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atravessado a Amazônia peruana e brasileira, entre os anos de 1846 e 1847, deixou seus
relatos inscritos num ainda mais célebre veículo de difusão de viagens, realizadas,
mundo afora, por homens destemidos, alguns naturalistas, outros apenas narradores
etnográfico agudo pelas populações com que cruzavam, pelo modo como se
ou urbana.
tomados pelo desejo e pelo dever de captar o maior número de eventos, características e
informações sobre os lugares por que passavam. É compreensível que sua tarefa fosse
O célebre viajante francês de que falei há pouco foi Laurent Saint-Cricq, mais
também morreu, em 1888, antes de completar 73 anos. Ele foi um dos mais de cem
Sua inclinação pelas belas artes e seu interesse pelo jornalismo e pela
antropologia não foram o bastante, na consideração de seus críticos, para que ele tivesse
reconhecimento como homem de ciência. É verdade que seus relatos foram ignorados
por alguns compiladores de cientistas que passaram pela Amazônia, que insistiram em
não considerar como científicas as observações feitas pelo viajante francês. Posso citar
dois casos desse tipo. Um é o balanço feito por João Pacheco de Oliveira, em 1987,
uma sociologia dos viajantes͟. Outro caso é o da obra de Antonio Raimondi, que, em
sua Historia de la Geografía del Perú, de 1879, nega a Paul Marcoy o status de
É bem possível que Paul Marcoy trouxesse consigo algo do que, para os
françois contenant les mots et les choses, de Richelet (1680), aquele que viajava por
pura curiosidade com a finalidade de travar relação com outras pessoas, o que dá a
entender que essa atividade permitia certa licença poética. No século seguinte, a
viagem serve ao viajante para que este ͞melhor conheça e examine os modos e os
costumes, o espírito das outras nações, o gosto dominante, suas artes, suas ciências, suas
relatos eram mesmo citados como uma referência ao se tratar de conhecimentos sobre a
1875 da Sociedade de Antropologia de Paris, em que Marcoy foi lembrado por suas
1875:504).3
De todo modo, não foram as sociedades científicas que fizeram de Paul Marcoy
retomados na literatura francófona, cujo exemplo mais explícito foi o romance ficcional
de Júlio Verne, A jangada (1881), que o cita direta e copiosamente. A marca deixada na
literatura por essas narrativas dos cientistas foi tão expressiva que há quem considere o
relato de viagem científica do século XIX como o ͞arquétipo poético de todos os outros
exigiu por parte dos acadêmicos um esforço em criar regras próprias para a escrita
científica.
Júlio Verne nunca esteve no Brasil, muito menos na Amazônia, como Michel
fontes de sua inspiração. No entanto, Júlio Verne leu avidamente o Le tour du monde,
revista na qual Paul Marcoy teve publicadas as narrativas de sua longa viagem do
suas expedições por várias regiões do mundo, em busca, quase sempre, do exótico,
difundindo, dessa forma, por meio de um discurso que se apresentava como científico,
uma visão de mundo construída por experiências passageiras, como eram as viagens. E
as viagens, por definição, deviam ser rápidas, como constava no Dictionnaire des idées
reçues, que Flaubert compilou a partir das opiniões do senso comum de sua época.
desmesurada na ciência e na técnica, período este que ficou também conhecido como ͞a
era de ouro da vulgarização científica͟, o Le tour du monde foi emblemático desse tipo
representando uma espécie de bilhete de viagem para todos aqueles que ainda não
tinham, no turismo, o modo de explorar o mundo com seus próprios sentidos. Em suas
páginas, como disse Annie Lagarde, estudiosa da difusão da informação científica, a
Charton, como por figuras proeminentes, como o então deputado François Arago,
grande responsável também pela divulgação de inventos e inovações técnicas, como fez
com a fotografia.
A febre de viagens fez com que a segunda metade do século XIX fosse um
momento muito afortunado para as casas editoriais que partiram para a exploração das
narrativas de viajantes. A editora Hachette foi uma delas, com sede em Paris, mas com
Fora da França, o movimento também foi expressivo, como conta o crítico literário
canadense, Pierre Rajotte (1998), segundo o qual algo como 160 relatos haviam sido
Seu primeiro volume contou com relatos de viajantes que percorreram a África do Sul, a
Auguste Biard, em suas passagens por Rio de Janeiro, Minas Gerais e Amazonas em
A longa travessia de Paul Marcoy, iniciada no Peru, veio a público, pelo Le tour
du monde, pela primeira vez, em 1862, com o título ͞Voyage de l'océan Atlantique à
entre 1862 e 1867, o primeiro iniciou pelo trecho que ia da província de Islaý, na costa
aparecer em 1867, nos volumes 15 e 16, sempre sob o mesmo título. Dois contra-sensos
título, que indicava o sentido da viagem, do Atlântico para o Pacífico, contrário àquele
que foi realmente feito, pois o viajante partiu da costa do Peru para chegar a Belém. O 5
outro insólito referia-se às datas, impressas 1848-1860, quando o trajeto foi cumprido
em pouco mais de um ano, de 1846 para 1847. Em 1869, apenas dois anos após a
publicação do último fascículo, a editora Hachette deu grande destaque à saga de Paul
Marcoy, reunindo tudo em dois grandes volumes, de cerca de 500 páginas cada um,
com mais de 600 gravuras desenhadas pelo célebre Riou, e, desta vez, corrigindo uma
das imprecisões anteriores: mudou o título para Viagem através da América do Sul, do
foi realizada.
entrada na Amazônia brasileira foi feita pelas águas do rio Solimões, que banham o
município de Tabatinga, cidade fronteiriça que limita o Brasil, a Noroeste, com o Peru e
com a Colômbia. Desde lá, Paul Marcoy veio fazendo descrições do rio, das matas, dos
povoados e das populações que aí encontrava. Seu poder descritivo se apóia muito no
texto, ao qual ele procura conferir um sabor pitoresco, buscando com freqüência jogar
luz sobre aspectos destoantes, sobre atributos que permitam ajuizar acerca do lugar ou
imagens jogam um papel muito importante na caracterização do mundo exterior tal qual
Nas narrativas deixadas por Marcoy, ressalta sua forma livre de cuidados
acadêmicos de se expressar acerca do mundo natural quando tinha que descrevê-lo, sem
querer esconder sua inegável atração pelo novo e pelo exótico. Ao contrário dos
conhecimento empírico e justamente essa possibilidade é que conferia aos seus relatos
localidades, passando por Tabatinga e São Paulo de Olivença, visitou ilhas e praias dos
Solimões, roçou o rio Tocantins, esteve na foz do Jutaí e do Purus, conferiu parte do
curso do Juruá, aportou em Fonte Boa, em Caiçara, Tefé, Coari, Manacapuru, até
alcançar Manaus. A lista poderia se estender até Belém, mas essa amostra nos dá uma
boa idéia da amplitude que o olhar desses homens ganhava, pela possibilidade de
Viagem pelo Rio Amazonas, versão resumida, para o idioma português, da obra
publicada em 1869 pela Hachette. Nessa edição, Antonio Porro, o prefaciador da obra,
(Porro/Marcoy 2001:11-12)
comentário, a nítida impressão de que sua escrita se ampara mais no lirismo literário
admiráveis belezas naturais em sua viagem pelo Rio Amazonas, como narra agora:
acampamos. Na manhã seguinte, por volta das seis, fomos inspecionar o rio.
Suas margens estavam cobertas de uma brilhante vegetação com tons de rosa e
2001:00)
Paul Marcoy nos parece um bom exemplo das formas como a experiência
sensorial pode afetar a percepção visual humana. É do que fala Michael Baxandall
Ele defende que as capacidades visuais desenvolvidas ao longo das experiências da vida 7
confirma essa característica tanto nas manifestações iconográficas a que dá origem com
seus croquis, quanto na sua prosa. Defensor do poligenismo (Chaumeil 1994:276) como
de animais, assim como foram poucas suas referências textuais a eles. Mas, seja como
for, Marcoy deu um tratamento biologizante para os tipos humanos que encontrou,
assim como o fez, posteriormente, um outro viajante, o naturalista Henry Bates (1864),
então pequena vila de Tefé, foi, durante quinze dias, estadia para o viajante. Ele fez
desse lugar um de seus campos de pesquisa e dedicou parte de seus escritos a descrever
dedicou mais que uma gravura apenas a Tefé, dando descrição sucinta e geral do lugar.
Como costumava fazer, os seus desenhos dos lugares aonde chegava reproduziam,
sistematicamente, uma vista a partir de fora (figura 5). Mais estranho ainda se
considerarmos que Tefé possuía edificações de maior gabarito, como o sobrado visto à
Paul Marcoy praticava uma relação de distanciamento para com seus observados,
diferente daquela que tiveram o casal de viajantes Louis e Elizabeth Agazziz (1868),
que, da mesma vila, produziram, vinte anos depois, uma vista em plano semi-aberto,
Sobre a vila de Tefé, Paul Marcoy relata que ela consistia de sessenta casas
͞alinhadas de frente para o lago, feitas de barro, caiadas e cobertas de palha, com 8
viajante associa a noção de organização e aconchego. Mas ao relatar que Tefé era uma
cidade bem aconchegante e organizada, traçava ainda outra relação, que, no fundo,
organização), qual seja, o fato de que, naquele lugar, parte significativa de seus
renome͟, p.107), e tinham assento em postos de autoridade, tais como juiz, delegado,
gravura que ilustra a vila de Tefé. São de porte avantajado, com acabamento
visivelmente superior, dentre as quais figura até ͞uma esplêndida mansão assobradada͟
(figuras 5 e 6 novamente). A igreja mencionada por Marcoy não aparece nas gravuras,
mas podemos supor que a associação, feita pelo viajante, entre esse espaço de
socialização dos habitantes e o desfile das mulheres da cidade (Marcoy 2001:109) tenha
metonímica semelhante àquela atribuída a outros viajantes por Pierre Rajotte (1998).
Como um homem de ciência que era, Marcoy não deixa também de enfatizar o aspecto
com as de outro viajante. Vejamos o relato do inglês Henry Bates, que, por
rio Solimões, sendo Tefé um destes. Bates julgava que Tefé era a única cidade para a
qual valeria a pena se deslocar, devido à importância que exercia na imensa região do
Solimões.
sobre os aspectos da natureza. Ele diz ter ficado admirado ao chegar à cidade e se
deparado com sua paisagem, constituída por ͞garças brancas nas margens do lago,
beija-flores ao redor das flores͟ (Bates 1979:192), num cenário cuja beleza se acentuava
mas que considera uma construção tosca, parecendo um celeiro (Bates 1979:200).
Como sua passagem se deu em 1864, portanto, quase 20 anos após a estadia de seu
lado, isto mostra a ação do tempo, por outro, pode significar o estancamento da
(rio) Tefé com um volumoso afluente͟, o viajante inglês relaciona uma choupana com
͞cobertas por telhas vermelhas͟. A estes elementos construídos pelo homem, ele associa
bovinos, todos presentes para compor o conjunto das unidades de habitação (1979:200).
Trata-se não só de um cenário construído pelo homem (do pedreiro ao agricultor) mas,
associar idéias de civilização e barbárie. Cremos estar diante de expressões dessa ordem
(1979:202) à cidade, e a forma de vida selvagem à ͞beira dos rios próximos á Tefé͟
(1979:207), onde viviam os índios e os serviçais domésticos. De modo semelhante, ele
(1979:200).
mais sobre as formas segundo as quais concebia a natureza e a relação do homem com
ela que, propriamente, um testemunho de como as coisas eram no tempo em que esteve
naqueles lugares. O tempo todo, ele empreendeu, como diz o título de um livro de
Monique Sicard, uma fabricação do olhar (1998). Seus desenhos fazem parte do grande 10
expectativas que eles carregavam consigo para onde quer que fossem. E na esteira dessa
construção, a segregação cada vez mais aguda entre homem e natureza, produto de uma
distinção, inexistente para aqueles que eram observados pelo viajante, mas regulador da
vida no velho mundo, como Keith Thomas demonstrou já há mais de duas décadas
(1983), e que se encarnava de um modo tão concreto que não deixava margem para que
Paul Marcoy foi, por um longo tempo, relegado a uma espécie de esquecimento,
seja por seus potenciais pares dele coetâneos, seja pelos pesquisadores que, bem
mundo afora e, muito especialmente, pela região amazônica. Isto, a despeito do fato de
que, no século XIX e por boa parte do século XX adentro, foram relatos como os dele
que fizeram os contornos do que éramos e de como e onde vivíamos. Pierre Chaumeil já
oitocentista que, no fim da vida, deixou de vulgarizar suas experiências pelos magazines
especializados em troca da administração do Jardim Botânico e dos parques de sua
cidade, cargo que ocupou até sua morte em 1888 (Gazette 1888:91).
Numa das últimas páginas de seu extenso relato, escrita mais de vinte anos após
escreveu:
2001:304) 11
Figuras
6 7
1 212
Murray, 1864.
REFERÊNCIAS
siècle.
http://www.cairn.info/resume.php?ID_ARTICLE=SR_021_0059
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1864.
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OLIVEIRA Filho, João Pacheco de,. In _______ (org.) Sociedades indígenas e indigenismo no
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RAJOTTE, Pierre. Rendre l'espace lisible : récit de voyage au XIXe siècle. Studies in Canadian
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SICARD, Monique. La fabrique du regard : images de science. Paris : Odile Jacob, 1998.
VERNE, Júlio. A jangada. Oitocentas léguas pelo Amazonas. São Paulo: Planeta, 2003.