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COSMOVISÃO
REFORMADA
GRADUAÇÃO
Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor Executivo de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva
Pró-Reitor de Ensino de EAD
Janes Fidélis Tomelin
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi
NEAD - Núcleo de Educação a Distância
Diretoria Executiva
Chrystiano Mincoff
James Prestes
Tiago Stachon
Diretoria de Graduação
Kátia Coelho
Diretoria de Pós-graduação
Bruno do Val Jorge
Diretoria de Permanência
Leonardo Spaine
Diretoria de Design Educacional
Débora Leite
Head de Curadoria e Inovação
Tania Cristiane Yoshie Fukushima
Gerência de Processos Acadêmicos
Taessa Penha Shiraishi Vieira
Gerência de Curadoria
Carolina Abdalla Normann de Freitas
Gerência de de Contratos e Operações
Jislaine Cristina da Silva
Gerência de Produção de Conteúdo
Diogo Ribeiro Garcia
Gerência de Projetos Especiais
Daniel Fuverki Hey
Supervisora de Projetos Especiais
Yasminn Talyta Tavares Zagonel
Coordenador de Conteúdo
Roney de Carvalho Luiz
Designer Educacional
C397CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Lilian Vespa da Silva
Distância; COSTA, Hermisten M. P.. Projeto Gráfico
Jaime de Marchi Junior
Teologia e Cosmovisão Reformada. Hermisten M. P. Costa. José Jhonny Coelho
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2018. Reimpressão, 2020.
488 p. Arte Capa
“Graduação - EaD”. Arthur Cantareli Silva
1. Teologia. 2. Cosmovisão . 3. Reformada 4. EaD. I. Título. Ilustração Capa
Bruno Pardinho
ISBN 978-85-459-1230-9
CDD - 22 ed. 207 Editoração
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Robson Yuiti Saito
Qualidade Textual
Felipe Veiga da Fonseca
Ilustração
Robson Yuiti Saito
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário
João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828
Impresso por:
Em um mundo global e dinâmico, nós trabalhamos
com princípios éticos e profissionalismo, não somen-
te para oferecer uma educação de qualidade, mas,
acima de tudo, para gerar uma conversão integral
das pessoas ao conhecimento. Baseamo-nos em 4 pi-
lares: intelectual, profissional, emocional e espiritual.
Iniciamos a Unicesumar em 1990, com dois cursos
de graduação e 180 alunos. Hoje, temos mais de
100 mil estudantes espalhados em todo o Brasil:
nos quatro campi presenciais (Maringá, Curitiba,
Ponta Grossa e Londrina) e em mais de 300 polos
EAD no país, com dezenas de cursos de graduação e
pós-graduação. Produzimos e revisamos 500 livros
e distribuímos mais de 500 mil exemplares por
ano. Somos reconhecidos pelo MEC como uma
instituição de excelência, com IGC 4 em 7 anos
consecutivos. Estamos entre os 10 maiores grupos
educacionais do Brasil.
A rapidez do mundo moderno exige dos educa-
dores soluções inteligentes para as necessidades
de todos. Para continuar relevante, a instituição
de educação precisa ter pelo menos três virtudes:
inovação, coragem e compromisso com a quali-
dade. Por isso, desenvolvemos, para os cursos de
Engenharia, metodologias ativas, as quais visam
reunir o melhor do ensino presencial e a distância.
Tudo isso para honrarmos a nossa missão que é
promover a educação de qualidade nas diferentes
áreas do conhecimento, formando profissionais
cidadãos que contribuam para o desenvolvimento
de uma sociedade justa e solidária.
Vamos juntos!
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
transformamos também a sociedade na qual estamos
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita.
Ou seja, acesse regularmente o Studeo, que é o seu
Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns
e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das dis-
cussões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe
de professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
CURRÍCULO
SEJA BEM-VINDO(A)!
Caro(a) aluno(a), seja bem-vindo(a) à disciplina Teologia e Cosmovisão Reformada. Antes
de entrarmos no conteúdo, peço que reflita na ilustração: “Não devem os filhos entesou-
rar para os pais, mas os pais, para os filhos” (2Co 12,14). Paulo entendia que como pai na
fé dos crentes coríntios (1Co 4, 14-15; 2Co 6,13; 1Co 3,6.10; 9,1) deveria alimentá-los e
fortalecê-los em sua fé. Esta analogia fala-nos da responsabilidade do pastor em buscar
o suprimento necessário, por intermédio da Palavra, para o progresso espiritual de seu
rebanho. Por isso que a infidelidade ou negligência de um pastor é fatal à Igreja.
O designativo “Pais” foi aplicado aos bispos da Igreja no segundo século. A obra anônima,
O Martírio de Policarpo, escrita por uma testemunha ocular do ocorrido, por volta do ano
155 A.D., relata que “a turba pagã e judia desejando matar Policarpo, por ser cristão, voci-
ferou: ‘Eis o doutor da Ásia, o pai dos cristãos, o destruidor dos deuses, que com seu ensi-
no, afasta os homens dos sacrifícios e da adoração’”. Isto indica que na época era comum
referir-se aos bispos cristãos como “Pais” (no sentido acima descrito, tinha uma conotação
pejorativa, como “pai de uma heresia” ou “pai dos hereges”). O emprego dessa expressão
disseminou-se de tal forma que, no quarto século, todos os pastores e mestres, que ha-
viam participado do Concílio de Nicéia (325), eram chamados de “Pais da Igreja”.
Entre os cristãos, a expressão aplicada aos bispos assume uma conotação carinhosa, indi-
cando também a sua responsabilidade. Etienne Gilson (1884-1978), seguindo uma com-
preensão clássica, diz que um “Pai” deveria apresentar quatro características: “ortodoxia
doutrinal, santidade de vida, aprovação da Igreja, relativa Antiguidade” (até fins do século
III, aproximadamente). Curiosamente, na única carta escrita por Calvino a Lutero (em 25 de
janeiro de 1545), a qual este, ao que parece, jamais recebeu, Calvino se dirige a Lutero como
“meu respeitadíssimo pai”, “respeitadíssimo pai no Senhor” e “meu pai sempre honorável”.
Os documentos da Igreja que recebemos não são infalíveis (nem mesmo naquilo que é
consensual), nem jamais pretenderam isso; contudo, são os tesouros históricos e teoló-
gicos que nos foram legados. A sua autoridade é relativa. No entanto, a Igreja não pode
sobreviver sem a consciência de seu passado, de suas lutas, dificuldades, fracassos e,
certamente, por graça, de suas vitórias. Esta consciência deve gerar em nós um espírito
de gratidão, humildade e desafio diante da magnitude da Revelação de Deus. Tais do-
cumentos ajudam-nos a compreender melhor quem somos como igreja e qual o nosso
papel na sociedade. E é exatamente isso que vamos discutir ao longo deste livro, na
Unidade I, verificaremos algumas questões relacionadas aos principais pressupostos e
percepções da Cosmovisão, bem como da Teologia Sistemática. Adiante, veremos sobre
as manifestações de Deus, por meio de suas revelações.
A história de nossos pais pode ser fonte de grande estímulo, consolo e alerta para nós.
Por meio da história de sua vida e testemunho podemos descobrir – às vezes para ver-
gonha nossa –, o quanto nossos irmãos do passado lutaram bravamente pela fé que
uma vez por todas foi entregue aos santos e da qual somos herdeiros. O nosso presente
tende a assumir dentro de alguns contextos o caráter de onipresença, como se fosse um
presente contínuo, assim, pensamos estar sozinhos em nossa empreitada, nos esque-
APRESENTAÇÃO
UNIDADE I
COSMOVISÃO CRISTÃ
15 Introdução
16 Pressupostos e Percepções
24 Teologia Sistemática
31 Cosmovisão
69 Considerações Finais
75 Referências
80 Gabarito
UNIDADE II
83 Introdução
84 A Narrativa Bíblica
139 Referências
146 Gabarito
10
SUMÁRIO
UNIDADE III
149 Introdução
267 Referências
274 Gabarito
UNIDADE IV
277 Introdução
360 Gabarito
11
SUMÁRIO
UNIDADE V
363 Introdução
479 Referências
486 Gabarito
487 Conclusão
Professor Dr. Hermisten M. P. Costa
I
UNIDADE
COSMOVISÃO CRISTÃ
Objetivos de Aprendizagem
■ Discutir os principais pressupostos e percepções acerca da
Cosmovisão.
■ Abordar as principais ideias da Teologia Sistemática.
■ Compreender as principais ideias relacionadas à Cosmovisão.
■ Estudar os principais desejos do homem e o modo como a Bíblia
aborda questões relacionadas à autossuficiência, felicidade, pobreza
e perdão.
■ Verificar as diferentes manifestações de Deus, por meio de revelações
e conhecimentos.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ Pressupostos e percepções
■ Teologia Sistemática
■ Cosmovisão
■ Todos os homens e um desejo – a contracultura cristã
■ O Deus que se revela
15
INTRODUÇÃO
Introdução
16 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
PRESSUPOSTOS E PERCEPÇÕES
COSMOVISÃO CRISTÃ
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como um todo”. Cosmovisão é algo inescapável ao ser humano. Todos a temos. Por
sua vez, toda cosmovisão, consciente ou não, tem uma matriz ontológica que traz
consequências epistemológicas que são determinantes para a nossa vida e conduta.
sua filosofia.
(Crampton, Bacon)
Pressupostos e Percepções
18 UNIDADE I
Você não precisa acreditar em tudo o que pensa, e a razão é simples: nós ve-
mos o que queremos ver. (...) O nervo óptico, o único nervo com ligação direta
com o cérebro, na verdade transmite mais impulsos do cérebro para o olho do
que vice-versa. Isto significa que se o cérebro determina o que o olho vê, cocê
já está pré-condicionado. É por isso que, se quatro pessoas presenciarem um
acidente, cada uma vai relatar algo diferente. Precisamos nos lembrar, e ensi-
nar aos outros, que não devemos acreditar em tudo o que pensamos.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Fonte: Waren (2013, p. 27).
COSMOVISÃO CRISTÃ
19
Pressupostos e Percepções
20 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Como sabemos, todos trabalham com os seus pressupostos, explícitos ou
não, consistentes ou não, plenamente conscientes deles ou apenas parcialmente.
Como as raízes de nosso pensamento estão fundadas em nosso coração, o cen-
tro vital do ser humano, nem sempre temos clareza intelectual quanto à direção
que seguimos visto que o nosso perceber é influenciado pelo nosso sentir sem
que este indique de forma objetiva a sua presença. Cosmovisão é algo mais ou
menos profundo, contudo, sempre passa pelo nosso coração! O que alimenta e
satisfaz o coração determina a nossa compreensão e ação.
COSMOVISÃO CRISTÃ
21
Assim, falar sobre a nossa cosmovisão, além de ser difícil verbalizá-la, é para-
doxalmente desnecessário. Parece que há um pacto involuntário de silêncio o
qual aponta para um suposto conhecimento comum: todos “sabemos” a nossa
cosmovisão. Deste modo, só falamos, se falamos e quando falamos de nossa cos-
movisão, é para os outros, os estranhos, não iniciados em nossa forma de pensar.
James W. Sire resume bem isso:
Uma cosmovisão é composta de um conjunto de pressuposições bási-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O conhecimento, seja em que nível for, não ocorre num vácuo asséptico concei-
tual quer seja religioso, quer filosófico, quer cultural. A nossa percepção e ação
fundamentam-se em nossos pressupostos os quais são reforçados, transforma-
dos, lapidados ou abandonados em prol de outros, conforme a nossa percepção
dos “fatos”. A questão epistemológica antecede à práxis. Contudo, como nos
aprofundar no campo intelectual se abandonamos as questões epistemológicas?
As palavras de J.G. Machen (1881-1937), no início do século XX, não se tornam
ainda mais eloquentes na atualidade? “A igreja está hoje perecendo por falta de
pensamento, não por excesso do mesmo” (MACHEN, 1974, p. 19).
Há sempre o perigo de nos tornarmos cativos de nossa perspectiva e, portanto,
da nossa percepção. Como obviamente não conseguimos ter “todas as visões”, perma-
necemos, de certo modo, cativos de nossa perspectiva, em outros termos: prisioneiro
de sua percepção. Daí a importância básica de conhecer e avaliar outras percepções.
Pressupostos e Percepções
22 UNIDADE I
“Até mesmo uma boa compreensão de uma árvore exige que andemos ao redor dela
e a observemos de vários ângulos”, alerta-nos Frame (2013, p. 13). A assimilação de
outras perspectivas, limitadas, sem dúvida como a nossa, certamente nos fornecerá
uma visão mais abrangente e completa, ainda que limitada, da realidade.
Nem sempre é fácil submeter os nossos valores ao rigor daquilo que cremos.
Como o cientista tem dificuldade em revisitar os seus paradigmas, nós também temos
dificuldade em rever a nossa cosmovisão. É muito difícil – talvez por ser doloroso
demais –, aplicar e avaliar em nosso próprio sistema as implicações do que sustenta-
mos. Podemos, sem nos darmos conta, nos ferir com as nossas próprias armas, que
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
julgávamos serem bisturis. Aliás, o mau uso do bisturi pode ser fatal, assim como o
“fogo amigo” nas guerras. O antidogmatismo pode se constituir num dogma.
A nossa cosmovisão não deve servir apenas – aliás, um “apenas” injustificá-
vel em si mesmo –, para um exibicionismo pretensamente acadêmico, ufanismo
ignorante ou mesmo como demarcação de terreno no qual nada se sucede,
exceto a presunção compartilhada e demarcada por outras cosmovisões. A nossa
cosmovisão consciente deve estar comprometida com a busca de coerência per-
ceptiva e existencial.
Isto nós chamamos de integridade, o não esfacelamento condescendente e
excludente daquilo que cremos, falamos e fazemos. Ainda que não haja a ideia
de orgulho meritório na fé, ela é responsável pelo nosso agir e pensar. “A fé não
concerne a um setor particular da vida denominado religioso, ela se aplica à exis-
tência em sua totalidade” (BARTH, 2006, p. 24). Contudo, a genuína fé não pode
ser autorreferente. Ela parte da Palavra e para lá se direciona.
Todo indivíduo tem uma visão de mundo. Esta dá respostas às quatro per-
guntas essenciais, que dizem respeito à origem, ao sentido, à moralidade e
à esperança que garante um destino. Essas respostas devem ser verdadeiras
e coerentes como um todo.
(Ravi Zacharias).
COSMOVISÃO CRISTÃ
23
Pressupostos e Percepções
24 UNIDADE I
Ainda que seja altamente recomendável a nossa integridade, quando ela está depo-
sitada em algo de consistência frágil, movediça e enganosa, traz grande frustração.
Pense no ardor do jovem Saulo em perseguir a Igreja de Deus pensando
justamente estar prestando um serviço que glorificasse a Este mesmo Deus.
Quanta dor e sofrimento ele causou a inúmeros cristãos sinceros e a ele mesmo
quando, por graça, descobriu o seu equívoco e, convertido ao Senhor, passa a
pregar com fidelidade e inteireza de coração a Palavra, ensinando ser Jesus o
Cristo e Senhor (At 9, 22.26; 1Co 15,9).
O fato é que todos nós construímos, conscientemente ou não a nossa casa, a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
nossa vida, sobre pressuposições, sobre nossas crenças. A questão é se estas crenças
suportarão as intempéries próprias da existência. A nossa chave epistemológica
é a Escritura, portanto, a nossa cosmovisão partindo de uma perspectiva assim,
nos conduzirá naturalmente de volta a Deus. A Educação Cristã, por exemplo,
fundamentando-se nas Escrituras oferece-nos um escopo do que Deus deseja de
nós e, nos fala de qual o propósito de nossa existência em todas as suas esferas.
TEOLOGIA SISTEMÁTICA
DEFINIÇÃO
COSMOVISÃO CRISTÃ
25
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a. A Teologia nunca é “arquetípica”, mas “éctipica”1; ela não é gerada pelo esforço
de nossa observação de Deus, mas sim o resultado da revelação soberana e
pessoal de Deus. Uma “Teologia Arquetípica” – se é que podemos falar deste
modo – pertence somente a Deus, porque somente ele se conhece perfei-
tamente tendo, inclusive, ciência completa do seu conhecimento perfeito.
b. A Teologia não termina em conhecimento teórico e abstrato, antes se plenifica
no conhecimento prático e existencial de Deus por intermédio da sua Reve-
lação nas Escrituras Sagradas, mediante a iluminação do Espírito. Conhecer
a Deus é obedecer a seus mandamentos. “A boa teologia desloca-se da cabeça
até o coração e, finalmente, até a mão” (GRENZ; OLSON, s.d., p. 51). A genu-
ína cristã é compreensível, transformadora e operante. Ela reflete a nossa
confissão, nos conduz à reflexão, e tem implicações direta em nossa ética.
Quando falamos de Teologia Reformada, estamos nos referindo à Teologia prove-
niente da Reforma (Calvinista) em distinção à Teologia Luterana. O designativo
Reformada é preferível ao Calvinista, ainda que a empreguemos indistintamente,
considerando o fato de que a Teologia Reformada não é estritamente proveniente
de João Calvino (1509-1564).
1
Éctipo é uma palavra de derivação grega, “e)/ktupoj” (cópia de um modelo ou reflexo de um arquétipo),
passando pelo latim “ectypus” (feito em relevo, saliente).
Teologia Sistemática
26 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
TEOLOGIA, PRESSUPOSTOS E MÉTODO
COSMOVISÃO CRISTÃ
27
Teologia Sistemática
28 UNIDADE I
das pessoas funcionam como um filtro por onde passa tudo o que elas
lançam ao mundo exterior. Os seus pressupostos fornecem ainda a base
para seus valores e, em consequência disto, a base para suas decisões
(SCHAEFFER, 2003, p. 11).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
porque conseguimos encaixá-lo dentro de um conjunto complexo de
ideias que assimilamos anteriormente (SILVA, 2002, p. 255).
René Descartes (1596-1650), após dizer que “o bom senso é a coisa do mundo
melhor partilhada”, admite que “não é suficiente ter o espírito bom, o principal é
aplicá-lo bem” (DESCARTES, 1973, p. 37). De fato, bom senso, a boa maneira de
conduzir o pensamento na avaliação dos fatos, é indispensável, contudo, se ele for
provido de um bom método, a possibilidade de obter êxito é bem maior. Mas, o
que é um método? Este termo é uma transliteração do grego mšqodoj, palavra for-
mada por meta/ (“no meio de”, “no centro de”) e o dÒj (“caminho”). Em Aristóteles
(384-322) a palavra tinha o sentido de “investigação”, sendo por vezes usada como
sinônimo de “teoria” (qewr…a) e “ciência” (špist»mh). Etimologicamente, portanto,
método é o emprego de um caminho, andar dentro e por meio dele.
Podemos definir operacionalmente método, como o conjunto de elemen-
tos e processos necessários a se obter determinado objetivo. É o caminho para a
consecução de um objetivo proposto. André Lalande (1867-1963) acentua que
etimologicamente a palavra significa demanda e, “por consequência, esforço para
atingir um fim, investigação, estudo” (LALANDE, 1993, p. 678).
Charles Hodge com simplicidade e clareza afirma que: “Se uma pessoa adota
um falso método, ela é semelhante a alguém que toma uma estrada errada que
jamais a levará a seu destino” (HODGE, 2001, p. 2). Obviamente a Teologia,
como todas as demais ciências, também tem os seus métodos. E isto é funda-
mental. Não existe neutralidade metodológica. Todo método carrega consigo
seus pressupostos. Portanto, os pressupostos, como também em qualquer outra
ciência, são fatores determinantes em sua pesquisa, na aproximação dos fatos.
COSMOVISÃO CRISTÃ
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Nash (2008, p. 14), com uma ênfase diversa, nos alerta: “a obtenção de maior
consciência de nossa cosmovisão pessoal é uma das coisas mais importantes que
podemos fazer, e compreender a cosmovisão de outros é algo essencial para o
entendimento que os torna distintos”.
A nossa chave epistemológica é a Escritura, portanto, a nossa cosmovisão
partindo de uma perspectiva assim, nos conduzirá naturalmente de volta a Deus.
A teologia sistemática parte de cima, fundamentando-se na Escritura oferece-nos
um escopo do que Deus deseja de nós e nos fala do propósito de nossa existên-
cia em todas as suas esferas.
A experiência humana, as contribuições científicas e o ensino da igreja são
avaliados à luz da Escritura que unicamente é a nossa regra de fé e, portanto, o
fundamento de toda teologia.
Teologia Sistemática
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
de se criar uma fonte secundária, ou terciária de teologia (Os Catecismos, por
exemplo), implica em admitir que a Bíblia precisa de um complemento, logo é
incompleta ou insuficiente.
A Revelação Geral tem o seu valor ilustrativo, contudo em nada acrescenta à
Revelação Especial e, aquela só pode ser entendida corretamente, por aquele que
mediante a iluminação do Espírito Santo entende a Revelação Especial. Para este
homem, a Revelação Geral se constitui numa republicação, ainda que não cro-
nológica, das verdades contidas nas Escrituras. Contudo, esta republicação não
é complementar nem transforma vida. E, o que a natureza trata de forma estrita
e apenas indicativa, a Escritura fala de forma ampla e demonstrativa.
Edwin Palmer acentua:
Somente através da revelação o homem alcança o verdadeiro entendi-
mento das coisas. Pela revelação, Deus se manifesta ao homem e tam-
bém revela a verdadeira natureza dos seres que povoam o mundo, tanto a
dos homens como a dos objetos naturais. [...] É interessante advertir que
inclusive a primeira revelação, a revelação geral, não se pode captar bem
sem conhecer a revelação especial e sem o poder iluminador do Espírito na
mente do homem. Isto se deve ao fato de que o homem é espiritualmente
cego devido ao seu próprio pecado (PALMER, s.d., p. 47, 50).
COSMOVISÃO CRISTÃ
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COSMOVISÃO
Cosmovisão
32 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Teologia ruim machuca as pessoas. Mais cedo ou mais tarde, um pen-
samento errado sobre Deus leva a uma crença errada. E uma crença
errada leva ao enfraquecimento da vida moral espiritual e, por fim,
à condenação. A maioria dos cristãos vê intuitivamente que negar a
presciência de Deus quanto às ações livres mostrará uma tendência de
enfraquecer a confiança da igreja de que Deus pode guiar pessoas e
nações, que ele pode responder a orações acerca daqueles que estão
perdidos e no erro, que ele pode predizer o futuro, que ele pode ga-
rantir o triunfo final e que age em todas as coisas para o bem daqueles
que o amam e dos que foram chamados de acordo com seu propósito.
Alguma geração pagará o preço desse pensamento errado sobre Deus.
Quanto mais perto os pensamentos errados atingirem a centralidade
da doutrina de Deus, sua perfeição pessoal e seus caminhos salvadores,
mais cedo e doloroso será o pagamento. Coisas eternas estão em jogo
na negação da presciência plena e definitiva de Deus.
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Cosmovisão
34 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pessoal? As respostas que dermos a estas questões são cruciais para
identificar a nossa cosmovisão.
b. Metafísica: trata da existência, da natureza e a qualidade daquilo que é
conhecido. A nossa cosmovisão determinará um tipo de compreensão de
questões tais como: todos os homens têm a mesma essência? Todo evento
deve ter uma causa? Há realidade além daquilo que podemos ver? Existe
um mundo espiritual? Há um propósito para o universo? Qual a relação
entre Deus e o universo?
c. Epistemologia: é o estudo das questões relacionadas aos problemas filosó-
ficos do conhecimento. O seu objetivo é conhecer, interpretar e descrever,
filosoficamente, os princípios essenciais que conduzem ao conhecimento
científico ou, em outras palavras, “estudar a gênese e a estrutura dos
conhecimentos científicos” (JAPIASSU, 1979, p. 38). A Epistemologia
trata de questões tais como: como conhecemos alguma coisa? É possível
um conhecimento certo a respeito de alguma coisa? Os sentidos nos dão
um conhecimento certo a respeito dos objetos sensíveis? Nossas percep-
ções dos objetos sensíveis são idênticas a esses objetos? Qual a relação
entre o intelecto e a matéria? Qual a relação entre a razão e a fé? Pode-
mos conhecer algo sobre Deus? É o método científico o melhor método
para o conhecimento?
COSMOVISÃO CRISTÃ
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Cosmovisão
36 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
TODOS OS HOMENS E UM DESEJO - A
CONTRACULTURA CRISTÃ
Um desejo comum a todos os seres humanos, ainda que disfarçado sob outros
nomes, é o de autossuficiência; de bastar-se a si mesmo. Este desejo está vin-
culado à busca pela felicidade. Daí a associação natural entre autossuficiência
e felicidade. Queremos ser felizes, não abstratamente, antes, eu quero ser feliz
pessoalmente (MARÍAS, 1989).
O desejo pela minha felicidade é algo que marca profundamente a minha
individualidade. Podemos ter dúvidas quanto ao caminho a seguir, no entanto,
estamos convictos do que queremos. Este desejo revela aspectos essenciais da
Criação e da Queda. Fomos criados para a felicidade plena em comunhão com
Deus e com o nosso semelhante. O pecado nos tirou isto. Agora revelamos a nossa
carência, o desejo ansioso de termos o para que fomos criados (SPROUL, 1998).
Aí está o nosso dilema. A felicidade que se origina essencialmente em Deus não
pode ser concedida por Deus fora Dele. Deste modo, ser feliz sem Deus é uma
contradição de termos (LEWIS, 1979).
Geralmente, colocamos a nossa felicidade na concretização de determinados
objetivos. No entanto, realizá-los pode revelar os nossos equívocos. Concretizamos
nossos propósitos. No entanto, nem por isso nos sentimos felizes. A rotina do prazer,
em geral, se torna enfadonha. Isto não é felicidade. As nossas escolhas envolve-
rão sempre as exclusões. Como dizer sim, sem dizer não? E, como contingentes
que somos, precisamos acertar em nossas seleções. Isso nos causa angústia e dor.
COSMOVISÃO CRISTÃ
37
Parte da cruel ironia da existência humana parece ser que as coisas que, em
nossa opinião, iriam nos fazer felizes, deixam de fazê-lo.
(Alister E. McGrath)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
TENTAÇÃO DA AUTOSSUFICIÊNCIA
No Paraíso, Satanás tentou os nossos primeiros pais por meio do desejo que, de
alguma forma, cultivavam de serem iguais a Deus. Eles se esqueceram de todo
o histórico de sua relação com o Deus fiel, amoroso, justo e sábio; o seu desejo
já em si mesmo, pecaminoso, falou mais alto aos seus corações.
O pecado original foi o pecado de esquecer Deus. Adão e Eva deram as cos-
tas a ele – daí os problemas.
(David Martyn Lloyd-Jones)
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dos pelo Iluminismo (Sécs. XVII – XIX). Teve o seu clímax nos humanistas
seculares modernos (COSTA, 2004). O trágico de todos estes movimentos é
que o homem longe de Deus tentou de todas as formas encontrar a sua auto-
nomia e, por isso mesmo, não alcançou a compreensão de que toda a vida é
relacional. Deste modo, se a Idade Média foi pretensamente o tempo de Deus,
o Renascimento foi o tempo do homem, o Iluminismo o tempo da razão, o
século XX, o da ciência e da técnica.
Hoje não temos mais referências, o homem já não é o centro de todas as
coisas, visto que já não há mais centro (VEITH JR., 1999). Estamos “perdidos
no espaço”, ainda buscando a nossa satisfação. Sem absolutos, não sabemos ao
certo o valor do homem e o seu papel no universo. Sem princípios universais,
não existem absolutos; sem absolutos, tudo é possível. Deste modo, sem o con-
ceito de verdade, a felicidade ficou circunscrita ao conceito de prazer de cada um,
independentemente, de princípios e valores divinos universais. Como escreve
Ravi Zacharias (2011, p. 13), um ex-ateu: “a realidade é que o vazio resultante
da perda do transcendente é absoluto e devastador, tanto no sentido filosófico
quanto existencial”.
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Salmos, está associada à confiança em Deus (Sl 40,4; 84,12);2 refugiar-se em Deus
(Sl 2,12; 34,8);3 ser disciplinado e educado por Deus (Sl 94,12);4 andar na Lei do
Senhor (Sl 119,1-2);5 ter a Deus por auxílio, esperança (Sl 146,5)6 e povo do Senhor
(Sl 33,12; 144,15);7 ser escolhido de Deus (Sl 65,4);8 ter os pecados perdoados (Sl
32,1);9 temer a Deus e andar nos seus caminhos (Sl 128,1).10 Sproul resume: “ser
abençoado, na mentalidade hebraica, significa ter a alma cheia da capacidade de
experimentar o encanto, a excelência e a doçura do próprio Deus”.
Nas bem-aventuranças (Mt 5,3-12), Jesus Cristo, em suas “exclamações
enfáticas”, começa por dizer: “Bem-aventurados os humildes (ptwxÒj) de espí-
rito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3). A bem-aventurança não está na
pobreza, mas na consciência da pobreza espiritual e de sua total carência de Deus.
2
“Bem-aventurado o homem que põe no Senhor a sua confiança e não pende para os arrogantes, nem para
os afeiçoados à mentira” (Sl 40,4). “Ó Senhor dos Exércitos, feliz o homem que em ti confia” (Sl 84,12).
3
“Bem-aventurados todos os que nele se refugiam” (Sl 2,12). “Oh! Provai e vede que o Senhor é bom; bem-
aventurado o homem que nele se refugia” (Sl 34,8).
4
“Bem-aventurado o homem, Senhor, a quem tu repreendes, a quem ensinas a tua lei” (Sl 94.12).
5
“Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do Senhor. Bem-aventurados os
que guardam as suas prescrições e o buscam de todo o coração” (Sl 119,1-2).
6
“Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio, cuja esperança está no Senhor, seu Deus”
(Sl 146,5).
7
“Feliz a nação cujo Deus é o Senhor, e o povo que ele escolheu para sua herança” (Sl 33,12); “Bem-
aventurado o povo a quem assim sucede! Sim, bem-aventurado é o povo cujo Deus é o Senhor” (Sl 144,15).
8
“Bem-aventurado aquele a quem escolhes e aproximas de ti, para que assista nos teus átrios; ficaremos
satisfeitos com a bondade de tua casa -- o teu santo templo” (Sl 65,4).
9
“Bem-aventurado aquele cuja iniqüidade é perdoada, cujo pecado é coberto” (Sl 32,1).
10
“Bem-aventurado aquele que teme ao Senhor e anda nos seus caminhos!” (Sl 128,1). Seguir fielmente o
caminho do Senhor nos torna irrepreensíveis (Sl 119,1).
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Jesus Cristo apresenta um conceito totalmente oposto aos nossos valores que
falam de poder, saber, status, cultura e dinheiro. Ele diz que bem-aventurado é o
homem indigente espiritualmente, que sabe que nada tem para oferecer a Deus,
mas depende totalmente de sua graça. Aqui nosso Senhor ataca frontalmente o
desejo humano tão arraigado no coração de ter uma visão bastante otimista a
seu respeito, considerando-se acima dos demais.
Esta tentação é tão comum e, até mesmo, tão aceitável socialmente den-
tro de determinadas condições, que nem sequer paramos para pensar nela.
Costumeiramente, há uma contradição entre a nossa compreensão intelectual
deste assunto e o nosso comportamento, ainda que, com alguns disfarces, ávido
por evidenciar alguma forma de poder, mesmo que seja de uma humildade
superlativa. No fundo, diz Calvino, todos em sua prosperidade gostam de ter os
“holofotes” em sua direção (2008, p. 37).
11
“Havia também certo mendigo (ptwxo\j), chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele”
(Lc 16,20).
É por isso que o nosso primeiro contato com o Evangelho, com frequên-
cia, antes de trazer paz espiritual, provoca uma espécie de guerra interior, uma
“crise”. O Evangelho desestabiliza a nossa estrutura de pensamento e, por vezes,
a tão bem arrumada concepção de vida e valores que sustentamos – ainda que
nem sempre conscientemente – e divulgamos alguns de seus aspectos mais evi-
dentes em nossa compreensão. Este conflito, portanto, como é previsível, dói e,
por vezes, dói muito. Contudo, o Evangelho nos desafia, transforma e concede,
pelo novo nascimento espiritual, uma dimensão nova da vida, do tempo e da
eternidade, mostrando-nos o quanto estávamos equivocados em nossa forma
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de nos ver, interpretar e nos posicionar em relação à realidade. O Evangelho evi-
dencia de modo contundente o quanto somos carentes de Deus e da sua graça.
Enquanto os homens querem ter coisas para serem felizes, Jesus Cristo
começa mostrando a necessidade que temos de nos esvaziar. A construção da
verdadeira felicidade começa pela desconstrução de nosso eu, nossa pretensa
riqueza, referência e escala de valores. Percebam o drama: eu que, durante toda
a vida, desde o nascimento, tenho como referência de valores o eu, agora sou
redirecionado para uma esfera totalmente distinta, passando a ter Deus como
referência e centro. Mudei de uma visão “egorreferente” para outra, oposta, “teor-
referente”. Por isso é que a primeira bem-aventurança aponta para a nossa total
incapacidade. Quando nos sentirmos assim, poderemos ser reconstruídos, res-
taurados pelo Senhor Jesus. A graça, como a verdade, sempre nos surpreende.
Maravilhosa graça!
A Lei de Deus é boa. Ela nos foi dada para o nosso bem. Ela se tornou maldição
para nós devido ao nosso pecado. A quebra da Lei fez com que merecêssemos
o justo castigo. Aliás, a Lei precisa ser enfatizada para que o homem, por graça,
se disponha a ouvir o Evangelho. Sem a Lei, a impressão que fica é que temos
uma vida correta e satisfatória, de nada precisamos, muito menos, de salvação.
A Lei de Deus, como que por um espelho, reflete a nossa miséria espiritual
resultante de nossa total incapacidade de cumprir as exigências divinas. O con-
fronto com a Lei de Deus é algo profundamente angustiante e destruidor de
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A Lei não nos salva. Contudo, nos mostra a necessidade que temos do perdão e
da purificação efetuada por Deus. “A regra de nossa santidade é a lei de Deus”
(PACKER, 2005, p. 155). O anúncio do Evangelho envolve a Lei, a mesma que evi-
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denciou o nosso pecado, apontou para a necessidade de salvação, se concretizando
em Cristo Jesus: “o Evangelho e a Lei não devem ser separados, constituem uma
única entidade no interior da qual o Evangelho é a coisa primordial e a Lei per-
manece contida na Boa Nova” (BARTH, 2006, p. 22). Sem Lei não há Evangelho.
Por intermédio de Cristo, somos libertos da tentativa insana de tentar ser
salvo pelo cumprimento da Lei, o que é impossível. Diante a Lei restam-nos
hipoteticamente duas opções honestas: cumprir as suas exigências, o que nos é
impossível, arcando, assim, com o reto juízo condenatório de Deus, ou buscar
refúgio na misericórdia de Deus por meio de Jesus Cristo.
Na Lei de Deus nos é apresentado um padrão perfeito de toda a justiça
que pode, com razão, ser chamada de vontade eterna do Senhor. Deus
condensou completa e claramente nas duas tábuas tudo o que ele requer
de nós. Na primeira tábua, com uns poucos mandamentos, ele prescreve
qual é o culto agradável à sua majestade. Na segunda tábua, ele nos diz
quais são os ofícios de caridade devidos ao nosso próximo. Ouçamos a
Lei, portanto, e veremos que ensinamentos devemos tirar dele e, similar-
mente, que frutos devemos colher dela (CALVINO, 2003, p. 21).
Contudo, o que a Lei exige, ela não nos capacita a cumprir, deixando-nos sozinhos.
Esta capacitação é somente pela graça que, se envolve a Lei, não se restringe a ela.
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Devemos, portanto, nos aplicar no estudo da Lei, visto que “a Escritura outra
coisa não é senão a exposição da lei”.
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Nesta petição, entre outras coisas, estamos confessando que não temos condi-
ções de pagar a nossa dívida (Lc 7,41-42; Mt 18,25-27)12. A Lei já nos ensinou
isto. Estamos inadimplentes espiritualmente. Temos consciência de que a nossa
dívida cada vez aumenta mais:
[...] porque, ainda que vivendo como cristãos, vamos aumentando sem
cessar nossa dívida e agravando a embrulhada da nossa situação. A dí-
vida cresce de dia em dia. E imagino que à medida que envelhecemos,
mais conta nos damos de que não temos possibilidade alguma de can-
celar essa dívida. As coisas vão de mal a pior (BARTH, 1968, p. 76).
Por isso, só nos resta suplicar o perdão. “A súplica por perdão subentende que
o suplicante reconhece que não existe outro método pelo qual sua dívida seja
cancelada. Portanto, é uma súplica por graça” (HENDRIKSEN, 2001, p. 470).
Diria mais: é impossível uma autêntica vida cristã sem esta consciência - de ser-
mos pecadores e da necessidade do perdão de Deus (Lloyd-Jones, 1997, p. 53).
Enquanto não admitirmos isso, estamos, na realidade, sustentando algum
tipo de autossuficiência. A escravidão está na pretensa autossuficiência que,
12“41 Certo credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhentos denários, e o outro, cinquenta. 42Não
tendo nenhum dos dois com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Qual deles, portanto, o amará mais?” (Lc
7.41-42). “25 Não tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse vendido ele, a mulher, os
filhos e tudo quanto possuía e que a dívida fosse paga. 26Então, o servo, prostrando-se reverente, rogou: Sê
paciente comigo, e tudo te pagarei. 27 E o senhor daquele servo, compadecendo-se, mandou-o embora e
perdoou-lhe a dívida” (Mt 18.25-27).
para dar-nos esta sensação cobra um preço muito elevado, envolvendo poder,
dinheiro, fama, títulos, distinções e coisas semelhantes que enchem os nossos
olhos e, em geral os nossos parceiros sociais.
A misericórdia de Deus é o único caminho da remissão. E, todas as vezes que
confessamos a Deus os nossos pecados, arrependidos de tê-los cometidos, desejosos
de não mais praticá-los, podemos ter a certeza que Deus, por sua graça, nos perdoa.
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Humildes são aqueles que estão convencidos dos seus pecados e não pro-
curam ocultá-los a Deus.
(J.C. Ryle).
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Deus existe; este é o fato pressuposto em toda a narrativa da Criação. Deus cria
segundo a Sua Palavra e isto nos enche de admiração e reverente temor: a Palavra
de Deus é o verbo criador que manifesta a determinação e o poder de Deus (Gn
1,1.26-27; Sl 33,6.9; Jo 1,1-3; Hb 11,3), o qual criou as coisas com sabedoria (Pv 3,19).
Por isso é preciso que haja humildade de ambas as partes: do teólogo na interpreta-
ção da Palavra de Deus, sempre em submissão ao Espírito de Deus, sem cair num
dogmatismo ingênuo nem num relativismo dogmático, que corre sempre atrás dos
modismos científicos e filosóficos para adaptar a Teologia. É preciso que nós teólo-
gos entendamos que trabalhar com a teologia não significa dizer sempre coisas novas;
embora reconheçamos “as situações novas que ameaçam a salvação dos homens”
(BERKOUWER, 1964, p. 72), para as quais devemos buscar na Palavra a resposta.
Por outro lado, precisamos entender, que a Palavra de Deus é mais rica do que
qualquer dogma; portanto, o nosso sistema doutrinário, por melhor que seja – e
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eu estou convencido de que é –, não pode ser mais rico do que a Palavra de Deus,
como bem observou Berkouwer (1903-1996): “porventura a Escritura não é mais
rica do que qualquer pronunciamento eclesiástico, por mais excelente e atento ao
Verbo divino que este possa ser?”. Por isso, o critério último de análise, será sempre
“o Espírito Santo falando na Escritura” (CONFISSÃO DE WESTMINSTER, I.10.).
O mundo do conhecimento pertence a Deus. Ele é o seu autor e revelador;
logo, todo e qualquer conhecimento quer empírico, quer científico, quer teológico
que o homem tenha é parte do conhecimento de Deus expresso na sua Criação.
Desta forma, podemos dizer que não existe conhecimento fora de Deus.
A realidade pertence a Deus, quem a criou, e lhe confere sentido. Quando,
então nos referimos ao conhecimento que podemos ter do próprio Deus, do seu
caráter e majestade, temos de reafirmar a verdade bíblica de que este conheci-
mento provém do próprio Deus. Portanto, Deus só pode ser conhecido por ele
mesmo. Daí a necessidade de revelação para que possamos conhecê-lo, e nos
relacionarmos com ele (BAVINCK, 2012, p. 287). Este conhecimento resultante
da graça é único, singular e pessoal.
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cimento é um ato de fé; e esta é procedente da graça. Mais: nunca somos ou seremos o
padrão de verdade, antes, precisamos sempre validar o nosso pensamento na Palavra,
que é a verdade (Jo 17,17). Só pensamos verdadeiramente quando pensamos à luz
da Palavra. Por isso, é que conhecer a Deus é algo singular, porque somente Deus é
soberano e, somente a partir dele podemos conhecê-lo. E tudo isso, por meio de Jesus
Cristo, o Deus encarnado. Conhecer a Deus em sua soberania, portanto, é um dom
da graça do soberano Deus. Este conhecimento, por sua vez, nos liberta para que
possamos conhecer a nós mesmos e as demais coisas da realidade (COSTA, 2016).
O teólogo sabe que a Teologia é uma busca humana por compreender e siste-
matizar a revelação; e como humanos que somos, podemos nos enganar. A teologia,
portanto, de certa forma, está sempre a caminho, em busca de uma compreensão
mais exaustiva das Escrituras. Entretanto, como em todas as demais ciências, nós
Reformados, temos nossos pressupostos; o nosso é que a Bíblia é o registro inspirado
e inerrante da Palavra de Deus. Disto não abrimos mão. Estamos convencidos que
uma visão relapsa da Palavra determina o fracasso teológico e espiritual da Igreja.
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Costumo dizer que o aroma do café, o cheiro do arroz enquanto é refogado
e do frango assado, é mais precioso do que o sabor em si destes alimentos.
Pessoalmente, aprecio um bom café com pouco tempo de existência, arroz quente
preferencialmente não solidário por tempo demasiado e, da mesma forma, o
frango assado. Todavia confesso, eles prometem o que não podem cumprir ao
meu paladar. Diria que quase fazem propaganda enganosa ao meu olfato que
insiste em determinar previamente o meu paladar. Contudo, salvo exceções,
quem se contentaria com o cheiro destas iguarias?
Deus em sua revelação nunca vai além do que ele mesmo quer nos mos-
trar. Ele nunca nos promete aquilo que não vai suprir perfeitamente. Aliás,
como diz Paulo de forma exultante em oração: “ora, àquele que é poderoso para
fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o
seu poder que opera em nó” (Ef 3,20). Por isso, nos deter na Revelação, por mais
maravilhosa que ela seja é ignorar o propósito de Deus e deixar de usufruir algo
infinitamente mais maravilhoso, glorioso e majestoso, que é conhecer o Senhor,
Criador, Preservador e Salvador.
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Nas coisas que Ele criou, Deus, portanto, mantém diante de nós nítido espelho
de sua esplendorosa sabedoria. Em resultado, qualquer indivíduo que desfru-
te de pelo menos uma minúscula fagulha de bom senso, e atenta para a terra
e outras obras divinas, se vê aturdido por candente admiração por Deus. Se os
homens chegassem a um genuíno conhecimento de Deus, pela observação
de suas obras, certamente que viriam a conhecer a Deus de uma forma sábia,
ou daquela forma de adquirir sabedoria que lhes é natural e apropriada.
Fonte: João Calvino (1996, p. 60).
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1) Glorioso Senhor
“Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas
mãos” (Sl 19,1).
O salmista reconhece na Criação que Deus é o glorioso Senhor. Ele não
deifica a criação, antes canta a glória de Deus (BOICE, 1994). Quando no verso
primeiro nos diz que os céus proclamam a glória de Deus, ele se refere a Deus
como (lae) (‘el), o nome mais simples e genérico empregado para Deus do
qual outros são derivados. Com muita frequência ele é apresentado na Escritura
com adjetivos e epítetos. Assim, por exemplo, temos: “Deus dos céus” (Sl 136,26);
“Deus lá de cima” (Jó 31,28); “Deus da verdade” (Sl 31,5).
Ele tem um relacionamento íntimo com o seu povo, daí ser chamado de “Deus
da minha vida” (Sl 42,8); “Deus, minha rocha” (Sl 42,9); “Deus, que é a minha
grande alegria” (Sl 43,4); “Meu Deus e a rocha da minha salvação” (Sl 89,26).
É o único Deus Criador: “Não temos nós todos o mesmo Pai? Não nos criou
o mesmo Deus?” (Ml 2,10).
Não devemos nos esquecer de que este é o primeiro nome de Deus que apa-
rece nas Escrituras, sendo empregado de forma plural na Criação, indicando o
seu eterno poder soberano e majestade Triúna: “No princípio, criou Deus (yhil£)
(‘elohiym) os céus e a terra” (Gn 1,1).
No Salmo 19, o salmista destaca que a Criação de Deus realça a sua glória.
Se observarmos a Criação veremos e ouviremos uma sinfonia sem som por meio
de imagens grandiosas e de variada magnificência a respeito da glória de Deus.
Todo o Universo foi feito para revelar, ainda que de forma limitada, aspectos da
gloriosa majestade de Deus, e nós, fomos criados para vê-la, prová-la e glorifi-
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car o nome de Deus (PIPER, 2005).
A criação, ainda que manchada pelo pecado, revela quem é o seu Criador,
majestoso e glorioso, digno de toda honra e louvor: “os céus proclamam a glória
(dAbK’) (kabod) de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (Sl 19,1).
2) Criador
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as suas obras (hf,[]m) (ma`aseh)” (Sl 145.9). “Justo é o SENHOR em todos os seus
caminhos, benigno em todas as suas obras (hf,[]m) (ma`aseh)” (Sl 145.17).
Há um hino composto por Sarah Kalley, - hino n. 22, “Os Céus Proclamam”,
Hinário Novo Cântico da Igreja Presbiteriana do Brasil - inspirado no Salmo 19,
cuja primeira estrofe nos diz:
“A criação não pode conter-se em si mesma, mas dia e noite proclama a glória
de Deus” (HARMAN, 2011, p. 121). Na criação podemos perceber aspectos da
bondade de Deus que nos aliviam em nossas dores e limitações, nos concedendo
a visão da harmoniosa variedade e beleza daquilo que criou. Nesta visão, somos
conduzidos a admirar e a glorificar a Deus por Sua manifestação de sabedoria,
bondade e graça para conosco.
“2Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. 3 Não
há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; 4 no entanto, por
toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo.
Aí, pôs uma tenda para o sol, 5 o qual, como noivo que sai dos seus aposentos, se
regozija como herói, a percorrer o seu caminho. 6 Principia numa extremidade
dos céus, e até à outra vai o seu percurso; e nada refoge ao seu calor” (Sl 19,2-6).
O salmista ainda que não saiba explicar a ordem da Criação, sabe que o Deus
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Criador, o majestoso Senhor estabeleceu uma ordem que se sucede, porque foi
assim que ele a fez. Deste modo, o escritor sagrado pode falar da sucessão de dia
e dia; noite e noite (2) e o sol que, percebido fenomenologicamente, percorre um
caminho pré-estabelecido de uma extremidade a outra do céu mantendo o seu
calor: há um testemunho constante e permanente (4-6).
A compreensão cristã de ordem na criação foi de fundamental importância para
o desenvolvimento da ciência. Como sabemos, os pressupostos dos cientistas são
de grande relevância na elaboração científica. Tentar negar a existência de pressu-
postos em nome de uma suposta “neutralidade” seria uma postura pueril e inútil.
Francis A. Schaeffer (1912-1984), por exemplo, nos chama a atenção para
o fato de que “a ciência moderna em seus primórdios foi o produto daqueles
que viveram no consenso e cenário do Cristianismo” (SCHAEFFER, 1974, p.
29). À frente, acrescenta: “a mentalidade bíblica é que deu origem à ciência”
(SCHAEFFER, 1974, p. 29). De fato, independentemente da fé professada pelo
cientista, a sua formação, consciente ou não, era cristã, as suas pressuposições
teístas – que obviamente orientavam as suas pesquisas – “já vinham no leite
materno” (SIRE, 2004, p. 28).
O pressuposto da criação divina foi um incremento fundamental à ciência
moderna (KLAAREN, 1977). Hooykaas (1988, p.196) conclui o seu brilhante
livro usando uma metáfora: “Podemos dizer (...) que, embora os ingredientes
corporais da ciência possam ter sido gregos, suas vitaminas e hormônios foram
bíblicos”. Entre os Puritanos, por exemplo, o estudo científico, juntamente com
o teológico e literário era amplamente estimulado. “Os Puritanos abraçaram o
estudo das artes tão completamente como o da ciência” (RYKEN, 1992).
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O fato é que a Ciência Moderna, que teve a sua gênese no século XVII em “toda
a Europa” (ROSSI, 2001, p. 9), não estava em princípio dissociada da fé cristã.
Francis Bacon (1561-1626) combatendo o método dedutivo de Aristóteles (384-
322 a.C.) - a quem considerava uma espécie de Anticristo - e o pensamento
escolástico - que contribuiu no processo de distanciamento do homem em relação
a Deus e às Escrituras (ROSSI,1992, p. 66-69) - sustentou que a única esperança
da ciência estava na indução (BACON, 1973). No frontispício da primeira edi-
ção do Novum Organum, Bacon colocou as palavras do texto bíblico de Daniel
12,4: “Muitos o esquadrinharão, e o saber se multiplicará”. Portanto, o Deus das
Escrituras não é um Deus distante, indiferente, ou obra do gênio inventivo do
homem. Antes, é um Deus que se revela, dando-se a conhecer.
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conhecimento não é completo nem absolutamente claro, visto que o pecado pôs
seu selo sobre a Criação, obscurecendo o entendimento do homem e, a própria
Natureza perdeu parte da sua eloquência primava.
Contudo, ainda hoje a natureza, é um espelho no qual se refletem as glórias
de Deus. Sem embargo, por causa do pecado, pode-se dizer que este espelho
está deformado. Como é bem sabido, um espelho côncavo reflete as coisas de
uma forma grotesca e distinta de como realmente são (MEETER, s.d., p. 28).
Deus, o mundo e o homem são as três realidades com as quais toda a ciência e toda
filosofia se ocupam (BAVINCK, 1909). Pois bem, se Deus não tivesse primeira-
mente, de forma livre e soberana se revelado (Sl 115,3; Rm 11,33-36) – concedendo
ao homem o universo como meio externo de conhecimento, o qual funciona com
as suas leis próprias e regulares –, toda e qualquer ciência seria impossível.
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Sua criação para o fim proposto por Ele mesmo. “Deus não é mero espectador
do universo que Ele criou; Ele está presente e ativo em todas as partes, como
o fundamento que sustenta tudo e o poder que governa tudo o que existe”
(BOETTNER, s.d., p. 33). A Bíblia atesta este fato amplamente (Vejam-se:
Ne 9,6; At 17,28; Ef 4,6; Cl 1,17; Hb 1,3). Deus faz todas as coisas “conforme
o conselho da Sua vontade” (Ef 1,11; Sl 115,3).
O homem natural pode não saber disso, pode não aceitar e até combater tal
“absurdo”; entretanto, o que o homem pode fazer contra a verdade? (2Co 13,8).
O que são os argumentos que tentam negar a existência de Deus, senão fruto de
uma falsa interpretação da Revelação Geral de Deus?! Calvino (1509-1564), dis-
correndo sobre a revelação de Deus na Natureza, diz: “em toda a arquitetura de
seu universo, Deus nos imprimiu uma clara evidência de sua eterna sabedoria,
munificência e poder; e embora em sua própria natureza nos seja ele invisível,
em certa medida se nos faz visível em suas obras”.
O mundo, portanto, é com razão chamado o espelho da divindade, não porque
haja nele suficiente clareza para que os homens alcancem perfeito conhecimento de
Deus, só pela contemplação do mundo, mas porque ele se faz conhecer os incré-
dulos de tal maneira que tira deles qualquer chance de justificarem sua ignorância.
Para João Calvino (1997, p. 300-301), “mundo foi fundado com esse pro-
pósito, a saber: para que servisse de palco à glória divina”. “[...] este mundo é
semelhante a um teatro no qual o Senhor exibe diante de nós um surpreendente
espetáculo de sua glória” (CALVINO, 1996, p. 63). Ele entende que “o princípio
da religião” que é implantado nos homens é uma das evidências da sua “pree-
minente e celestial sabedoria” (CALVINO, 1999, p. 167).
Em outro lugar, observando que “no coração de todos jaz gravado o senso
da divindade” argumenta que a tentativa humana de negar a Deus nada mais é
do que uma revelação do “senso de divindade que, tão ardentemente, deseja-
riam extinto” (CALVINO, As Institutas, I. 3.1.) Conclui que é impossível haver
verdadeiro ateísmo.
Sem a ação primeira de Deus, não haveria ciência. Graças a Deus, porque Ele
registrou de forma mui santa e sábia as Suas leis (físicas, químicas, termodinâmi-
cas etc.) “no grande livro do mundo” (DESCARTES, 1973). É preciso, contudo,
que não nos detenhamos apenas aí, para que não fiquemos com a menor parte;
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pois, o que disse Blaise Pascal (1623-1662), apesar do exagero de ênfase, tem o
seu lugar: “o Deus dos cristãos não consiste num Deus simplesmente autor de
verdades geométricas e da ordem dos elementos; essa é a porção dos pagãos e
dos epicuristas” (PASCAL, 1973, p. 178).
Dentro de tudo o que foi colocado, surge de forma natural a pergunta: E o
homem, pode entender esta revelação? Pode o homem, como intérprete que é
reconhecer a mensagem unívoca do grande “locutor”, que é Deus?... Creio que a
Ciência nos seus avanços e retrocessos – diferentemente da concepção de Comte
a respeito da ciência – com conexões aqui e ali, tem respondido a estas questões.
Passemos agora, à resposta formal destas indagações.
COSMOVISÃO CRISTÃ
61
positivamente mau (Gn 6,5; 8,21; Mt 7,11). Ainda assim, o pecado não destruiu
a possibilidade da percepção.
O conhecimento humano consiste sempre em uma relação lógica entre sujeito
e objeto; visto que o sujeito só é sujeito para o objeto e, por sua vez, o objeto só
o é para um sujeito, assim, a revelação objetiva reclama alguém e, este alguém
(objeto) só o é, enquanto recebe de forma adequada a revelação.
A razão, como parte da criação divina, é o instrumento de que dispomos,
pela graça de Deus, para descobrir a Sabedoria divina no mundo que nos rodeia
e, portanto, é o principium cognoscendi internum da ciência. Entendemos que o
conhecimento também se dá pela experiência, contudo, cremos que o espírito
humano traz consigo certas categorias que lhe são inerentes, as quais não podem
ser apreendidas pela experiência. A experiência pode ser a fonte de quase todo
o conhecimento, mas não é necessariamente do conhecimento todo.
Concluindo este tópico, reafirmamos que: Deus criou o homem à Sua ima-
gem e semelhança (Gn 1,27), dotando-o de capacidade para receber e interpretar
as impressões da Sua revelação que são demonstradas por meio do universo, da
Sua Criação (Sl 19,1; At 14,17). Toda a Criação de Deus foi realizada de forma
sábia e soberana (Sl 115,3; Pv 3,19: Ef 1,11).
O conhecimento que Deus deseja que tenhamos Dele está revelado nas Escrituras.
Originalmente, Deus se revelou na Criação. Criação é sinônimo de Revelação:
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da História, Deus separou e preparou homens para que registrassem de forma
exata e infalível os Seus desígnios, sendo a Palavra de Deus escrita, dentre outras
coisas, “o corretivo às ideias disformes que pode dar-nos a natureza em seu estado
caído” (MEETER, s.d., p. 28). Por isso, só se considera adequada à revelação de
Deus contida na Bíblia; somente por meio das Escrituras o homem pode ter um
conhecimento de Deus livre de superstições.
COSMOVISÃO CRISTÃ
63
conduzir-nos à adoração (Mt 4,10; Hb 13,15; 1Pe 2,9). A Bíblia foi-nos confiada
a fim de que, mediante a iluminação do Espírito Santo, sejamos conduzidos a
Jesus Cristo (Jo 5,39; Lc 24,27.44), sendo Ele mesmo Quem nos leva ao Pai (Jo
14,6-15; 1Tm 2,5; 1Pe 3,18) e nos dá vida abundante (Jo 10,10; Cl 3,4).
A Bíblia foi registrada para que cumpramos os seus preceitos, dados pelo pró-
prio Deus (Dt 29,29; Js 1,8; 2Tm 3,15, 16; Tg 1,22); ela foi-nos concedida para que
conheçamos o Seu Autor e, conhecendo-O, O adoremos e, adorando-O, mais O
conheçamos (Os 6,3; 2Pe 3,18). Por isso, “ao estudarmos Deus, devemos procu-
rar ser conduzidos a Ele. A revelação nos foi dada com esse propósito e devemos
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sendo o que sempre foi: O Senhor. Todavia graças a Deus, Ele soberanamente Se
Revelou a Si mesmo, para que possamos conhecê-Lo e render-Lhe toda a glória
que somente a Ele é devida. Em Cristo nós somos confrontados com o clímax e
plenitude da revelação de Deus (Jo 14,9-11; 10,30; Cl 1,19; 2,9; Hb 1,1-4). “No
Filho temos a revelação última de Deus. Da mesma forma como é verdade que
quem viu o Filho viu o Pai, também é verdade que quem não viu o Filho, não
viu o Pai” (HENDRIKSEN, 2004, p. 657). Jesus Cristo é a medida da revelação!
Para nós Reformados, entretanto, é a Palavra de Deus que deve dirigir toda
a nossa abordagem e interpretação teológica, bem como de toda a realidade: O
Espírito por meio da Palavra é Quem deve nos guiar à correta interpretação da
Revelação. Na Escritura temos o nosso padrão e apelo final.
6) A Fé como Conhecimento
A razão mesmo estigmatizada pelo pecado, que se mostra tão eficaz nas coisas
naturais, perde-se diante do mistério de Deus revelado em Cristo e, também
diante da Revelação geral na Natureza. As suas pressuposições, ainda que pos-
sam ter algo de verdadeiro, se perdem diante da complexidade do mundo real:
“As mentes humanas são cegas a essa luz, a qual resplandece em todas as coisas
criadas, até que sejam iluminadas pelo Espírito de Deus e comecem a compre-
ender, pela fé, que jamais poderão entendê-lo de outra forma” (CALVINO, 1997,
p. 299). A graça, portanto, antecede à fé e ao conhecimento.
A graça de Deus é eminentemente socializante; isto porque não há um homem
sequer que dela não necessite e, mesmo sem saber, dela não participe. Todos sem
COSMOVISÃO CRISTÃ
65
Estou inteiramente de acordo com Packer, quando ele diz que “conhecer a
Deus é uma questão de graça” (PACKER, 2005, p. 33). O conteúdo do conheci-
mento como a sua possibilidade estão em Deus, que livre e soberanamente Se
revela e oferece a nós pecadores, de forma graciosa por meio da Sua Palavra.
Somente pela graça da autorrevelação de Deus é que podemos nos relacionar com
Deus. O “conhecimento” intelectual e abstrato de um Deus distante, se possível
fosse fora da Revelação Geral, o que não é, não redundaria em relacionamento
afetivo e de confiança. Nós podemos conhecer a Deus subjetivamente porque
Ele Se deu a conhecer objetivamente em Sua Palavra e, plenamente, dentro do
Seu propósito, em Cristo Jesus, o Deus encarnado (Cl 1,19; 2,9).
A Revelação de Deus não indica necessariamente a apreensão subjetiva por
parte do homem; contudo, para que haja uma satisfação em termos de obje-
tivo, faz-se necessário que o homem, a quem Deus dirige especialmente a Sua
revelação, tenha, ao menos potencialmente, condições de apreendê-la. A reve-
lação de Deus exige uma resposta. Como poderá o homem captar esta revelação
e responder de forma satisfatória? Em outras palavras: qual seria o principium
cognoscendi internum?
O nome cristão, aprendido na Bíblia para esta resposta é fé. Assim como a
revelação, a fé é resultado da graça salvadora de Deus (At 15,11; 18,27; Ef 2,8;
Fp 1,29); por isso, a totalidade do conhecimento que podemos ter, repousa na
graça de Deus. Daí que, por melhores que sejam os argumentos que possamos
alinhar para explicar a nossa fé, não conseguimos o nosso intento.
Não que a fé seja irracional, como sugeriram Kierkegaard (1813-1855) e
Miguel de Unamuno (1864-1936), entre tantos outros; o que ocorre, é que a fé
não pode ser limitada pelos cânones da razão; ela é suprarracional; apesar de
caminhar durante algum tempo lado a lado com a razão, ela, agora, acompa-
nhada da esperança, lança-se ao infinito (1Co 15,19; Hb 1,1). A fé não é irracional;
ela respalda-se em Deus e na Sua promessa. Foi isto que fez Abraão, conforme
escreve Paulo: “não duvidou da promessa de Deus, por incredulidade; mas, pela
fé, se fortaleceu, dando glória a Deus, estando plenamente convicto de que ele
era poderoso para cumprir o que prometera” (Rm 4,20.21).
A fé exige conhecimento da Palavra de Deus. A fé é uma relação de confiança;
como acreditar em alguém que não conhecemos? A fé consiste no conhecimento do
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Pai e do Filho pelo testemunho do Espírito (Jo 17,3; Jo 15,26; 16,13-14). “A fé não
consiste na ignorância, mas no conhecimento; e este conhecimento há de ser não
somente de Deus, mas também de Sua divina vontade” (CALVINO, As Institutas, III.
2.2.). É impossível crer e nos relacionar pessoalmente com um Deus desconhecido.
A fé é gerada em nós pelo Espírito por intermédio da Palavra (Rm 10,17);
ela é a boa obra do Espírito Santo em nós, que age fundamentado numa reali-
dade histórica irrefutável: a obra de Cristo no Calvário. “A fé verdadeira é aquela
que ouve a Palavra de Deus e descansa em Sua promessa” (CALVINO, 1997, p.
318). A Palavra e a fé só poderão ser entendidas mediante a aceitação da graça
de Deus, onde tudo começa.
Temos a graça pela obra de Cristo, para que pela graça possamos conhecer
a Deus e, assim, possamos saber “qual a esperança do seu chamamento, qual a
riqueza do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia do seu poder; o
qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos, e fazendo-o sentar à
sua direita nos lugares celestiais” (Ef 1,18-20), vivendo, a partir daí, pela graça e
para a glória de Deus (1Co 10,31).
É somente pela graça, mediante a fé que podemos nos apropriar da Revelação
com atos e palavras feita por Deus. Somente a fé, como efeito da graça, nos faz
perceber a Revelação, abrindo os nossos olhos para a Palavra de Deus (Sl 119,18;
Ef 1,15-18). Deste modo, Deus nos ilumina para que possamos entender a Sua
Revelação nas Escrituras.
A Revelação antecede à fé (Rm 10,17; Gl 3,3.5); e, pela Revelação, mediante a
iluminação do Espírito, o homem é subjugado por Deus, respondendo positiva-
mente com fé. A resposta do homem é apenas uma evidência da eleição de Deus (Jo
COSMOVISÃO CRISTÃ
67
15,16; At 3,16; 15,11; 16,14; 18,27; Ef 2,8; Fp 2,12.13); Deus Se revela, fala por meio
da Palavra regenerando o pecador, concedendo-lhe fé para que, agora, salvo pela
graça, ande nas boas obras preparadas por Deus de antemão, para nós (Cf. Ef. 2,10).
Entretanto, no nosso relacionamento com Deus, deparamo-nos com um
paradoxo: Quanto mais conhecemos a Deus, temos, por um lado, um maior
discernimento de nossa pecaminosidade e, por outro, uma maior consciência
da insondabilidade e infinitude de Deus. Paulo, escrevendo aos romanos, após
falar de um assunto difícil, exulta:
Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do conhecimento
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cisamos sempre ter em mente. Para conhecer qualquer coisa exaustiva-
mente, precisaríamos ser infinitos, como Deus. Mesmo na vida eterna
não seremos assim (SCHAEFFER, 1981, p. 143).
COSMOVISÃO CRISTÃ
69
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
70
É certo que Calvino (1998, p. 112) ressalta o ensino bíblico de que “toda lei, em suma, outra
coisa não era senão uma multiforme variedade de exercícios nos quais os adoradores eram
guiados, pela mão, a Cristo”. Contudo, é possível identificar aqui que ele jamais dissociou o
papel da educação na formação do homem completo como instrumento para conduzi-lo
a estágios mais excelentes. [...] Jong (1967, p. 173) afirma que, para tanto, “Calvino entendia
como indispensável um ‘catecismo definido’ ou manual de instruções”. Nem os pais e nem os
pastores deveriam instruir segundo suas próprias intuições ou ao seu bel-prazer.
Além da relação entre a teologia de Calvino e seus ideais educacionais, é possível per-
ceber quais as diretrizes estabelecidas pelo reformador para formar o homem educado,
capaz de desenvolver suas potencialidades. O homem, em sua visão, deveria ser letrado.
[...] O modelo de cultura que o movimento da Reforma utiliza para organizar as suas esco-
las é o humanístico, baseado na prioridade das línguas, com centro na educação gramati-
cal. Seguindo a linha dos reformadores, Calvino está convencido de que a educação:
Está ligada a uma cosmovisão que prega a salvação por meio de uma fé
nas Escrituras como forma inevitável de se conhecer a Deus e ao homem.
Não se tratava mais de uma fé em uma Igreja que tomou para si um po-
der que só o Evangelho possuiria, mas da fé concebida como o poder
de intermediação entre o homem e o seu criador (TOLEDO, 2006, p. 2).
[...] O papel da educação para Calvino se alia à etimologia da palavra educação, do latim edu-
cere. Dessa forma, educar significava tirar de dentro para fora, ou seja, “desenvolver as poten-
cialidades internas do homem” (TOLEDO, 2006, p. 5). Calvino via a educação como o modo
de tirar o conhecimento das coisas que dormitavam na alma do homem, conhecimento que
lhe foi inferido por ser o homem imagem e semelhança de Deus, mas que foi obscurecido
pelo pecado. Ou nas palavras do próprio Calvino (2006a, p. 14): “[...] assim de mui excelente
razão nos compele a confessar que o princípio lhe é ingênito no entendimento humano”.
O fim da educação seria, pelo estudo dos textos sagrados, ensinar ao homem a sua essência
divina e sua relação com Deus, o principal objeto de Estudo (TOLEDO, 2006, p. 5). A queda fez
que o homem deixasse de reconhecer sua semelhança com o Criador, e a educação, confor-
me Toledo (2006, p. 5), serviria para reascender no homem esse conhecimento:
As Escrituras revelam aquilo que é necessário ao homem conhecer sobre o Criador e a
natureza. Por isso, quando se fala em educação, para Calvino, fala-se de uma educação
voltada para resgatar na alma sua essência divina; ela serve, de certa forma, para auxiliar
a despertar no homem a sua verdadeira natureza. Isso o conduzirá à prática da piedade
e ao temor sincero a Deus.
Como Calvino não escreveu textos que fossem diretamente voltados para a educação,
os objetivos educacionais para ele partem de sua proposta teológica do ser humano,
que, devidamente iluminado pelo Espírito Santo, poderia chegar a ser um homem edu-
cado. É bom lembrar, como salienta Toledo (2006, p. 6), que “a iluminação do Espírito
Santo não poderia chegar àqueles que estavam desviados da Palavra ou que eram igno-
rantes a ela, mas apenas aos verdadeiros crentes”. João Calvino reconhecia que, na Bíblia,
Deus se revelou de modo único e especial, por isso era imprescindível a todo cristão o
conhecimento adequado do seu conteúdo. Não apenas isso: o homem educado deveria
também conhecer a natureza, “já que por meio dela Deus se revelava a todos indistinta-
mente” (TOLEDO, 2006, p. 7). [...].
Fonte: LOPES (2009, p. 35-44, on-line)1.
72
1. Vimos que Sire (2002, p. 179) define Cosmovisão como “um compromisso, uma
orientação fundamental do coração, que pode ser expresso como uma estória
ou um conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras,
parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente
ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a consti-
tuição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos
movemos e existimos”. A respeito disso, é correto afirmar que:
I. Uma cosmovisão é composta de um conjunto de pressuposições básicas,
mais ou menos consistentes umas com as outras, mais ou menos verdadeiras.
II. Cosmovisão é compromisso de fé e prática para os cristãos.
III. A Cosmovisão é inerente ao homem. Todos nós temos. No entanto, a cos-
movisão, consciente ou não, tem uma matriz ontológica que traz consequ-
ências epistemológicas, que são determinantes para a nossa vida e conduta.
IV. Cosmovisão é um conjunto de suposições e crenças que o homem utiliza
para interpretar e formar opiniões acerca da sua humanidade, propósito de
vida, deveres no mundo, questões sociais, entre outros.
Assinale a alternativa correta:
a) I e II, apenas.
b) II e III, apenas.
c) I, II, III e IV.
d) I, III, IV, apenas.
e) III e IV.
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77
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XVI.pdf>. Acesso em: 28 jun. 2018.
GABARITO
1. C.
2. A.
3. Orientação de resposta: Etimologicamente, cosmovisão refere-se a um ponto
de vista de alguém sobre algo. Na teologia, diz respeito à “estrutura abrangente
das crenças básicas de alguém sobre coisas”. Trata-se de “um conjunto de pre-
missas que orientam a interpretação de toda a experiência com Deus, comigo
e com o próximo”. Então, a cosmovisão, para o homem, age como um guia,
pois é por meio dela que avaliamos determinados assuntos, eventos, temas e
estruturas de nosso tempo e civilização. O homem tem a necessidade de uma
perspectiva condutora.
4. D.
5. Orientação de resposta: muitos atributos do caráter de Deus, em especial os mo-
rais, assemelham-se às qualidades do homem, uma vez que fomos feitos “à ima-
gem e semelhança” do criador. Todavia, os atributos de Deus são infinitamente
superiores aos nossos, uma vez que Deus é perfeição. Isso quer dizer que temos
a Sua semelhança, no entanto, Ele não possui a nossa. Podemos, por meio dos
Salmos, ter uma ideia do caráter e da benignidade de Deus:
“1- Louvai ao Senhor, porque ele é bom, porque a sua benignidade dura para
sempre” (Salmos 107:1).
“4 - Porque tu não és um Deus que tenha prazer na iniquidade, nem contigo ha-
bitará o mal. 5 - Os loucos não pararão à tua vista; odeias a todos os que praticam
a maldade” (Salmos 5:4-5).
“4 - Porque a palavra do Senhor é reta, e todas as suas obras são fiéis. 5 - Ele ama
a justiça e o juízo; a terra está cheia da bondade do Senhor” (Salmos 33: 4-5).
Sabemos que o caráter de alguém tem que ver com sua palavra. O caráter divino,
por sua vez, manifesta-se nas Escrituras. Assim, por meio dos Salmos, aprende-
mos mais de Deus e de Seus atributos.
Professor Dr. Hermisten M. P. Costa
HOMEM: IMAGEM E
II
UNIDADE
SEMELHANÇA DE DEUS
Objetivos de Aprendizagem
■ Entender como se deu a criação do homem à imagem e semelhança
de Deus e reconhecer a igualdade entre o homem e a mulher.
■ Conceituar pecado; reconhecer os motivos da interrupção da
comunhão com Deus a partir do pecado e entender os motivos que
leva o homem à restauração pela graça de Cristo.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A Narrativa Bíblica
■ O Homem Caído: a imagem desfigurada
83
INTRODUÇÃO
detalhes a respeito Daquele que, mediante a Sua Palavra, faz com que do nada
surja a vida, cria o universo, estabelece suas leis próprias e avalia a Sua criação
como boa. Moisés apenas apresenta o Deus Todo-Poderoso, exercitando o Seu
poder de forma criadora, segundo o Seu eterno propósito.
Deus existe; este é o fato pressuposto em toda a narrativa da Criação. Deus
cria segundo a Sua Palavra, e isto nos enche de admiração e reverente temor: a
Palavra de Deus é o verbo criador que manifesta a determinação e o poder de
Deus (Gn 1,1.26,27; Sl 33,6-9; Jo 1,1-3; Hb 11,3), o Qual criou as coisas com
sabedoria (Pv 3,19).
Sendo assim, convido você, caro(a) aluno(a), a uma leitura atenta acerca dos
conceitos que serão apresentados.
Boa leitura!
Introdução
84 UNIDADE II
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A NARRATIVA BÍBLICA
A Narrativa Bíblica
86 UNIDADE II
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
– Salmo 90,2: Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o
mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus.
– Salmo 102,25: Em tempos remotos, lançaste os fundamentos da terra; e
os céus são obra das tuas mãos.
– Salmo 148,1-5: Aleluia! Louvai ao SENHOR do alto dos céus, louvai-o
nas alturas. Louvai-o, todos os seus anjos; louvai-o, todas as suas legiões
celestes. Louvai-o, sol e lua; louvai-o, todas as estrelas luzentes. Louvai-o,
céus dos céus e as águas que estão acima do firmamento. Louvem o nome
do SENHOR, pois mandou ele, e foram criados.
– Mateus 19,4-5: Então, respondeu ele: Não tendes lido que o Criador,
desde o princípio, os fez homem e mulher e que disse: Por esta causa
deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois
uma só carne?
– Lucas 3,38: Cainã, filho de Enos, Enos, filho de Sete, e este, filho de Adão,
filho de Deus.
– João 1,1-5: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo
era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas
por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava
nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as tre-
vas não prevaleceram contra ela.
– Romanos 1,20,25: Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu
eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reco-
nhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das
coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis (...)
pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo
a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!
– Colossenses: 1,16-17: pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus
e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias,
quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para
ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste.
– Hebreus 1,1-2: Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas
maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo.
– Apocalipse 4,11: Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a
honra e o poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua
vontade vieram a existir e foram criadas.
A Narrativa Bíblica
88 UNIDADE II
A Escritura Sagrada foi nos dada com propósitos específicos. Dentro destes pro-
pósitos ela é suficiente e eficaz. Sabemos, por exemplo, que a Bíblia não tem a
pretensão de fazer ciência. Ela não é um manual científico que pretenda ensinar-
-nos a respeito de Química, Física, Biologia, Botânica, Astronomia etc. Entretanto,
cremos que o que ela diz no campo científico. E ela o diz sempre dentro de seu
propósito existencial-redentor-escatólico – como em qualquer outro, é a ver-
dade do ponto de vista fenomenológico, não havendo divergência real entre a
genuína ciência e a correta interpretação da Bíblia, já que Deus é o Senhor de
toda a verdade.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O próprio Calvino (1981) destacou isso quando comentando, Gênesis 1,14,
disse: “É necessário relembrar, que Moisés não fala com agudez filosófica sobre
os mistérios ocultos, porém relata aquelas coisas que em toda parte observou, e
que igualmente são comuns aos homens simples” (CALVINO, 1981, p. 84). Ou
seja, Moisés, inspirado por Deus, escreveu do ponto de vista de como os fenô-
menos são percebidos, sem a preocupação – já que este não era o seu objetivo
– de registrar com terminologia científica os fatos. Acrescentaríamos: na hipó-
tese de Moisés ter escrito conforme os padrões científicos de sua época – o que de
fato não fez, sendo isso extremamente impressionante se considerarmos que ele
teve uma formação primorosa dentro dos moldes egípcios e conseguiu romper
com ela – certamente o que dissesse seria ridicularizado hoje por ser conside-
rado fruto de uma concepção pré-científica.
Por outro lado, se redigisse o relato da Criação de forma científica abso-
luta, que certamente não era a dos egípcios e, também, não é a nossa, pergunto:
entenderíamos hoje o que ele teria dito? A resposta é não. As Escrituras conti-
nuariam sendo ridicularizadas, nesse caso, simplesmente pela nossa ignorância
científica. A linguagem descritiva dos fatos conforme se apresentam à nossa per-
cepção, é o melhor modo de tornar algo compreensível a todas as épocas. Assim,
Deus designou-se fazer e o fez.
A Narrativa Bíblica
90 UNIDADE II
Portanto, nós não temos medo dos fatos porque sabemos que os fatos são de
Deus. Nem temos medo de pensar, porque sabemos que toda verdade é verdade
de Deus. A razão corretamente conduzida e o exercício da genuína ciência não
oferecem perigo à fé, antes, são suas aliadas.
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Charles Hodge (1797-1878), um dos grandes teólogos norte-americanos do
século XIX, escreveu:
Ele [Deus] não ensinou astronomia ou química aos homens, porém Ele
deu-lhes os fatos externos sobre os quais aquelas ciências são constru-
ídas. Tampouco ensinou-nos teologia sistemática, porém Ele deu-nos
na Bíblia as verdades que, propriamente compreendidas e organizadas,
constituem a ciência da Teologia (HODGE, 1986, p. 3).
“A questão: quem é homem? Contém um mistério que não pode ser explicado
pelo próprio homem” (DOOYEWEERD, 2010, p. 11).
O Salmo 8 exalta a majestade do nome de Deus manifesta na Criação. Aliás,
a majestade de Deus e o seu nome são, aqui, poeticamente, sinônimos (Sl 8,1).
É um hino que de forma analítica, por meio da Criação e do homem em espe-
cial, dignifica a majestade de Deus. Este salmo em sua brevidade e simplicidade
lírica é como se fosse, ao Deus criador, hino de glória.
É possível que Davi tenha composto este Salmo na juventude, quando era
apenas um pastor de ovelhas, quando as suas lutas eram bastante complexas na sim-
plicidade de sua vida. Nesta fase, ele certamente passava muitas noites dormindo
ao relento, contemplando as estrelas no firmamento e refletindo sobre o poder de
Deus. Esta mesma fé amadurecida pelas experiências com o Senhor o acompanhará.
Numa outra circunstância, já mais maduro, ungido pelo rei, Davi foge por-
que Saul deseja matá-lo. Nessa ocasião pode, mesmo angustiado, experimentar
a sensação de ver diante de seus olhos a imensidão do firmamento diante dos
seus olhos e refletir sobre ele. “Ó SENHOR, Senhor nosso, quão magnífico em
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toda a terra é o teu nome! Pois expuseste nos céus a tua majestade. (...) Quando
contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabele-
ceste” (Sl 8,1.3). O salmista, à noite, tendo o céu estrelado diante de si, contempla
parte da criação e exulta demonstrando que em toda a terra o nome de Deus é
exaltado. Ele ultrapassa a visão apenas local de Israel, para reconhecer que o tes-
temunho de Deus na Criação se estende a toda a terra (Sl 8,1).
O salmista admite que reconhecimento da grandeza de Deus só se deu por
causa da revelação de Deus na Criação: “Pois expuseste nos céus a tua majestade” (Sl
8,1). Argumentando de forma espacialmente dedutiva, faz uma pergunta retórica:
“Que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o visites?” (Sl 8,4).
Davi parte de um princípio óbvio para nós cristãos: Deus é o Criador do universo
e também do homem. Esta dimensão jamais alcançada pela filosofia grega oferece-
-nos uma cosmovisão diferente: O homem criado por Deus não é um mero detalhe
fruto de um processo cósmico-evolutivo, antes é uma criação especial de Deus.
Assim mesmo, a sensação é de pequenez diante do vasto universo, do qual
posso contemplar, ainda hoje, uma minúscula parte. O sistema solar é apenas
um pequeno ponto no universo do qual apenas conhecemos limitadamente. E,
mesmo assim, a Terra, o minúsculo planeta onde vivemos, é o centro significa-
tivo do universo, como acentua Bavinck (2012):
A Escritura nos fala pouco sobre a criação dos céus e dos anjos, limitando-
-se primariamente à Terra. Em um sentido astronômico a Terra pode ser
pequena e insignificante. Em matéria de massa e peso ela pode ser excedi-
da por centenas de planetas, sóis e estrelas. Mas em um sentido religioso e
moral ela é o centro do universo. A Terra e somente a Terra foi escolhida
para ser a morada do homem. Ela foi escolhida para ser a arena na qual a
A Narrativa Bíblica
92 UNIDADE II
grande batalha será travada contra as forças do mal. Ela foi escolhida para
ser o lugar do estabelecimento do reino dos céus (BAVINCK, 2012).
No entanto, até onde a ciência pôde ir, não há nada mais complexo do que o
cérebro humano, ainda que este não seja o aspecto mais amplo e completo do
ser humano criado à imagem de Deus. Barth (2010), com propriedade, escreveu
a respeito do homem, dizendo que “ele não seria homem se não fosse a imagem
de Deus. Ele é a imagem de Deus pelo fato de que ele é homem” (BARTH, 2010).
O homem revela mais sobre Deus do que toda a criação.
Bavinck (2012) expressa esse conceito de forma quase poética, porém, ampla-
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mente bíblica:
A essência da natureza humana é seu ser [criado] à imagem de Deus.
Todo o mundo é uma revelação de Deus, um espelho de seus atributos
e perfeições. Toda criatura, ao seu próprio modo e grau, é a incorpo-
ração de um pensamento divino. Mas, entre as criaturas, apenas o ser
humano é a imagem de Deus, a mais exaltada e mais rica autorrevela-
ção de Deus e, consequentemente, a cabeça e a coroa de toda a criação,
a imago Dei e o epítome da natureza. Embora todas as criaturas exibam
vestígios de Deus, somente o ser humano é a imagem de Deus. Ele in-
teiro é essa imagem, alma e corpo, em suas faculdades e capacidades,
em todas as condições e relações. O ser humano é a imagem de Deus
porque, e na medida em que, é verdadeiramente humano; e é verdadei-
ro e essencialmente humano porque, e na medida em que, é a imagem
de Deus (BAVINCK, 2012, p. 564).
A Narrativa Bíblica
94 UNIDADE II
partir de uma referência material. “O homem é um enigma cuja solução só pode ser
encontrada em Deus” (BAVINCK, 2001, p. 24). Deus revelou de forma magnífica
o homem ao homem. Se a antropologia pode ser definida como a “autocompreen-
são do homem”, devemos entender que esta “autocompreensão” é um dom da graça
que começa pelo conhecimento do Deus que se revela e nos capacita a conhecê-lo.
Sem a consideração da Queda e de suas implicações, como as Escrituras nos apre-
sentam, não há como obtermos um conhecimento adequado do homem.
O salmista reverentemente admira-se do fato de Deus se lembrar de nós
(Sl 8,4). Tendo o sentido de “prestar atenção”, sustentar, cuidar, manifestar a
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sua graça ou juízo. Admira-se também de Deus nos visitar. A palavra pode ter
o sentido de passar em revista, observar (Ex 3,16), supervisionar, vir ao encon-
tro. O significado no texto é de uma visita providente, abençoadora e salvadora
(Gn 21,1; 50,24-25/Ex 13,19; Ex 4,31; Sl 17,3; 65,9; 80,15; 106,4). Jó também, de
forma poética, mas, com sentimentos confusos, indaga: “Que é o homem, para
que tanto o estimes, e ponhas nele o teu cuidado (ble) (leb), 18 e cada manhã o
visites (dq;P)’ (paqad), e cada momento o ponhas à prova?” (Jó 7.17-18). Deus
considera tanto o homem que tem o seu coração nele, cuidando, protegendo e
guardando. Ainda que na intensidade da angústia de Jó isso o incomode cir-
cunstancialmente − visto que o cuidado, dentro desta perspectiva soa como uma
“inspeção” − o fato é que Deus cuida atentamente de seu povo (Sl 144,3.4.15).
Retornando ao Salmo 8, inclino-me a pensar em duas direções:
a) Entre os versos 4 e 5, ainda que o salmista não diga isso explicitamente, está
em questão o problema do pecado. O lembrar de e visitar de Deus (verso
4) não é algo tão admirável considerando a posição do homem descrita no
verso 5. Contudo, ela é espantosa se levarmos em conta o pecado humano
e a consequente alienação de Deus. “Fizeste-o, no entanto, por um pouco,
menor do que Deus (H;Ala)/ e de glória e de honra o coroaste” (Sl 8,5).
Mais do que a imensidão do universo, o que realmente conta é o valor e a
dignidade atribuída ao homem: Deus o criou à sua imagem. Ele tem carac-
terísticas espirituais, intelectuais e morais semelhantes às de Deus, apenas
em grau adequado à criatura finita. No pequenino homem em relação à
imensidão do universo, temos mais de Deus no que em toda a Criação.
Somente o homem foi criado à imagem de seu Criador. No entanto, isto se
torna mais difícil de perceber devido ao pecado que ainda que não tenha
aniquilado esta imagem, deformou-a gravemente. O nome aplicado a Deus
(H;Ala/) pode referir-se, conforme muitos documentos antigos e interpre-
tação de Hebreus, aos seres angelicais (Hb 2.6-8). “Por um pouco” (j[;m.)
(me`at)(5) pode significar “por pouco tempo” (KISTEMAKER, 2003, p.
94-95) ainda que não necessariamente.
A ideia básica então, conforme interpreto, é que o homem foi criado, em
certos aspectos pouco abaixo dos anjos. O pecado, no entanto, trouxe a
inversão sugerida no verso 4. Contudo, em Jesus Cristo temos a verda-
deira restauração de nossa humanidade e, segundo creio, aperfeiçoada na
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A Narrativa Bíblica
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Deus está prestes a criar o homem Ele primeiro conferencia consigo
mesmo e decide fazer o homem à Sua imagem e semelhança. Isso indi-
ca que especialmente a criação do homem repousa sobre a deliberação,
sobre a sabedoria, bondade e onipotência de Deus. (...) O conselho e a
decisão de Deus são mais claramente manifestos na criação do homem
do que na criação de todas as outras criaturas.
Diante dessa afirmação temos o decreto Trinitário que antecede o tempo e, que
agora, se executa historicamente conforme o eternamente planejado. O “Façamos”
de Deus, conforme usado em Gênesis 1,26, (he&A(an) (na’aseh), o qual, imperfeito,
indica que o homem foi criado ou será criado após deliberação ou consulta,
como explica Calvino: “Até aqui Deus foi introduzido simplesmente a ordenar;
agora, quando se aproxima da mais excelente de suas obras, ele passa à consulta”
(CALVINO, 1996, p. 91). Calvino diz que Deus poderia ter criado o homem orde-
nando pela sua simples palavra, o que desejasse que fosse feito, “porém prefere
comunicar este atributo à excelência do homem: que ele, de certa maneira, faz
uma consulta concernente à criação” (CALVINO, 1996, p. 91). “A que ou quem
Deus consulta?”, perguntaríamos. Deus consulta a si mesmo:
Mas desde que o Senhor não necessita de conselheiro, não há dúvida de que
ele consultou a si mesmo. (...) Deus não convoca conselheiro alheio; daí nós
inferimos que ele acha em si mesmo alguma coisa distinta; como, na verda-
de, sua eterna sabedoria e poder residem nele (CALVINO, 1996, p. 92).
O fato de Deus ter criado o homem após deliberação, tem dois objetivos na con-
cepção de Calvino: 1) nos ensinar que o próprio Deus se encarregou de fazer
algo grande e maravilhoso; 2) dirigir a nossa atenção para a dignidade de nossa
natureza. Assim, ele conclui:
mordial entre as criaturas; mas é uma nobreza muito mais exaltada que ele
portasse semelhança com seu Criador, como um filho com seu pai. Deve-
ras não era possível que Deus agisse mais liberalmente para com o homem
senão lhe imprimindo sua própria glória, assim fazendo-o, por assim dizer,
uma imagem viva da sabedoria e justiça divinas (CALVINO, 2006, p. 160).
Em Adão, temos uma demonstração eloquente da justiça divina: “Adão foi inicial-
mente criado à imagem de Deus, para que pudesse refletir, como por um espelho,
a justiça divina” (CALVINO, 1998, p. 142). “Façamos”. “É a Trindade quem deli-
bera, sem qualquer intervenção ou consulta feita aos anjos” (KEVAN, 1976, p. 84)
é a execução autodeliberada de Deus em criar o homem. Deste modo, na criação
em geral e do homem em especial, encontramos a concretização precisa do decreto
eterno de Deus. O homem é o produto da vontade de Deus. “Tudo quanto aprouve
ao Senhor ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135,6).
Assim, o homem não foi criado por um insensível acaso, por uma catástrofe cós-
mica ou por uma complicada mistura de gases e matérias. O homem foi formado
por Deus de acordo com a Sua sábia e soberana vontade (Gn 2,7; Rm 11,33-36).
“Louvem o nome do Senhor, pois mandou ele, e foram criados” (Sl 148,5). O Poder
de Deus “é a primeira coisa evidente na história da criação” (Gn 1,1). E a criação
do nada nos fala de seu infinito e incompreensível poder.
Davi contemplando a majestosa criação de Deus escreveu: “Graças te dou,
visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste; as suas obras
são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem” (Sl 139,14). Embora a Bíblia
não declare o método usado por Deus, à ideia de uma evolução teísta está fora
de questão. O texto de Gn 1,26-27 implica na criação do homem não a partir de
seres criados, nem como resultado de uma suposta evolução de seres inferiores.
A Narrativa Bíblica
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da imagem divina; que, na criação, cada uma das Pessoas divinas realizou uma
obra distinta; e, por fim, que a criação do homem com referência ao seu destino
mais elevado foi efetuada pela entrada do sopro de Deus (KUYPER, 2010, p. 73).
Agostinho (354-430), no final do 4º século (c. 395-398), extasiado com a
criação de Deus, escreveu de modo poético:
De que modo, porém, criastes o céu e a terra, e qual foi a máquina de
que Vos servistes para esta obra tão imensa, se não procedestes como
o artífice que forma um corpo doutro corpo, impondo-lhe, segundo a
concepção da sua mente vigorosa, a imagem que vê em si mesma, com
os olhos do espírito? Donde lhe viria este poder, se Vós lhe não tivésseis
criado a imaginação?
O artífice impõe a forma à matéria – a qual já existia e já a continha –
isto é, à terra, ou à pedra, ou à madeira ou ao ouro ou a qualquer coisa
material. Mas donde proviriam estes seres, se os não tivésseis criado?
(...). Mas de que modo as fazeis? Como fizestes, meu Deus, o céu e a
terra? Sem dúvida, não fizestes o céu e a terra no céu ou na terra, nem
no ar ou nas águas, porque também estes pertencem ao céu e à terra.
Nem criastes o Universo no Universo, porque, antes de o criardes, não
havia espaço, onde pudesse existir. Nem tínheis à mão matéria alguma
com que modelásseis o céu e a terra. Nesse caso, donde viria essa maté-
ria que Vós não criáreis e com a qual pudésseis fabricar alguma coisa?
Que criatura existe que não exija a vossa existência?
E mais: Deus delega-lhes poderes para cultivar (db;[‘) (‘abad) (lavrar, servir,
trabalhar o solo) e guardar (rm;v’) (shãmar) (proteger, vigiar, manter as coisas)
o jardim do Éden (Gn 2,15; Gn 2,5; 3,23), validando a sua relação de domínio,
não de exploração e destruição, antes, um cuidado consciente, responsável e pre-
servador da natureza: “Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus
pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo; as aves
do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as sendas dos mares” (Sl 8,6-8).
Aqui o primeiro casal, atendendo ao mandato cultural, em uma atividade
familiar exclusivamente humana, pode desenvolver e aprimorar a sua capacidade
e potencialidades, refletindo a sua condição de imagem e semelhança de Deus.
“Cabe-lhe desenvolver não somente a agricultura, a horticultura e a criação de
animais, mas também, a ciência, a tecnologia e a arte” (HOEKSEMA, 1999, p.
95). Na sequência, continua Hoeksema (1999, p. 95):
Mas o homem ‒ isto é nós mesmos ‒, deve dominar a natureza de tal
modo que seja também seu servo. Devemos preservar os recursos natu-
rais e fazer o melhor uso possível deles. Devemos evitar a erosão do solo,
a destruição temerária das florestas, o uso irresponsável da energia, a po-
luição dos rios e dos lagos e a poluição do ar que respiramos. Devemos
ser mordomos da terra e de tudo o que há nela e promover tudo o que
venha a preservar a sua utilidade e beleza para a glória de Deus.
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mentos e emoções, podendo, assim, dialogar com o seu próximo (Gn 3,6) e com
Deus (Gn 3,9-13). Ser entendido por ele e entender a vontade dele. Portanto,
desde o início estava constituída uma comunidade, já que: “Comunicar é uma
maneira de compreensão mútua” (MAY, 1974, p. 57).
Quando usamos adequadamente dos recursos que Deus nos confiou para
dominar a terra, estamos cumprindo o propósito da criação glorificando a Deus.
É necessário, portanto, que glorifiquemos a Deus em nosso trabalho pela forma
legítima como o executamos. Devemos estar atentos ao fato de que o nosso
domínio está sob o domínio de Deus. A Criação pertence a Deus por direito; a
nós por delegação de Deus (Sl 24,1; 50,10-11; 115,16). Ele mesmo compartilhou
conosco este poder, contudo, não abriu mão dele. Teremos de prestar-lhe contas.
Nesse sentido, ainda que o nosso domínio seja validado, especialmente pelo
avanço da ciência, novos desafios surgem. A plenitude desse domínio é encon-
trado em Cristo Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Algo admirável no
salmo 8 é que o salmista em seu hino começa referindo-se a Deus, glorificando
o nome de Jeová (hwhy), e conclui tornando a ele, testemunhando com júbilo a
magnificência de seu nome em toda a terra: “Ó SENHOR, Senhor nosso, quão
magnífico em toda a terra é o teu nome! Pois expuseste nos céus a tua majestade.
(...) Ó SENHOR, Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o teu nome!”
(Sl 8,1.9). A Criação revela de forma majestosa o nome de Deus. No homem, de
modo especial, tal majestade é vista de forma ainda mais eloquente.
Os seres criados por Deus (peixes, aves, animais domésticos, animais selváticos
etc.) o foram conforme as suas respectivas espécies. Por isso, toda a Criação revela
de algum modo, aspectos da glória de Deus, vestígios de seu Autor. O homem, dife-
rentemente, teve o seu modelo no próprio Deus Criador (Gn 1,26; Ef 4,24), sendo
distinto assim, de todo o resto da Criação, partilhando com Deus de uma identidade
desconhecida por todas as outras criaturas visto que somente o homem foi criado
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No homem, como reflexo de seu Criador, Deus deve ser visto, quer em sua natureza
que expressa Deus, quer em seus atos uma vez que ele está comprometido com os inte-
resses de Deus. O seu propósito é glorificar a Deus a quem ama e obedece. Quando
se trata de encontrar uma companheira para o homem com quem ele possa se rela-
cionar de forma pessoal – já que não se encontra em todo o resto da criação uma à
altura - a solução foi uma nova criação. Não mais a partir do pó da terra, mas tirada
da costela de Adão, e transformada por Deus em uma auxiliadora idônea. Adão se
completará nela, passando a haver uma “fusão interpessoal”, “unidade essencial”, cons-
tituindo-se os dois uma só carne (Gn 2,20-24; Mc 10,8), unidos por Deus (Mt 19,6).
A constatação de Deus, é que não seria bom para o homem permanecer só. É
Deus mesmo quem percebe a necessidade ainda imperceptível ao homem. Tudo
na criação era bom, exceto a solidão do homem. “Deus pôs o dedo na única defi-
ciência existente no Paraíso” (WALTKE; FREDERICKS, 2010, p. 104). Os autores
acentuam que a declaração “é altamente enfática. Essencialmente, é ruim para
Adão viver sozinho” (WALTKE; FREDERICKS, 2010, p. 104).
Gênesis inicia-se com uma belíssima descrição do cuidado de Deus para
com suas criaturas:
A Narrativa Bíblica
102 UNIDADE II
O paraíso não era o céu. O homem ainda não havia percebido isso, no entanto,
Deus sabia que a solidão lhe faria mal. À carência vai se tornar evidente: Deus
passou diante de Adão todos os animais para que ele pudesse nominá-los, dis-
tinguir cada uma das espécies.
Nesse contexto, notamos de passagem a inteligência de Adão. Ele possuía
condições de discernir as espécies, exercitando a sua capacidade de julgar, atri-
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buindo nomes que, certamente, estavam relacionados às características essenciais
do animal. Entre toda a Criação, não havia uma companheira à altura do homem.
Como ser sociável já em sua gênese, o homem necessitaria compartilhar conhe-
cimentos e afetos, amar e ser amado. O homem, de fato, foi criado por Deus para
viver em companhia de seus semelhantes, mantendo uma relação de ideias, valo-
res e sentimentos. Se permanecesse sozinho, os seus sentimentos mais profundos
permaneceriam guardados. Não havia para ele um ser igual, da mesma natu-
reza com quem pudesse compartilhar, amar, se emocionar, ensinar, aprender, se
divertir. O mesmo Deus que o criou, propõe-se, então, a criar uma companheira
para sua obra prima (Gn 2,21-22).
Deus como uma espécie de “pai da noiva” (“padrinho de casamento”), leva-a
até o noivo (Gn 2,22). Adão aprovou a nova criação de Deus. As primeiras pala-
vras do homem registradas nas Escrituras se configuram de forma poética: “Esta,
afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, por-
quanto do varão foi tomada” (Gn 2,23). A partir daí, tornou-se possível uma
relação satisfatória para o homem e sua congênere. Ao mesmo tempo, eles pode-
rão, agora, se perpetuar por meio da procriação – como ato que reflete a sua
identidade de amor e complemento – encheriam a terra e sujeitando-a, conforme
a ordem divina (Gn 1,28). O Paraíso está pronto para se expandir.
Palmer Robertson comenta: “O ‘ser uma só carne’ descrito nas Escrituras
não se refere simplesmente aos vários momentos da consumação marital. Em
vez disto, esta unidade descreve a condição permanente de união alcançada pelo
casamento” (PIPER et al., 2006, p. 39).
A mulher foi criada para ser companheira do homem. Deste modo percebe-se
a ideia de complemento. O homem sozinho estaria no paraíso. Contudo per-
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maneceria só, sem uma companheira. O paraíso sem a mulher seria um paraíso
incompleto, insatisfatório. No céu, seremos como os anjos, não iremos nos casar
(Mt 22,30). Adão, no seu estado terreno, ainda precisa do auxílio de uma esposa.
Visto que a mulher completaria o homem, ela se tornaria da mesma forma
incompleta se não cumprisse a missão a ela conferida. Vemos, então, aqui, que
somente os dois juntos, tornando-se uma só carne, encaminham-se para a ple-
nificação como imagem e semelhança de Deus por meio da geração de filhos, a
proliferação da raça humana, e o uso de seus talentos de forma criativa e constru-
tiva. O rabino Cassuto (1883-1951) colocou esse evento de forma poética: “Assim
como a costela se encontra no lado do homem e lhe é anexa, da mesma forma a
boa esposa, a costela de seu esposo, fica a seu lado para ser sua auxiliar-sósia, e
sua alma faz fronteira com a dele” (apud WALTKE; FREDERICKS, 2010, p. 105).
Auxiliadora idônea
“Far-lhe-ei uma auxiliadora (rz<[e)(‘ezer) que lhe seja idônea (dg<n<)(neged)” (Gn
2.18), é a solução encaminhada por Deus.
■ Auxiliadora (rz<[e) (‘ezer):
“Auxiliadora”, “ajudadora”. Esta palavra que nos tempos modernos é com
frequência olhada como se fosse uma diminuição da mulher, tem na reali-
dade, um tom extremamente significativo. Ela é empregada especialmente
para descrever a ação de Deus que vem em socorro do homem. Em sen-
tido lato, Deus mesmo é o ajudador dos pobres (Sl 72,12), dos órfãos (Sl
10,14; Jó 29,12); daqueles que não podem contar com mais ninguém (Sl
A Narrativa Bíblica
104 UNIDADE II
22.11). Por isso, podemos contar com ele nos momentos de enfermidade
(Sl 28.7); nas opressões de inimigos (Sl 54,4) e em períodos de grande
aflição (Sl 86,17). Aqueles que vivem fielmente, buscando seu amparo
nele podem ter a certeza do seu cuidado (Sl 37,40; Sl 89,21), sendo a sua
lei e as suas mãos os seus auxílios (Sl 119,173-175). Por isso, os servos
de Deus suplicam a sua ajuda na batalha e nas aflições (Dt 33,7; Sl 20,2;
30,10; 79,9; 109,26; 119,86).
O rei Uzias tornou-se famoso internacionalmente, porque por trás de
todos os seus empreendimentos, estava à maravilhosa ajuda de Deus
(2Cr 26,15). Por outro lado, quando Israel deixou de confiar no sustento
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de Deus e buscou aliança com os egípcios para a sua proteção, Deus diz
que isso de nada adiantaria contra a Babilônia (Is 30,5.7; 31,3/Os 13,9).
Somos desafiados então, a confiar em Deus, porque Ele cuida de nós; é
o nosso amparo (Sl 33,20; 70,5; 72,12; 115,9-11; 124,8; Is 44,2): de Deus
vem o nosso socorro (Sl 121,1-2). Israel é feliz, porque tem a Deus como
aquele que o socorre (Dt 33,26.29). Felizes são todos aqueles que têm a
Deus por auxílio (Sl 146,5). Devido ao seu socorro, devemos entoar lou-
vores ao Seu nome (Sl 28,7). Dentro das profecias messiânicas de Isaías,
vemos a confiança do Ungido do Senhor. Certo do socorro do Senhor
sabe que não será envergonhado (Is 50,7.9).
Harriet e Gerard fazem uma bela e real aplicação: “Que papel importante
Deus dá a mulher. Ela se coloca ao lado do seu marido como auxilia-
dora, assim como Deus se coloca ao lado de seu povo” (GRONINGEN;
GRONINGEN, 1997, p. 99).
que ele necessitava. “Este traço distintivo da mulher indica que ela não
é menos significativa do que o homem com respeito à pessoa dela. De
maneira igual ao homem, ela traz em si mesma a imagem e semelhança
de Deus” (Gn 1.27). Somente como igual em pessoalidade podia a mu-
lher ‘corresponder’ ao homem (ROBERTSON).
Deus, ao criar a mulher, não à fez inferior. Ela também foi feita conforme a
imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27). A ordem divina quanto ao povoar,
dominar, guardar e cultivar a terra é responsabilidade de ambos. Os dois par-
tilham dos deveres e responsabilidades conferidos por Deus. Sozinhos, ambos
são insuficientes para cumprirem o propósito de Deus em suas vidas. Harriet
e Gerard comentam:
A passagem [Gn 1.26-31] claramente indica que na sua origem a fêmea
foi criada da mesma substância do macho; ela não é inferior quanto
ao seu ser ou pessoa. Ela não é inferior como portadora da imagem,
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106 UNIDADE II
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Significado dos termos: Imagem e Semelhança
Aqui, a título de advertência, devemos frisar que temos algumas pistas bíblicas
– suficientes, é verdade – para nos orientar quanto ao significado da imagem e
semelhança de Deus no homem. No entanto, estas indicações não são sistemáticas
ao ponto de possibilitar um estudo exaustivo e definitivo sobre o assunto. Calvino
afirma que existem alguns teólogos que procedem com um pouco mais de suti-
leza e dizem que a imagem de Deus não é corpórea, contudo, erram ao manterem
“que a imagem de Deus está no corpo do homem, porque sua admirável estrutura
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Assim sendo, o homem não foi feito da mesma substância de Deus, apenas foi-
-lhe concedido alguns de seus atributos. Continuando esta linha de raciocínio,
diz: “Contemplando a glória de Cristo, estamos sendo transformados, como pelo
Espírito do Senhor, Que, certamente, opera em nós, na mesma imagem Sua,
contudo, não assim que nos renda consubstanciais a Deus” (CALVINO, 2006).
O homem foi criado por Deus segundo o próprio modelo divino (Ef 4,24); isto
não significa que o homem seja fisicamente igual a Deus. Deus não tem forma, é
espírito (Jo 4,24), nem significa que seja da mesma essência uma vez que ela é inco-
municável. A imagem e semelhança refletem, em Adão, características próprias por
intermédio das quais ele poderia relacionar-se consigo mesmo, com o mundo e com
Deus. A imagem de Deus é uma precondição essencial para o seu relacionamento
com Deus, e expressa, também, a sua natureza essencial: o homem é o que é por ser a
imagem de Deus: não existiria humanidade senão pelo fato de ser a imagem de Deus.
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108 UNIDADE II
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relacionamento pessoal consciente com o Criador e de reagir a Ele” (ERICKSON,
1997, p. 207). Por conseguinte, o homem não simplesmente possui a imagem de
Deus, como algo externo ou acessório, antes, ele é a própria imagem de Deus.
A Confissão de Westminster (1647), capítulo IX, seção 2, declara:
Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho
e fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-os de inteligência, re-
tidão e perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de
Deus escrita em seus corações e o poder de cumpri-la, mas com a pos-
sibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade de sua própria
vontade, que era mutável. Além dessa escrita em seus corações recebe-
ram o preceito de não comerem da árvore da ciência do bem e do mal;
enquanto obedeceram este preceito, foram felizes em sua comunhão
com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas (CW, 1647, on-line)3.
Em outro lugar: “Do quê concluímos que, de início, a imagem de Deus foi cons-
pícua na luz da mente, na retidão do coração e na saúde de todas as partes do
ser humano” (CALVINO, 1999, p. 579).
→ Liberdade: Adão e Eva dispunham de plena liberdade dentro do que lhe
foi permitido escolher, não havendo em sua natureza a semente do pecado
para influenciá-los à desobediência, ao uso inadequado desta liberdade.
C. S. Lewis, coloca a questão nestes termos:
Se uma coisa é livre para ser boa, também é livre para ser má. E o livre-
-arbítrio foi o que tornou possível o mal. Por que Deus deu então o livre
arbítrio? Porque o livre-arbítrio, apesar de tornar o mal possível, é tam-
bém a única coisa que faz com que todo amor, bondade ou alegria va-
lham a pena. Um mundo de autômatos, de criaturas que trabalhassem
como máquinas, não valeria a pena ser criado (LEWIS, 1979, p. 26).
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110 UNIDADE II
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que Adão ignorava, em seu primeiro estado, aspectos do ser de Deus, tais
como o seu amor redentor, o seu plano salvífico, a sua misericórdia etc.
e imortal que retornará ao seu Criador (Ec 12,7). Van Groningen (1921-
2014) amplia o conceito, dizendo que homem e mulher são
[...] extracósmicos no sentido de que não devem ser considerados só
como matéria que pode funcionar de uma maneira altamente desen-
volvida. Ser espiritual é ser capaz de se comunicar e exercer comunhão
íntima com Deus ‘que é Espírito’ (Jo 4.24) (GRONINGEN, 2002, p. 84).
Desse modo, a Criação estava naturalmente sob o seu domínio. Deus atestou o poder
concedido ao homem, partilhou amorosamente com ele, conforme vimos, o direito
de dar nome (classificando as espécies, revelando um conhecimento das caracterís-
ticas distintivas de cada uma) aos animais (Gn 2,19-20). Por derivação da autoridade
divina, “ao homem competia refletir o governo de Deus mediante um governo real
exercido sobre a terra” (BRUNNER, 2006, p. 102). Consequentemente, o domínio
sobre a Criação não significa destruição e matança, antes o conhecimento e o interesse
próprio pelo que nos fora confiado e o desejo de preservá-lo para poder apresentar
a Deus o resultado de nosso trabalho, feito em obediência à sua vontade, e realizado
para a sua glória. O homem glorifica a Deus quando cumpre o propósito dele para
a sua Criação. Renunciar a esse governo ou transformá-lo em destruição significa
rejeitar algo de característico na sua natureza essencial de imagem de Deus.
A Narrativa Bíblica
112 UNIDADE II
→ Corporeidade: Deus não tem corpo, nem por isso, o corpo humano é
menos importante do que a sua alma. Deus é quem cria o espírito e a
matéria. É por meio de seu corpo que o homem reflete as maravilhas de
ter sido criado à imagem de Deus. Não há no homem uma espirituali-
zação em detrimento do corpo. O homem é um ser integral. A salvação
é integral, assim como será a nossa morada eterna após a nossa ressur-
reição final. Cremos que a imagem de Deus abrange o seu corpo. Jesus
Cristo se encarnou para salvar o homem todo.
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pela mão do Todo-Poderoso e tão constituinte da essência da humanidade
quanto a alma (Jó 10.8-10; Sl 8; 139.13-17; Ec 12.2-7; Is 64.8). Ele é nossa
morada terrena (2Co 5.1), nosso órgão ou instrumento de serviço, nossa
ferramenta (1Co 12.18-26; 2Co 4.7; 1Ts 4.4) e os membros do corpo são as
armas com as quais pelejamos na causa da justiça ou da injustiça (Rm 6.13).
Ele é tão integral e essencialmente parte de nossa humanidade que, embora
tenha sido violentamente arrancado da alma pelo pecado, será reunido com
ele na ressurreição dos mortos. (...) Ora, esse corpo, que está tão intima-
mente ligado à alma, também pertence à imagem de Deus. (...) O corpo
humano é uma parte da imagem de Deus em sua organização como ins-
trumento da alma, em sua perfeição moral, não em sua substância material
como carne. (...) A encarnação de Deus é prova de que os seres humanos,
e não os anjos, são criados à imagem de Deus e que o corpo humano é um
componente essencial dessa imagem (BAVINCK, 2012, p. 568-569).
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o que faz é certo dentro de seus objetivos duvidosos.
Então, podemos concluir que a certeza subjetiva não significa, necessaria-
mente, a correta interpretação dos fatos. Satanás enganou Eva e Adão. Após isso,
fê-los crer que a mentira em que creram era a verdade. Satanás, que tem pretensões
divinas, fez com que Eva o seguisse e Adão seguisse a ela. Ninguém seguiu a Deus.
O caos se instalara. Nossos primeiros pais demonstraram que acompanharam um
novo senhor. As consequências viriam de forma intensamente perceptíveis. A pro-
ximidade de Satanás os afastaria cada vez mais de Deus, e, no tempo próprio, que
não demoraria, eles se esconderiam da presença do Senhor (Gn 3,8-10). A estada
abençoadora e alegre de Deus, no cair da tarde, tornou-se terrificante e assom-
brosa. Deus continuava a ser o mesmo. O homem, no entanto, não.
O pecado nos afasta de Deus, e rejeita a sua presença que, por si só, revela a nossa
condição de desobediência, e torna notória a nossa infelicidade conquistada auto-
nomamente. Na realidade, Eva e Adão desejaram ser independentes. Eles quiseram
ter um conhecimento autônomo, sem Deus. Outrossim, queriam ser iguais a Deus,
autossuficientes. O limite é, com frequência, o atrativo maior do desejado. Entretanto
ao mesmo tempo, o limite é o teste de nossa fidelidade e caminho de crescimento.
Na insinuação diabólica há sempre uma tentativa em apontar que o nosso
caminho, a nossa opção é a melhor. A sua proposta sempre se configurará como
a mais lógica e atraente. A desobediência a Deus de fato é, com frequência, o
caminho que nos parece mais objetivo e prático, além de encontrarmos uma incli-
nação natural para ele. No entanto, a vontade de Deus para nós é que resistamos
a estas tentações e continuemos crendo em Deus e na sua Palavra, seguindo a
rota proposta - o caminho de vida por ele traçado para nós.
O alvo constante de Satanás é a Palavra de Deus. Ele procura tirá-la de nós, ou,
senão, dar-nos uma visão distorcida do seu teor. No seu argumento, sempre há
algo de verdadeiro, contudo a sua dialética, que pode se valer das Escrituras, tem
um referencial totalmente excludente em que ele dilui muito bem a fim de nos
dar a impressão de que a sua conclusão é coerente com a Palavra. Como bem
disse Bonhoeffer (1906-1945), o diabo tenta fazer com que o homem acredite
que pode viver sem ouvir a palavra de Deus, o que é uma fraude.
Com este propósito ele também age por intermédio de falsos mestres, dizen-
do-nos que pode nos levar à verdade plena muito superior à que nos é proposta
pela Escritura. Foi isto que ocorreu na Igreja de Corinto: os falsos mestres usa-
dos por Satanás fizeram muitos crentes acreditarem que o apóstolo Paulo era
desprezível, portanto, não poderia dar-lhes ensinamento profundo. Nós, hoje,
sabemos quanto sofrimento o fato trouxe à Igreja e a Paulo, quanta dor e des-
vios doutrinários e, consequentemente, um distanciamento de Deus ocasionou.
Satanás sempre objetiva nos afastar de Deus e, quando creditamos as suas insi-
nuações, ele consegue o seu objetivo.
O pecado é enganoso, dá-nos a impressão, em um primeiro momento, de
plena e completa satisfação. Ele tende a satisfazer os nossos desejos mais ime-
diatos, muitos deles até legítimos em determinadas circunstâncias – ainda que
nem sempre – no entanto, fornece-nos caminhos que conflitam com a Palavra
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desobedeceram. A chave da questão não está na árvore, antes, na desobediência à
ordem de Deus: “Perguntou-lhe Deus: Quem te fez saber que estavas nu? Comeste
da árvore de que te ordenei (hw'c)' (tsavah) que não comesses?” (Gn 3,11).
Observe a ênfase dada à ordem divina. Somente Deus tem autoridade para
estabelecer leis e critérios para a sua criação. Na realidade, pouco importaria para
Deus o que o homem comeria no Jardim do Éden, exceto pelo fato de ele estabe-
lecer a sua proibição como sinal de sua autoridade absoluta, demarcando o limite
que caracterizaria a obediência ou não do homem e da mulher, suas criaturas.
Apesar de o pecado ter comprometido, de forma gravíssima todas as faculda-
des originais do ser humano, o homem não deixou de ser a imagem e semelhança
de Deus – porque isto implicaria em deixar de ser homem. Nele “esses atribu-
tos ainda estão presentes em ‘pequenas reservas’ remanescentes da sua criação”
(BAVINCK, 2001, p. 18). Contudo, ele se tornou uma imagem desfigurada, per-
vertida, desfocalizada, mais propriamente uma “caricatura” do seu Criador. Em
outras palavras: continuamos sendo homens, ainda que em franca rebelião con-
tra Deus. Perdemos, assim, algo de nossa humanidade.
Agora, a sua maneira de perceber a realidade e responder a ela passou por
uma mudança drástica, sofreu uma virada antropológica. O homem deseja satis-
fazer unicamente seus interesses. A realidade tornou-se egorreferente. A condição
de pecador é a expressão negativa por livre escolha, de ser e existir criado à ima-
gem de Deus. A consciência da escolha torna-se real e relevante na condição de
pecador. Na obediência em amor, não ocorre à possibilidade da desobediência.
O pecado nos identifica como criados à imagem de Deus e, ao mesmo tempo,
como alguém que usou terrivelmente deste privilégio.
O SIGNIFICADO DO PECADO
O PECADO É UNIVERSAL
Todos pecaram. O homem além de não querer, nada pode fazer para deixar de pecar.
Após a queda, a natureza humana se corrompeu total e intensamente, e estendeu essa
contaminação a todas as áreas da sua vida. A transgressão trouxe um quadro de irre-
versibilidade pecaminosa que se perpetuou em todos os seres humanos. Ou seja: o
homem continuou nesta prática (Gn 6,5; 8,21; Is 64,6; Rm 3,9-12). A Escritura nos
fala que o pecado, comum a todos nós (Rm 3,23), nos fez cativos (Jo 8,34; Rm 6,20;
7,23), habitando em nós (Rm 7,17.20), mantendo-nos sob o seu domínio. Negar a
nossa condição de pecadores é negar a própria Palavra de Deus, que diz: “Se disser-
mos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está
em nós” (1Jo 1,10). “Não ser consciente de pecado algum é o pior pecado de todos”.
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A COMUNHÃO COM DEUS FOI INTERROMPIDA
O pecado gerou a separação entre o homem e o Deus Santo, Justo, Puro e Sublime
(Is 59,2). O homem encontra-se em um estado de rebelião contra Deus (Is 65,2).
O pecado como algo universal, trouxe como justo pagamento, a morte de todos:
o salário do pecado é a morte (Rm 5,12; 6,23). “A sentença que foi imposta como
resultado do pecado de Adão inclui mais do que a mera decomposição do corpo.
A palavra ‘morte’, tal como é usada nas Escrituras com referência às consequ-
ências do pecado, inclui todas as formas de mal que são infligidas como castigo
desse pecado. (...) Significa, pois, a miséria eterna do inferno (...) juntamente
com o antegozo dessas misérias que são os males e penalidades que passamos
neste mundo” (BOETTNER, [s.d.], p. 20-21).
A Bíblia nos fala de três tipos de morte decorrentes do pecado:
Morte Física: separação da alma e corpo, pela qual todos os homens − com
exceção dos que estiverem vivos quando Cristo retornar em Glória − terão de
passar (Ec 12,7; 1Co 15,51-52; Hb 9,27). Adão e Eva ao desobedecerem a Deus,
tiveram a sua sentença de morte decretada. Eles morreram espiritualmente de
imediato, e ficaram separados de Deus. Todavia a morte física, que veio também
como consequência do pecado (Gn 2,16-17; 3,11-24; Rm 5,12), não foi imedia-
tamente executada, porque Deus usou de sua graça comum, protelou, adiou a
plena execução da sua sentença (Gn 3,15-19), e concedeu oportunidade para o
arrependimento do homem (Textos que ilustram este princípio: Is 48,9; Jr 7,23-
25; Lc 13,6-9; Rm 2,4; 9,22; 2Pe 3,9). Entretanto, o seu juízo entrou em processo
de concretização, tornando a vida uma caminhada para a morte. A condenação
de Deus indica como Deus leva a sério o pecado.
O pecado passou a ser o selo de todas as suas obras: “Viu o SENHOR que
a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente
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mau ([r;)(ra`) todo desígnio do seu coração” (Gn 6,5). Desde então, o pecado
sujeitou o homem ao juízo histórico e eterno (Mt 5,21-22; 12,36; Rm 5,16; 1Tm
5,24); por isso, parte deste juízo já é manifesto nesta vida (Jo 3,16-18), mas
não totalmente; daí a perplexidade de alguns servos de Deus em determinados
momentos da história, quando o mal parece oprimir e esmagar o bem (Sl 73,1-
14; Hc 1,1-17; Ml 3,14-15).
As consequências não foram simples e visivelmente imediatas. Elas ainda
apareceriam. A natureza humana foi corrompida. O juízo de Deus entrou em
processo de concretização, e tornou a vida uma caminhada para a morte. O
processo de morte entrou em cena na vida humana. A morte soa como algo
anormal, contrária ao nosso desejo de viver. O nosso desejo vislumbra a perpe-
tuidade da vida; os nossos esforços se concentram neste ideal, enquanto que o
nosso organismo caminha de forma cada vez mais célere para o fim. Esta é a ter-
rível geografia da humanidade. “O que distingue os humanos de todas as outras
criaturas é a autoconsciência. Sabemos que estamos vivos e que morreremos, e
não conseguimos deixar de questionar por que a vida é assim e qual é o seu sig-
nificado” (COLSON; FICKETT, 2008, p. 20).
Morte Espiritual: interrupção da comunhão com Deus. O pecado gerou a
quebra de nossa comunhão com Deus. Isto significa a nossa morte espiritual. A
vida está em Deus. Sem comunhão com ele estamos mortos (Is 59,2; Ef 2,1.5; Cl
2,13), expressando em nossa vida, paradoxalmente, as propriedades próprias de
um cadáver. “Uma vez que, de acordo com as Escrituras, o significado mais pro-
fundo da vida é a comunhão com Deus, o significado mais profundo da morte
tem de ser a separação de Deus”, conclui Hoeksema (1989, p. 108).
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DEPRAVAÇÃO TOTAL
Após a Queda, prolifera o pecado. Nossos pais, Adão e Eva geram filhos à sua
imagem caída: “Viveu Adão cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança,
conforme a sua imagem, e lhe chamou Sete” (Gn 5,3). E assim se sucedeu com
os filhos de seus filhos, até à nossa geração (Gn 8,21; Sl 50,5; 58,3). “Agora não
nascemos tais como Adão fora inicialmente criado, senão que somos a semente
adulterada do homem degenerado e pecaminoso” (CALVINO, 1998, p. 56). Em
outro lugar, Calvino comenta com maestria:
Ao dizer que Sete gerou um filho conforme sua própria imagem, em par-
te a referência é à primeira origem de nossa natureza; ao mesmo tempo
deve-se notar sua corrupção e poluição, as quais, sendo contraídas por
Adão, por sua queda, inundou toda sua posteridade. Se permanecesse
íntegro, teria transmitido a todos os seus filhos o que havia recebido; ago-
ra, porém, lemos que Sete, bem como os demais, foi maculado, porque
Adão, que decaíra de seu estado original, a ninguém podia gerar senão
seres semelhantes a ele próprio (CALVINO, 1998, p. 56).
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Observemos aqui que a vontade humana é em todos os aspectos oposta à
vontade divina, pois assim como há uma grande diferença entre nós e Deus,
também deve haver entre a depravação e a retidão. A imagem que agora
refletimos estampa mais propriamente o caráter de Satanás.
Fonte: Turretini (2011, p. 588).
podem tender para um fim correto; donde sucede devam ser julgados
como sendo o que realmente são: pervertidos e perversos. Pois tudo
quanto há em tais homens, que nos deleita sob o matiz de virtude, é
como o vinho deteriorado pelo odor do tonel. Porque (como já se dis-
se) as próprias afeições da natureza, que em si mesmas são louváveis,
contudo estão viciadas pelo pecado original, e, em razão de sua irre-
gularidade, têm se degenerado de sua natureza peculiar; tal é o amor
mútuo de pessoas casadas, o amor de pais para com seus filhos, e daí
por diante. E a cláusula adicionada, ‘desde sua mocidade’, declara mais
plenamente que os homens já nascem maus; a fim de mostrar que, tão
logo atingem a idade em que começam a formar pensamentos, já reve-
lam a corrupção radical da mente. (...)
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Por intermédio de Isaías, Deus faz uma analogia extremamente forte para ilus-
trar a nossa situação. Ele toma dois animais difíceis de trato: o boi e o jumento.
Mostra que a obtusidade, a teimosia e a dificuldade de condução destes animais
dão-se pela sua própria natureza. No entanto, assim mesmo, eles sabem reco-
nhecer os seus donos, aqueles que lhes alimentam. O homem, por sua vez, como
coroa da criação, cedendo ao pecado, perdeu totalmente o seu discernimento
espiritual. Já não reconhecemos nem mesmo o nosso Criador, antes lhe voltamos
as costas e prosseguimos em outra direção: “O boi conhece o seu possuidor, e o
jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu
povo não entende. Ai desta nação pecaminosa, povo carregado de iniquidade,
raça de malignos, filhos corruptores; abandonaram o SENHOR, blasfemaram
do Santo de Israel, voltaram para trás” (Is 1,3-4).
Com o pecado, o homem tornou-se positivamente mau (Gn 6,5; 8,21; Mt
7,11) e incapaz de:
Fazer o Bem: o homem é mau, por isso não pode produzir bons frutos (Jó
14,4; Jr 13,23; Mt 7,17-18; Jo 15,4-5; Rm 3,9-18). Diante do escrutínio per-
feito de Deus, os atos de “bondade” praticados pelo homem natural, são
frutos da Graça Comum de Deus que atua sobre todos indistintamente.
Entender o Bem: se Deus não iluminar o homem natural, ele jamais com-
preenderá a mensagem salvadora do Evangelho: nós um dia fomos salvos
porque Deus abriu os nossos olhos para a sua Palavra (Jo 1,11; 8,43-44;
At 16,14; 1Co 2,14; Sl 119,18; 1Jo 4,5-6). O conhecimento que Adão e Eva
passaram a ter após o pecado, foi virtualmente diferente (Gn 2,25; 3,7);
nada havia ali de um “conhecimento salvador”.
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Calvino (1509-1564) resume:
No tocante ao reino de Deus e a tudo quanto se acha relacionado à vida
espiritual, a luz da razão humana difere pouquíssimo das trevas; pois,
antes de ser-lhe mostrado o caminho, ela é extinta; e sua perspicácia
não é mais digna que a cegueira, pois quando vai em busca do resulta-
do, ele não existe. Pois os princípios verdadeiros são como as centelhas;
essas, porém, são apagadas pela depravação da natureza antes que se-
jam postas em seu verdadeiro uso (CALVINO, 1998, p. 134-135).
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Paralelas: a graça que se manifesta em obra
daqueles que confiam em Jesus para salvação (Rm 3,26). Ele se tornou para
os que creem em justiça, santificação e redenção (1Co 1,30). “O Cristianismo
se distinguiu unindo justiça e amor na cruz”.
Fonte: Bavinck (2012, p. 179).
A graça de Deus não é barata. Nós, muitas vezes, nos comportamos como filhos
que, amados e agraciados com presentes de seus pais, se esquecem de que se
aquilo que ganhamos foi “fácil”, “generoso”, sem mérito algum de nossa parte,
custou, muitas vezes, um alto preço para os pais: privação de adquirir outro bem
para si, filas, crediários, juros, economias etc. A graça de Deus tem outro lado,
que com frequência nos esquecemos: a obra sacrificial de Cristo.
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Isso, longe de apontar para o suposto valor inerente de nossas almas, revela o
amor gracioso de Deus que confere valor a nós. Deus não quebra a sua justiça por
amor, antes, cumpre a justiça em amor. A graça reina pela justiça (Rm 5,21). O
amor de Deus não desconsidera o pecado, antes o penaliza em Cristo, o Amado
(Ef 1,6-7), em quem temos a plenitude da graça do Deus Triúno. “De fato a graça
reina, mas uma graça reinante à parte da justiça não é apenas inverossímil, mas
também inconcebível” (MURRAY apud BAVINCK, 2012, p. 180-181). Abraham
Booth (1734-1806) escrevendo sobre este assunto, assim se expressou:
A graça de Deus está fundamentada na obediência perfeita e meritó-
ria de Cristo. Ainda que este perdão seja gratuito para os pecadores,
nunca devemos nos esquecer de que Cristo pagou um alto preço por
ele. Perdão para a menor das nossas ofensas só se tornou possível por-
que Cristo cumpriu as mais aflitivas condições – Sua encarnação, Sua
perfeita obediência à lei divina e Sua morte na cruz. O perdão que é
absolutamente gratuito ao pecador teve um alto custo para o Salvador.
A graça de Deus vem a nós não porque Deus revela o fato da Sua lei ser
quebrada por nós, mas porque a Sua lei foi plenamente satisfeita pelos
atos de justiça que Cristo fez a nosso favor. (...) Ele cumpriu perfeita-
mente a lei de Deus (BOOTH, 1986).
“Graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo”
(Ef 1,2). Esta é uma saudação comum de Paulo em suas epístolas: “graça” (c
´árij) e “paz” (e'ir»nh). Sem dúvida não há início melhor. Começamos sempre
pela graça. A paz com Deus só é possível pela graça. Aqui temos a essência do
Cristianismo. É impossível haver paz sem a consciência de nossa restauração à
comunhão com Deus, removendo assim toda a culpa do pecado e o medo da
punição divina. Watson (1620-1686) exulta: “A paz pode suavizar todas as nossas
aflições e transformar nosso fel em vinho. Quão feliz é uma pessoa justificada que
tem o poder de Deus para guardá-la e a paz de Deus para confortá-la” (WATSON,
2009, p. 268). Mas, o que significa graça? Graça pode ser definida como um favor
imerecido, manifestado livre e continuamente por Deus aos pecadores que se
encontravam em um estado de depravação e miséria espirituais, merecendo o
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aqui, deve ser entendida como o equivalente hebraico, {Olf$ (shãlôm), “prospe-
ridade espiritual”. A paz como resultado da graça pressupõe um estado anterior
de inimizade. Conforme vimos, o pecado nos colocou em um estado de inimi-
zade, hostilidade e ódio para com Deus: estávamos separados de Deus (Is 59,2).
O homem encontrava-se em um estado de rebelião contra Deus (Is 65,2).
A graça de Deus concretiza-se em Cristo, por meio de seu sacrifício vicário.
Paulo diz que ele é a nossa paz:
Em Cristo Jesus, vós [gentios], que antes estáveis longe, fostes aproxi-
mados pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa paz (e'ir»nh), o qual
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de ambos fez um, e, tendo derribado a parede da separação que esta-
va no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos
na forma de ordenanças para que dos dois criasse, em si mesmo, um
novo homem, fazendo a paz (e'ir»nh), e reconciliasse ambos em um só
corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimiza-
de. E, vindo, evangelizou paz (e'ir»nh) a vós outros que estáveis longe
[gentios] e paz (e'ir»nh) também aos que estavam perto [judeus]; por-
que, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito (Ef 2.13-18).
(Ver: Cl 1.20-22).
Paulo ensina-nos que em Cristo passamos a ter paz com Deus e também com o
nosso próximo. Dentro do propósito imediato de Paulo, ele demonstra que os
gentios, distantes das promessas de Israel, e os judeus agora têm acesso livre a
Deus em Cristo, pelo mesmo e único Espírito. Notemos que em tudo isso a ini-
ciativa é de Deus. O Deus Triúno deseja a paz e providencia os meios para isso:
“Tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo
(...). Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo...” (2Co 5.18,19). “A
cruz trouxe a paz, embora não houvesse paz na cruz. Foi uma cena caótica, mas a
cruz proporcionou a justiça que, por si só, traz a paz verdadeira” (MACARTHUR
JR., 2001, p. 57).
A graça que nos vem por Cristo Jesus propiciou de forma eficaz a nossa
reconciliação com Deus conduzindo-nos à paz. Agora, reconciliados com Deus,
vivemos em paz, confiando inteiramente em sua promessa. A paz da reconcilia-
ção conduz-nos à paz interior e, em todas as nossas relações:
Não há nenhuma paz genuína que seja desfrutada neste mundo senão
na atitude repousante nas promessas de Deus. Os que não lançam mão
delas podem ser bem sucedidos por algum tempo em abafar ou expul-
A graça de Deus sempre antecede a paz. Fomos reconciliados com Deus por sua
graça. Somos, portanto, agraciados com a paz. “O primeiro e mais importante
aspecto desta paz com Deus não é a paz do nosso coração, mas o fato de que
Deus está em paz conosco” (SCHAEFFER, 2003, p. 123).
Mérito e graça são conceitos que se excluem: “E, se é pela graça, já não é
pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Rm 11,6). “A graça divina e o
mérito das obras humanas são tão opostos entre si que, se estabelecermos um,
destruiremos o outro”, conclui Calvino (1997, p. 138). Portanto, continua: “Que
se evapore, pois, o sonho daqueles que imaginam uma justiça mesclada de fé e
abras” (CALVINO, 2006). De fato, a graça tem sempre como pressuposto a indig-
nidade daquele que a recebe. A graça brilha nas trevas do pecado. Desta forma,
a ideia de merecimento está totalmente excluída da salvação por graça (Ef 2,8.9;
2Tm 1,9). Não há mérito humano na fé. É justamente aqui onde há certo incô-
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modo para o ser humano. Apreciamos a graça. Contudo, ela vai de encontro ao
nosso orgulho e convencimento de merecimento. A salvação é pela graça. Esta
realidade reconhece, portanto, a glória como sendo de Deus, não do homem.
No nosso íntimo, estamos convencidos de que merecemos, nem que seja
a graça gratuita! Barth (1886-1968) coloca esta questão de forma elucidativa:
Nós não amamos viver pela graça; há sempre em nós alguma coisa que se
insurge violentamente contra a graça. Nós não amamos receber a graça,
nós amaríamos, no máximo, atribuí-la a nós mesmos. A vida humana
é feita desse vai e vem entre o orgulho e o desespero, que apenas a fé
pode eliminar. Se contar consigo mesmo, o homem não pode chegar a
ela, uma vez que não podemos, nós mesmos, nos libertar do orgulho e
da angústia. Se formos libertos é graças a uma ação que não depende de
nós (BARTH, 2006, p. 23).
A Palavra de Deus nos ensina que a nossa salvação é por Deus, porque é Ele quem faz
tudo; por isso, o homem não pode criar a graça, antes, ela lhe é outorgada, devendo
ser recebida sem torná-la vã em sua vida (2Co 6,1; 8,1-3/1Co 15,10). “Uma mani-
festação mais intensa da graça de Deus para conosco equivale um maior peso de
culpa sobre nós, se porventura viermos a desprezá-la” (CALVINO, 2006, p. 127).
A graça de Deus abre o nosso coração, fazendo-nos ver a necessidade da sal-
vação, passando a desejá-la ardentemente desde então; a graça de Deus promove
a paz em nosso coração por intermédio da nossa reconciliação com Deus (Rm
5,1; 2Co 5,18-21/Rm 1,7; 1Co 1,3; 2Co 1,2). Em paz com Deus, somos agencia-
dores desta paz por meio da proclamação do Evangelho (Sl 34,14; Mt 5,9; Rm
12,18; 2Co 13,11; Hb 12,14/2Co 5,20) e, também, por meio de nossa conduta.
Agora vivemos na esfera do Reino da graça, estando sob a graça, em um estado
de graça, em uma nova posição em Cristo (Rm 5,2; 6,14; Ef 1,20; 2,6; Cl 1,13).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos, em nossos estudos, que Moisés, por revelação direta de Deus, narra os
atos criadores de Deus, sem se preocupar em falar com mais detalhes a respeito
Daquele que, mediante a Sua Palavra, faz com que do nada surja a vida. Deus
existe e, em toda narrativa da Criação isso é fato consumado. Tratar da criação
do homem é falar de nossa origem, da nossa história por meio de nossos pri-
meiros pais. É impossível fazer isso de forma indiferente.
A doutrina da Criação nos fala do poder de Deus e de nossa dependência,
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Considerações Finais
134
Apresentação: Neste vídeo é explicado como funciona a Graça de Deus, retirando todo
e qualquer juízo de valor atribuído à salvação do homem.
Acesse: <https://www.youtube.com/watch?v=37gzy95aACg>.
139
REFERÊNCIAS
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as-watson.html>. Acesso em: 02 jun. 2019
GABARITO
1. A.
2. E.
3. A.
4. C.
5. E.
Professor Dr. Hermisten M. P. Costa
III
A REFORMA PROTESTANTE:
UNIDADE
HISTÓRIA E PRESSUPOSTOS
TEÓRICOS
Objetivos de Aprendizagem
■ Abordar a história da Reforma Protestante.
■ Discutir dois apenas da Reforma Protestante: o trabalho e a vocação.
■ Problematizar a questão do Homem e do Trabalho na Bíblia.
■ Discutir o comportamento do cristão frente à riqueza e a pobreza.
■ Abordar a questão da cosmovisão e da arte na Teologia.
■ Apresentar os pressupostos do culto espiritual, tendo em vista arte,
inteligência e submissão.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A Reforma Protestante
■ A Reforma: Trabalho e Vocação
■ O Homem e o Trabalho
■ O Comportamento Cristão na Riqueza e na Pobreza
■ Cosmovisão e Arte
■ Culto espiritual, com arte, inteligência e submissão
149
INTRODUÇÃO
Introdução
150 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A REFORMA PROTESTANTE
Devemos ter em mente que as fronteiras históricas são sempre difíceis de demarcar,
sendo de certo modo arbitrárias, visto que as transformações não ocorrem simples-
mente por decreto ou por decisão de um líder ou concílio; estes, sem dúvida, são
muitas vezes fundamentais para um processo, contudo, não estabelecem o limite.
Outro aspecto, é que normalmente aquilo que caracteriza um período, geral-
mente está ainda como que um sobrevivente – incômodo para o historiador,
diga-se de passagem –, no posterior e, por sua vez, os elementos saudados como
a grande marca de uma nova fase, já viviam ainda que embrionariamente e tan-
tas vezes anônimos, na anterior. Ou seja, ainda que nem sempre prontamente
percebido, os movimentos interagem e coexistem com outros movimentos e cul-
turas; há sempre um entrelaçamento dos tempos e dos movimentos.
necer por meio de Sua Palavra uma história mentirosa, cheia de equívocos e erros?
Grande parte dos ensinamentos doutrinários das Escrituras provém de fatos his-
tóricos não apenas de proposições doutrinárias (SCHAEFFER, 2017, p. 13-33).
O Cristianismo não se ampara em lendas, antes, em fatos os quais devem ser
testemunhados, visto que têm uma relação direta com a vida dos que creem. O
Cristianismo é uma religião de fatos, palavra e vida. Os fatos, corretamente com-
preendidos, têm uma relação direta com a nossa vida. A fé cristã fundamenta-se no
próprio Cristo: O Deus-Homem. Sem o Cristo Histórico não haveria Cristianismo.
A sua força e singularidade estão neste fato, melhor dizendo: na pessoa de Cristo,
não simplesmente nos seus ensinamentos (MCGRATH, 2007, p. 23).
O Cristianismo é o próprio Cristo. A encarnação é toda e inclusivamente mis-
sionária: o Verbo fez-se carne e habitou entre nós (Jo 1,14). É por isso também, que
o Cristianismo é uma religião de memória, relatando os feitos de Deus e desafiando
o povo a reafirmar a sua fé a partir do rememorar dos atos de Deus na história.
A Reforma Protestante
152 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ras como de fato são, a mensagem do Evangelho deve ser anunciada ao mundo
para que aqueles que crerem sejam salvos.
Noll (2000, p. 16) resume bem ao dizer que: “estudar a história do cristianismo
é lembrar continuamente o caráter histórico da fé cristã”. Sem o fato histórico
da encarnação, morte e ressurreição de Cristo, podemos falar até de experiência
religiosa, mas não de experiência cristã. A experiência cristã depende funda-
mentalmente destes eventos.
Quando focamos o nosso olhar na experiência, corremos o risco de per-
dermos a dimensão da essência, do referente, que é Deus. Neste processo, como
escreveu Barth (1886-1968), “a passagem da experiência do Senhor à experi-
ência de Baal é curta. O religioso e o sexual são extremamente semelhantes”
(BARTH, 2004, p. 217).
Jesus Cristo é o clímax da Revelação; é a Palavra Final de Deus. Nele
temos não uma metáfora ou um sinal, antes, temos o próprio Deus que Se
fez homem na história.
Jesus Cristo é a revelação final e especial de Deus. Porque Jesus Cristo era
verdadeiramente Deus Ele nos mostrou mais plenamente com quem Deus
era semelhante do que qualquer outra forma de revelação. Porque Jesus foi
também completamente homem, Ele falou mais claramente a nós do que
pode fazê-lo qualquer outra forma de revelação (SIRE, 2004, p. 40).
A História da Igreja, bem como da Teologia, tem um lado divino: Deus dirige a
História; e um lado humano: os fatos compartilhados por todos nós que a vivemos.
Os atos de Deus na História não são objeto de análise do historiador; não somos
Lucas, inspirados infalivelmente por Deus, apresentando uma interpretação inspirada.
A relação entre a história e a teologia é extremamente complexa e de difí-
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A Reforma Protestante
154 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
quadro histórico e cronológico dos principais fatos da vida da Igreja do perí-
odo analisado. Para que isso seja feito com clareza, tornam-se necessárias fontes
documentais, nas quais possamos nos basear para exaurir as informações de
cada época, a fim de formular um quadro interpretativo coerente com os docu-
mentos disponíveis.
tempo, induzia os fiéis a realizarem boas obras que, como não poderiam
deixar de ser, eram sempre insuficientes para eliminar o sentimento de
culpa latente. Tillich (1886-1965) resume:
Sob tais condições jamais alguém poderia saber se seria salvo, pois ja-
mais se pode fazer o suficiente; ninguém podia receber doses suficien-
tes do tipo mágico da graça, nem realizar número suficiente de méritos
e de obras de ascese. Como resultado desse estado de coisas havia mui-
ta ansiedade no final da Idade Média (TILLICH, 1988, p. 210).
inocentes.
5. O culto há muito que se tornara apenas num ritual meramente externo,
repleto de superstições, consistindo em grande parte na leitura da vida
dos santos.
Os deuses, deusas e semideuses do Paganismo, as suas imagens e estátuas
sagradas, transformaram os heróis do Cristianismo e as suas supostas efí-
gies, em objetos de culto idólatra, em padroeiros, protetores e medianei-
ros. O politeísmo e a idolatria inundaram a Igreja (PEREIRA, 1920, p. 16).
Deste modo, mais do que um simples protesto, a palavra foi usada no sentido de
testemunho positivo a respeito da supremacia da Escritura. A ideia de protestar
é praticamente a mesma de confessar. “O ‘protesto’ era, ao mesmo tempo, uma
objeção, um apelo e uma afirmação” (WRIGHT, 1990, p. 194).
A Reforma Protestante
156 UNIDADE III
“Nos fins da Idade Média pesava na alma do povo uma tenebrosa melancolia”,
constata o holandês Huizinga (1872-1945). Os séculos anteriores à Reforma são
descritos como período de grande ansiedade (HUIZINGA, 1978, p. 31). Lutero
(1483-1546) e as suas famosas angústias espirituais espelhavam “a epítome dos
medos e das esperanças de sua época” (GEORGE, 2015, p. 183-184).
Calvino (1985, I.17.10) ainda que não fosse dominado por esse sentimento,
refletia uma constatação natural: a fragilidade humana. Sobre os perigos pró-
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prios da vida, relaciona:
Incontáveis são os males que cercam a vida humana, males que outras tan-
tas mortes ameaçam. Para que não saiamos fora de nós mesmos: como
seja o corpo receptáculo de mil enfermidades e dentro de si, na verdade,
contenha inclusas e fomente as causas das doenças, o homem não pode a
si próprio mover sem que leve consigo muitas formas de sua própria des-
truição e, de certo modo, a vida arraste entrelaçada com a morte. Que ou-
tra coisa, pois hajas de dizer, quando nem se esfria, nem sua, sem perigo?
Agora, para onde quer que te voltes, as cousas todas que a teu derredor
estão não somente não se mostram dignas de confiança, mas até se afigu-
ram abertamente ameaçadoras e parecem intentar morte pronta. Embarca
em um navio: um passo distas da morte. Monta um cavalo: no tropeçar de
uma pata a tua vida periclita. Anda pelas ruas de uma cidade: quantas são
as telhas nos telhados, a tantos perigos estás exposto. Se um instrumen-
to cortante está em tua mão ou de um amigo, manifesto é o detrimento.
A quantos animais ferozes vês, armados estão-te à destruição. Ou que te
procures encerrar em bem cercado jardim, onde nada senão amenidade se
mostre, aí não raro se esconderá uma serpente. Tua casa, a incêndio cons-
tantemente sujeita, ameaça-te pobreza durante o dia, durante a noite até
mesmo sufocação. A tua terra de plantio, como esteja exposta ao granizo, à
geada, à seca e a outros flagelos, esterilidade te anuncia e, dela a resultar, a
fome. Deixo de referir envenenamentos, emboscadas, assaltos, a violência
manifesta, dos quais parte nos assedia em casa, parte nos acompanha ao
largo. Em meio a estas dificuldades, não se deve o homem, porventura,
sentir assaz miserável, como quem na vida apenas semivivo, sustenha de-
bilmente o sôfrego e lânguido alento, não menos que se tivesse uma espada
perpetuamente a impender-lhe sobre o pescoço? [...].
Quando, porém, essa luz da Divina Providência uma vez dealbou ao ho-
mem piedoso, já não só está aliviado e libertado da extrema ansiedade
e do temor de que era antes oprimido, mas ainda de toda preocupação.
Pois assim como, com razão, se arrepia de pavor da Sorte, também assim
ousa entregar-se a Deus com plena segurança (CALVINO, 1985, I.17.10).
Calvino admite que para qualquer lado que olharmos encontraremos sempre
desespero, até que tornemos para Deus, em Quem encontramos estabilidade no
meio de um mundo que se corrompe (CALVINO, 2002, p. 586).
A Reforma Protestante do século XVI foi um movimento eminentemente reli-
gioso e teológico (pelo menos em sua origem); estando ligada à insatisfação espiritual
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A Reforma Protestante
158 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
gioso como força motriz da Reforma e de sua influência, continua McGrath: “A
relevância história da Reforma não é apenas inseparável das visões religiosas dos
principais reformadores, mas também, em grande parte, consequência das mes-
mas” (MCGRATH, 2007, p. 13).
Não deixa de ser significativo o testemunho de dois estudiosos católicos,
Abbagnano e Visalberghi (1990, p. 253), quando afirmam que, “contribuição
fundamental à formação da mentalidade moderna foi à reforma religiosa de
Lutero e Calvino”.
A REFORMA E O HUMANISMO-RENASCENTISTA
A Reforma teve como objetivo precípuo uma volta às Sagradas Escrituras, a fim
de reformar a Igreja que havia caído ao longo dos séculos, numa decadência teo-
lógica, moral e espiritual. A preocupação dos reformadores era principalmente a
reforma da vida, da adoração e da doutrina à luz da Palavra de Deus (BROWN,
1983). Desta forma, a partir da Palavra, passaram a pensar acerca de Deus, do
homem e do mundo! “A reforma foi acima de tudo uma proclamação positiva
do evangelho Cristão” (LEITH, 1997, p. 36).
A Reforma Protestante
160 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
humanista de rejeição a qualquer autoridade externa: as coisas são o que são porque
são, não porque outros dizem que elas sejam. Isto é válido para as verdades cientí-
ficas, como para as verdades teológicas: não é a Igreja que autentica a Palavra por
sua interpretação “oficial”, mas, sim, é a Bíblia que se autentica a Si mesma como
Palavra autoritativa de Deus (CALVINO, 1997, p. 110) e, é Ele mesmo Quem nos
ilumina para que possamos interpretá-la corretamente. Na Reforma, “a Palavra de
Deus era a única autoridade, e a salvação tinha como base única a obra definitiva
do Senhor Jesus Cristo, consumada na cruz” (SCHAEFFER, 2003, p. 10).
A questão da interpretação bíblica sempre foi o ponto nevrálgico em toda a
história da teologia. Na Reforma deu-se uma mudança de quadro de referência.
Por isso, podemos falar deste movimento como tendo um de seus pilares fun-
damentais a questão hermenêutica, envolvendo em seu bojo a provisoriedade
de sua interpretação.
A Reforma Protestante
162 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
fos, foi feita diretamente da Vulgata, sem consultar os Originais Hebraicos e Gregos.
Outro ponto que deve ser realçado a esse respeito, é que quanto mais os tem-
pos se avizinhavam do século XVI, verifica-se um desejo mais intenso de ler as
Escrituras. Como reflexo disto, “de 1457 a 1517 são publicadas mais de quatro-
centas edições da Bíblia” (BIÉLER, 1990, p. 44).
Lutero traduziu a Bíblia para o alemão, concluindo o seu trabalho em outu-
bro de 1534. A sua tradução é uma obra primorosa, sendo considerada o marco
inicial da literatura alemã. “O resultado foi um frescor de linguagem que tornou
Jesus um contemporâneo do século XVI” (PELIKAN, 2000, p. 173).
Febvre (1878-1956) diz de forma poética, que o trabalho de Lutero consistiu:
[...] numa assombrosa ressurreição da Palavra. Estando o mais distante
possível de uma fria exposição, de um labor didático de um filólogo.
Também, é mais do que um ‘trabalho de artista’ em busca de um estilo
pessoal. É o esforço, sem dúvida dramático, feliz, de um pregador que
quer convencer; ou melhor, de um médico que quer curar, trazer aos
seus irmãos, os homens, todos os homens, o remédio milagroso que
acaba de curá-lo (FEBVRE, 1992, p. 187).
Visto que a igreja é o reino de Cristo, e que Cristo não reina senão por
Sua Palavra, ainda vamos continuar duvidando de que são mentirosas
as palavras daqueles que imaginam o reino de Cristo sem o Seu cetro,
quer dizer, sem a Sua santa Palavra? (João Calvino).
A Lei do Senhor reflete a natureza do Senhor que Se manifesta na Criação com ordem
e beleza. Por isso, após descrever a sinfonia da Criação, o salmista afirma que: “a lei
do Senhor é perfeita (~ymiT)' (tamiym)1” (Sl 19,7). De fato, a Lei do Senhor é perfeita,
completa; abarca todas as nossas necessidades físicas e espirituais. Ela tem princípios
que sendo seguidos, instruem, previnem e corrigem os nossos caminhos.
No caminho de Deus não há ambiguidade. Por isso, as suas orientações são
completas, sem mistura: “O caminho de Deus é perfeito (~ymiT)' (tamiym); a palavra
do SENHOR é provada; ele é escudo para todos os que nele se refugiam” (Sl 18,30).
Assim como o insensato alimenta em seu coração a afirmação de que não há
Deus2, o salmista deseja profundamente algo oposto. Ele diz: “Seja o meu cora-
ção (ble)(ble) irrepreensível (~ymiT) (tamiym) nos teus decretos, para que eu não seja
envergonhado” (Sl 119,80). Quando assimilamos de coração a Palavra de Deus e
a adotamos com integridade, independentemente das consequências e dos juízos
dos outros, não teremos do que nos envergonhar. Não há vergonha em seguir a
Deus ainda que os padrões adotados pela maioria apontem nesta direção. Poderão,
sem dúvida, nos envergonhar, contudo, nunca nos sentiremos envergonhados.
Na integridade da Palavra não há contradição, antes, temos o absoluto de
Deus para todos os desafios próprios de nossa existência. Por isso, quem segue
a Palavra de Deus buscando praticá-la com integridade de coração será irrepre-
ensível em seu caminho, em todas as circunstâncias. Este será bem-aventurado.
1 A ideia da palavra traduzida por perfeita é de: integridade (Sl 15.2); aperfeiçoar (Sl 18.32); retidão (Sl
101.6); irrepreensível (Sl 119.1,80); inculpável (2Sm 22.24).
2 “Diz o insensato (lb'n') (nabal) no seu coração (ble)(leb): Não há Deus (~yhil{a/)(elohim)....” (Sl 14.1).
A Reforma Protestante
164 UNIDADE III
As Escrituras insistem neste ponto: “Bem-aventurado o homem que não anda (%lh; )’
(halak) no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se
assenta na roda dos escarnecedores” (Sl 1,1). “Bem-aventurados os irrepreensíveis
(~ymiT') (tamiym) no seu caminho, que andam (%l;h') (halak) na lei do SENHOR
2
Bem-aventurados os que guardam as suas prescrições e o buscam (vrd) (darash)
de todo o coração (ble)(leb); não praticam iniquidade e andam (%l;h') (halak) nos
seus caminhos” (Sl 119.1-3). “... Bem-aventurado aquele que teme ao SENHOR e
anda (%l;h) (halak) nos seus caminhos!” (Sl 128,1).
A vontade de Deus é idêntica a Ele mesmo, sendo eticamente perfeita e com-
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pleta. Deus é perfeito; não muda, não se aperfeiçoa nem se deteriora (Mt 5,48; Hb
13,8; Tg 1,17). A perfeição não comporta ganho ou perda de qualidade. Deus é eter-
namente perfeito. Assim também é a Sua vontade. Não há um centímetro sequer
de toda a Criação que não seja abrangido pela totalidade da Sua vontade. Por isso
é que as Escrituras declaram que a “lei do Senhor é perfeita” (Sl 19,7; Tg 1,25). Ela
abrange de forma completa e absoluta todas as nossas necessidades; nada lhe escapa,
nada lhe é estranho. Na Lei de Deus temos os princípios fundamentais para todo o
nosso viver, seja em que época for, em que cultura for: a Lei do Senhor é perfeita!
McGrath (2007, p. 60) constata e faz uma advertência:
Como o surgimento do nazismo e stalinismo já têm tornado muitíssi-
mo claro, tendências culturais precisam ser criticadas. Não se pode per-
mitir que sejam normativas. E isso exige que o cristianismo baseie-se
em algo que transcenda particularidades culturais – especificamente, a
autorrevelação de Deus.
Fonte: o autor.
A Palavra de Deus nos dá discernimento com clareza: “A revelação das tuas pala-
vras esclarece (rAa) (‘ôr) e dá entendimento (!yBi) (bîyn)3 aos simples (ytiP.) (pethiy)
(= ingênuo, tolo, mente aberta)” (Sl 119,130).
Deus concede este entendimento aos símplices, referindo-se às pessoas ingê-
nuas que por não terem desenvolvido uma mente discernidora, é aberta a qualquer
conceito4, não percebendo as armadilhas e contradições do seu inconsistente
mosaico de pensamento. A Palavra nos conduz à maturidade, ao discernimento
para que não mais tenhamos uma “mente aberta”, em que tudo passe sem fronteira,
sendo suscetível a todo tipo de sedução e engano. Deus deseja que exercitemos
o senso crítico (Pv 1,4; 14,15) deixando a paixão pela “necedade” (Pv 1,22)5.
Um indivíduo simples é como uma porta aberta – ele não tem dis-
cernimento sobre o que pode sair ou entrar. Tudo entra porque ele é
ignorante, inexperiente, ingênuo e não sabe discernir as coisas. Pode
ser até que tenha orgulho de ter uma ‘mente aberta’, apesar de ser ver-
dadeiramente um tolo (MACARTHUR, 2005, p. 39).
O escritor da Epístola aos Hebreus declara que “a Palavra de Deus é viva e eficaz” (Hb
3
O verbo (!yBi) (bîyn) e o substantivo (hn”yBi) (bîynâh) apresentam a ideia de um entendimento, fruto de
uma observação demorada, que nos permite discernir para interpretar com sabedoria e conduzir os nossos
atos.
4
“O simples (ytiP.) (pethiy) dá crédito a toda palavra, mas o prudente atenta (yBi) (biyn) para os seus passos”
(Pv 14.15).
5
“Até quando, ó néscios (ytiP) (pethiy), amareis a necedade (ytiP) (pethiy)? E vós, escarnecedores, desejareis o
escárnio? E vós, loucos, aborrecereis o conhecimento?” (Pv 1.22).
A Reforma Protestante
166 UNIDADE III
4.12). Ela não é uma verdade morta, que desperta curiosidade apenas por fazer parte
do ossuário, das relíquias, da arqueologia ou da historiografia, sendo estudada uni-
camente como um exercício de reflexão histórica para a nossa mera curiosidade, ou,
quem sabe, para entendermos como viviam os povos na Antiguidade. Não, a Palavra
de Deus é uma verdade viva, que tem a mesma vivacidade de quando foi revelada por
Deus aos seus servos, que a registraram inspirados pelo Espírito Santo. Ela continua
com a mesma eficácia para os questionamentos existenciais do homem moderno.
Muitas vezes, o problema de nós, homens do século XXI, – e até mesmo para
muitos de nós cristãos, e digo isso com pesar –, é que amiúde, sem perceber-
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mos, trocamos os preceitos da Bíblia por conselhos de revistas, por modismos
veiculados pelos meios de comunicação, pelo modus vivendi e faciendi contem-
porâneos; substituímos a Bíblia pela psicologia, filosofia, sociologia, antropologia
e até mesmo, astrologia, colocando-as como o nosso parâmetro de comporta-
mento, em detrimento da inerrante, infalível Palavra de Deus, que é a verdade
verdadeira, viva e eficaz de Deus para nós. Isto tudo nós fazemos, em nome de
uma suposta “prática”, esquecendo-nos de que toda e cada parte do ensino bíblico
é urgente e necessariamente prática, relevante para nós.
Jesus Cristo, a Palavra encarnada, nos diz: “Eu sou a luz (fîj) do mundo; quem
me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz (fîj) da vida” (Jo 8,12/
Is 49,6)6. Somente a Palavra de Deus pode transmitir a alegria real e duradoura ao
nosso coração. Ela dispersa as nuvens de incertezas e contradições de uma socie-
dade pervertida, nos mostrando os verdadeiros valores. No ato de seguir as veredas
de Deus, vamos descobrindo a sensatez e alegria da obediência: os nossos cami-
nhos vão se aclarando: “... a vereda dos justos é como a luz (rAa) (‘ôr) da aurora, que
vai brilhando (rAa)7 (‘ôr) mais e mais até ser dia perfeito” (Pv 4,18). Assim, grada-
tivamente, esta alegria vai se refletindo até mesmo em nosso semblante: “Quem é
como o sábio? E quem sabe a interpretação das coisas? A sabedoria do homem faz
reluzir o seu rosto (rAa) (‘ôr), e muda-se a dureza da sua face” (Ec 8,1).
Quando adotamos esta “prática” destoante das Escrituras, cometemos uma
6
“Sim, diz ele: Pouco é o seres meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e tornares a trazer os remanescentes
de Israel; também te dei como luz (rAa) (‘ôr) para os gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da
terra” (Is 49.6).
7
A grafia de “luz”, “ser luz”, “tornar-se luz” e “brilhar” é a mesma no hebraico.
A Reforma Protestante
168 UNIDADE III
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Fonte: Richardson (1978. p. 163-164).
A Bíblia não é um livro qualquer; a sua origem está em Deus que falou por inter-
médio de homens que Ele mesmo separou para registrar a Sua Palavra. Sabemos
que a questão do caráter humano das Escrituras não é algo acidental ou perifé-
rico: os homens escolhidos por Deus para registrarem as Escrituras eram pessoas
de carne e osso como nós, com personalidades diferentes, que viveram em deter-
minado período histórico – num espaço de aproximadamente 1600 anos –,
enfrentando problemas específicos, dispondo de determinados conhecimentos,
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etc. Aqui, sabemos, não há lugar para nenhum docetismo: os autores secundá-
rios tiveram um papel ativo e passivo.
No entanto, devemos também acentuar, e este é o nosso ponto neste texto,
que o Espírito chamou Seus servos, revelou-Se a Si mesmo e a Sua mensagem,
dirigiu, inspirou e preservou os registros feitos por esses homens.
O Espírito Santo habitou em certos homens, inspirou-os, e assim diri-
giu-os que eles, em plena consciência, expressaram-se na sua singular
maneira pessoal. O Espírito capacitou homens a conhecer e expressar
a verdade de Deus. Ele impediu-os de incluir qualquer coisa que fosse
contrária a essa verdade de Deus. Ele também impediu-os de escrever
coisas que não eram necessárias. Assim, homens escreveram como ho-
mens, mas, ao mesmo tempo, comunicaram a mensagem de Deus, não
a do homem (VAN GRONINGEN, 1995, p. 64-65).
A Reforma Protestante
170 UNIDADE III
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que procedera de Deus o que haviam aprendido” (CALVINO, As Institutas, I.6.2.).
Em outro lugar:
Eis aqui o princípio que distingue nossa religião de todas as demais, ou
seja: sabemos que Deus nos falou e estamos plenamente convencidos
de que os profetas não falaram de si próprios, mas que, como órgãos
do Espírito Santo, pronunciaram somente aquilo para o qual foram do
céu comissionados a declarar. Todos quantos desejam beneficiar-se das
Escrituras devem antes aceitar isto como um princípio estabelecido, a
saber: que a lei e os profetas não são ensinos passados adiante ao bel-pra-
zer dos homens ou produzidos pelas mentes humanas como uma fonte,
senão que foram ditados pelo Espírito Santo (CALVINO, 1998, p. 262).
Nas Escrituras temos todos os Livros que Deus quis que fossem preservados
para a nossa edificação:
Durante toda a história a Palavra de Deus foi alvo dos mais diversos ataques:
entre eles, o mais comum é a suposição de sua falibilidade. No entanto, um
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ataque mais sutil que também permeou boa parte da história da Igreja é a con-
cepção, ainda que muitas vezes velada, de que as Escrituras não são suficientes
para nos dirigir e orientar.
Melanchthon (1497-1560) e Lutero (1483-1546) depararam-se explicita-
mente com esse problema bem no início da Reforma Protestante. Por volta de
1520, na pequena, porém, próspera e culta cidade alemã de Zwickau, surgiu um
grupo de homens “iluminados” – chamados por Lutero de “profetas de Zwickau”
–, que alegava ter revelações especiais vindas diretamente de Deus, entendendo
ter sido chamado por Deus para “completar a Reforma”.
A sua religião partia sempre de uma suposta revelação interior do Espírito.
Acreditavam que o fim dos tempos estava próximo – os ímpios seriam extermi-
nados –, e que por isso, não era necessário estudar teologia visto que o Espírito
estaria inspirando os pobres e ignorantes. Combatiam também o batismo infan-
til. Assim pensando, esses homens diziam:
De que vale aderir assim tão estritamente à Bíblia? A Bíblia! Sempre a
Bíblia! Poderá a Bíblia nos fazer sermão? Será suficiente para a nossa
instrução? Se Deus tivesse tencionado ensinar-nos, por meio de um
livro, não nos teria mandado do céu, uma Bíblia? Somente pelo Espírito
é que poderemos ser iluminados. O próprio Deus fala dentro de nós.
Deus em pessoa nos revela aquilo que devemos fazer e aquilo que de-
vemos pregar (D’AUBIGNÉ, s.d., p. 64).
Certo alfaiate, Nícolas Storck, escolheu doze apóstolos e setenta e dois discípulos,
declarando que finalmente tinham sido devolvidos à Igreja os profetas e apóstolos.
Ele, acompanhado de Marcos Stubner e Marcos Tomás foi a Wittenberg (27/12/1521)
– que já enfrentava tumultos liderados por Andreas B. von Carlstadt (c. 1477-1541)
A Reforma Protestante
172 UNIDADE III
e Gabriel Zwilling (c. 1487-1558) –, pregar o que considerava ser a verdadeira reli-
gião cristã, contribuindo grandemente para a agitação daquela cidade. Stubner,
antigo aluno de Wittenberg, justamente por ter melhor preparo, foi comissionado
a representá-los. Melanchthon que conversou com Stubner, interveio na questão,
ainda que timidamente. Storck, mais inquieto, logo partiu de Wittenberg; Stubner,
no entanto, permaneceu, realizando ali um intenso e eficaz trabalho proselitista;
“era um momento crítico na história do cristianismo” (ATKINSON, 1987, p. 254).
Comentando os problemas suscitados pelos “espiritualistas”, o historiador
D’aubigné (1794-1872) conclui: “a Reforma tinha visto surgir do seu próprio seio
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um inimigo mais tremendo do que papas e imperadores. Ela estava à beira do abismo”
(D’AUBIGNÉ, s.d., p. 71). Daí ouvir-se em Wittenberg o clamor pelo auxílio de
Lutero. E Lutero, consciente da necessidade de sua volta, abandonou a segurança de
Warteburgo retornando à Wittenberg a fim de colocar a cidade em ordem (1522),
o que fez, com firmeza e espírito pastoral. Mais tarde, Lutero (1995, p. 334) escreve-
ria: “Onde, porém, não se anuncia a Palavra, ali a espiritualidade será deteriorada”.
Não nos iludamos, essa forma de misticismo ainda está presente na Igreja e,
tem sido extremamente perniciosa para o povo de Deus, acarretando um des-
vio espiritual e teológico, deslocando o “eixo hermenêutico” da Palavra para a
experiência mística, nos afastando assim, da Palavra e, consequentemente, do
Deus da Palavra. O trágico é que justamente aqueles que supõem desfrutarem
de maior “intimidade” com Deus, são os que patrocinam o distanciamento da
Palavra revelada de Deus. Davi enfatiza: “A intimidade do Senhor é para os que o
temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança” (Sl 25.14). Portanto, a nossa
intimidade com Deus revela-se em nosso apego à Sua Palavra, à Sua aliança.
Nesse texto, Calvino faz uma aplicação bastante contextualizada:
[...] é uma ímpia e danosa invenção tentar privar o povo comum das
Santas Escrituras, sob o pretexto de serem elas um mistério oculto,
como se todos os que o temem de coração, seja qual for seu estado e
condição em outros aspectos, não fossem expressamente chamados ao
conhecimento da aliança de Deus (CALVINO, 1999, p. 558).
Nós somos herdeiros dos princípios bíblicos da Reforma; para nós, como para
os Reformadores, a Palavra de Deus é a fonte autoritativa de Deus para o nosso
pensar, crer, sentir e agir: a Palavra de Deus nos é suficiente.
• Tradição e escritura?
a) Novo eixo hermenêutico
[...] deu um passo crítico que foi negar a regra de fé da Igreja, apresen-
tando um critério de conhecimento religioso totalmente diferente.
Foi neste período que ele deixou de ser apenas mais um reformador
atacando os abusos e a corrupção de uma burocracia decadente, para
tornar-se o líder de uma revolta intelectual que viria a abalar os pró-
prios fundamentos da civilização ocidental (POPKIN, 2000, p. 26).
A Reforma Protestante
174 UNIDADE III
Bíblia como tradição cristã autoritária” (STANGER, 2007, p. 583). Deste modo,
a autoridade dos Credos (Apostólico, Nicéia, Calcedônia) era indiscutivelmente
considerada pelos reformadores – tendo inclusive Lutero [O Catecismo Maior
(1529) e O Catecismo Menor (1529)] e Calvino [Catecismo de Genebra (1536/37
e1541/2) e Confissão Gaulesa (1559)] elaborado Catecismos para a Igreja –; con-
tudo, somente as Escrituras são incondicionalmente autoritativas. Os dizeres da
Confissão Gaulesa (Capítulo 5) resumem bem o espírito que orientou a aceita-
ção dos Credos pelos Reformadores:
Concluímos que nem a antiguidade, nem os costumes, nem a maioria,
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nem sabedoria humana, nem julgamentos, nem prisões, nem as leis, nem
decretos, nem os concílios, nem visões, nem milagres podem se opor a
esta santa Escritura, mas ao contrário, todas as coisas devem ser examina-
das, regulamentadas e reformadas por ela. Neste espírito, nós reconhece-
mos os três símbolos, a saber:O Credo dos Apóstolos, de Nicéia, e de Ata-
násio, porque eles estão de acordo com a Palavra de Deus” (Grife nosso).8
8
Esta Confissão, também conhecida como Confissão de Fé de La Rochelle encontra-se traduzida na íntegra
no site: <http://www.monergismo.com/textos/credos/Confissao_Franca_Rochelle.pdf>.
A Reforma Protestante
176 UNIDADE III
a) Autoridade interna:
A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obe-
decida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas
depende somente de Deus (a mesma verdade) que é o seu Autor; tem, por-
tanto, de ser recebida, porque é a palavra de Deus (CALVINO, 1998, s/p.).
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Anglada (1997, p. 124-125) resume bem este ponto, do seguinte modo:
[...] o testemunho do Espírito não é uma nova luz no coração, mas a sua
ação através da qual Ele abre os olhos de um pecador, permitindo-lhe
reconhecer a verdade que lá estava, mas não podia ser vista por causa
da sua cegueira espiritual.
b) Autoridade hermenêutica
A Reforma Protestante
178 UNIDADE III
A oração do exegeta cristão, que usa os meios científicos disponíveis, deve ser
como a do salmista: “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravi-
lhas da tua lei” (Sl 119,18/Lc 24,44-45; Ef 1,16-19).
c) Autoridade norteadora
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nível da sua fidelidade à Escritura. A relevância de nossa formulação não depen-
derá de sua “beleza”, “popularidade” ou “significado para o homem moderno”, mas
sim na sua conformação às Escrituras. O mérito de toda teologia está no seu apego
incondicional e irrestrito à Revelação; a melhor interpretação é a que expressa o
sentido do texto à luz de toda a Escritura, ou seja, em conexão com toda a ver-
dade revelada. Não há nada mais edificante e prático do que a Verdade de Deus.
A Reforma Protestante
180 UNIDADE III
O conhecimento de Deus não está posto em fria especulação, mas Lhe traz
consigo o culto.
(J. Calvino)
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última de Deus. Da mesma forma como é verdade que quem viu o Filho viu o
Pai, também é verdade que quem não viu o Filho, não viu o Pai” (HENDRIKSEN,
2004, p. 657). Jesus Cristo é a medida da revelação!
Lembremo-nos mais uma vez das palavras de A. Kuyper, de que o homem
não pode se colocar sobre a Bíblia para fazer uma investigação de Deus; Deus é
Quem se comunica, Quem se dá; Ele é sempre o Sujeito, nunca o objeto na rela-
ção do conhecimento. Somos o que se chamaria de “positivistas teológicos”, isto
porque, partimos sempre da revelação contida nas Escrituras, nunca da espe-
culação filosófica ou metafísica; e, é justamente isto que nos distingue de forma
marcante de outros sistemas teológicos.
A Teologia Reformada reconhece a centralidade real de Deus em todas as
coisas, tendo como alvo principal, não o tão decantado bem-estar humano – que
por certo tem a sua relevância –, mas a Glória de Deus, sabendo que as demais
coisas serão acrescentadas (Mt 6,33; Ef 1,11-12).
Para nós reformados, é a Palavra de Deus que deve dirigir toda a nossa abor-
dagem e interpretação teológica, bem como de toda a nossa compreensão do
real; a epistemologia cristã é determinada pelas “lentes” da Palavra. O Espírito
por meio da Palavra é Quem deve nos guiar à correta interpretação da Revelação.
modo nenhum pode a mente humana chegar até Deus, salvo se assistida e sus-
tentada por Sua Sagrada Palavra” (CALVINO, As Institutas, I.6.4).
Todavia, também sabemos que este conhecimento não deve ter um fim em
si mesmo; a revelação foi-nos dada a fim de que fossemos conduzidos ao Deus
da revelação (Jo 5,39-40), adorando-O na liberdade do Espírito e nos parâmetros
da Palavra. Sem as Escrituras, Cristo não pode ser conhecido salvadoramente.
O conhecimento de Cristo deve implicar sempre na Sua adoração. “O culto é a
essência e o coroamento da atividade cristã” (MOULE, 1979, p. 45).
Para nós, reformados, o valor da teologia estará sempre subordinado à sua fidelidade
bíblica. Por isso é que reafirmamos que, a Teologia ou é Bíblica ou não é Teologia.
Não julgamos a Bíblia; antes, é Ela que deve julgar a veracidade do nosso sistema:
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182 UNIDADE III
f) Autoridade completa
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da nossa salvação está registrado de forma explícita (CW. 1.7). As demais verda-
des reveladas, “que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação”
podem ser compreendidas por intermédio de uma interpretação lógica, ampa-
rada no conjunto dos ensinamentos bíblicos (CW., I.6).
Daqui concluímos que o nosso sistema doutrinário deve permanecer sempre aberto
a uma volta, a um reestudo das Escrituras. O nosso sistema doutrinário, por melhor
que seja – e eu estou convencido de que é –, não pode ser mais rico do que a Palavra
de Deus, como bem observou Berkouwer (1903-1996): “Porventura a Escritura não
é mais rica do que qualquer pronunciamento eclesiástico, por mais excelente e atento
ao Verbo divino que este possa ser?” (BERKOUWER, 1964, p. 72). Por isso, o crité-
rio último de análise, será sempre “O Espírito Santo falando na Escritura” (CW. 1,10).
Calvino (2006, p. 116) sempre manifestou um alto apreço pelas Escrituras; elas são
“A Palavra pura de Deus”, a “Sagrada Palavra de Deus”, “Santa Palavra”, “Palavra
da verdade”, “Palavra de Vida”, Infalível, que tem “segura credibilidade”: é ínte-
gra. Por isso ela é a “Norma da fé”, “Infalível norma de Sua sacra vontade”. Esta
Palavra, portanto, antecede à Igreja: “Se o fundamento da Igreja é a doutrina
profética e apostólica, impõe-se a esta haver assistido certeza própria antes que
aquela começasse a existir” (CALVINO, As Institutas, I.7.1.).
Portanto, como decorrência lógica, não é a Igreja que autentica a Palavra por
sua interpretação, como a igreja romana sustentou em diversas ocasiões; “um
testemunho humano falível (como o da igreja) não pode moldar o fundamento
da divina fé” (TURRETIN, s.d., p. 89).
É a Bíblia que se autentica a si mesma como Palavra autoritativa de Deus e, é
Ele mesmo quem nos ilumina para que possamos interpretá-la corretamente (Sl
119,18). “A carne não é capaz de tão alta sabedoria como é compreender a Deus
e o que a Deus pertence, sem ser iluminada pelo Espírito Santo” (CALVINO, As
Institutas, I. 7,1). Por isso, o Espírito não pode ser separado da Palavra.
Somente pela operação divina poderemos reconhecer a Sua origem divina bem como
compreendê-La salvadoramente. “A suprema prova da Escritura se estabelece reiteradamente
da pessoa de Deus nela a falar” (CALVINO, As Institutas, I. 7,1.). Portanto, a pretensão da
igreja de subordinar a autoridade da Bíblia ao seu arbítrio consiste numa “blasfêmia”: “É
chocante blasfêmia afirmar que a Palavra de Deus é falível até que obtenha da parte dos
homens uma certeza emprestada” (CALVINO, 1998, p. 98). Em outro lugar: “a Palavra do
Senhor é semente frutífera por sua própria natureza” (CALVINO, 1996, p. 103).
A Reforma Protestante
184 UNIDADE III
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A REFORMA: TRABALHO E VOCAÇÃO
Adão e Eva, que tinham todas as coisas diante de si, nem por isso foram priva-
dos de guardar e cultivar o jardim do Éden (Gn 2,15). Partindo desta perspectiva, a
grandeza de nosso trabalho não está simplesmente no que fazemos ‒ embora haja
atividades que sejam em si mesmas repulsivas ou que não deveriam fazer parte de
nossas expectativas por contribuírem para o prejuízo de nosso próximo ‒, mas, em
como o fazemos, implicando aí o seu objetivo último. Desta forma, a consagração
às nossas vocações revela a seriedade com que olhamos o nosso Senhor e a nossa
missão. Não há satisfação maior do que atender à vocação de Deus. Alegrar-nos
em Deus significa ter o prazer da sua comunhão em alegre obediência.
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O SÁBADO DO SENHOR
a) Terminologia
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fala do “Dia do Senhor” (kuriakÁ ¹(mšra) (kyriakê hêmera).
Já o termo domingo é proveniente do latim, dies dominica, (dia do Senhor)
que traduz o grego (kuriakÁ ¹mšra) (kyriakê hêmera). A expressão latina teve
influência cristã visto que os romanos designavam originariamente esse dia de
dies solis (dia do sol) (LOWERY, 1988, p. 461).
b) A origem
As Escrituras registram que Deus após ter criado todas as coisas: nos céus e na
terra; no sétimo dia, descansou da obra da criação; Deus completou o que iniciou;
temos então, negativamente, a conclusão de Sua obra criativa e, positivamente,
a santificação do sétimo dia (Gn 2.2-3).
A palavra sábado não ocorre na narrativa de Gênesis, contudo, é nos dito posterior-
mente em linguagem antropomórfica: “Porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus
e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o SENHOR
■ O Significado
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divino permanece para todas as épocas.
“Os ‘Dez Mandamentos’ retêm um caráter tão obrigatório com relação ao
crente da nova aliança como o princípio da fé que formava a essência central da
fase abraâmica da aliança da redenção” (ROBERTSON, 1997, p. 67).
a) Significado Espiritual
O sábado foi abençoado (Gn 2,3; Ex 20,11) e santificado por Deus (Gn 2,3; Ex
20,8,11; 31,14; Dt 5,12); ele tornou-se um dia especial para o Seu povo, sendo
também um sinal da Aliança perpétua entre Deus e nós (Ex 31,16-17). Um sinal
de nossa santificação operada por Deus (Ez 20,12). O sábado, é que confere sen-
tido correto à nossa vida, trabalho e demais relações. É no descanso do Senhor
que encontramos o real sentido de nossa existência.
Quando olhamos o 4º mandamento – já conhecido e desobedecido, daí o
“lembra-te” (Ex 20,8) ‒ em relação aos outros, vemos que este é o mais extenso (Ex
20,8-11), sendo detalhado e relacionado com o descanso de Deus (Gn 2,2-3). É
digno de nota que Deus avaliou a sua criação como muito boa; no entanto, somente
o sábado foi santificado, dando talvez a entender que o clímax da criação não foi a
criação do homem, mas o dia de descanso, o sétimo dia ou, mais provavelmente,
significando que o sábado foi abençoado não como fim em si mesmo, mas como
um dia concedido por Deus para o homem; o homem foi criado primeiro. O sábado
foi criado por causa do homem e para ele, atendendo às suas necessidades (inclu-
sive metafísicas) dentro do propósito divino que inclui o homem em sua inteireza.
Jesus Cristo instrui: “O sábado foi estabelecido por causa (™gšneto) (“veio a
existir”, “foi feito”) do homem, e não o homem por causa do sábado” (Mc 2,27).
“Deus criou o Sábado porque ele era para o bem do homem e de toda a criação”
(ROBERTSON, 1997, p. 63). O sábado como bênção de Deus para o homem, man-
tém sempre viva nossa memória no fato de que Deus criou o mundo e tudo que nele
há (Gn 2,2-3; Ex 20,11) e, também, descreve uma situação histórica (a libertação
do Egito) prefigurando a libertação por vir; a obra recriadora de Deus (Dt 5,15).
Hendriksen comenta (2003, p. 144):
O sábado foi instituído para ser uma bênção para o homem: para man-
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b) O Significado Social
O sábado faz uma conexão oportuna e ilustrativa de nossas obrigações para com
Deus e para com o nosso próximo, daí a sua ênfase também social. Logo, longe
de se tornar um fardo, deveria ser um motivo de alegria.
Nele está embutido o conceito de igualdade entre os homens e a necessi-
dade que todos têm de descanso. O sábado não é para alguns, mas para todos;
ele tem um alcance mundial: homens, mulheres, crianças, cativos, animais e a
própria terra. Para os servos e aqueles que estão sob o domínio dos outros, há a
possibilidade de alívio de suas tarefas (Ex 20,8-11; Dt 5,12-15).
O sábado, além de uma ampla função social, tem também um sentido eco-
lógico; a terra deve descansar, além de semanalmente, em cada sete anos e,
finalmente, no quinquagésimo ano. A terra deve também usufruir o ano sabá-
tico (Lv 25,1-12). Para o judeu a contagem sabática era mais relevante do que a
década; boa parte de sua mensuração do tempo era feita por meio de sete dias,
meses e anos (Gn 7,4.10; 8,10.12; 29,18.20.27). Quanto à questão humanitária,
vemos a recordação ao povo de que eles foram escravos no passado; portanto,
sabiam o quão explorado foram e, como desejavam de forma mais imediata o des-
canso de suas pesadas cargas. O sábado servia para que todos tomassem alento
(Ex 20,10; 23,12; Dt 5,13-15). Calvino comenta que “embora o sábado tenha
sido ab-rogado, ainda tem vigência entre nós (...) para que servos e trabalhado-
res tenham um descanso de seu labor” (CALVINO, 2003, p. 26).
Dando um salto histórico, no Novo Testamento, parece razoável associar o
recolhimento de oferta para as igrejas necessitadas de Jerusalém com o primeiro
dia da semana, o “sábado cristão” (1Co 16,1-2).
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bém, o nosso dia de descanso no qual tomamos alento na própria dedicação
litúrgica ao Senhor. De modo subjetivo, contudo, o sábado tem sentido de des-
canso. Portanto, dentro dessa perspectiva, o sábado só pode ser considerado por
aquele que trabalhou arduamente durante os outros dias, não necessariamente os
seis dias (nem que seja à procura de trabalho). O descanso segue naturalmente
a ordem de trabalho extenuante (Ex 34,21; Lv 23,3; Dt 5,13-14). O descanso
pressupõe uma obra completa, realizada dentro dos nossos recursos, inclusive
considerando o tempo disponível (Gn 2,2; Dt 5,13).
■ O Compartilhar de Deus
Mesmo não abrindo mão de Sua soberania, Deus compartilha com as Suas criatu-
ras o Seu poder. O nosso domínio está sob o domínio de Deus. O nosso domínio
concedido, é sobre as obras, todas elas de Deus. A criação é produto da vontade
poderosa de Deus; foi Ele quem a estabeleceu. Somente o Deus que é o proprie-
tário de tudo pode legitimamente delegar poderes.
Na contemplação meditativa da Criação podemos perceber aspectos da bon-
dade de Deus que nos aliviam em nossas dores e limitações, nos concedendo a
visão da harmoniosa variedade e beleza daquilo que criou. Nesta visão, somos
conduzidos a nos admirar e a glorificar a Deus por Sua manifestação de sabe-
doria, bondade e graça para conosco. O salmista demonstra isso:
“Que variedade, SENHOR, nas tuas obras (hf,[]m) (ma`aseh)! Todas com
sabedoria as fizeste; cheia está a terra das tuas riquezas” (Sl 104,24).
“O SENHOR é bom para todos, e as suas ternas misericórdias permeiam
todas as suas obras (hf,[]m) (ma`aseh)” (Sl 145,9).
“Justo é o SENHOR em todos os seus caminhos, benigno em todas as suas
obras (hf,[]m) (ma`aseh)” (Sl 145,17).
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graça providente e capacitante de Deus. É neste particular – domínio –, que o
homem foi bastante aproximado de Deus pelo poder que lhe foi outorgado.
Ao homem foi conferido o poder de ir além da matéria, podendo raciocinar,
estabelecer conexão e visualizar o invisível. “O pensamento e o conhecimento do
homem, apesar de serem extraídos de seu cérebro, são, todavia, em sua essên-
cia uma atividade inteiramente espiritual, pois transcendem aquilo que ele pode
ver e tocar” (BAVINCK, 2001, p. 18).
Ao homem, portanto, foi concedido o privilégio responsabilizador de pensar,
analisar, escolher livremente o seu caminho de vida, verbalizar os seus pensa-
mentos e emoções, podendo, assim, dialogar com o seu próximo (Gn 3,6) e com
Deus (Gn 3,9-13), sendo entendido por Ele e entendendo a Sua vontade. Portanto,
desde o início estava constituída uma comunidade, já que: “Comunicar é uma
maneira de compreensão mútua” (MAY, 1974, p. 57-58).
Quando usamos adequadamente dos recursos que Deus nos confiou para
dominar a terra, estamos cumprindo o propósito da criação, glorificando a Deus.
É necessário, portanto, que glorifiquemos a Deus em nosso trabalho pela forma
legítima como o executamos. Devemos estar atentos ao fato de que o nosso
domínio está sob o domínio de Deus. A Criação pertence a Deus por direito; a
nós por delegação de Deus (Sl 24,1; 50,10-11; 115,16). Ele mesmo compartilhou
conosco este poder, contudo, não abriu mão dele. Teremos de Lhe prestar contas.
Por isso, ainda que o nosso domínio seja demonstrado, especialmente pelo
avanço da ciência, novos desafios surgem. A plenitude deste domínio, temos em
Cristo Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
■ Definição de Trabalho
Trabalho pode ser definido como o esforço físico ou intelectual, com vistas a um
determinado fim. O verbo “trabalhar” é proveniente do latim vulgar tripaliar tor-
turar com o tripallium. Este é derivado de tripalis, cujo nome é proveniente da
sua própria constituição gramatical: tres & palus (pau, madeira, lenho, estaca),
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que significava o instrumento de tortura de três paus e que também servia para
“ferrar os animais rebeldes”.
O tripallium também era um instrumento de três paus aguçados que, algu-
mas vezes munidos de pontas de ferro, eram utilizados pelos agricultores para
bater o trigo, as espigas de milho e o linho para rasgá-los e esfiapá-los. A ideia
de tortura evoluiu, tomando o sentido de “esforçar-se”, “laborar”, “obrar”. Le Goff
nos chama a atenção para uma conexão interessante: a condenação de Adão –
que após a Queda obteria o alimento em “fadigas” – e Eva – que daria a luz “em
meio de dores”, dizendo: “A origem etimológica da palavra ‘trabalho’ aparece
com um sentido particular na locução ‘sala de trabalho’, designando ainda hoje
a sala de parto em uma maternidade” (LE GOFF, 2006, p. 66).
Etimologia à parte, devemos observar que o trabalho apresenta as seguintes
características (SCHRECKER, 1948):
a) Envolve o uso de energia ‒ “força em ação” ‒ destinada a vencer a resis-
tência oferecida pelo objeto que se quer transformar – intencionalidade.
b) O trabalho se propõe sempre a uma transformação ainda que pequena.
c) Todo o trabalho está ligado a uma necessidade pessoal e social.
d) Todo trabalho traz como pressuposto fundamental, o conceito de que o
objeto, sobre o qual trabalha, é de algum modo aperfeiçoável, mediante
o emprego de determinada energia contribuindo para o progresso socie-
dade – esforço e perseverança.
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O HOMEM E O TRABALHO
Aqui temos que ter cautela para não incorrermos no equívoco generalizante de
tomar um pensamento aqui e outro ali e presumir termos a amostragem caracterís-
tica do pensamento grego. Nem sempre, por exemplo, os pensamentos de Sócrates,
Platão e Aristóteles representam o modo habitual dos gregos verem a realidade.
Tomando o cuidado necessário, podemos observar que dentro do ideal
grego de reflexão e serenidade, não há espaço para um pensar em “traba-
lho braçal”. Daí a visão grega do trabalho ser extremamente negativa, sendo
considerado algo inferior. Assim, é fácil compreender a justificativa da escra-
vidão. Como a vida contemplativa é a mais valiosa, nos assemelhando aos
deuses, os homens livres poderiam ser aproximar deste modelo de contem-
plação divina (PENNINGS, 2012).
Mesmo Hesíodo (1996) reconhecendo que “o trabalho não é vergonha alguma,
mas a preguiça é!”, na descrição que faz da Idade de Ouro, os deuses viviam sob
o domínio de Cronos em perfeita paz, sem preocupações, alegrando-se nas fes-
tas, usufruindo dos bens produzidos espontânea e generosamente pela terra; ou
seja: na ociosidade celestial e terrena.
37,14-15; Sl 8,3.6; 19.1-6; 28,5; 86,8; 92,4-5; 104,24; 111,2; 139,14; 145,9,17 etc).
O trabalho não está associado ao pecado, antes, faz parte do propósito pri-
mevo de Deus para o homem e revela a sabedoria divina (Gn 1,28; 2,15; Ex 20,9;
Sl 104,23; Is 28,23-29). Os rabinos, como exemplo desta perspectiva, além do
estudo metódico da Lei, aplicavam-se ao trabalho manual para suprir às suas
necessidades (Vejam-se: Mc 6,3 (Mt 13,55); At 18,3).
Alfred Edersheim (1825-1889) comenta com propriedade:
Entre os judeus o desprezo pelo trabalho braçal, uma das características
dolorosas do paganismo, não existia. Pelo contrário, era considerado
obrigação religiosa, com frequência e muita seriedade insistia-se na
necessidade de se aprender algum ofício, desde que ele não levasse a
extravagâncias nem propiciasse um desvio da observância pessoal da
Lei (EDERSHEIM, 1981, p. 252).
Há um ditado atribuído ao Rabino Judá (2º século), que dizia: “Aquele que não
ensina o próprio ofício ao filho ensina-o a roubar” (BARCLAY, 1974, p. 145).
No entanto, com o passar dos anos, foi criada uma dicotomia entre o sagrado
e o profano. No Talmude, coleção de leis rabínicas, há uma oração (séc. 1º) feita
pela perspectiva do escriba, que diz o seguinte:
Eu te agradeço, Senhor, meu Deus, porque me deste parte junto daque-
les que se assentam na sinagoga, e não junto daqueles que se assentam
pelas esquinas das ruas; pois eu me levanto cedo, eles também se le-
vantam cedo; eu me levanto cedo para as palavras da Lei, e eles, para
as coisas fúteis. Eu me esforço, eles se esforçam: eu me esforço e recebo
a recompensa, eles se esforçam e não recebem recompensa. Eu corro e
eles correm: eu corro para a vida do mundo futuro, e eles, para a fossa
da perdição (JEREMIAS, 1980, p. 144).
O Homem e o Trabalho
196 UNIDADE III
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(Jo 5,17). “As obras que o Pai me confiou para que eu as realizasse, essas que eu
faço testemunham a meu respeito de que o Pai me enviou” (Jo 5,136).
Há também outro grupo de palavras que realçam a visão cristã a respeito
do serviço. O termo “diácono” e suas variantes, provêm do grego di£konoj,
diakon…a e diakonšw, palavras que significam respectivamente, “servo”, “serviço”
e “servir”. Essas palavras apresentam três sentidos especiais, com uma pesada
conotação depreciativa: a) Servir à mesa; b) Cuidar da subsistência; c) Servir: No
sentido de “servir ao amo”.
Para os gregos, servir era algo indigno. Os Sofistas chegavam a afirmar que o
homem reto só deve servir aos seus próprios desejos, com coragem e prudência.
Partindo da compreensão grega de que nascemos para comandar, não para
servir, Platão (427-347 a.C.) e Demóstenes (384-322 a.C.), um pouco mais mode-
rados, admitiam que o serviço (diakon…a) só tinha algum valor quando prestado
ao Estado. Portanto, “a ideia de que existimos para servir a outrem não cabe, em
absoluto, na mente grega” (BEYER, 1965, p. 275).
Jesus Cristo deu uma grande lição aos seus ouvintes ao verbalizar a sua
missão. Ele apresenta um contraste evidente com o conceito grego e, ao mesmo
tempo, eleva de forma magnífica o pensamento judeu: “.... O Filho do homem, que
não veio para ser servido (diakonšw), mas para servir (diakonšw)....” (Mt 20,28).
Terminadas a série de tentações satânicas desferidas contra o Senhor Jesus, regis-
tra Mateus: “e eis que vieram anjos e o serviram (diakonšw)” (Mt 4,11/Hb 1,14).
Paulo demonstra que “O ministério (diakon…a) do Espírito” (2Co 3,8) que
opera de forma eficaz por meio do Evangelho é glorioso. Paulo se declara diácono
do Evangelho: “Se é que permaneceis na fé, alicerçados e firmes, não vos deixando
afastar da esperança do evangelho que ouvistes e que foi pregado a toda criatura
debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, me tornei ministro (di£konoj)” (Cl 1,23).
Bem como, diácono da Igreja:
24
Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que
resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que
é a igreja; 25 da qual me tornei ministro (di£konoj) de acordo com a
dispensação da parte de Deus, que me foi confiada a vosso favor, para dar
pleno cumprimento à palavra de Deus (Cl 1.24-25).
Evangelho: “Quem é Apolo? E quem é Paulo? Servos (di£konoj) por meio de quem
crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um” (1Co 3.5).
Vemos, portanto, como o conceito de trabalho demonstrado por Jesus Cristo
e pelos apóstolos está longe de ser irrelevante ou humilhante, antes, tem uma
nova conotação que ultrapassa em muito a visão predominante. O Apóstolo
Paulo trabalhava como fazedor de tendas (At 18,3), não sendo o seu trabalho
fácil, quer nesta ou em outra atividade (1Co 4,12). Mesmo se valendo de uma
figura comum declarando que o trabalhador é digno de seu salário (Rm 4,4),
lutava para não ser pesado a ninguém ainda que isso não fosse ilegítimo como
pregador da Palavra (1Tm 5,17-18/Mt 10,10).
À igreja de Tessalônica onde, ao que parece, alguns por motivos pretensa-
mente escatológicos eram inclinados a abandonar o trabalho, Paulo insiste em
lembrar a estes “piedosos preguiçosos” o seu testemunho e ratificar seus ensi-
namentos: “8 Nem jamais comemos pão à custa de outrem; pelo contrário, em
labor (kÒpoj) e fadiga (mÒxqoj = um trabalho de difícil execução), de noite e
de dia, trabalhamos, a fim de não sermos pesados a nenhum de vós; 9 não porque
não tivéssemos esse direito, mas por termos em vista oferecer-vos exemplo em nós
mesmos, para nos imitardes. 10 Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos
isto: se alguém não quer trabalhar (™rg£zomai), também não coma. 11 Pois, de
fato, estamos informados de que, entre vós, há pessoas que andam desordenada-
mente, não trabalhando (™rg£zomai); antes, se intrometem na vida alheia. 12 A
elas, porém, determinamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando
(™rg£zomai) tranquilamente, comam o seu próprio pão. 13 E vós, irmãos, não vos
canseis de fazer o bem” (2Ts 3.8-13). “Porque, vos recordais, irmãos, do nosso labor
O Homem e o Trabalho
198 UNIDADE III
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3,17). Sustentava que isso era uma característica indispensável aos mestres (1Tm
4,12; Tt 2,7). Do mesmo modo entendia Pedro (1Pe 5,3).
Certamente como reflexo desses ensinamentos, encontramos no segundo
século, o Didaquê (c. 120 A.D.), capítulo XII, instruindo:
1. Acolha todo aquele que vier em nome do Senhor. Depois, examine
para conhecê-lo, pois você tem discernimento para distinguir a es-
querda da direita.
2. Se o hóspede estiver de passagem, dê-lhe ajuda no que puder. Entre-
tanto, ele não deve permanecer com você mais que dois ou três dias,
se necessário.
3. Se quiser se estabelecer e tiver uma profissão, então que trabalhe
para se sustentar.
4. Porém, se ele não tiver profissão, proceda de acordo com a prudên-
cia, para que um cristão não viva ociosamente em seu meio.
5. Se ele não aceitar isso, trata-se de um comerciante de Cristo. Tenha
cuidado com essa gente!9
9
Texto completo em: <http://www.monergismo.com/textos/credos.didaque.htm>.
trabalhe árdua, intensa e exaustivamente para se manter e ainda ter como suprir
as necessidades eventuais de seus irmãos. Vejo aqui um princípio pedagógico. É
como se ele dissesse: aprenda na prática como é difícil obter licitamente o sus-
tento. Faça isso com perseverança. Ainda mais: você que subtraiu de outros no
passado o produto de seu trabalho, se esforce agora por ajudar os que necessitam.
Paulo dá uma dimensão teológica ao trabalho, mostrando que todo e qualquer
trabalho deve ser feito para a glória do Senhor (Cl 3,23). Timóteo deveria se esfor-
çar por se apresentar a Deus como obreiro aprovado que manejava bem a Palavra
da verdade: “Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro (™rgat»j) que
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não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2Tm 2,15).
Contrastando a isso e, ao mesmo tempo, refletindo aspectos da compre-
ensão de seu tempo, no século XIII, o poeta francês Rutebeuf (c. 1245-1285),
formado na Universidade de Paris, proclama com orgulho: “Não sou trabalha-
dor manual” (LE GOFF, 2002, p. 570).
Na Idade Média – entre duas tradições antagônicas: a greco-romana que
desprestigia o trabalho e a cristã que o valoriza – há de certa forma, um retorno
à ideia grega, considerando o trabalho –, no sentido manual, (banaus…a), “arte
mecânica”, como sendo algo degradante para o ser humano, e inferior à (sxol»),
ao ócio, descanso, repouso, à vida contemplativa e ociosa (sxola/zw), por um
lado, e à atividade militar pelo outro. Aliás, é possível que esta perspectiva tenha
contribuído para que os gregos não tivessem desenvolvido uma ciência empírica.
Na visão de São Tomás de Aquino (1225-1274), o trabalho era, no máximo,
considerado “eticamente neutro” (WEBER, 1967, p. 52). Contudo, perpetuou a
sua preferência para com a vida contemplativa. Segundo a Igreja romana:
[...] a finalidade do trabalho não é enriquecer, mas conservar-se na con-
dição em que cada um nasceu, até que desta vida mortal, passe à vida
eterna. A renúncia do monge é o ideal a que toda a sociedade deve
aspirar. Procurar riqueza é cair no pecado da avareza. A pobreza é de
origem divina e de ordem providencial (PIRENNE, 1982, p. 19).
Ainda na Idade Média, especialmente a partir do século XI, a posição ocupada pelo
trabalho era regida pela divisão gradativa de importância social: Oradores (oratores)
(eclesiásticos), Defensores (bellatores) (guerreiros) e Trabalhadores (laboratores)
(agricultores, camponeses). Desta forma, os eclesiásticos, no seu ócio e abstrações
“teológicas” é que tinham a prioridade, ocupando um lugar proeminente.
O Homem e o Trabalho
200 UNIDADE III
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imagem. Desse termo derivará operari (criar uma obra) operarius (aquele que
cria)”. Labor, por sua vez, refere-se ao trabalho laborioso, “está do lado do erro
e da penitência” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 64-65).
Biéler (1999, p. 118) comenta:
O trabalho, especialmente o trabalho criador de bens e riqueza, o tra-
balho manual, se não decaíra mais até o nível do trabalho servil da
Antiguidade, foi, todavia, considerado como uma necessidade tempo-
ral desprezível com relação aos exercícios da piedade. E aqueles que
se dedicavam às atividades econômicas e financeiras, os negociantes e
banqueiros, eram particularmente desconsiderados.
A PERSPECTIVA DE CALVINO
Não nos cabe aqui analisar a história da filosofia do trabalho, contudo, devemos
mencionar que a Reforma resgatou o conceito cristão de trabalho, fazendo uma
crítica fundamental à concepção monástica medieval, eliminando, por exemplo,
a distinção entre vida ativa representada por Marta e a vida contemplativa repre-
sentada por Maria (Lc 10.38-42), sendo este o modelo do caminho monástico.
Com isto, não se quer dizer que o homem deva ser um ativista, mas que o tra-
balho é uma “bênção de Deus”. Lutero teve uma influência decisiva, quando
traduziu para o alemão o Novo Testamento (1522), empregando a palavra
“beruf ” para trabalho, em lugar de “arbeit” (palavra derivada do latim arvus,
terreno arável). “Beruf ” – com toda a dificuldade de encontrar um equivalente
em nossa língua –, acentua mais o aspecto da vocação do que o do trabalho
propriamente dito. As traduções posteriores, inglesas e francesas, tenderam a
seguir o exemplo de Lutero. A ideia que se fortaleceu, é a de que o trabalho é
uma vocação divina.
Como vimos, Calvino afirma com firmeza: “Se seguirmos fielmente nosso
chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não há trabalho insig-
nificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante ante
os olhos de Deus” (CALVINO, 2000, p. 77).
Em outro lugar, combatendo a interpretação clerical medieval que estimu-
lava à ociosidade e especulações inúteis, diz:
É um erro que aqueles que fogem dos afazeres do mundo e engajem-
se em contemplação estão vivendo uma vida angelical. (...) Sabemos
que os homens foram criados para ocuparem-se com o trabalho e que
nenhum sacrifício é mais agradável a Deus do que quando cada um
atende ao seu chamado e procura viver completamente em prol do bem
comum (CALVINO, 1981, p. 142-143).
O Homem e o Trabalho
202 UNIDADE III
O amor ao próximo faz com que o nosso honesto trabalho não se limite a
satisfazer as nossas necessidades, mas, também, a ajudar aos nossos irmãos: “O
amor nos leva a fazer muito mais. Ninguém pode viver exclusivamente para si
mesmo e negligenciar o próximo. Todos nós temos de devotar-nos à ação de
suprir as necessidades do próximo” (CALVINO, 1998, p. 146).
Entende que “a indolência e a inatividade são amaldiçoadas por Deus”
(CALVINO, 1996, p. 355). Em outro lugar:
Moisés acrescenta agora que a terra foi outorgada ao homem com esta
condição: que se ocupasse em cultivá-la, de onde se segue que foram
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
os homens criados para empregar-se em fazer alguma coisa e não para
estarem ociosos e indolentes. Verdade é que esse labor era bem alegre
e agradável, longe de todo aborrecimento e cansaço; todavia, quando
Deus quis que o homem se afizesse a cultivar a terra, na pessoa dele
condenou todo repouso indolente (CALVINO, 1996, p. 125).
Pregando no Livro de Efésios, Calvino instrui aos pais. Podemos resumir assim:
Atente cada um com diligência para consigo, e os pais, querendo dirigir
os filhos a quaisquer empregos, não tenham esse costume a que se têm
habituado de dizer: qual profissão será a mais rendosa? Antes, estes
dois aspectos se conjuguem, isto é, quando houver considerado em que
é que meu filho poderá ganhar a vida e, quando estiver casado, como
proverá para si e sua família? Que sirva ao próximo e o uso de sua arte
e de sua profissão redunde no proveito comum de todos.
Assim, pois, por essa razão, impõe-nos ter sempre diante dos olhos que,
em qualquer estado que vivamos, é necessário que Deus marche adiante,
como se a si nos chamasse e nós seguíssemos o caminho que por sua
Palavra nos mostra. Certo é que jamais profissão alguma será dele apro-
vada se não for útil, e se o público não for dela servido, e se também não
redundar em proveito de todos (CALVINO, 1998, p. 447-460).
O Homem e o Trabalho
204 UNIDADE III
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emprestado. Ou, cobrar juros do que não deveria ser cobrado.
O empréstimo dentro da visão bíblica, não fazia parte simplesmente da
esfera financeira. O fator econômico não era o elemento determinante, nem
autônomo, antes, refletia valores teológicos e espirituais. Portanto, o emprés-
timo dentro do princípio teológico bíblico, envolvia também uma perspectiva
social: aliviar a pobreza.
Os que afirmam estar em uma relação de pacto com Deus têm a obri-
gação moral de evitar práticas exploratórias, refletindo a compaixão
divina, mostrando bondade para com os companheiros menos afortu-
nados e protegendo o direito do pobre quanto às necessidades básicas
da vida (WAKELY, 2001, p. 178).
O Homem e o Trabalho
206 UNIDADE III
juros cobrada depois que o devedor inadimplente era preso como escravo” (FISHER,
1998, p. 1008). Comentando o Sl 15,5, Calvino faz uma longa explanação sobre isso:
Neste versículo Davi prescreve aos santos a não oprimirem seu pró-
ximo com usura, nem a forçá-lo a aceitar suborno em favor de causas
injustas. (…) lembremo-nos, pois, de que toda e qualquer barganha em
que uma parte injustamente se empenha por angariar lucro em preju-
ízo da outra parte, seja que nome lhe damos, é aqui condenada. (…)
aconselharia a meus leitores a se precaverem de engenhosamente in-
ventar pretextos, pelos quais tirem proveito de seus semelhantes, e para
que não imaginem que qualquer coisa pode ser-lhes lícita, quando para
outros é grave e prejudicial.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Com respeito à usura, é raríssimo encontrar no mundo um usurário
que não seja ao mesmo tempo um extorquidor e viciado ao lucro ilíci-
to e desonroso. Consequentemente, Cato desde outrora corretamente
colocava a prática da usura e o homicídio na mesma categoria de cri-
minalidade, pois o objetivo dessa classe de pessoas é sugar o sangue
de outras pessoas. É também algo muito estranho e deprimente que,
enquanto todos os demais homens obtêm sua subsistência por meio do
trabalho, enquanto os cônjuges se fatigam em suas ocupações diárias
e os operários servem à comunidade com o suor de sua fronte, e os
mercadores não só se empenham em variados labores, mas também
se expõem a muitas inconveniências e perigos – os agiotas se deixam
levar por vida fácil sem fazer coisa alguma, recebendo tributo do labor
de todas as outras pessoas. Além disso, sabemos que, geralmente, não
são os ricos que são empobrecidos por sua usura, e, sim, os pobres,
precisamente quem deveria ser aliviado (CALVINO, s.d., p. 297-298).
Quando há alguns anos fui consultado sobre a publicação de uma seleção das car-
tas de Calvino em português (CALVINO, 2009), entre outras ideias, sugeri que a
obra passasse por um trabalho de inserção de notas cruzando as suas cartas com
a sua teologia expressa especialmente nas Institutas e em seus comentários bíbli-
cos, à semelhança do que fora feito na edição das Institutas de 1541 publicada em
português em 2006 (CALVINO, 2006). Desta forma, teríamos uma aproximação
por via inversa: partiríamos de suas cartas para a sua teologia. Não obtive resposta.
O Homem e o Trabalho
208 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
torci” (CALVINO, 1948, p. 42-43).
A ética de Calvino tem como um de seus fundamentos a doutrina da
Providência. Crê que é impossível uma vida cristã autêntica sem o descanso
proveniente da confiança subjetiva no cuidado de Deus:
Quem quer que não confie na providência divina, bem como não en-
comende sua vida à fiel diretriz dela, ainda não aprendeu corretamente
o que significa viver. Em contrapartida, aquele que confiar a guarda de
sua vida ao cuidado divino, não duvidará de sua segurança mesmo em
face da morte (CALVINO, 1999, p. 16).
não nos sendo indiferente: “quando nada senão destruição se manifestar ante
nossos olhos, para qualquer lado que nos viremos, lembremo-nos de erguê-los
em direção do trono celestial, donde Deus vê tudo o que se faz aqui em baixo”
(CALVINO, 1999, p. 184).
Qual a implicação ética disso tudo? Indiferença? Não. Analisemos este ponto.
A compreensão de Calvino a respeito da direção de Deus sobre todas as coisas,
ao contrário do que poderia parecer, não o leva à ociosidade ou a um tipo de
perspectiva fatalista afirmando que nada podemos fazer a não ser nos contentar
com o que está previamente fixado por uma causa sobrenatural. Pelo contrário,
sua compreensão de providência de Deus inspira-o ao trabalho, consciente de
que somos instrumentos de Deus para a execução do Seu sábio e eterno propó-
sito. Esta doutrina tem, portanto, uma “urgência pragmática” para todo o povo
de Deus. O tempo é um recurso precioso que Deus nos concede para o progresso
em todas as esferas de nossa vida.
A ética de Calvino leva em questão duas necessidades básicas:
1) A consideração sobre o drama da existência humana, sujeita ao pecado
e à morte. O pecado afetou a integralidade do homem.
2) Explorar as implicações de nossa fé: responsabilidade humana. O pecado
tende a anestesiar a nossa consciência nos acomodando à paisagem de
miséria cotidiana nas diversas molduras de nossa existência. A Palavra,
no entanto, desperta as nossas consciências.
O Homem e o Trabalho
210 UNIDADE III
Portanto, a certeza do cuidado de Deus não nos deve conduzir à letargia, antes a
nos tornar agentes deste cuidado. Devemos ter em vista que o cuidado de Deus
envolve pessoas das quais Ele cuida e, ao mesmo tempo, pessoas por meio das
quais Ele assiste. Deste modo, somos agentes ordinários de Deus − ainda que
não tenhamos o discernimento constante deste fato em nossas ações − no Seu
socorro. Muitas vezes em nossas ações ordinárias estamos sendo agentes de Deus
em resposta a orações dos fiéis. Existe ética porque há um Deus providente.
A ética cristã é uma resposta à certeza do cuidado de Deus. Somos responsá-
veis diante de Deus por levar adiante o que nos compete, dentro de nossa esfera:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“Se o Senhor nos confiou a proteger a nossa vida, que a cerquemos de cuida-
dos; se oferece recursos, que os usemos; se nos previne de perigos, a eles não
nos arrojemos temerariamente; se fornece remédios, não os negligenciemos”
(CALVINO, As Institutas, I. 17. 4.).
Aquele que limitou a nossa vida, confiou-nos também a solicitude por ela, o
cuidado dela; deu-nos os meios para preservá-la; e nos habilitou a prever os
perigos, para que não nos surpreendam, dando-nos ao contrário remédios
para capacitar-nos a preveni-los. Agora se vê qual é o nosso dever. Se o Se-
nhor nos dá a nossa vida para que dela cuidemos, que a preservemos; se nos
dá os meios para fazê-lo, que os utilizemos; se Ele nos mostra os perigos, que
não nos atiremos loucamente e sem propósito; se Ele nos oferece remédios,
que não os menosprezemos.
Fonte: Calvino (2006).
A Lei, portanto, nos conduz à graça que brilha de forma magnífica na face de
Cristo. A ética cristã é fortemente marcada pela certeza de que a nossa salvação
é por graça; pertence totalmente a Deus e, ao mesmo tempo, pela consciência
da necessidade de sermos obedientes à Lei de Deus: “Um cristão medirá todas
as suas ações por meio da lei de Deus, seus pensamentos secretos estarão sujei-
tos à sua divina vontade” (CALVINO, 2000, p. 31).
A salvação é totalmente pela graça, contudo, esta salvação, libertação do
domínio do pecado, não nos conduz a uma ética anomista (sem lei), antes a um
compromisso de fé, de busca de coerência entre o crer, fazer e ensinar, na certeza de
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O COMPORTAMENTO CRISTÃO NA
RIQUEZA E NA POBREZA
munificência através de ações de graça e fazer o bem aos nossos irmãos. Esses são
os verdadeiros sacrifícios com os quais os verdadeiros cristãos devem comprome-
ter-se; e não sobra nem tempo nem lugar para qualquer outro (CALVINO, 1997).
Não é uma honra trivial o fato de Deus considerar o bem que fazemos
aos homens como sacrifício oferecido a Ele próprio, e o fato de valori-
zar tanto nossas obras, que as denomina de santas. Portanto, onde nosso
amor não se manifesta, não só despojamos as pessoas de seus direitos,
mas também a Deus mesmo, o qual solenemente dedicou a Si o que or-
denou fosse feito em favor dos homens (CALVINO, 1997, p. 394).
Repartir com os outros’ tem uma referência mais ampla do que fazer o
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bem. Inclui todos os deveres pelos quais os homens se auxiliam reciproca-
mente; e é um genuíno distintivo do amor que os que se encontram unidos
pelo Espírito de Deus comunicam entre si (CALVINO, 1997, p. 394).
Portanto, devemos cultivar o tipo de sensibilidade espiritual que nos faça enxer-
gar com gratidão e louvor os atos de Deus em nossa existência, a fim de não
sermos injustos para com Ele:
Quando Deus, em qualquer tempo, nos socorre em nossa adversidade,
cometemos injustiça contra seu nome se porventura esquecermos de
celebrar nossos livramentos com solenes reconhecimentos (CALVINO,
1999, p. 630).
Deus é o autor de todo bem, segue-se que devemos receber tudo como
vindo de Sua mão, e com incessante ação de graças. Reconheçamos
igualmente que não haverá nenhuma boa maneira de fazer uso dos be-
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A gratidão, portanto, é resultado da compreensão de que tudo que temos, foi criado
por Deus a fim de que reconhecêssemos o seu autor, rendendo-Lhe, assim, graças.
Às vezes pensamos que podemos alcançar facilmente as riquezas e as
honras com nossos próprios esforços, ou por meio do favor dos demais;
porém, tenhamos sempre presente que estas coisas não são nada em si
mesmas, e que não poderemos abrir caminho por nossos próprios meios,
a menos que o Senhor queira nos prosperar (CALVINO, 2000, p. 40-41).
Devemos viver neste mundo com moderação, sem colocar o coração nos bens
materiais, pois, tais preocupações nos fazem esquecer a vida celestial e de “adornar
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Portanto, devemos usar nossos bens com moderação:
[...] ainda que a liberdade dos fiéis com respeito às coisas externas não
deva ser limitada por regras ou preceitos, sem dúvida deve regular-se
pelo princípio de que deve regalar-se o mínimo possível; e, ao contrá-
rio, que temos que estar mui atentos para cortar toda superfluidade,
toda vã ostentação de abundância – devem estar longe da intemperan-
ça! –, e guardar-se diligentemente de converter em impedimentos as
coisas que se lhes há dado para que lhes sirvam de ajuda (Jo 15,19;
17,14; Fp 3,20; Cl 3,1-4; Hb 11,16; 1Jo 2,15).
Devido aos nossos desejos incontrolados, devemos rogar a Deus que nos dê
moderação, “pois a única forma de agir com moderação própria é quando Deus
governa e preside nossos afetos” (CALVINO, 2002, p. 678). Para que não nos
ensoberbeçamos, Deus que nos conhece perfeitamente, preventivamente, para
que não sejamos tentados, equilibra a abundância com a amargura:
Deus modera a doçura da riqueza com amargura; e não permite que a
mente de Seu servo fique encantada em demasia com isto. E sempre que
uma estimativa enganadora de riquezas nos impulsiona a desejá-la imode-
radamente, porque nós não percebemos os grandes prejuízos que trazem
junto com elas; deixa a lembrança desta história [Abraão e Ló] ajudar a
conter tal imoderada fixação. Além disso, tão frequentemente o rico ache
qualquer dificuldade que surja da sua riqueza; faz com que aprenda a puri-
ficar a sua mente por este medicamento, que eles não podem se tornar ex-
cessivamente devotados às coisas boas da presente vida. E verdadeiramen-
te, a menos que o Senhor ocasionalmente ponha rédea nos homens, a que
profundidades não cairiam quando abundassem em sua prosperidade?
Por outro lado, se nós somos oprimidos com pobreza, faz-nos saber, que,
por este método também, Deus corrige os males ocultos de nossa carne.
E por fim, permite que aqueles que têm abundância lembrem-se de que
estão rodeados de espinhos e tomem muito cuidado para não ser picados.
Seguindo o que Paulo disse aos Filipenses: “Tanto sei estar humilhado, como tam-
bém ser honrado” (Fp 4,12), comenta:
Quem sofre a pobreza com impaciência, mostra o vício contrário na
abundância. Quero dizer com isso que quem se envergonha de andar
pobremente vestido, se vangloriará de ver-se ricamente ataviado; que
quem não se contenta com a mesa frugal, se atormentará com o desejo
de outra mais rica e abundante (CALVINO, 1998, p. 182).
O pobre deveria aprender a ser paciente sob as privações, para não
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Calvino insiste no ponto de que aqueles que não aprenderem a viver na pobreza,
quando ricos, revelarão a sua arrogância e orgulho. O apóstolo Paulo constitui-
-se num exemplo de simplicidade em qualquer situação (Fp 4,12). Ele também
entende que na pobreza é que tendemos a nos tornar mais humildes e fraternos.
Devemos aprender a repartir e, também, a ser assistidos pelos nossos irmãos:
Todas as pessoas desejam possuir o bastante que as poupe de depen-
der do auxílio de seus irmãos. Mas quando ninguém possui o suficiente
para suas necessidades pessoais, então surge um vínculo de comunhão e
solidariedade, pois que cada um se vê forçado a buscar empréstimo dos
outros. Admito, pois, que a comunhão dos santos só é possível quando
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cada um se vê contente com sua própria medida, e ainda reparte com
seus irmãos as dádivas recebidas, e em contrapartida admite ser também
assistido pelas dádivas alheias (CALVINO, 1997, p. 430).
Aos pastores e aos crentes em geral, Calvino (1998, p. 181) apresenta uma
recomendação:
Os ministros devem viver contentes com uma mesa frugal, e devem
evitar o perigo do regalo e do fausto. Portanto, até onde suas necessi-
dades o requeiram, que os crentes considerem toda a sua propriedade
como à disposição dos piedosos e santos mestres.
Visto que nosso Pai celestial nos concede todas as coisas por sua livre graça,
devemos ser imitadores de sua graciosa benevolência, praticando também atos
de bondade em favor de outrem; e em razão de nossos recursos virem dele, não
somos mais que despenseiros dos dons de sua graça (CALVINO, 1998, p. 169).
■ Tudo Pertence a Deus
A Bíblia nos ensina que todas as coisas nos são dadas pela benignidade de Deus
e são destinadas ao nosso bem e proveito. Deste modo, tudo que temos cons-
titui-se em um depósito do que um dia teremos de dar conta. “Temos, pois, de
administrá-las como se de contínuo, ressoasse em nossos ouvidos aquela sen-
tença. ‘Dá conta de tua mordomia’” (Lc. 16,2).
Deus concede-nos bens para que o gerenciemos; Ele continua sendo o Senhor
de tudo:
Portanto,
[...] o uso legítimo de todas as graças é o liberal e generoso comparti-
lhar com os outros. Nenhuma, nem mais certa, regra, nem mais válida
exortação para mantê-la, se podia excogitar do que onde somos ensi-
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■ O Sentido da Riqueza
Os crentes gozam de genuína riqueza quando confiam na providência
divina que os mantém com suficiência e não se desvanecem em fazer
o bem por falta de fé. (...) ninguém é mais frustrado ou carente do que
aquele que vive sem fé, cuja preocupação com suas posses dilui toda a
sua paz (CALVINO, 1995, p. 193-194).
Para Calvino a riqueza residia em não desejar mais do que se tem e a pobreza,
o oposto. Por sua vez, também entendia que a prosperidade poderia ser uma
armadilha para a nossa vida espiritual:
“Nossa prosperidade é semelhante à embriaguez que adormece as almas”
(CALVINO, 1988, p. 227). “Aqueles que se aferram à aquisição de dinheiro e
que usam a piedade para granjearem lucros, tornam-se culpados de sacrilégio”
(CALVINO, 1998, p. 169).
Daí que, para o nosso bem, o Senhor nos ensina por meio de várias lições a
vaidade dessa existência. Os servos de Deus não podem ser reconhecidos simples-
mente pela sua riqueza. Esclarecendo uma interpretação errada de Ec 9,1, afirma:
Se alguém quiser julgar pelas coisas presentes quem Deus ama e quem
Deus odeia, trabalhará em vão, visto que a prosperidade e a adversida-
de são comuns ao justo e ao ímpio, ao que serve a Deus e ao que Lhe é
indiferente. De onde se infere que nem sempre Deus declara amor aos
que Ele faz prosperar temporalmente, como tampouco declara ódio aos
que Ele aflige (CALVINO, 2006, p. 26).
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Ele considera a cobiça de dinheiro uma “praga” que, conforme nos ensina Paulo
(1Tm 6,10), traz muitos males: “Os que sofrem dessa praga gradualmente se
degeneram até que renunciam completamente a fé” (CALVINO, 1998, p. 170).
Devemos em todas as coisas ser gratos a Deus, Quem nos confere tudo o
que temos, usando com prudência dos bens que Ele nos concede para o Seu ser-
viço. “Quanto mais liberalmente Deus trate alguém, mais prudentemente deve
ele vigiar para não ser preso em tais malhas” (CALVINO, 1998, p. 633).
A nossa riqueza está em Deus, Aquele que soberanamente nos abençoa. Portanto, “é
uma tentação muito grave, ou seja, avaliar alguém o amor e o favor divinos segundo
a medida da prosperidade terrena que ele alcança” (CALVINO, 1998, p. 346). Do
mesmo modo, as aflições não devem ser vistas de forma mística e supersticiosa:
É certamente um erro muitíssimo comum entre os homens olharem
eles para os que se acham oprimidos com angústias como se fossem
condenados e réprobos. Visto que, de um lado, a maioria dos homens,
julgando o favor divino pelo prisma de um estado incerto e transitório
A grandeza de nosso trabalho não está simplesmente no que fazemos, mas como
e com qual objetivo o fazemos. É agradável a Deus que por meio de nosso tra-
balho a sociedade seja beneficiada (CALVINO, 1998, p. 444).
Calvino entende que o ato de repartir o que temos consiste em uma prá-
tica de justiça relacionada ao propósito de nossa existência: “Assim como não
nascemos unicamente para nós mesmos, também o cristão não deve viver uni-
camente para si mesmo, nem usar o que possui somente para os seus propósitos
particulares ou pessoais”. Continua: “Já que dar assistência às necessidades de
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nosso próximo é uma parte da justiça – e de forma alguma é a menor parte –, os
que negligenciam esta parte de seu dever devem ser tidos no conta de injustos”
(CALVINO, 1995, p. 193). A nossa “riqueza”, ou seja, suficiência, como resul-
tado da bondade de Deus, tem um sentido social:
O Senhor administra em nosso favor tanto quanto nos é proveitoso, às
vezes mais e às vezes menos, mas sempre na medida em que ficamos
satisfeitos e que vale muito mais do que ter o mundo inteiro e sermos
consumidos. Dentro desta suficiência devemos ser ricos para o bem
de outrem. Porque Deus não nos faz o bem com o fim de cada um de
nós guardar para si mesmo o que recebe, mas para que haja mútua
participação entre nós, de acordo com os reclamos das necessidades
(CALVINO, 1995, p. 191).
A ajuda aos nossos irmãos só se torna possível quando nos despimos da pri-
mazia de nossos interesses pessoais; quando renunciamos ao nosso direito em
prol do outro.
Esta, portanto, nos seja a regra para a benevolência e beneficência:
tudo quanto a nós nos dispensou Deus com que possamos assistir ao
próximo, somos disso mordomos, mordomos que estamos obrigados a
prestar conta de nossa mordomia. Essa, afinal, é, após tudo, a reta mor-
domia: a que se amolda à norma do amor. Assim acontecerá que não só
o zelo pelo alheio proveito sempre com a preocupação de nosso próprio
benefício conjuguemos, mas até àquele subordinemos (CALVINO, As
Institutas, III. 7.5.).
Ajudar aos necessitados deve ser entendido não como a perda de algum bem,
antes, como um privilégio que nos é concedido pela graça de Deus, que nos capa-
cita a sermos generosos e a suportar com paciência as tribulações.
Em outro lugar,
[...] ainda que seja universalmente consensual que é uma virtude lou-
vável prestar ajuda ao necessitado, todavia nem todos os homens con-
sideram o dar como sendo uma vantagem, nem tampouco o atribuem à
graça de Deus. Ao contrário disso, acreditam que alguma coisa sua, ao
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Em nossa beneficência, nada devemos esperar em troca, ainda que seja uma prática
comum. Aliás, “quando damos nossas esmolas, nossa mão esquerda deve ignorar
o que a mão direita fez” (CALVINO, 1995, p. 196). Comentando o Salmo 68 enfa-
tiza que o Deus da glória é também o Deus misericordioso; em seguida observa a
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atitude pecaminosa comum aos homens: “Geralmente distribuímos nossas aten-
ções onde esperamos nos sejam elas retribuídas. Damos preferência a posição e
esplendor, e desprezamos ou negligenciamos os pobres” (CALVINO, 1995, p. 645).
E quanto à ingratidão tão comum ao gênero humano? Bem, em nossa ajuda
aos nossos irmãos não devemos nos preocupar com isso, visto que “ainda que os
homens sejam ingratos, de modo que pareça termos perdido o que lhes damos,
devemos perseverar em fazer o bem” (CALVINO, 1999, p. 173). E mais: “não
dependemos da gratidão humana, e, sim, de Deus que Se coloca no lugar do
pobre como devedor, para que um dia venha restituir-nos cheio de solicitude,
tudo quanto distribuímos” (CALVINO, 1996, p. 500).
■ O Valor de cada um
As pessoas devem ser avaliadas não pelo seu dinheiro, mas por sua piedade. Os
piedosos aprendem a reverenciar e a imitar os genuínos servos de Deus:
Aprendamos, pois, a não avaliar uma pessoa pelo prisma de seu estado
ou seu dinheiro, nem pelo prisma de suas honras transitórias, mas ava-
liá-la pelo prisma de sua piedade ou de seu temor a Deus. E certamente
que ninguém jamais aplicará verdadeiramente seu intelecto ao estudo
da piedade que, ao mesmo tempo, também não reverencie os servos
de Deus; da mesma forma, por outro lado, o amor que nutrimos por
eles nos incita a imitá-los em sua santidade de vida (CALVINO, 1995,
p. 240-241).
e) Socorro e Oração
ajuda a todos os que têm igual necessidade, ou por não poderem conhe-
cê-los a todos, ou porque não têm meios suficientes para supri-los. De
igual modo, não contrariam a vontade de Deus aqueles que, consideran-
do e tendo em mente a sociedade comum da igreja, a comunidade cristã,
fazem uso das orações particulares por meio das quais, com palavras par-
ticulares, mas com espírito amplo e afeto comum, encomendam a Deus a
si mesmos ou outros, cuja necessidade Ele lhes quis dar a conhecer mais
de perto. Se bem que nem tudo que diz respeito à oração é semelhante a
fazer caridade. Porque não podemos socorrer com os nossos bens senão
aqueles cuja pobreza conhecemos, mas podemos e devemos ajudar pela
oração mesmo aqueles dos quais não temos conhecimento, e que estão
distantes de nós por qualquer distância que haja no tempo ou no espa-
ço. Isso se faz por causa da amplitude geral das orações, amplitude que
abrange todos os filhos de Deus, no número dos quais eles também estão
incluídos (CALVINO, 2006, p. 121).
COSMOVISÃO E ARTE
Podemos definir arte como uma expressão intelectual ‒ consciente ou não ‒, subje-
tiva e sensível de nossa cosmovisão. Intelectual, porque é própria do homem como
ser pensante. Subjetiva porque é pessoal. Sensível porque não existe arte secreta
e, também, porque a arte precisa ser “manufaturada” para se tornar perceptível;
ela necessita ser experimentada. O próprio Deus antes de criar o homem, com-
partilha consigo mesmo a respeito deste grandioso empreendimento (Gn 1,27).
Cosmovisão e Arte
224 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O nosso padrão de beleza será sempre limitado e subjetivo ainda que cada aspecto
da Criação tenha a sua beleza própria decorrente de sua natureza e propósito. A
nossa inspiração ao belo, independentemente de condicionantes culturais, sociais,
ideológicos e pessoais, tem dois condicionantes ontológicos: Somos criaturas
e como tais, estamos sujeitos a um delimitador existencial: pelo fato de todo o
nosso conhecimento ser mediado, portanto, parcial, é suscetível a ruídos e des-
virtuamentos tanto na percepção quanto na comunicação.
Outro ponto, mais significativo, é que com a Queda nos tornamos essencial-
mente pecadores, perdemos a nossa sensibilidade espiritual e, como vimos, todo
o nosso ser foi afetado pelo pecado, nada ficou imune a esta depravação. Além
disso, o que nos inspira, a Criação em todas as suas manifestações, tem também a
mancha do pecado. Portanto, como já dissemos, a Beleza absoluta está em Deus.
O usufruir da beleza e do senso de beleza, são dons da graça comum de Deus. A
Arte com “A” maiúsculo pertence somente a Ele, em Quem temos de forma plena e
perfeita o Belo e o padrão absoluto de Beleza. Somente Deus pode de forma absoluta
dizer que a Sua obra é boa e perfeita dentro dos objetivos por Ele santa e sabiamente
estabelecidos (Gn 1,31). A proximidade de Deus, Aquele que é belo em Sua santi-
dade (Sl 27,4; 96,9), nos aperfeiçoa, nos concedendo maior sensibilidade para com
a beleza expressa na Criação, nos feitos humanos e em nossas relações fraternas.
Calvino (1509-1564) entendia que a arte e as demais coisas que servem ao
uso comum e conforto desta vida são dons de Deus; portanto, devemos usá-las
de forma legítima a fim de que o Senhor seja glorificado. Quanto mais o homem
se aprofunda nas “artes liberais” e investiga a natureza, mais se aproxima “dos
segredos da divina sabedoria”.
Ainda que as artes não tenham poder redentivo, e, a bem da verdade, não é este
o seu propósito, elas, contribuem para temperar a nossa vida com mais encanto
e beleza, quer pelo que reproduz (o seu tema), quer pela forma de fazê-lo (habili-
dade). A beleza da arte não está simplesmente em sua temática, mas, também, na
qualidade daquilo que reproduz e reinventa a partir da natureza que a alimenta.
Analisemos alguns aspectos disso:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O princípio é que há liberdade para se fazer algo a partir da natureza, que seja
distinto dela e que possa ser levado à presença de Deus.
(Francis A. Schaeffer)
Cosmovisão e Arte
226 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a mesma ênfase e com detalhes desnecessários.
3. Cosmovisão e avaliação
A avaliação cristã de todas as coisas deverá ser crítica e construtiva. Como sabe-
mos, a cosmovisão do artista, por mais apaixonante e intensa que seja, não é
neutra, e, consequentemente, a sua obra também não é. Portanto, ela não pode
estar acima de uma avaliação. A crítica visa entre outras coisas, o refinamento
da arte e, em nosso caso, discernir a mensagem proposta dentro de um referen-
cial mais que emana das Escrituras.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A obra do artista não é simplesmente produto de seu gênio autônomo, tão dese-
jado, porém, inexistente. Aliás, inclino-me a crer que o seu gênio é profundamente
modelado pelo “clima” ou “atmosfera” de sua época, pelas cores com as quais a reali-
dade é pintada e os acordes que dão o tom aos valores hodiernos, ainda que isso não
determine uma única forma de apreensão e expressão, como sublinha Wölfflin (1864-
1945). O artista, como todos nós, não pode ser separado da história e da sua história.
Como cremos que podemos conhecer a verdade – ainda que não exaustiva-
mente ‒, nenhuma cosmovisão está acima de uma avaliação bíblica. Os bereanos
se constituem em exemplo de uma avaliação criteriosa do que ouviram prima-
riamente com atenção e interesse, independentemente de quem lhes ensinava,
conforme narra Lucas: “Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica;
pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando (¢nakr…zw) (“fazer uma
pesquisa cuidadosa”, um “exame criterioso”, “inquirir”) as Escrituras todos os dias
para ver se as coisas eram, de fato, assim” (At 17,11).
Cosmovisão e Arte
228 UNIDADE III
O nosso desejo de servir a Deus não nos deve tornar presas fáceis de qual-
quer ensinamento ou doutrina; precisamos cientificar-nos se aquilo que nos
é transmitido procede ou não de Deus. Para este exame, temos as Escrituras
Sagradas como fonte de todo conhecimento revelado a respeito de Deus e do
que Ele deseja de nós. O não investigar (Sl 10,4) é um mal em si mesmo. Um
bom princípio é examinar o que se nos apresenta como realidade dentro de suas
multifárias percepções, não nos deixando seduzir e guiar por nossas inclinações
ou pelas tendências massificantes. Em geral, quando nos faltam critérios obje-
tivos apelamos para o gosto como critério definitivo e solitário. Assim, somos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
conduzidos simplesmente por princípios que nos agradam sem verificar a sua
veracidade. O fim disso pode ser trágico.
Assim sendo, por mais autoeloquentes que possam se configurar aspectos da
chamada realidade, precisamos examiná-los antes de os tomarmos como pressu-
postos para a aceitação de outras declarações também reivindicatórias. Quando
nos omitimos deste exame, deste juízo crítico, sem percebermos estamos con-
tribuindo para que os ensinamentos hoje aceitos inconsistentemente, amanhã se
tornem pressupostos que determinarão as nossas escolhas e avaliações.
As hipóteses de hoje poderão se tornar nas teorias de amanhã e as futuras leis
do pensamento e da moral. Neste caso, já estarão acima de qualquer suspeita e
discussão: tornaram-se verdade. A ciência é, com frequência, um refinamento
das observações cotidianas.
Como escreveu Pearcey (2006, p. 44): “a questão importante é o que aceitamos
como premissas básicas, pois são elas que moldam tudo o que vem depois”. Há o
perigo de, sem nos darmos conta, formar a nossa cosmovisão baseados em um
mosaico de peças promíscuas, contraditórias e excludentes. O homem não é medida
de todas as coisas como queria Protágoras (c. 480-410 a.C.) e os Renascentistas ao
revisitarem a sua frase. No entanto, isto não significa a admissão de falta de um
referencial, antes, na afirmação de que Jesus Cristo é a medida, o cânon da ver-
dade e, portanto, de toda avaliação que fizermos da realidade que nos circunda.
Os bereanos tinham um padrão de verdade. Eles criam na sua existência e aces-
sibilidade. Examinaram o que Paulo dizia à luz das Escrituras, ou seja: o Antigo
Testamento. Se não tivermos um referencial teórico claro, como poderemos ana-
lisar de modo coerente a realidade? Sem referências, tudo é possível dentro de
Sendo olhada pelo ângulo correto e abrangente, a arte descreve a nossa situação
de pecado e miséria, contudo, deve retratar também a nossa nova humanidade,
redimida por Cristo. Aqui não há nenhum idealismo, antes, um realismo bíblico:
somos chamados como sal da terra e luz do mundo, a apresentar a perspectiva
abrangente da realidade bíblica.
Assim, ela nos conduz a glorificar a Deus, o Senhor de toda Criação e, tam-
bém da Sua Recriação. O artista sem a cosmovisão cristã tenderá a cair em um
destes dois aspectos verdadeiros, porém, reducionistas: pessimismo niilista ou
otimismo romântico sem um fundamento sólido.
Somente o cristão com uma cosmovisão bíblica consistente pode, de fato,
retratar ambos os aspectos da realidade: pecado e restauração; separação e reconci-
liação, morte e ressurreição em Cristo Jesus, o Deus encarnado. Somente em Cristo
poderemos ter uma visão objetiva da beleza da realidade proveniente de Deus:
O mundo dos sons, o mundo das formas, o mundo das cores e o mun-
do das ideias poéticas não pode ter outra fonte senão Deus; e é nosso
privilégio, como portadores de sua imagem, ter uma percepção deste
mundo belo, para reproduzir artisticamente, para gozá-lo humana-
mente (KUYPER, 2002, p. 164).
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mento aferidor da natureza e do propósito da arte. Dentro desta perspectiva, a
arte, ainda que tratando de coisas materiais, com objetivos não especificamente
transcendentes, é sempre missionária, ainda que não no sentido redentivo, mas,
no sentido de que mesmo objetivando trazer frescor, descontração e estímulo,
refletirá sempre uma referência maior, valores transcendentes que referendam
até mesmo o meu lazer e as coisas aparentemente banais de meu cotidiano.
Bavinck (1854-1921) escreve de modo magistral, mostrando que a arte pro-
vém de Deus, tendo também um sentido confortador:
A arte também é um dom de Deus. Como o Senhor não é apenas ver-
dade e santidade, mas também glória, e expande a beleza de Seu nome
sobre todas as Suas obras, então é Ele, também, que, pelo Seu Espírito,
equipa os artistas com sabedoria e entendimento e conhecimento em
todo tipo de trabalhos manuais (Ex 31.3; 35.31). A arte é, portanto, em
primeiro lugar, uma evidência da habilidade humana para criar. Essa
habilidade é de caráter espiritual, e dá expressão aos seus profundos
anseios, aos seus altos ideais, ao seu insaciável anseio pela harmonia.
Além disso, a arte em todas as suas obras e formas projeta um mundo
ideal diante de nós, no qual as discórdias de nossa existência na terra
são substituídas por uma gratificante harmonia. Desta forma a beleza
revela o que neste mundo caído tem sido obscurecido à sabedoria mas
está descoberto aos olhos do artista. E por pintar diante de nós um
quadro de uma outra e mais elevada realidade, a arte é um conforto
para nossa vida, e levanta nossa alma da consternação, e enche nosso
coração de esperança e alegria (BAVINCK, 2001, p. 21-22).
Contudo, continua ele, a arte, como não poderia deixar de ser, tem seus limites.
Isto deve ser observado com atenção:
Mas apesar de tudo o que a arte pode realizar, é apenas na imaginação
que nós podemos desfrutar da beleza que ela revela. A arte não pode
fechar o abismo que existe entre o ideal e o real. Ela não pode trans-
formar o além de sua visão no aqui de nosso mundo presente. Ela nos
mostra a glória de Canaã à distância, mas não nos introduz nesse país
nem nos faz cidadãos dele. A arte é muito, mas não é tudo. (...) A arte
não pode perdoar pecados. Ela não pode nos limpar de nossa sujeira.
E ela não é capaz de enxugar nossas lágrimas nos fracassos da vida
(BAVINCK, 2001, p. 84).
Nem toda arte, que tem como temas assuntos bíblicos, é arte cristã. Por exem-
plo, pelo fato de eu elaborar uma música com tema “evangélico” ou reproduzir
na tela uma cena bíblica, não quer dizer que o meu produto seja necessaria-
mente “arte cristã”.
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Na realidade posso apenas ter descoberto que esta é uma boa fatia do mer-
cado no qual devo aplicar o que julgo ser o meu talento e vocação. Ou, reproduzir
tais temas dentro de uma cosmovisão totalmente secular ‒ onde Deus existe, con-
tudo, em nada influencia ‒ que me domina ainda que não tenha percebido isso.
Por outro lado, podemos ter um escritor cristão que resolva escrever uma
obra de ficção, filosofia, educação ou de administração de empresas e, o faz com
competência, com amplo referencial cristão, tendo como meta glorificar a Deus
reconhecendo a Sua graça em sua vida e produção. Esta obra seria uma “arte
cristã”. Nesse caso particular, as obras pedagógicas de Comênio e os diversos
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livros de ficção de C.S. Lewis (1898-1963) devem ser considerados como ilus-
trativos desse princípio.
A arte cristã, se é que podemos falar assim, deve ser avaliada a partir de sua
cosmovisão, qualidade e propósito. A arte cristã só é possível a partir de um cris-
tão. Devemos pedir a Deus que nos dê discernimento para que neste mundo
caído, possamos refletir em nossas obras, a obra de Deus em nós. Deste modo,
seria mais razoável dizer ao artista cristão que não faça “arte cristã”, mas que seja
um artista aplicado, coerente com a sua fé.
Em síntese: seja um cristão artista. Há sempre o perigo de nos apossarmos
de todo um modelo secular, colocar um verniz cristão e não percebermos as
incompatibilidades entre o conteúdo e a forma, nos esquecendo de que a forma
também não é neutra. Há o risco evidente de o meio superar a mensagem. É pre-
ciso ter cautela para não usarmos ferramentas nas quais estejam pressupostos
conceitos não-cristãos, nos tornando inocentes úteis de uma determinada cos-
movisão. Tais ferramentas tendem a moldar o seu usuário. São significativas as
observações de Colson (1931-2012) e Pearcey (2006, p. 291):
O perigo é que a cultura popular cristã possa imitar a cultura em voga,
mudando somente o conteúdo. (...) estamos criando uma cultura ge-
nuinamente cristã, ou estamos simplesmente criando uma cultura
paralela com uma aparência cristã? Estamos impondo um conteúdo
cristão a uma forma já existente? A forma e o estilo sempre transmitem
uma mensagem própria.
Cosmovisão cristã não significa ter o mesmo senso estético ainda que o nosso
propósito seja o de glorificar a Deus. Como criados à imagem de Deus, temos
inteligência e sensibilidade, contudo, não somos uniformes.
O artista cristão é como um cristal que reflete a luz da revelação de forma
diversificada. A nossa unidade não significa uniformidade. Deus cria do nada.
Nós, do nada, nada criamos, contudo, remodelamos as formas atribuindo sen-
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CULTO ESPIRITUAL, COM ARTE, INTELIGÊNCIA E
SUBMISSÃO
“Quando Ele [Deus] nos concede talentos, incluindo o talento musical, Ele nos
concede, não para que se transforme em ídolo, mas para ser usado para Sua gló-
ria” (GAEBELEIN, 1986, p. 443).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
porventura, me oferecestes vítimas e sacrifícios no deserto, pelo espaço
de quarenta anos, e, acaso, não levantastes o tabernáculo de Moloque e
a estrela do deus Renfã, figuras que fizestes para as adorar? Por isso, vos
desterrarei para além da Babilônia (At 7.39-43).
No culto a música deve ser entendida não simplesmente como meio de impres-
são – que age em nosso corpo, emoções e intelecto –, mas, principalmente, de
expressão, como veículo para o texto. Portanto, mais do que um agente de pre-
paração para o culto, ela é também uma oferta que deve ser apresentada com fé.
Paulo nos mostra que o cântico é uma expressão da adoração cristã marcada pela
plenitude do Espírito Santo. Mais: a genuína adoração é operada pelo Espírito
Santo em nós. O mesmo Espírito que falou por intermédio de Davi, inspiran-
do-o a escrever, é o que nos ilumina na adoração a Deus (At 4,25): “E não vos
embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito, falando
entre vós com salmos (yalmÒj), entoando e louvando de coração ao Senhor, com
hinos (Ûmnoj) e cânticos (òdh/)espirituais” (Ef 5,18-19).
Essas três palavras empregadas também conjuntamente em Cl 3,16 é difí-
cil, senão impossível de se determinar com precisão a diferença entre elas e
alguns círculos da Igreja (Cf. 1Co 11,21) –, que gera a dissolução de todos
os bons costumes, devassidão e libertinagem (¢swt…a), e o enchimento do
Espírito. Portanto, ao invés dos homens procurarem a excitação desenfreada
da bebida, ou a embriaguez como recurso para fugirem de seus problemas
por meio do entorpecimento de suas mentes, devem buscar o discernimento
do Espírito para compreender a vontade de Deus, que deve ser o grande obje-
tivo de nossa existência:
Vede prudentemente como andais, não como néscios, e, sim, como sá-
bios, remindo o tempo, porque os dias são maus. Por esta razão não vos
torneis insensatos, mas procurai compreender (Sun…hmi) qual a vonta-
de (Qe/lhma) do Senhor” (Ef 5.15-17