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1ª edição
Edição da autora
Recife, 2021
À minha avó Ivete,
costureira das minhas fantasias de Carnaval.
“Tudo isso era um sonho? Era tudo um sonho?”
Patti Smith
A p r e s e n
t a ç ã o
Em março de 2020, em quarentena devido à pandemia
do Corona vírus , comecei a bordar os sonhos no
lençol de minha cama. Bordar os sonhos para não
os esquecer, de maneira literal e figurativa: a ação
de bordar os sonhos parecia-me urgente em tempos
indefinidos e desesperançosos. Uma tentativa de
preservar os desejos, talvez.
Notei, com a pausa forçada, como há anos dormia mal
– os sonhos eram sempre esquecidos ou desprezados
pela rotina acelerada. Sidarta Ribero, no livro “O
oráculo da noite”, alerta sobre o mal-estar que acomete
os trabalhadores da civilização contemporânea devido,
dentre outras causas, à falta de tempo para dormir e
sonhar. Estava lendo, naquele mesmo mês, “Sociedade
do Cansaço”, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, e
houve uma identificação com aquelas palavras: percebi-
me esgotada pelo enaltecimento social da atividade e
da produção. Vivenciar a cama, permanecer naquele
espaço-tempo sem pressa, dar descanso às pálpebras,
sentir o cheiro do pijama e do lençol, ouvir os primeiros
cantos dos pássaros e o pontual roçado da vassoura no
pátio da casa vizinha, calar o despertador: resgates de
prazer trazidos pelo ócio. Contraditoriamente, também
sentia o peso do privilégio de poder parar, quando
tantos não puderam fazer esta escolha.
Com o isolamento social, afastei-me do elemento
terra – o desejo pela cerâmica, sempre tão presente,
inexplicavelmente se aquietou em 2020. Fios e
tramas (poderia falar sobre o desejo por redes,
inconscientemente?) despontaram-me à cama, e o
lençol de cobrir mostrou-se o suporte mais adequado
para o registro daquelas lembranças que teimavam em
permanecer ao raiar o sol. Um lençol branco e velho,
naquele momento, servia como concha para um corpo
mole, frágil e desolado. A caixa de linhas para bordados
estava bem abastecida, curiosamente, por um excesso de
tons terrosos.
Lençol, linhas e uma agulha simples de costura foram as
primeiras ferramentas utilizadas para a materialização
daquele ‘trabalho de aranha’. Um caderninho de
cabeceira também fez parte de todo o processo, sendo
utilizado para anotações dos rastros de memórias do
alvorecer. Para o jogo funcionar, havia apenas uma
regra: registrar todos os sonhos que viessem à tona.
Pesadelos, animais recorrentes, palavras ressoantes,
pessoas, objetos incomuns, ruídos – através do bordado
livre, tudo foi registrado de maneira visual, respeitando
o acaso com que foram aparecendo.
Este livro traz o recorte de um ano de registros
têxteis do meu imaginário onírico, de março de 2020
a fevereiro de 2021. Aqui, os registros textuais são
apresentados de maneira cronológica, de acordo com
as anotações do livrinho de cabeceira, embora os
posicionamentos dos bordados no lençol seguiram
outros critérios, como afinidade temática, harmonização
de cores e composição espacial das formas. Os livros de
Patti Smith (“O ano do macaco”, “Só garotos”, “Linha
M” e “Devoção”) estiveram na minha cabeceira ao longo
deste período – em todos eles os sonhos aparecem
ocupando lugar de protagonismo e foram influências
diretas para a materialização deste projeto.
do caderninho de cabeceira................ 3 2
avessos.............................................. 4 1
bastidores.......................................... 4 8
s o n h o s
( t r a n s )
b o r d a d o s
9
d o
c a d e r n i n h o
d e
c a b e c e i r a
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Cobras enroladas, pretas com listras brancas...
sensação de estar sobre um ninho de cobras.
Morte... (Vovó Leuce?)
Um velório no Cemitério de Santo Amaro.
Carnaval,
cama redonda,
ciúme.
Muitas flores.
Fazendo e comercializando arranjos,
sempre com a preocupação de entregá-los na hora exata.
Pai e mãe.
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Um homem pede a mão de uma mulher,
ambos despidos de suas peles,
arriadas no chão à altura do joelho.
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Vários animais saem pela porta da minha casa,
em uma comprida fila.
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Estacionada na beira do Rio Capibaribe,
buscando novos programas, sem muito ânimo,
desejando voltar para casa.
Barulho de campainha estridente!
Medo: alguém querendo entrar na casa?
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Oral.
Erótico.
Um homem é morto
com um tiro de revólver por trás da cabeça.
A bala atravessa da nuca ao topo da cabeça.
Este homem é meu pai.
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Intolerância política, fascismo, Brasil rachado.
Estou na UFPE tendo aulas com uma professora
que se comporta de maneira estranha.
É a última semana de aulas e as festas de despedidas
do semestre estão marcadas perto de comícios eleitorais.
Pedem para que eu dance ballet (Dom Quixote)
em uma destas festas,
mas me recuso quando percebo o direcionamento
por trás do festival estudantil.
Ló e Lays também estão aqui e vão voltar comigo, de carona.
Meu pai e minha mãe também aparecem.
Na volta, na descida do viaduto próximo à Universidade,
meu pai é executado aos nossos olhos.
Atiraram em seu corpo,
por intolerância política.
38
z
Em um edifício labiríntico,
acompanham-me algumas pessoas, dentre elas Camila.
Vejo um grande terreno baldio central,
onde está uma cobra quilométrica finíssima
de cor fluorescente transparente.
Eu e Camila arrodeamos a cobra,
passeando pelo terreno,
buscando algo de que não lembro.
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Com um envelope em mãos,
em busca do endereço do destinatário: Tio Augustinho.
Pergunto a algumas pessoas sobre o seu endereço:
um guarda de trânsito no bairro da Torre;
Verinha – que toma café da manhã
quando chego à sua casa;
Vovó Leuce – que está próxima
às gavetas da cômoda do seu quarto.
Na bagunça das anotações de suas primeiras gavetas,
procuramos o endereço
e mato um pouco da saudade dela.
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a v e s s o s
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b a s t i d o r e s
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d a t a s
d a s
a n o t a ç õ e s
2 2
0 22 de março 0 04 de janeiro
04 de abril 05 de janeiro
2 06 de abril
2 06 de janeiro
0 15 de maio 1 19 de janeiro
17 de maio 20 de janeiro
19 de maio 22 de janeiro
25 de maio Final de janeiro
28 de maio 29 de janeiro
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Meados de dezembro
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www.anaflaviamendonca.com.br
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ISBN 978-65-00-25646-8
21-70624 CDD-745.5