórias que acontecem em
Marte e todas são apavorantes, piores que filme de terror. Não sei por

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que tem gente que quer sair desse paraíso terrestre para ir fazer uma ex-
periência em Marte.
Ao longo da pandemia, o mundo tem investido muito nessa ideia
de Marte, esquecendo que essa Terra maravilhosa nos deu tudo o que a
gente precisou para existir até agora, mesmo no período de história hu-
mana que não somos capazes de reportar com fidelidade, há 10, 20 mil
anos atrás. A prova é que estamos aqui. Gaia nos embalou, nos botou
para dormir e nos despertou de manhã, seja com um céu esplêndido,
com as ondas do mar ou com a névoa e o gelo. Temos ambientes terres-
tres de uma beleza tão grande, que só isso já deveria despertar em nós o
que o Antonio chama de “amor incondicional”. Acho que é difícil para
a mente objetiva, materialista, entender que podemos experimentar um
sentimento de amor incondicional à Gaia e a tudo que existe em seu
organismo. É uma poesia que não cabe em uma equação.
Compartilhar o mundo e ideias com cientistas que sabem que a vida
sempre nos surpreende. Mesmo que a gente se dissocie dessa experi-
ência ancestral de celebrar a vida na Terra, o organismo de Gaia é au-
torregenerativo e vai nos dar função de autorregenerante também. É
uma ideia que me ocorre com uma alegria muito grande, de saber que,
mesmo que alguns queiram dar o pé daqui, esse organismo de Gaia tem
tanta compaixão, que ele é capaz de nos fazer voltar pra casa e cumprir
essa função regenerativa também dos outros seres. Porque nós somos
apenas uma espécie no meio de bilhões de espécies que constituem o
organismo de Gaia. Fico maravilhado quando penso na infindável po-
tência de produzir vida que esse planeta Terra, também chamado de
Pachamama, Gaia, ou milhares de outros nomes, tem.
Estamos vivendo a experiência das mudanças climáticas e da pande-
mia, dois eventos que ao se cruzarem, podem nos obrigar a fazer essa
declinação, a entender que os humanos precisam baixar a bola e ouvir
a polifonia das vozes de Gaia. Fico muito feliz em ter uma interlocução
com alguém como Antonio, que está o tempo inteiro atento à possibili-
dade do coração e do intelecto atuarem em harmonia. O que devemos
evitar é justamente ser só uma cabeça, sem um coração.
Em uma ocasião, um amigo que viajava comigo tinha o costume
de fazer a devoção dele botando a cabeça no chão. Ele me disse “Tem

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um provérbio que diz que nossa cabeça só fica abaixo do coração quan-
do fazemos essa oração”. Nessa posição, o coração pode ficar acima da
mente. Experimente de vez em quando deixar seu coração ficar acima
da sua mente.

Antonio Nobre: Efetivamente, a sede do intelecto é a parte mais dis-


tante da Terra. Por muito tempo, me debati recebendo um treinamento
intelectivo bem objetivo, que é a formação científica. Tem muitos testes
ao longo do caminho, você passa por muitos crivos. E se você é uma pes-
soa que tende a não ter essa parte intelectiva predominante, você possi-
velmente não chega lá. Você não passa nos crivos e é selecionado para
fora daquela comunidade de seres pensantes. E me debatendo com a
origem, com essa conexão que tive com Gaia da infância na Mata Atlân-
tica, vendo aquele modo estéril, pouco emocional, muito cartesiano e
racional de ver o mundo, percebi essa desconexão.
Comecei a pesquisar o que aconteceu. Por que a ciência tende a ser
materialista e reducionista? Voltando na história, descobri dois fatos
muito relevantes. O primeiro deles é que a ciência e a tecnologia são as
filhas bastardas da Inquisição. Não foi o amor que criou a ciência e a tec-
nologia. Foi uma indignidade de quem dominava o campo das religiões
– no caso, o Império Romano. O que foi feito naqueles séculos contra as
mulheres e os nativos, foi de uma atrocidade indescritível. Aquilo levou
almas livres, de livre-pensar, a se rebelarem.
Então, surgiu o Renascimento, e com ele nasceu a revolução científi-
ca e tecnológica. Podemos buscar figuras históricas, como Francis Bacon
e Descartes. Depois, todos que vieram nos séculos subsequentes, como
o Iluminismo, que trouxe essa racionalidade estrita para uma explosão
supernova. Porque reduzir produzia resultados. Reduzindo, foi produzi-
do o microscópio, e então se conseguia ver os micróbios. Reduzindo, foi
possível fazer uma máquina a vapor para se deslocar. Esse reducionismo
foi estimulado como se fosse uma bola de neve, no sentido que você faz
um pouco daquilo e aquilo lhe enche o ego, o senso de realização, de
accomplishment.
Isso fortalece demais aquele lado que se divorciou da espiritualidade
lá atrás: o lado intelectivo, o cérebro restrito. O primeiro efeito foi esse

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divórcio da filha bastarda da Inquisição. Porque a ciência existe desde
sempre, em todos os povos. Na China, há 5 mil anos, eles estavam inven-
tando a pólvora para fazer fogos de artifício – e não a guerra. Estavam
inventando o macarrão, o vidro, e tantas coisas que vieram da sociedade
chinesa. Depois os árabes, os gregos, os sumerianos, os povos dos An-
des, todos os povos daqui do Brasil.
A ciência sempre existiu, mas ela não era divorciada da espiritualida-
de, nem do sútil. Era um todo. Era um integral. Era um holístico. Essa
brutalidade que ocorreu, principalmente no continente europeu, produ-
ziu esse efeito de nascimento a fórceps da ciência e da tecnologia, que
era uma revolta contra a indignidade. E produziu um segundo efeito,
que eu considero igualmente tenebroso, que foi esse novo empreendi-
mento da ciência, que era livre daquela agressão, daquela brutalidade
que dominava o âmbito da Inquisição. Ela surge com o dogma de que o
que não foi provado, não existe. E o que aconteceu com os saberes an-
cestrais, milenares? Foram jogados no campo do paganismo. Pela Igreja,
o paganismo já era algo que vinha do mal, com demônios, etc. Quando
os missionários vinham tentar converter os indígenas, era para livrá-los
desse paganismo. E à ciência moderna, que não chamava de pagão, ela
deixou a Terra inóspita. Porque chegava algum sábio indígena e falava
“Olha, não. Não é assim que se faz” e eles respondiam “Tá provado? Tá
publicado sobre isso? Não? Então não existe.”
Durante todos esses séculos, esses dois efeitos: um, o empreendi-
mento que buscava o saber através de um mundo cada vez mais am-
pliado, mas cada vez menor, porque tudo começou a ser fragmentado.
Esse mundo levou a cognição a se embotar, (a sabedoria) foi encapsu-
lada dentro de um mundo muito pequeno e as fronteiras desse mun-
do transitavam para os territórios proibidos, que eram os territórios da
espiritualidade, da religião; a segunda coisa foi perder toda a sabedoria
milenar porque ela não tinha sido provada.
Recentemente, fiz um exercício com o Davi Kopenawa, que escreveu
o livro A Queda do Céu com o Bruce Albert. Peguei uma parte só daque-
la sabedoria toda e fui buscar um rebatimento na ciência. E encontrei
que a ciência autentica tudo o que a sabedoria dos Yanomami tem em
relação ao céu, às chuvas e ao funcionamento da atmosfera.

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O saber que tem esse fundamento, – que agora, depois de cinco sé-
culos é comprovado pela ciência – ficou sem proteção nenhuma. Agora
temos como ir lá e trazer isso. Tudo o que o Ailton falou acima, pode-
mos achar um rebatimento na ciência. Porque ela foi, andou, andou,
andou e chegou no mesmo lugar. O Davi Kopenawa um dia estava falan-
do “O Antonio, ele é que nem um tatu: está cavando a terra.” Na hora,
fiquei chocado, porque essas verdades são como o sincericídio das crian-
ças. Mas, ele estava falando uma verdade. Porque o que você faz quando
cava a terra? Você faz um buraco. O tatu faz um buraco para criar um
túnel. Quando ele entra no túnel, sua visão fica restrita. É um lugar de
proteção, mas é um lugar de limitação ao mesmo tempo. Então, cavar
a terra, é o que o cientista faz, de buscar evidências. Ele não senta e es-
pera a inspiração chegar. Ou a parte sensorial dizer. Sabemos que existe
a intuição, mas ela não tem credência na ciência. Na ciência, você tem
que ir lá com um martelo e uma talhadeira, quebrar, bater, esmerilhar
e arrancar da natureza o saber. Seja isso em qualquer disciplina, essa é a
tendência da ciência.
Chegando aqui nessa sua narrativa maravilhosa, eu diria o seguinte:
já passou da hora, estamos atrasados no trabalho de voltar 500 anos e
consertar essa trombada histórica que foi o divórcio entre o empreendi-
mento do saber e do conhecimento, a ciência, e a espiritualidade. Não
quero deixar aqui uma mensagem que fala mal da Igreja Católica, por-
que hoje, o chefe maior da Igreja Católica é uma das pessoas que mais
respeito. É brilhante o trabalho que o Papa Francisco está fazendo, de
chamar e clamar às pessoas para reconectarem o coração com o inte-
lecto. Com o advento da internet, das redes sociais, existe cada vez mais
uma dedicação especial, principalmente dos adolescentes, às telas. Tela
do celular, tela do ipad, tela do computador. Telas. Isso entrou de uma
maneira tão poderosa.
Há alguns anos, a convite do ISA, estive na reserva do Xingu junto
com o Benki Ashaninka dar um curso lá. Todos os habitantes daquela
área tinham celular. Não tinha nem antenas grandes lá, mas todo mun-
do tinha celular. Todo mundo tem hoje, é muito raro alguém não ter.
Tem mais celulares no Brasil do que pessoas. Essa é uma realidade que
não podemos mais escapar.

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Tenho visto muitas culturas indígenas aprenderem isso já há mui-
to tempo: usar a tecnologia em prol da causa da preservação cultural,
como os filmes feitos em aldeias por indígenas mesmo. Hoje estamos
com essa realidade da internet. Noto que muitas vezes estou atento a
algo, com o intelecto muito ativo, principalmente o consciente no pré-
-frontal, que é a parte bem pequena de toda a atividade cerebral (menos
de 2%, segundo os neurocientistas). Quando estou com a atenção total
focada, me esqueço de comer, me esqueço de ir ao banheiro, me esque-
ço da mãe-corpo. Essa é uma hipertrofia aberrante dessa estrutura que
chamamos de intelecto. O corpo provê ao intelecto sangue com açúcar,
oxigênio, todos os nutrientes, limpa o lixo das células que estão no cé-
rebro, bilhões de células trabalhando para que o cérebro-aura obtenha
essa operação dele a partir da mãe-corpo. Imagina uma onça, uma paca,
um urso, uma girafa, esquecer de comer, esquecer de ir ao banheiro,
prejudicar seu próprio metabolismo.
Fiz essa comparação entre essa desconexão do intelecto, essa estru-
tura que faz pensamento abstrato chamado de objetivo, que é desco-
nectada. Agradeço ao Ailton por trazer com tanta conexão essa poesia,
essa colocação dessas duas estruturas cognitivas: o intelecto e o coração.
Porque, diferente do intelecto que obteve essa capacidade hipertrofia-
da de pensamento abstrato, que consegue fazer matemática, códigos, e
esquecer do próprio corpo, o coração irriga todas as células do corpo.
O coração não é só uma bomba, é um órgão cognitivo também. Já se
descreveu um tecido de neurônios bastante desenvolvido no coração.
E qualquer pessoa que tem coração sabe que o coração é uma estrutu-
ra cognitiva, que tem uma capacidade de compreensão. Diferente do
intelecto que funciona como uma faca, que corta a realidade em fatias
e pedaços, o coração une. É uma propriedade intrínseca do coração a
cognição que conecta, que une.
Quando o Ailton fala comigo, o intelecto começa a ficar impacien-
te. Porque ele fala lento, ele tem toda essa transmissão. Mas daqui a
pouquinho, desligou meu intelecto. Ou pelo menos desligou essa hipe-
ratividade. E aí vem um calor no peito. Escutando o Ailton, sinto um
calor no peito. Compreendi que isso é a conexão do coração do Ailton
com o meu. E essa conexão faz com que eu absorva do calor do Ailton

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diretamente, sem mediação. Sem ter que usar a faca do intelecto, que vai
cortar o que o Ailton está falando e interpretar. A lógica é imanente. Ela
faz parte dessa nossa conexão com o coração. E não só com o Ailton. É
uma conexão totalmente derivada, que se multiplica, e nos liga com Gaia.
Tem uma fotografia maravilhosa feita pelo pessoal da Universidade
de Oxford que mostra os continentes e a fotossíntese, feita com imagem
de satélites. Mas eles foram muito criativos em colocar uma animação,
onde cada quadro mostra o tamanho das unidades, dos pixels, de acordo
com a importância relativa daquele ecossistema para todo o planeta,
em relação ao que o planeta inteiro está fazendo, o que Gaia está fazen-
do. Você vê os ecossistemas pulsando, você vê os continentes pulsando
como se fossem um coração. Exatamente como um coração. Essa cone-
xão do coração e da cognição, harmonizada com a compreensão inte-
lectiva também – ou pelo menos o intelecto ficar um pouquinho mais
abaixo do coração, como o Ailton nos sugeriu – facilita demais o nosso
retorno como sociedade.
Para passar de novo a bola para o Ailton, gostaria de introduzir o
começo da conversa que tivemos ontem. Tenho escutado as pessoas fa-
larem que os povos indígenas são excelentes guarda-parque, excelentes
protetores da floresta. E são, efetivamente. Onde tem florestas indíge-
nas, o processo destrutivo é muito menor ou inexistente. É parte da cul-
tura indígena proteger a floresta. Comecei a ver nessa postulação que os
povos indígenas têm que ser protegidos porque eles protegem a floresta,
um certo utilitarismo. “Então, vamos preservar os povos indígenas lá,
porque eles vão proteger a floresta. E a floresta guarda carbono, e o car-
bono é importante para o clima da Terra não degringolar.” Não que isso
não exista, não que isso não seja importante. Mas queria colocar o valor,
a beleza, a preciosidade dessa cultura capaz de nos tocar no coração.
Que é capaz de nos transmitir cognição, conhecimento, sabedoria. Fala
com a boca, mas sai do coração e toca no coração de quem escuta – pelo
menos para quem o coração ainda não virou uma pedra. Para quem ain-
da cultiva o coração e sente essa conexão, ela facilita demais o processo
de civilização global. Isso sim. Essa reconexão não pode ser feita com a
ciência. A ciência já fez muito, e tem muito a fazer, mas ela tem um pro-
blema, que é uma frase famosa atribuída a Einstein: você não pode resol-
ver um problema usando o mesmo pensamento que gerou o problema.

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A ciência e a tecnologia por fatiarem a realidade, fatiarem a compre-
ensão em tirinhas tão finas que você já não consegue ligar uma com a
outra, são um caos completo. É uma cacofonia de diferentes versões e
formas. Individualmente, cada uma com um valor. Mas hoje precisamos
de união, precisamos fazer o que o coração faz: unir todas as células.
Precisamos unir todos os seres e todas as mentes em uma direção que
seja coerente. A ciência não sabe como ensinar, porque ela já é fruto de
uma fragmentação. Ela sabe como trabalhar os pequenos pedaços, mas
não sabe como ensinar. Passo a palavra para o Ailton dar um arremate
nessa história. Acho que é uma história que vale a pena todos embarcar-
mos com muito coração.

Ailton Krenak: Que ótimo você lembrar dos guarda-parques. Uma


das visões mais generosas que o final dos anos 80, 90, digamos que foi
quando o socioambientalismo se expandiu como consciência mais global
com a ideia das florestas, das florestas tropicais. Aquele cinturão de flo-
restas tropicais no planeta teve também um grande divulgador que foi o
José Lutzenberger, que coincidiu ser o nosso primeiro Secretário Nacio-
nal de Meio-ambiente no final da década de 80, 90. Ele era uma pessoa
generosa que chamava muito a atenção dos conservadores, sobretudo
do pessoal da indústria, para a importância do modo indígena de ficar
na floresta. Naquela época, os Yanomami estavam sendo detonados pela
mineração. O próprio governo brasileiro tinha uma visão muito ruim
dos Yanomami. Foi quando botaram uns quartéis militares dizendo que
o exército precisava evitar que os Yanomami fizessem besteira. Então,
o Lutz dizia “O modo deles estarem na floresta é o melhor que poderí-
amos ter. Deveríamos considerá-los como jardineiros da floresta.” Essa
ideia poética, é bonita, é generosa. Quando a Marina Silva foi Ministra
do Meio-ambiente, de certo modo ela provocou esse mesmo sentido.
“Os povos da floresta são os jardineiros da floresta.” Essa é uma maneira
de fazer contato com gente que é muito cabeça-dura, e que acha que
as pessoas que vivem na floresta estão lá atrapalhando-a, ou melhor,
atrapalhando alguém entrar na floresta. Nós somos o Lobo Mau. E esse
Lobo Mau tem vários sentidos. Um dos sentidos desse Lobo Mau é que
ele atrapalha a mineração entrar na floresta. A mineração tem medo de

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entrar em uma floresta com índios lá. Tira o índio. Mais tarde nossos
amigos na Europa também – principalmente a rede que articulou na
Europa uma coisa chamada Gaia Foundation –, eles alertaram para a
importância dos serviços ambientais que os povos originários prestavam
à humanidade. E exploraram também esse lado cultural, dizendo “Gen-
te, eles são jardineiros da floresta.” A aceitação dos povos da floresta no
meio socioambiental foi justificada por um serviço. Até hoje observo
essa tendência, e lido com ela com paciência, esperando que as pessoas
devagar entendam que não é sobre ser útil, utilitário.
Quando nos esquecemos do nosso corpo-mãe, é porque este já se
esqueceu do seu corpo-Gaia. Quando esse corpo-mãe que você evoca de
uma maneira compreensível até para uma criança, o intelecto esquece
do corpo-mãe. E fica funcionando como se fosse um robozinho. É esse
robozinho que está pousando em Marte. Ele quer ir pra Marte. Porque
ele não precisa de corpo, ele é só um intelecto, um HD. Que essa har-
monização entre intelecto e coração possa fazer aquele robozinho que
está pousando em Marte, se lembrar de que somos Gaia, somos Terra.

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A ntonio nobre é cientista e ativista. Seu foco principal de estudo é a
Amazônia. Já foi pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(INPA) e atualmente é pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espa-
ciais (INPE). Ele participou do Selvagem ciclo em 2019.

A ilton K renak é um pensador, ambientalista e uma das principais vozes


do saber indígena. Criou, juntamente com a Dantes Editora, o Selvagem – ciclo de
estudos sobre a vida. Vive na aldeia Krenak, nas margens do rio Doce, em Minas
Gerais. É autor dos livros Ideias para Adiar o Fim do Mundo e A Vida Não é Útil (Com-
panhia das Letras, 2019 e 2020).

A g r a d e c i m e n to s

Instituto Clima e Sociedade


Conservação Internacional Brasil
Flourishing Diversity
Invisible Dust
Carolina Comandulli

A edição deste caderno contou com as especiais colaborações de Victoria


Mouawad, que fez a transcrição da fala, e de Christine Keller, revisora do texto.
O trabalho de produção editorial dos Cadernos Selvagem é realizado coletivamente
com a comunidade Selvagem.
Mais informações em selvagemciclo.com.br
Muito obrigada ;)

Redatora, tradutora e escritora, Victoria Mouawad é uma paulistana com um


pé no Rio de Janeiro. Formada em Administração de Empresas pela FGV-SP, a pai-
xão pelas letras que traz consigo desde a infância se manteve viva em seu interior.
Em 2020, traduziu com Madeleine Deschamps o livro Metamorfoses, publicado pela
Dantes Editora. Atualmente, é aluna da formação para tradutores literários da Casa
Guilherme de Almeida.

Paulista radicada há 20 anos no Rio de Janeiro, a jornalista Christine Keller


coordenou por 15 anos departamentos de Comunicação e Marketing de Ongs. Tam-
bém trabalhou com Rádio, produção de shows, de TV e foi repórter e redatora de
revistas. Estuda Marketing Digital, Gestão Ambiental e Terapias Holísticas. Fala in-
glês e espanhol e quer aprender yorubá e tupi-guarani. Sonha em conhecer e passar
um tempo na floresta e no Pantanal.

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Cadernos SELVAGEM
publicação digital da
Dantes Editora
Biosfera, 2021

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