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BS iar mmon OM Mr coe eee st eer ela neti eae DO ek Pager gare tre a (ean MNCL {eee DEN a RL LT Oo huma eserava costureira de -can-. ozinheira , e tambem lava mui:- ~ - Caza, quem a pertender divije Aer i eee er Se Mes ice Lit ee ho de duas portas pus eras (soe a rr ae Fis, Wee ane RETRATO EM BRANCO E NEGRO ULE RO TLL em Sao Paulo no final mya, 6D, @ (Gee eaa nS ee ec Onna’ Pee seta tanciamento ¢ outros de grande atragios cr re fies em que o interes pelo assunto tem ee ee es eee eee te Pee oe eee ce eat eer eee eee ce dores ¢ demais cientistas sociais. Assim, Pre eee ere ey ce eect ete erent bin ee dlentro do tema; e, pra além, cruzam-se ec keen att trabalho interdisciplinar que leva a nova Ten es Peron ese esc ee ecier nee a Pn Sen Cae near ae ee micamente na Unicamp) insere-s scent eee nee Tn eee cs tratamento analitico que realiza ref etary on ey Roce Sinatra Teo eens Pe en eee ee ae Mitroducao VD) caso do “creoullo de bigode, Pince-neze cavagnac” ses gritos medosthos ao nosso redor so o que vocts chamam de siléncio, enigma de Kasper Hauser, de Werner Herzog. Num belo e corriqueiro dia de julho de 1878 um pacato cida- dda ndo menos pacata cidade que era $40 Paulo percorre um Wequeno trajeto, marcado por ruas escuras e esburacadas, cober- Jus por casebres pobres e cercados de matagais, a fim de comprar Wn jomnal local. Ao fazé-1o, depara, em meio a tantas outras nott- ts, ansincios, classificados ou declaragbes de politica, com a cha- Wada: “Como elles sto” Para nds leitores contempordneos, o contraste ea estrita de- Jinitacao da existéncia de um “outro”, implicito na manchete aci- Jha, sem diivida chamaria aatengao. Porém, para nosso hipotético Yersonagem do fim do século x1x, ela poderia ou niio despertar Jjveresse, jé que talver.seu sentido the fosse bastante familiar e sua Mecodificagao clara “como Les sho 0 folhetinista da Gazeta narra na viagem a Maceié e entre outros narrou um caso ocorrido a bordo. O Presidente do ve que estava a bordo trazia consigo um criado bonito, creoullo, de bigode ¢ ¢a- vagnacs, pisar forteamante dos versos de Varellacujos hinos sobra- gavaem rose e lia com atengio de se fazer notar.. ‘Ao fim do jantar do primeiro dia da viagem um dos passageiras a0 voltar ao camarote deu deniincia a0 comandante que Ihe faltava| ‘um rel6gio, um povce-neze uma corrente de ouro, No salto nobre o ‘qual subia os camarotes s6 tinham ficado duas pessoas, um alque- bbrado de enjoo eo criado de fazer vin uirznawua, Houve pesquisa e epilogou-se pela pristo do trrerato que obteve aposigio de criado presidencial mediante valiosas cartas de recomendagio segundo houvi dizer... Para cimulo da desgraca do gatuno comptamente descoberto a0saltar na Bahia aparece-the um espirito:0 seusenhor {que havia muito tempo o procurava em vio” (Correio Paulistano,3 dejulho de 1878). ‘A noticia poderia ser lida e interpretada de maneiras absolu- tamente diversas. Por um lado, 0 texto permitiria uma interpretagao mais tex- tual, ou digamos pragmitica,' isto é 0 autor estaria nos relatando ‘uma hist6ria talvez.comum de um escravo que, para tentarlivrar- -se de sua condito, utilizava artificios variados, tais como fingit~ -se “iterato” para escapar do cativeiro. Dessa maneira, 0 relato oderia comover mais ou menos o leitor, mas de qualquer forma nao deixaria de se constituir em mais um dos infindaveis relatos de fuga de escravos, tao frequentes na época. Por outro lado, uma leitura mais atenta em relagao a postura politica do jornal poderia fazer notar que a noticia tinha sido por sua vez retirada de um outro periddico (A Gazeta) e dizia respeito @ um fato ocorrido em outra provincia. Nesse sentido, entio, ‘quem sabe talvez se atentasse para o fato de que 0 jornal que havia sclecionado e publicado tal artigo, Correio Paulistano, nao era absolutamente “isento” e neutro na maneita como mencionava as noticias que publicava. Assim, tal relato poderia ser interpretado tendo como pano de fundo a postura politica conservadora que, como veremos, era marca caracteristica desse jornal. Nesse senti- do a noticia poderia estar de alguma maneira associada a uma ideia constantemente veiculada por esse periddico, que nao se cansava de afirmar a necesséria ordem que deveria reinar entre senhores ¢ escravos, ¢ 0 direito daqueles de conservarem e mante- remo controle sobre sua propriedade. O leitor que levasse ainda mais a fundo essa perspectiva poderia talvez supor que a noticia marcava uma certa diversida- de, no que tange A postura politica, com relagao a um outro grande jornal da época, A Provincia de Sao Paulo, que, enquanto 6rgio republicano adepto das “novas ideias da época’,talvez nao desse tanta énfase a uma noticia desse porte e que tivesse aconte- cido em outra localidade, Mas, por outro lado, 0 relato parece trazer ainda outtas “pis- {ase"sinais” que indicam também outras interpretagdes que ndo sejam a verificagdo de uma “evasio frustrada” ou a mera postura politica do jornal. Esse relato poderia dizer respeito, tanto pelo clima irénico que estabelece como pelo texto em si,a um certo contexto so- cial, ou melhor, a um consenso social anterior ejé compartilha- do que, ao mesmo tempo que cria o“creoullo de cavagnac,leitor de Varella’, duvida dele. Ou seja, através de uma série de recur- 40s de pontuacao, grifos e expressdes, 0 texto encaminha ironi camente a reflexiio do leitor contra a aparente verdade que ¢ ‘mega a enunciar. Parece estabelecer entao esta noticia um evidente lima de contraposigao entre o “creoullo” em sie a sociedade branca que 5 aparece colocala como uma espéce de ‘panorama de fundo” no decorrer de todo o texto. Attomegarpelortitulo;"Gomoelles sic’ are entice eigen anne eee vai-se criando todo um “clima” de ironia com a “creoullo’, que € dado primeiramente pela forma pouco direta com que esse sujeito da agdo ¢ descrito. Ou seja, a0 invés de ser ‘nomeado em sua singularidade, o"leitor de Varella” €antes descri- to por suas atribuigdes, que parecem inclusive pouco correspon- der as caracteristicas normalmente associadas a elementos de cor. ‘tnds'sjornalistas.eleitores. Todo esse ambiente que vai, cada vez ‘mais, como que definindo 0 “creoullo” como 0 “outro”, 0 “estra~ ho a ago”, € a ironia subjacente sio reforgados também a partir das palavras que 0 jornalista vai destacando em maitiscula em ‘momentos especificos da leitura. Dessa forma, 0s vocsbulos pose —destacado quando 0 jornalista relata que o sujeito “insistia” em. ler com tal atitude as obras de Varella (0 que poderia irritar os ‘observadores da aco) —, rINcE-NEZ € VIDA LITERARIA parecem mar- ‘cados para orientar a leitura no sentido da compreensio do enor me abismo existente entre tais atitudes ¢ objetos e 0 “creoullo” esse sentido, parece-nos relevante a insisténcia do autor em gri- far por duas vezes a palavra urretavo, como se estivesse a ironizar e mostrar a incongruéncia da situagao, oferecendo inclusive sinais para que comecemos a desvendar o possivel desfecho da historia ue parece encaminhar-se para um final jé previamente esperado. Eentao a hist6ria termina como todos nés, agora “leitores ctim- plices’, esperavamos que acabasse: “o creoulla” (cujo nome até 0 16 {inal nao ficamos sabendo) nao era, por suposto, um literato, mas antes um simplese“tao comum” “negro fujao". O artigo se encerra ‘como normalmente acabavam as demais noticias da época: 0 se- inhor,na figura ironica de um “espirito’, recaptura o que lhe era de direito eo “creoullo” retornaaa sua antiga e“verdadeira” condigao, 0 “elles” presente no titulo do artigo adquire entao cada vez. mais concretude, a0 demonstrar o abismo existente entre 0 “elles” es- cravos — fujoes, obrigatoriamente analfabetos ¢ mantidos a dis- Aincia da “cultura” branca —€ 0 “n6s’;leitores ejornalistas:cida- Adaos,leitores de Varella e que podemos portar bigode, cavanhaque epincené, simbolos de nosso lugar e condigto. ‘Mas nao 6 tudo. O texto aponta ainda para outras “pistas € inais” Nao se trata de um mero “negro fujao”, mas sobretudo de sm “creoullo” que logo se transforma em “suspeito em potencial” depois, “comprovadamente’, num ladrio e“mau-carater’s 0 que, ymo veremos, é também uma representagdo comumente asso- jada 20 elemento negro, cativo ou liberto. ‘Como essas; existem ainda outras interpretagses'€ muito r mas 0 que ji foi destacado serve para os jetivos desta introdugio, Ou seja, apartindeumsdartigoé poss Por ‘uma visto mais fatual, as vezes uma imagem que s6 ganha eréncia no interior de uma ética que privilegie o embate entre incos e mesmo uma interpretagio que busque captar sinais su- ntendidos, e que nos apontam para a polaridade eo contraste tente entre brancos, que redigem o jornal ou compartilham a tura da noticia, e negros, colocados tio longe desseslocais onde ¢ produz.e reprodtz acultura” do momento.? Essa mesma diversidade ganha ainda mais complexidade indo pode ser apreendida nao s6 no interior de um tinico jor- ‘mas, antes, na comparagio de alguns periddicos. Nestes pode- y -se notar que a escolha das noticias nao era idéntica (dado esse, ‘como veremos, relevante em si mesmo), emboraitodos tivessem Reconhecendo assim a importancia da imprensa paulista de finais do século como forum de debates centrais da época, 0 obje- tivo deste livro éa recuperagdo ¢ o entendimento da dinamica que se estabelece, de construgo e manipulagdo de representagbes 50- bre o negro cativo ou liberto, quando se intensificavam as rebe- ides negras, no periodo final do proceso abolicionista, e toma ‘volume a prépria campanha em prol da aboligao. Neste momento em particular o negro passa a frequentar constantemente as diferentes segdes dos grandes jornais da €poca {aparecendo tanto nas noticias de maior destaque como nos pe- quenos e abundantes antincios classificados de aluguel, venda ou captura de escravos). Através desses fragmentos de textos da im- prensa, desses “pedagos de significado” — que incluem desde as seges tidas como as “mais nobres” dos jornais (como noticias e ‘editoriais) até as de aparente valor secundirio (como os obitud- rios,“ocorréncias poli ‘urs virias visbes com que se falou sobre a condigio negra. [esse sentido, entao, os jornais sto aqui entendidos, primei- ramente, enquanto “produto social’, isto é como resultado deum oficio exercido ¢ socialmente reconhecido, constituindo-se como um objeto de expectativas, posigdes e representagbes especificas.” iis” eantincios) —, aqui se busca reconsti- ‘adosyentao; no enquanto situagdes que “realmente” acontece- ram e cuja veracidade iremos comprovarymas antesjenquanitorsi- Sem buscar; portanto, um conceito tinico,amplo e definidor, ssa intengdo é antes registrar e interpretar a prépria diversida- concepges, econstituindo nao a condigdo negra em si mas, 10s modos como brancos falavamn sobre 0 negro € 0 represen in num momento de mudangas ¢ transformagao nos atribu- je formalmente definiam esses elementos, Na busca de entender as representacdes dos brancos desse ilo sobre os negros, tanto a cidade de Sao Paulo como seus, i foram se mostrando essenciais, na medida em que passa- por um momento de grande transformagao ¢ redefinigao em fungoes e papéis; Sao Paulo; como veremos, transformava-ses, Por outro lado, a selecao do jornal enquanto documento bi- ‘mosttou significativa. Em primeiro lugar por se constituir onic histérica bastante completa e complexa, ja que nele con- im posigdes e opinides diversas e representativas e devido a0 into hist6rico recortado. Ou seja, como veremos, esse parece um periodo relevante no que tange também & histéria do jor- io Brasil. Esses momentos finais do século corresponderiam iodo de formagao da grande imprensa nacional, isto & da iormagao de jornais que passavam de “experiéncias isoladas, suras passageiras” a grandes e estaveis empresas constituidas tidas através da verba de grupos, sem diivida envolvidos, Adcbate enquanto segmentos da sociedad que se organiza- \eiculando, refletindo e produzindo novas representagoes. P fundamental destacat; por fim, que pretendemos entender jersos enunciados nao enquanto meros relatos jornalisticos 19 que nada mais teriam a dizer além do que jé esté circunscrito na objetividade da noticia. Buscamos antes “sobrecarga” de sentido! presente nas intimeras lacunas deixadas por textos muitas vezes

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