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O espaço da habitação social no Brasil: possíveis critérios de um necessário


redesenho

Preprint · March 2019


DOI: 10.13140/RG.2.2.29822.43844

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Marcelo Tramontano
University of São Paulo
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inovações das propostas limitam-se ao uso de
O espaço da alguma técnica construtiva alternativa ou a
novos desenhos de fachada incorporando
habitação social traços da moda, sem que, contudo, a função, o
desenho e a articulação dos espaços de
no Brasil habitar sejam sequer questionados. Os autores
destas propostas acabam referindo-se aos
possíveis critérios modelos vigentes, seja a tripartição burguesa
social-íntimo-serviços, seja o padrão Moderno
com a centralização da cozinha e a bipartição
de um necessário dia-noite.

redesenho mbos os modelos foram originalmente


Marcelo Tramontano, USP, Brasil A concebidos para a família nuclear, em um
momento em que esta tipologia familiar
surgia como absolutamente dominante. No
caso da habitação burguesa européia
istoricamente, o desenho da habitação oitocentista, seu funcionamento dependia da
H social brasileira tem-se referenciado a
tipologias que vão do modelo da
presença de pessoal doméstico
propositalmentre separado dos patrões.
habitação burguesa européia do século 19, Quartos de empregados, tanto quanto banheiro
caracterizado pela tripartição em espaços de e cozinha, eram considerados espaços de
prestígio, de isolamento, e de rejeição - a rejeição e, portanto, relegados aos fundos da
famigerada trilogia de áreas social, íntima e de moradia. Salas e vestíbulos compunham os
serviços -, ao arquétipo moderno da habitação- espaços de prestígio - a face pública da
para-todos, com sua uniformidade de soluções habitação - em oposição aos espaços de
em nome de uma suposta democratização das intimidade, os quartos de dormir do dono da
características gerais dos espaços. Mesmo que casa e de sua família. Já nas propostas
agora tendam a habitá-la grupos domésticos Modernas do primeiro pós-guerra europeu,
cujo perfil difere cada vez mais da família materializadas exemplarmente nas siedlungen
nuclear convencional, e cujos modos de vida patrocinadas pela social-democracia alemã, a
apresentam uma diversidade cada vez maior, o cozinha foi trazida dos fundos da casa para,
desenho dos espaços desta habitação fundida com a sala de estar, tornar-se o
continua imutável, sob a alegação de que espaço privilegiado do convívio entre os
chegou-se a um resultado projetual membros de uma família nuclear cuja mãe era
economicamente viável, que atende às a principal encarregada das tarefas
necessidades básicas de seus moradores. domésticas. Além disso, a pouca área útil de
cada unidade foi tratada com elementos
verdade que o desenho das unidades flexíveis - camas escamoteáveis, mesas

É permanece aproximadamente o mesmo


há décadas, apenas com alguma
dobráveis ou sobre rodízios, portas de correr -
procurando viabilizar a meta de um cômodo
variação da superfície total em função das por pessoa, fosse ele minúsculo.
flutuações da economia do país. O papel dos
claro que as reformas que os moradores
órgãos públicos produtores de conjuntos
habitacionais tem sido, basicamente, o de
elaborar projetos urbanísticos, adequando as
É costumam fazer nas casas populares
brasileiras, às vezes antes mesmo de
unidades-padrão pré-definidas. Nas raras ocupá-las, são também conseqüência do fato
ocasiões em que o projeto das unidades é de as unidades serem entregues em seu
solicitado a escritórios de Arquitetura, seja por estado mais mínimo possível - leia-se sem
encomendas, seja por meio de concursos, as acabamentos e com áreas absolutamente
reduzidas -, principalmente por razões de
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custo. Mas é igualmente certo que a menos pessoas. Estes novos grupos
inadequação de seu desenho interno às domésticos inscrevem-se em uma tendência
necessidades dos usuários está longe de ser muito mais ampla de privatização do grupo
um fator desprezível no momento em que se familiar, iniciada há pelo menos quatro séculos,
decidem pelas alterações. quando a noção de clã vai cedendo terreno a
um individualismo de costumes que resultará
á há algumas décadas que os novos em uma progressiva valorização do indivíduo
J candidatos a habitantes destas unidades
tendem a compor, em proporção
e, já às portas do nosso século, na aceitação
da família nuclear como modelo de família
crescente, grupos domésticos diferentes da moderna. Não restrito ao Brasil, muito menos
família nuclear convencional. A mãe, antes às camadas mais pobres da população, este
dedicada prioritariamente às tarefas quadro se verifica, com intensidade variável -
domésticas, aos filhos e ao marido, passou a mas crescente e, aparentemente, irreversível -,
trabalhar fora, responsabilizando-se por uma em grande parte das metrópoles do planeta,
parcela crescente do orçamento familiar. Ela ricas ou não. Estes desenvolvimentos devem,
também decidiu ter menos filhos, casar-se no entanto, ser considerados não pelas suas
mais tarde - ou não casar-se -, e tornou-se conseqüências, ainda moderadas, mas pelo
mais exigente com a qualidade da relação enorme potencial de transformações que
conjugal, por possuir agora maior autonomia representam.
financeira, fazendo aumentar o número de
divórcios e separações. Por outro lado, e sta diversidade de perfís, que permite
devido a diversos fatores, a esperança de vida
ao nascer do brasileiro, que era de 41,2 anos
E supor uma diversidade ainda maior de
modos de vida, abre-nos uma série de
em 1940, já situa-se em torno dos 66 anos em questões que, se por um lado ainda se
1980, com um diferencial a favor das mulheres: encontram longe da agenda dos que tomam as
elas viveriam 70,02 anos enquanto que os decisões no campo da habitação social no
homens morreriam aos 63,3. Em outras Brasil, nos levam a refletir sobre habitações
palavras, o risco de viuvez é maior entre as mais em fase com nosso tempo:
mulheres, que vão compor uma parcela
significativa dos novos singles urbanos. Frente
a estas mudanças, o número de membros do 1. A evolução da maneira de realizar
grupo familiar tem-se tornado cada vez menor, atividades quotidianas nos leva a repensar
ao mesmo tempo em que aumenta a cada função da habitação: à finalidade
quantidade de grupos e, conseqüentemente, a higienizadora do banho acrescenta-se uma
demanda por mais habitações. Pessoas de dimensão de relaxamento, inscrita em uma
várias idades vivendo sozinhas - como boa tendência mais ampla de culto ao corpo que
parte dos trabalhadores braçais sem abrange toda a sociedade; as atividades
qualificação na Grande São Paulo -, famílias produtivas parecem esboçar uma volta ao
monoparentais, geralmente chefiadas por espaço doméstico; as refeições são feitas
mulheres, casais vivendo em união livre e individualmente em horários diversos, deixando
grupos de trabalhadores vivendo sob o mesmo de constituir um momento privilegiado de
teto, são alguns dos grupos domésticos convívio; o televisor - presente em extensa
emergentes. É dizer que tanto o tamanho, a maioria das moradias - e, eventualmente, o
estrutura e a função da família, como as telefone, contribuem para alterar as relações
relações entre seus membros vem-se entre os membros do grupo, e entre o grupo e
alterando profundamente nas últimas décadas, o mundo exterior; etc. Quais novos desenhos
e que esta tendência não exclui a família poderiam corresponder a cada espaço da
nuclear que, apesar de modelo ainda casa, repensado em função destas solicitações
dominante, estaria se tornando, cada vez mais, emergentes?
apenas um momento transitório - e não
obrigatório - da trajetória individual de cada vez
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2. Deveria a casa popular atual continuar a ser colocada sobre a divisão interna dos
ser concebida como uma redução da casa espaços?
burguesa oitocentista? A tripartição social-
íntimo-serviço, ou mesmo a bipartição dia- 6. O carro como prolongamento da
noite, ainda se justificariam em unidades com organização familiar da vida quotidiana é, em
áreas tão reduzidas e problemáticas tão muitos casos, onipresente. Como seria
distintas? possível ligá-lo funcional e simbolicamente à
função da habitação? Que relações existiriam
3. Os novos conceitos de produção flexível de fato entre carro e moradia? Quais
mas também as atividades da economia qualidades devem ser atribuídas aos lugares
informal recolocam a questão do trabalho-feito- reservados aos carros? Como é possível
em-casa, tão comum nas classes populares: o proteger-se da poluição e dos perigos
trabalho ocupa ao menos uma parte do espaço causados pela circulação motorizada?
doméstico. Esta parte é reservada temporária
ou exclusivamente ao trabalho? De que 7. Os novos perfís de grupos domésticos
maneira integra-se ao restante da habitação? existem, muitas vezes, em apenas certos
Deveria situar-se dentro da casa ou períodos do ciclo de vida familiar, de maneira
apartamento, ou em relação próxima? Na simultânea ou alternada. Pode-se, por
esfera privada, coletiva ou pública ? exemplo, morar sozinho quando jovem,
posteriormente em união livre, ter filhos e
4. A casa transforma-se, pouco a pouco, no preferir casar-se, divorciar-se voltando a viver
território de cruzamento de vidas individuais, só ou com os filhos, etc. Seria razoável pensar
agora respeitadas, dado o aumento do grau de que a esta alternância de configurações
autonomia dos membros do grupo doméstico. poderia corresponder uma flexibilidade do
Como trabalhar a crescente reivindicação por espaço da habitação capaz de absorver esta
privacidade nos interiores populares, cuja área transformação contínua? Deveriam ser
reduzida e compartimentada é freqüentemente previstas diferentes tipologias nos conjuntos
abarrotada de móveis e equipamentos que habitacionais visando abrigar esta nova
acabam não deixando muita escolha para os diversidade de grupos e de modos de vida?
próprios moradores? O problema seria,
principalmente, a área muito exígua? Ou 8. As etapas do processo de privatização do
seriam os interiores compartimentados grupo familiar iniciado há, pelo menos, quatro
demais? Ou, antes, a função dos atuais séculos, seriam, em última instância, passos
cômodos é que deveria ser revista? Espaços em direção a um novo - e, talvez, futuramente
individuais deveriam possuir acessos externos dominante - padrão social: as pessoas vivendo
também individuais? Quais novas estruturas sós. Que tipo de habitação social se pensaria
espaciais corresponderiam ao abrigo de para estes novos solitários urbanos?
coabitantes com crescente necessidade de
independência? 9. Enquanto lugar onde mesclam-se usos
sociais e funcionais, o espaço público situa-se
5. A demanda por casas populares parte de no centro das problemáticas qualitativas da
um número crescente de grupos domésticos habitação. Como seriam integrados os diversos
cuja composição inclui cada vez menos aspectos sensíveis como forma, estrutura,
pessoas, o que significaria um aumento do materiais, cores, sons, ambiência à noite? Os
número de unidades necessárias para abrigar modelos tradicionais seriam ainda adequados?
uma mesma população. Com que critérios Seria possível atualizá-los ou inventar novas
deveria ser repensada a relação entre a área formas de espaços públicos?
de uma habitação e o número de seus
ocupantes? Seriam estas novas unidades 10. A profunda separação entre espaço
forçosamente menores? Ou a ênfase deverá público e espaço privado, a imutabilidade das
normas sobre a maneira de construir, a crença
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no ideal moderno segundo o qual um único tipo profissional cabe estar atento às
de moradia seria capaz de satisfazer transformações cada vez mais intensas e
necessidades humanas consideradas profundas da sociedade cuja moradia ele é
universais, o uso indistinto desta unidade- chamado a projetar. E que seus desenhos de
padrão como abrigo de quaisquer grupos novos espaços de morar serão fundamentais
domésticos, contribuíram para a produção de para influenciar os que detêm o poder de
conjuntos habitacionais por demais uniformes e efetivar mudanças.
sem qualificativos, onde a área pública destina-
se quase exclusivamente à circulação
motorizada. Caberiam, entre as esferas privada
e pública, zonas de transição pertencentes ao
coletivo dos moradores contendo,
eventualmente, extensões da esfera privada?
Quais os limites desejáveis do espaço privado
de cada habitação? Que tipo de espaços
coletivos e públicos assegurariam condições
para o desenvolvimento de novas relações
sociais e de relações já existentes? Quais
serviços tradicionalmente locados em uma
destas esferas tenderiam a deslocar-se para
alguma outra?

11. Os conjuntos habitacionais tem sido


concebidos, em sua grande maioria, utilizando
uma única tipologia de habitações, seja ela a
habitação unifamiliar em lotes contíguos, as
unidades geminadas ou a habitação coletiva
em barras, torres, etc. A mescla de diferentes
tipos de agrupamentos poderia, além de
enriquecer a paisagem monótona dos
conjuntos, contribuir a induzir a maneiras
diversas de relacionamento social?

12. Em casa como estrangeiros: o confronto


entre os viajantes e a gente do lugar. Nos
grandes conjuntos das periferias
metropolitanas brasileiras há um grande
número de imigrantes, moradores originários
de outras regiões do país. Como trabalhar a
integração destas populações? Quais relações
de vizinhança a serem estimuladas, quais
novos tipos de espaços coletivos e públicos?

abemos que o processo de tomada de


S decisões, no que concerne o desenho da
habitação social brasileira, envolve uma
São Carlos, inverno de 1995

infinidade de parâmetros de natureza política e


econômica - e não apenas reflexões UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO . BRASIL
específicas de projeto - assim como um grande ESCOLA DE ENGENHARIA DE SÃO CARLOS
grupo de profissionais, entre os quais o DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO
arquiteto. No entanto, acreditamos que a este tramont@sc.usp.br
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