Introdução
Vale lembrar que essa aquisição não se dá nem física nem metafisicamente, mas
representativamente, ou seja, o sujeito não apreende o objeto em si mesmo, mas apenas sua
representação.
Embora não seja possível falar em teoria do conhecimento, como disciplina filosófica,
nem na Antiguidade nem da Idade Média, há uma farta reflexão epistemológica antes da
modernidade que finca bases sólidas para esta última. Portanto, “encontramos numerosas
reflexões epistemológicas [...] especialmente em Platão e Aristóteles” (HESSEN, 2003, p.14).
É por isso que, neste texto, tomaremos como base o pensamento desses dois mestres da
filosofia antiga para verificar os pressupostos que serviram de sustentação para as reflexões
racionalistas e empiristas dos filósofos modernos.
Platão
Sócrates, mestre de Platão, dizia que “uma vida sem ser examinada não é vida digna
de um ser humano” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, par. 38a). Com isso Sócrates enfatiza a
importância do uso da razão como crítica para nossas crenças, valores e ações.
Platão, seguindo o princípio socrático, faz da capacidade racional humana a única que
possibilita o acesso ao conhecimento verdadeiro sobre as coisas. Sua teoria dos dois mundos,
o inteligível e o sensível, destaca o primeiro como fundamento da verdade, pois não é
acessível pelos sentidos, motivo dos enganos, mas apenas pela razão.
Aliás, é esse bom uso da razão, segundo Platão, que nos torna virtuosos, pois
O [homem] virtuoso deve por de parte tudo o que pertence ao sensível e, guiado pelo
logos (razão), dirigir-se para o inteligível, onde se encontra o verdadeiro conceito de
bem, sabedoria e felicidade. O homem bom é aquele que, pelo logos [razão] e pela
Sophia [sabedoria], consegue atingir a essência da virtude, agindo racionalmente e,
por isso, com justiça” (As virtudes do homem bom, p. 9).
Platão, por sinal, interpreta que a alma humana possui três partes, a racional (sede da
razão), a sensitiva (sede dos sentimentos) e a concupiscente (sede dos instintos) (PLATÃO, A
república, livro IV), mostrando o homem justo, que fundamenta sua vida no conhecimento
verdadeiro, como aquele que faz prevalecer a parte racional sobre as outras. No caso, o termo
grego usado por Platão para conhecimento é ἐπιστήμη (epistéme), que significa um
conhecimento obtido pela lógica e crítica racional. Portanto, a obtenção da virtude é um saber
epistemológico, daí sua veracidade (PLATÃO, Mênon, par. 87c, p. 69).
Se Platão considera a via racional como sendo a única possível para a obtenção do
conhecimento verdadeiro, então podemos perguntar sobre o que se conhece com a
racionalidade. Ora, os sentidos nos oferecem apenas objetos particulares, e estes são limitados
por sua materialidade e temporalidade. Todavia, a essência dos objetos traz consigo suas
propriedades de modo absoluto, eterno e imutável, transcendendo as limitações dos
particulares. Ademais, essa essência é acessível de forma teórica, não sendo tangível pelos
sentidos, mas pelo intelecto, pois é um conhecer abstrato e a absoluto. Dessa forma, a
ἐπιστήμη (epistéme), o conhecimento de fato, exige um afastamento do mundo sensível para
que se viabilize o modo racional e verdadeiro de conhecer.
Aristóteles
Aristóteles, sendo discípulo de Platão, herdou deste e da cultura grega antiga em
geral a valorização da capacidade humana intrinsecamente racional para a obtenção do
conhecimento. Logo, não nos surpreende quando afirma ser as ciências teoréticas (saber pelo
saber) hierarquicamente superiores aos outros dois tipos de ciências, as práticas (Ética e
Política) e as produtivas (fabricação de objetos). Sobre isso diz:
De início já destacamos que Aristóteles não concebe a essência dos seres deste mundo
separada de seu aspecto sensível, como o fez Platão, pois “Platão, na esteira de Sócrates, foi
levado a supor [incorretamente] que o universal existisse noutras realidades e não nalguns
sensíveis” (ARISTÓTELES, Metafísica, Livro I, Cap. IV 1). Logo, a matéria (aquilo de que um
ser é feito) e a forma (aquilo que faz um ser o que é) não existem dicotomizadas, pois
“ninguém produz ou gera a forma; o que é produzido é o indivíduo e o que é gerado é o
conjunto de matéria e forma” (ARISTÓTELES, Metafísica, Livro I, Cap. II 5. A materialidade,
com a corruptibilidade própria de sua evidente imperfeição, não existe nos seres sensíveis a
não ser em plena conexão com sua forma essencial, imutável e mais perfeita. Dessa forma,
nem matéria pura nem forma pura existem enquanto tais, são apenas conceitos, ou seja,
“quem possua a noção [sobre algo] sem a experiência, e conheça o universal ignorando o
particular nele contido, enganar-se-á muitas vezes [...] (ARISTÓTELES, Metafísica, Livro VIII,
Cap. II 3).
Ainda sobre o processo de atualização das potências dos seres, segundo o pensamento
aristotélico, vale destacar sua importância para a implicação mútua entre a razão e os sentidos,
entre a reflexão racional e a experiência sensível, pois, segundo Aristóteles, a razão,
estimulada pela sensibilidade (as impressões sensíveis) é levada a se atualizar, pensando;
enquanto isso o sensível também é atualizado pela razão quando pensado por esta
(ARISTÓTELES, Metafísica, Livro IX, 3).
Conclusão
Como pudemos observar, as reflexões aristotélicas sobre o fundamento do
conhecimento trazem um destaque significativo para a experiência sensível. Diferentemente
de Platão, que despreza o mundo sensível na obtenção da epistéme (conhecimento verdadeiro)
o Estagirita resgata os sentidos e as informações por eles obtidas como parte intrínseca do
processo gnosiológico. Portanto, Aristóteles serve de base para o empirismo como teoria do
conhecimento, desenvolvida com mais precisão posteriormente pelos filósofos modernos.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Metafísica. Dir.: Fidel Garcia Rodríguez. Rio de Janeiro: Loyola, 2002.
HESSEN, Joannes. Teoria do conhecimento. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: Os pensadores [Sócrates]. São Paulo: Nova Cultural,
1987.
________. A república. Intr. Trad.: Maria Helena da Rocha Pereira. 5ª. ed. Lisboa (POR):
Fundação Calouste Gulbenkian, 1972.
________. Mênon. Texto: John Burnet. Trad.: Maura Iglésias. Rio de Janeiro: PUC-
Rio;Loyola, 2001.