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relatosdecaso 163
RESUMO
Introdução: A crescente incidência de diabetes mellitus tipo 2 (DM2) em idade pediátrica é uma realidade. O rastreio reco-
menda-se perante fatores de risco, sendo comuns ao adulto os critérios diagnósticos. Nesta idade o tratamento visa o contro-
lo glicémico e de fatores de risco associados, sem comprometer o desenvolvimento, e também a prevenção de comorbilidades
e complicações. Este caso clínico pretende destacar a abordagem holística precoce e o envolvimento familiar na abordagem da
DM2 neste grupo etário.
Descrição do caso: Adolescente, sexo masculino, 12 anos, hispânico, com antecedentes pessoais de obesidade, alimentação de-
sequilibrada e história familiar de obesidade e DM2, recorreu à consulta por glicemia capilar ocasional elevada, referindo poli-
dipsia. Apresentava glicemia em jejum 160mg/dl e HbA1C 9,6%. Foi referenciado à especialidade de endocrinologia e, após es-
tudo, iniciou alterações de estilo de vida e terapêutica farmacológica com metformina. Atualmente, após quatro anos, apre-
senta-se normoponderal, com HbA1C < 6%, apenas sob terapêutica não farmacológica.
Comentário: A abordagem desta patologia em idades jovens exige um trabalho conjunto de autoridades políticas, rede esco-
lar e cuidados de saúde para uma promoção de estilos de vida saudáveis e combate ativo à obesidade infantil, procurando en-
volver e responsabilizar os cidadãos. Os profissionais de saúde devem estabelecer precocemente o diagnóstico e terapêutica
para evitar complicações, sendo essenciais as mudanças de estilo de vida e o envolvimento familiar.
residente na Venezuela até aos nove anos de idade. Gra- me objetivo apresentava fenótipo obeso, sem acanto-
videz e parto sem intercorrências, nomeadamente dia- se ou estrias violáceas, proporcionado, sem outras al-
betes gestacional, com somatometria adequada à ida- terações de relevo. Normotenso (tensão arterial de
de gestacional. Antecedentes pessoais de obesidade e 110/60 inferior ao percentil 90 para a altura, sexo e ida-
de hábitos alimentares desequilibrados, com consumo de). Relativamente aos dados antropométricos, peso
excessivo de hidratos de carbono simples, nomeada- de 80kg; altura de 170cm (>P97), IMC de 27,7Kg/m2
mente refrigerantes, e pobre em fruta e legumes. Ne- (muito superior ao P97). Realizada pesquisa de glicemia
gava outros antecedentes relevantes. Enquanto residiu capilar ocasional na consulta, apresentando 323mg/dL.
na Venezuela não teve seguimento em consultas de vi- Foi explicado ao adolescente a importância de modifi-
gilância, não sendo portador de nenhuma informação car os estilos de vida com cuidados alimentares e in-
médica prévia. Antecedentes familiares de obesidade, cremento da atividade física e pedidas análises que re-
DM2, HTA e doença cardiovascular precoce. Pertence velaram uma hemoglobina glicada (HbA1c) de 9,6%,
a uma família nuclear (Figura 1), altamente funcional, glicemia em jejum 160mg/dl e ficha lipídica normal.
que se encontra na fase V do ciclo de vida de Duvall. No Após contacto telefónico com o serviço de endocrino-
círculo de Thrower o adolescente representou-se equi- logia do hospital de referência foi marcada consulta ur-
distante dos restantes elementos da família nuclear, re- gente.
ferindo estar satisfeito com a sua representação (Figu- Na consulta hospitalar, cinco dias depois, foi pedido
ra 2). novo estudo analítico e consulta de nutrição, tendo
O adolescente recorreu à consulta por queixas de iniciado metformina 500mg, com aumento progressi-
polidipsia com um mês de evolução, motivo pelo qual vo até 1000mg bidiário. Após cinco meses de modifica-
a mãe realizou uma pesquisa de glicemia capilar apre- ção de estilos de vida e terapêutica farmacológica tinha
sentando um valor de 300mg/dL. Negava poliúria, po- uma HbA1c de 5,9% e uma redução ligeira do IMC.
lifagia, perda ponderal, astenia ou visão turva. Ao exa- Os autoanticorpos (Ac Anti-GAD, Ac Anti-Ilhéus de
1.ª geração
J M, 1950 M L, 2005 A F, 1946 M J, 1954
Diabetes tipo 2 Angina
EAM LES
HTA HTA
Dislipidémia Obesidade
3.ª geração
28 28
26 26
85
24 24
22
50 22
IMC
20 20
15
18 3 18
16 16
14 14
3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9 3 6 9
5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19
preocupante, uma vez que o tempo de evolução, a par perglicémico.5 Entre as possíveis causas de hiperglice-
do nível de controlo da doença, é um dos principais mia, o principal diagnóstico diferencial é a DM1.5 O iní-
preditores de aparecimento de complicações.6 cio mais insidioso, o fenótipo de insulinorresistência
Segundo a Associação Americana de Diabetes, de- (obesidade, acantose nigricans) e a ausência de au-
vem ser rastreadas as crianças e adolescentes com ris- toanticorpos apoiam a hipótese de DM2.5
co elevado para desenvolver DM2 (Tabela 1), recorren- Outras situações menos comuns a considerar em
do a glicemia em jejum, prova de tolerância oral à gli- contextos de hiperglicemia incluem fibrose quística,
cose e eventualmente HbA1c, embora a validade desta outras patologias endócrinas (síndroma de Cushing,
última no diagnóstico seja questionada em alguns es- feocromocitoma), hiperandrogenismo ovárico e iatro-
tudos.2,7,9 genia (corticoides, antiretrovirais e quimioterapia).5
Os critérios de diagnóstico são semelhantes aos do As atuais recomendações terapêuticas resultam fun-
adulto, exigindo-se, na ausência de sintomas, repetição damentalmente da experiência acumulada no trata-
para confirmação do diagnóstico (Tabela 1).2 Os sinto- mento de adultos, sendo as mudanças de estilo de vida
mas sugestivos incluem polidipsia, poliúria, polifagia, e o envolvimento familiar pilares centrais na aborda-
perda ponderal, astenia, cicatrização lenta, visão turva, gem da DM2 em todas as idades. Nas crianças e ado-
infeções vaginais recorrentes ou manifestações agudas, lescentes têm papel primordial o investimento numa
como cetoacidose diabética ou coma hiperosmolar hi- alimentação saudável e equilibrada e atividade física
regular, restringindo alimentos ricos em hidratos de co de família foi o primeiro profissional envolvido no
carbono simples e «tempo de ecrã».5,7 As terapêuticas diagnóstico e primeira abordagem terapêutica, ini-
aprovadas para uso pediátrico incluem insulina e met- ciando a explicação da fisiopatologia da doença adap-
formina, sendo recomendada terapêutica inicial com tada ao conhecimento e compreensão do adolescente
insulina em caso de cetose ou cetoacidose, dúvida diag- e família e valorizando as mudanças de estilo de vida
nóstica, glicemia ≥ 250mg/dl ou HbA1c > 9%. Nos res- fundamentais ao sucesso da terapêutica. Numa abor-
tantes casos deve ser iniciada metformina.2,7-8 A met- dagem inicial de diabetes ou suspeita de diabetes em
formina deve ser iniciada na dose de 500-1000mg diá- idade pediátrica deve ser avaliada a cetonémia ou ce-
rios durante uma a duas semanas, devendo ser titula- tonúria, pois, se positiva, indica tratamento urgente e
da a dose semanalmente durante três a quatro sema- o adolescente deve ser referenciado ao serviço de ur-
nas, dependendo da tolerância do utente, até uma do- gência pelo risco de cetoacidose.7 O adolescente e a fa-
sagem máxima de 1000mg bidiária. Os efeitos secun- mília revelaram precocemente interesse nessas mu-
dários digestivos (dor abdominal, diarreia, náusea) po- danças, que foram sugeridas de acordo com as prefe-
dem ocorrer, mas podem ser minimizados com a titu- rências destes: natação como exercício físico preferido
lação gradual da dosagem ao longo de três a quatro se- do adolescente e caminhadas como atividade física
manas, com a ingestão simultânea de alimentos ou mais fácil de adaptar ao seu quotidiano e envolvendo
através do uso de formulações de libertação prolonga- todo o agregado familiar. Relativamente aos cuidados
da. O risco de acidose láctica é extremamente reduzi- alimentares foi solicitado ao adolescente que elabo-
do. rasse um diário alimentar para uma segunda consulta,
Este adolescente tinha indicação para iniciar insuli- onde foram discutidas algumas alterações a realizar de
na pelas glicemias elevadas, mas foi iniciada terapêu- acordo com o diário apresentado. Ao longo das con-
tica com metfomina por indicação da endocrinologis- sultas realizadas foram avaliados os ganhos e propos-
ta. tas mudanças cada vez mais exigentes e adaptadas aos
O ajuste terapêutico progressivo baseia-se na HbA1c, ganhos e motivação do adolescente. Inicialmente o
sendo recomendável o valor alvo < 7%.7 adolescente foi avaliado com uma periocidade mensal,
Após o diagnóstico e durante o seguimento a longo que foi alargada à medida que as alterações de estilo de
prazo, a International Society for Pediatric and Adoles- vida foram rigorosamente incluídas, culminando no
cent Diabetes recomenda monitorização da HbA1c tri- excelente controlo metabólico rapidamente alcança-
mestralmente e da pressão arterial em todas as con- do. A entrevista motivacional é fundamental para a mu-
sultas, pesquisa de microalbuminúria, retinopatia, dis- dança de estilos de vida, sendo particularmente desa-
lipidemia e esteatose hepática não alcoólica à data do fiante na adolescência. A empatia, a disponibilidade, o
diagnóstico e anualmente, bem como o rastreio regu- tempo dedicado em cada consulta, que ultrapassou lar-
lar de alterações pubertárias e menstruais e apneia obs- gamente o tempo previsto de consulta, as decisões con-
trutiva do sono.7 juntas e o reforço positivo de cada ganho alcançado fo-
Neste caso clínico destaca-se o controlo glicémico ram fundamentais para a mudança verificada. Este caso
através de terapêutica não farmacológica, após fase ini- ilustra a dificuldade sentida pelos profissionais de saú-
cial de terapêutica com metformina e o envolvimento de relativamente ao tempo padrão para consultas par-
familiar através da educação de toda a família, permi- ticularmente destinadas à prevenção primária, que se
tindo aumentar a adesão do doente com ganhos em revela muito exigente, mas prioritária. Por outro lado,
saúde dos vários elementos da família. os desafios relacionados com a acessibilidade (nomea-
Pela relação privilegiada com o utente, contacto con- damente, a dimensão da lista de utentes) condicionam
tinuado no tempo e conhecimento e acesso ao contex- a capacidade do médico de família programar um
to familiar, o médico de família tem uma posição de acompanhamento tão frequente quanto o desejável,
destaque no seguimento destas patologias, primando sobretudo nas fases iniciais.
pela otimização e individualização dos recursos em- Conforme ilustrado neste relato, a articulação
pregues em cada indivíduo. Neste caso clínico, o médi- com os cuidados hospitalares é particularmente
importante para a realização de exames complemen- dade Portuguesa de Diabetologia; 2015. ISBN 978-989-96663-2-0
2. American Diabetes Association. Standards of medical care in diabetes
tares de diagnóstico, fundamentais para o diagnóstico
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nética associada à DM2, a obesidade é o fator de risco 7. Phelan H, Lange K, Cengiz E, Gallego P, Majaliwa E, Pelicand J, et al. IS-
modificável com maior contributo e um combate ati- PAD clinical practice consensus guidelines 2018: diabetes education in
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vo a esta problemática terá certamente impacto posi-
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nomeadamente no controlo das doenças cardiovascu- www.nice.org.uk/guidance/ng18
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2013.
Por fim, atendendo à possibilidade de prevenção e
atraso do aparecimento desta patologia e ao benefício CONFLITO DE INTERESSES
do seu controlo para evitar complicações associadas, é Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.
fundamental que os profissionais de saúde estejam sen-
sibilizados para a DM2 em idade pediátrica, de forma ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
a estabelecer precocemente o diagnóstico e a terapêu- Cláudia Raínho
E-mail: claudiacc18@hotmail.com
tica adequada.
https://orcid.org/0000-0002-3448-8900
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Observatório da Diabetes. Diabetes: factos e números – O ano de 2014 Recebido em 25-01-2018
(relatório anual do Observatório Nacional da Diabetes). Lisboa: Socie- Aceite para publicação em 25-02-2021
ABSTRACT