Você está na página 1de 8

OPÉDA MIA 69
lt
• etrusca de argila vermelha e� va pousada sobre um armá­
• rio de Boule, de almofadas , e ébano severamente raiadas
de filamentos de cobre; uma duquesa da época de Luis, XV

estirava indolentemente seus Pés de corça sob uma grossa
• mesa do reinado de Luís XIII, com pesadas espirais de car­
• valho, com esculturas entremeadas de folhagens e de qui­
• meras.



O pé da múmia (1840) l
Uma armadura tauxiada de Milão fazia cintilar
canto o bojo ornado de fitas de sua couraça; amores e nin­
fas de biscuit, grotescas figuras chinesas de porcelana, tin­
num


'
Théophile,. Gautier teiros de esmalte verde-claro e salpicado, chávenas de Saxe ! I

• e de Sevres antigo apinhavam as estantes e as cantoneiras •

• Sobre as pratelefras denticuladas dos armários, res­


plandeciam imensas travessas do Japão, de desenhos ver­
• melhos e azuis, ornatos em r elevo com hachuras de ouro,
• ......
lado a lado dos esmaltes de Bernard Palissy representando
• A falta do que fazer, eu entrara num d�sses nego­ cobras, rãs e lagartos em relevo.
ciantes de curiosidades, chamados negociantes, de brica­ Dos guarda-roupas atochados escapavam-se cascatas

braque na gíria parisiense, tão perfeitamente ininteligivel de lustrina acetinada de prata, borbotões de brocatéis cri­
• para o resto da França.:: . • • vados de grãos luminosos por um raio obliquo de sol; re­
< ·

• Já haveis sem dúvida dado uma olhada, através da tratos de todas as épocas sorriam, através de seu verniz
• vidraça, nalgumas dessas lojas que se tornaram tão num�­ amarelado, em quadros mais ou menos descorados.
rosas desde que entrou na moda adquirir móveis antigos, e O negociante me seguia precavidamente nas tortuosas

que qualquer corretor de câmbio se acha obrigado a pos- passagens abertas entre as pilhas de móveis, derrubando
• suir o seu quarto Idade Média. . com a mão o vôo audaz das abas de minha casaca, vigian­
• Trata-se de algo que tem a ver, ao mesmo te,mpo, com ·
do-me os cotovelos com a atenção inquieta do antiquário e ·

• a loja de ferro velho, com o armazém do tapeceiro, com o do usureiro.


• luvu1atóriu de alquilTÚsta e com o ateli� de pintor; nesse:; Era
' • ..

siuguhu Úgúfa a m::t;CClwiü;;


1111

wna uu i.iffi crar-•.H.-.


antros misteriosos, onde os postigos filtram uma prudente imenso, brunido como um joelho, circundado por uma
• meia-luz, o que há de notoriamente mais antigo é a poeira; rala auréola de cabelos brancos que destacava mais viva­
• ·as teias de aranha são ali mais autênticas do que as guipu­ mente o tom salmão-claro da pele, dava-lhe uma falsa apa-
• ras e a velha r:::�ira si!v�st;; l !!!".i� jovem do que o acaju rênct:-�
· • ; 1..
'." ..,.:;;:;:urra�
• p:.;,n.::-
• • ;- ;;:;;:: • • 'da, d e res to, pelo bn'
.:, corng1
-
recém-chegado da América.. lho dos lhinhos amarelados que tremiam em suas órbitas

O depósito do meu negociante de bricabraque era como d is luises de ouro sobre azougue. A curvatura do

uma verdadeira Cafarnaum; todos os séculos e todos os nariz ti ha um perfil aquilino que lembrava o tipo oriental
• palses pareciam ter ali marcado encontro; uma lâmpada ou jud u. As mãos magras, franzinas, cheias de veias e

• ���r-Ú4�

70 THéOPHIL' 1AUTIER O P É DA MÚMIA 71

nervos salientes como as corda je um braço de violoncelo, Ele ostentava esses belos laivos fulvos e ruços que dão
unauladu de garras semelhanks às que terminam as asas ao bronze florentino seu aspecto cálido e vivaz, tão prefe-
membranosas dos morcegos, tinham um movimento de
. '
rível ao tom verde-azinhavre dos bronzes comuns que se
oacllaçlo senil, inquietante de ver-se; todavia, essas mãos tomariam facilmente por estátuas em putrefação; luzentes
qltadas por tiques febris tornavam-se mais firmes do que reflexos acetinados estremeciam-lhe as formas redondas e
tenues d e aço ou pinças de lagosta quando erguiam algum polidas pelos beijos amorosos de vinte séculos, pois devia
objeto precio so , uma copa de ônix, um copo de Veneza, tratar-se de um bronze de Corinto, uma obra da melhor
uma bandej a de cristal da Boêmia; o velho patife tinha um época, fundida talvez por Lisipo!
ar tio profundamente rabinico e cabalístico que pela cara - Este pé me serve - disse ao negociante, que me
teria sido queimado há três séculos atrás. _
olhou com um ar irônico e matreiro, passando-me o objeto
- O senhor não me vai comprar nada hoje, senhor? pedido para que eu o pudesse examinar mais a cômodo.
811 um c'ris malaio cuja lâmina ondula como uma chama; Fiquei surpreendido com a sua leveza; não era um pé
repare nestas ranhuras para fazer correr o sangue, nestes de metal, mas sim um pé de carne, um pé embalsamado,
denteado s feitos em sentido inverso para arrancar as entra­ um pé de múmia: olhando-o de perto, podia-se distinguir a
nhu quando se retira o punhal; é uma arma feroz, de bela textura da pele e a marca quase imperceptível impressa pela
qualidade, que ficaria muito bem no seu troféu; esta espa­ trama das tiras. Os dedos eram finos, delicados, termina­
da de dois punhos é de Joseph de la Hera, e esta espada de dos em unhas perfeitas, pura.s e transparentes como ága­
oopoa em forma de concha fenestrada, veja que soberbo tas; o polegar, um tanto separado, contrariava felizmente
trabalho I , .. , o plano dos outros· dedos,: à maneira antiga, e lhe dava
- Nlo, ji tenho o que basta de instrumentos de car­
'l

uma atitude desprendida, uma esbelteza de pé de pássaro;


nlftclna; queria uma figurinha, um objeto qualquer que me a planta, raiada de leve por algumas hachuras invisíveis,
pudo11e servir de peso para papéis, pois não suporto todos mostrava que não havia jamais tocado a terra e só tivera
11111 bronzes d e pacotilha que se vendem nas papelarias e contacto com as mais finas esteiras de juncos do Nilo e os
que 11 encontram invariavelmente em todas as secretárias. mais fofos tapetes de peles de panteras.
O velho anomo, remexendo nas suas velharias, apre­ - Ha! ha! o senhor quer o pé da princesa Hermon­
ltntou-me bronzes antigos ou supostamente tais, pedaços this,- disse o negociante cpm_uma estranha risota de escár-
dt mal a chi ta , idolozinhos hindus ou chineses, uma espécie •
f1t rln ....,.,,.
n1o, .�.!"'an--- ....._
,..
....
,.....,., S"'"" nlh.ns
...., ....... ..... ...
"""-�
,.1,.
.._� --. ,.._
,...,.. ... ,..hn
...... __ .... ...,
- !-:a I h�!
... ·...
!-:-:.!
__ · �--

dt boneco de jade, incarnação de Brama ou Vishnu, mara­ para peso de papéis! Idéia original, idéia de artista; se
vllho•amente apropriado ao uso, muito pouco divino, de alguém houvesse dito ao velho faraó que o pé de sua filha
manter no lugar jornais e cartas. adorada serviria de peso para papéis tê-lo-ia surpreendido
Bu he sita va entre um dragão de porcelana todo cons­ h?.�tante, q•!3nc1n e�e ordenou que uma montanha de grani­
lllado u" v e r ru aas, a goela ornada de colmilhos e filamen­ to fosse escavada para ali ser colocado o tríplice ataúde ll
loa, pequeno fetiche mexicano de aspecto assaz abo­
a um pintado e dourado, todo coberto de hieróglifos com belas

II
mln.vtl, representando ao natural o deus Witziliputzili, pinturas do julgamento d�almas - acrescentou a meia­
quando avl a l el um pé encantador, que tomei a princípio voz, como se falasse consigo próprio, o pequeno e singular i I
por um traamento de venus antiga. negociante.
i(
I


• 72 THÉOPHILE GAUTIER O PÉ D, . ÚMIA 73

• - Por quanto me venderá o senhor este fr...6 ...... , ..u .. . Voltei para casa muitc ;ontente com a minha aqui-
• múmia? ��o. '
• - Ahl o mais caro possivel, pois trate-se de . . peça Para utilizá-la sem mais delongas, coloquei o pé da
• soberba; se eu tivesse o par, não lhe custaria meno de qui­ f divina princesa Hermonthis sobre um maço de papéis,
nhentos francos: a fllha de um faraó, não há nada mais raro. esboço de versos, mosaico indecifrável de correções: arti­
• ' !)o
- Certamente não é comum, mas, afinal;: quanto gos começados, cartas esquecidas e postadas na gaveta,
.. i
quer? Desde logo o previno de que todo o meu te ouro se erro que amiúde acontece às pessoas distraídas; o efeito era
• limita a cinco luises: comprarei tudo quanto cust� cinco encantador, excêntrico e romântico.
• luises, mas nada além disso. ;':'!
_
Muito satisfeito com esse enfeite, desci para a rua
"Pode esquadrinhar os bolsos traseiros de meus cole­ e saí a passear com a devida gravidade e soberba d� um
• tes e minhas gavetes mais íntimas que ali só ach iflúm mi- homem que tem, sobre todos os transeuntes por que passa,

..
serável tigre de cinco garra s. :i:
- Cinco luíses pelo pé da princesa Henii onthis, é
t · a inefável vantagem de possuir Um pedaço da princesa
Hermonthis, filha do faraó.
,. bem pouco, muito pouco, em verdade; um pé aútê tico - � Eu achava soberanamente ridículos todos aqueles que
disse o negociante sacudindo a cabeça e imprimfudo às não possuíam, como eu, um peso para papéis tão not�ria­
.. suas pupilas um movimento rotatório. mente egípcio, e a verdadeira ocupação de um homem sen­
,.
•· -�-
"Vá lá, leve-o, e eu lhe dou o invólucro amda por sato me parecia ser a de ter um pé de múmia sobre a sua
••
,. cuna - acrescentou, envolvendo-o num velho farrapo de

secretária.
,. damasco; - muito. bonito,· damasco legítimo� dàmasco Felizmente, o encontro de alguns amigos veio-me dis­
das Índias, que nunca foi tingido de novo; é fortê 'maci :'é o trair do meu entusiasmo de recém-comp rador; fui jantar
,. dg esgar­
- resmungava ele passando os dedos sobre o teéi com eles, já que me teria sido difícil jantar comigo.
,. çado, levado por um resquício de hábito comercial� que o
'J\ o
Quando regressei, de noite, o cérebro jaspeado de
.. fazia gabar um objeto de tão pouco valor que ele mesmo o algumas veias de cinza-pérola, uma vaga baforada de per­
.. achava digno de ser dado de graça.
�S:t fume oriental titilou-me delicadamente o aparelho olfati­
·

Guardou as moedas de ouro numa espécie de esmolei­ vo; o calor do aposento havia amornado o natrão, o betu­
.. ra da Idade Média que lhe pendia da cintura, re indo: � me e a mirra nos quais os paraschitas• incisores de cadáve­
.. - O pé da pnncesa !"!errncnt.h'1s serr..r ... e peso para ha vi atu batthé:u.lu u �,;úq.>ú ua prim;\;:;à; VCl ÚJ..ul�
:::. I
0 TT 0 ri ::i!it·
_ res ent UUl

• papéis! doce, conquanto penetrante, um perfume que quatro mil


.. Depois, detendo em mim suas pupilas fosfóricas, anos não haviam podido fazer evaporar-se.
.. disse-me numa voz estridente como o miado de mo gato · O sonho do Egito era a eternidade: seus odores têm a
que acaba de engolir uma ec;pi'J.ha de peixe: �� solid�z do g;.;.;.;::�=.:. =: =1<lrr•�i. tanto quanto ele .
.. - O velho faraó não vai ficar satisfeito; elé
'

�ava a Logo estava eu a beber a grandes goladas na negra


.. filha, o velhote. copa do sono; durante uma ou duas horas tudo permane-
â
.. - O senhor fala dele como se fosse seu contemporâ­
neo; embora idoso, o senhor não remonta às pirâmides do (•� Sacerdotes que, durante o Novo Império eglpcio, realizavam a mumi­
..
.. Egito - respondi-lhe, rindo, do umbral da loja. �; ficação, ri!tirando as vísceras do cadáver (menos o coração) a fim de mergulhá-las
num banho de vinho aromatizado. (N. do T.)
'i
i!

..
..

• 74 THÉOPHILE GAUTIER
O PÉ DA MÚMIA 75

ceu OJ. .co, o olvido e o nada inundavam-me com suas
• dos pesos para papéis sebdentários e achava
vagas � ombrias.
• ver pés andarem. sem pernas; comecei a sen­
Entretanto, a minha obscuridade intelectual se acla­ se parecia muito de perto ao pavor .
• rou, os sonhos começaram� roçar-me com seu vôo silen­ )eJ:IDCIPUlO, vi mexer-se a prega de uma das cortinas e
• cioso. ,.�rntf!oifiím ruído como aquele que produz uma pessoa a
Os olhos de minha alma se abriram e eu vi meu quarto
• pé só. Devo confessar que experimentava sen­
de dormir tal comó ele era de fato: teria podido acreditar­ frio e de calor alternadamente; que senti um ven-
• me desperto, mas uma vaga percepção me dizia que eu dor­
u. . ,.... . ... .... soprar-me nas costas, e que meus cabelos,
• mia e que iria passar-se algo de incomum.
fizeram saltar a dois ou três passos_ de dis­
c�A-lintl"lr1rl'lr,
• O odor da mirra aumentara de intensidade e eu sentia
barrete de dormir;
• uma ligeira dor de cabeça que atribuía, com fundadas se entreabriram e vi adiantar-se a figura
razOes, a algumas taças de champanha que havíamos bebi­ que se possa imaginar.
..
do em honra dos deuses desconhecidos e de nossos futuros jovem de tez cor de café com leite puxando
.. êxitos. como a da bailadeira indiana Amani, de
,. Eu contemplava meu quarto com um sentimento de
perfeita que trazia à memória o tipo egípcio
.. expectativa que nada justificava; os móveis estavam perfei­
tamente no lugar, a chama do candeeiro queimava sobre a
; tinbà os olhos amendoados, de cantos ergui-
i,
rll consola, delicadamente estampada na brancura leitosa do
onmc,cmWJ tão negras que até pareciam azuis; seu
I�
de perfil suave, quase grego pela delicadeza, e ter­
,
,.
seu globo de cristal fosco; as aquarelas resplandeciam sob
seus vidros da Boêmia; as cortinas pendiam languidamen­
se-iia"llitf<t do tomá-la por uma estátua de bronze dé Corinto
í
D:ti�rnilltencla dos matares e a espessura u m tanto afri­
li
I
.. te: tudo tinha um ar adormecido e tranqüilo. não tornassem reconhecivel, acima de qual­
li
11
Todavia, ao fim de alguns instantes, esse interior tão
.. calmo pareceu perturbar-se: as tábuas do forro e do assoa�
a raça hieroglífica das margens do Nilo . 1
braços franzinos e torneados em fuso, como os
.. lho estalavam furtivamente; a acha escondida sob a cinza
muito novas, estavam cingidos de uma espé­
fI

r/11 lançou de súbito um jato de gás azul, e os cabides doura­


de ·metal e de voltas de contas de vidro; seus
.. dos, de forma circular, pareciam olhos de metal atentos,
sido trançados em cordõezinhos e sobre o
"�,,�,,.,
como eu, às coisas que iam passar.
.. pendia um idolo de massa verde. que o látego de
se

l
Minha vista voltou-se, por acaso, para a mesa sobre a
.. tornava reconhecível como fsis, a condutora
qual eu havia colocado o pé da princesa Hermonthis.
; uma placa de ouro cintilava-lhe na fronte e
.. Em vez de estar imóvel como convém a um pé embal­ de pintura rel?ontavam na tez cor de cobre de
I .
.. e-amado havia quatro mil anos, ele se agitava, se contr:;b e
saltitava sobre os papéis feito uma rã assustada: era como
.. à sua vestimenta, era muito estranha.
se estivesse em contacto com uma pilha voltaica; ouvi muito uma tanga de tirinhas recamadas de hieró­
.. claramente o ruido seco produzido pelo seu pequeno calca­ e rubros, engomadas com betume e que pare­
.. nhar, duro como um casco de gazela. a uma múmia recém-desenfaixada . . I

• Eu estava assaz descontente com a minha aquisição, um desses saltos de pensamento tão freqüentes
..
..
..

• OPÉ DA MÚMIA 77
76

nos sonhos, ouvi a voz recurvadas, que faziam inveja a todas as donzelas do Egi­
.. falsete do negociante de
bricabraque,que repetia refrão monótono a fra- to; você tinha no seu artelho anéis representando o es�a­
.. velho ·sagrado e carregava um dos corpos mais leves que
se por ele dita na loja coín entonação tão enigmática:
.. - O ve!ho fare6 não ficar satisfeito; ele amava um· pé oreguiçoso poderia desejar.
• filha, o velhote. O pé respondeu num tom amuado e desgostoso:
- Sabe muito bem que eu não me pertenço mais, que
• Particularidade que em nada me tranqüili-
zou: a aparição tinha uni a outra perna estava rota fui comprado e pago; o velho negociante sabia muito bem

no tornozelo. o que estava fazendo, ele. lhe quer mal por ter-se recusado a
.. Ela se dirigiu até a o pé da múmia se agi- casar com ele: foi uma partida que pregou à senhora.
.. tava e se mexia com velocidade. Lá chegada, . "O árabe que lhe violou o ataúde real no poço subter­
.
.. apoiou-se ao rebordo e surgir e lhe orvalhar râneo foi mandado por ele; queria impedir que a senhora
os olhos . fosse à reunião dos povos tenebrosos, nas cidades inferio­
..
..
Embora não falasse,
pensamento: ela( pé, � �
discernia claramente o
ra mesmo o seu
res. A senhora tem cinco moedas de ouro para comprar-me
de volta?
..
..
pé, com uma expressão
graça; o pé, todavia,
fosse impelido por
c uete de infinita
de c para lá como se
- Ai de mim, não! Minhas pedrarias, meus anéis,
minhas bolsas de ouro e de prata, foi-me tudo roubado -
respondeu a princesa Hermonthis com um suspiro .
I
- -Princesa- exclamei então-,jamais retive injus­
Duas ou três vezes
; a mão para o agarrar,
""
. .. ·.

mas não conseguiu.


---
.�·- - �-· �,

tamente o pé de quem quer que fosse: ainda que não tenha


� -::.:;
,. Travou-se então, n
Hen onthis e seu os cinco luises que ele me custou,eu vo-lo devolvo de bom
,. p!, que parecia dotado vida à pártê, um diálogo grado; ficaria desesperado por tornar manca uma pessoa
muito esquisito num copf antigo, tal como pode- tão amável como a princesa Hermonthis.
, Pronunciei este discurso num tom regencial* e trova­
ria ter sido falado,trinta atrãs,nos juncais do país
"" de Ser; afortunadamente � #
noite� e · sabia o copta à doresco que deve ter surpreendido a bela egípcia. ·

,. perfeiçfto.
-''''tt
Ela dirigiu-me um olhar cheio de reconhecimento e
.. A princesa seus olhos se iluminaram com clarões azulados.
vibrante como uma sineta Ela pegou o pé, que desta vez se deixou agarrar, como
..
- Pois bem, meu· pezinho, você me· foge uma mulher que vai calçar o seu co turno, e o ajustou à per­
• ·

na com muita destreza.


sempre, e no entanto eu o va muito bem. Lavava-o
.. com Aaua perfumada de alabastro; alisava-lhe Terminada a operação, deu dois ou três passos n o
.. o cMlcauiuu r..:um com óleo de pai- quhnu, como para assegurar-se de que realmente não t:.�;.:.­

.. ma; as suas unhas era alicates de ouro e poli- va mais manca.


du com dente de eu tinha o cuidado de esco-
..
.. lher para voce thabebs• �
e p tados, de pontas
(*) Em francas régence, adjetivo designativo do estilo (de móveis e, no
caso, de elocuçlo) da época da regência do duque de Orleans (171S-1723) na
• (•) Calçado• dt cortiça ornamentados. (N. do T.) França. (N. do T.)

..
....
..

• 78 TJiéo PHILE GAUTIER O P É DA MÚMIA 79


'
- Ah! como meu pai vai ficar contente, ele que esta­ c; s, deviam ter oc· pado milhares de braços durante milha-
• va tão desolado com a minha mutilação e que, desde o dia res de anos; esses .;orredores, de comprimento interminá­
• do meu nascimento, pusera um povo inteiro a trabalhar vel, desembocavam em câmaras· quadradas, no meio dàs
para cavar-me um túmulo tAo profundo que pudesse con­ quais haviam sido abertos poços, por onde descemos por
..
servar-me intacta até o dia supremo em que as almas de­ meios de grampos ou escadas em espiral; esses poços nos
.. vem ser pesadas nas balanças de Amenthi levaram a outras câmaras, de onde partiam outros corre­
.. "Venha o senhor comigo até meu pai; ele o receberá dores igualmente pintalgados de gaviões, de serpentes enro­
.. bem, pois o senhor devolveu-me o meu pé. ladas em círculo, de taus, de pedum, de bari místico, • pro­
Achei o convite muito natural; vesti o meu roupão de digioso trabalho que nenhum olho vivo devia ver, intermi­
..
grandes ramagens, que me dava um ar assaz faraonesco; náveis_legendas de granito que só os mortos tinham tempo
.. calcei à pressa babuchas turcas e disse à princesa Hermon­ de ler 1aurante a eternidade.
.. . this que estava pronto a segui-la. _ ·
Desembocamos por fun numa sala tão vasta, tão
.. Antes de partir, Hermonthis tirou do pescoço a figu­ enorme, tão desmesurada que não se podia perceber-lhe os
rinha de massa verde e a colocou sobre as folhas esparsas confins; a perder de vista, estendiam-se mas de colunas
..
que cobriam a mesa. monstruosas entre as quais tremeluziam lívidas· estrelas de
..
·· ·

. - Nada mais justo - disse, so ndo - que eu cuide rrl luz amarela: esses pontos brilhantes revelavam profunde­
... de substituir o seu peso para papéis. Zé.S incalculáveis.
- Estendeu-me a mão, que era suave e fria como uma A princesa Hermonthis me segurava sempre pela mão e
pele de cobra., e partimos. :, ; , . ,, cumprimentava graciosamente as múmias suas conhecidas.
"" :
Seguimos durante alguin tempo, c m rapidez de fle­
· , .

� Meus olhos se acostumavam a essa semi-obscuridade


-
cha, por um meio fluido e pardacento onde silhuetas ape­
nas esboçadas passavam à direita e à esquerda.·
Durante-�� instante, não vimos mais que água e céu.
crepuscular e começavam a discernir os objetos.
Vi, sentados sobre tronos, os reis das raças subterrâ­
neas: eram grandes velhos ressequidos, engelhados, aper­
.
Alguns ij}inutos mais tarde,- obelisco� começaram a gaminhados, enegrecidos de nafta e de betume, toucados
.,. despontar, pilares e rampas bordejadas de esfinges se dese- com psechents de ouro, couraçados com peitorais e gor­
,. jais, constelados de pedrarias, olhos de uma fixidez de
..
nharam no horizonte. . _

Havlamos chegado. esfinge e longas barbas encanecida., pela neve dos séculos:
.. atrás deles, seus povos embalsamados mantinham-se de pé

I
A princesa me conduziu para diante de uma monta­
.. nha de granito rosa, onde se achava uma abertura estreita e nas atitudes hirtas e contrafeitas da arte egípcia, guardan­
baixa que teria sido difícil distinguir das fissuras da pedra l do eternamente a postura prescrita pelo código hierático;
..
se duas estelas pintalgadas de esculturas não a tivessem tor- atrás dos povos miavam, batiam as asas e escarneciam os
.. ·

nado reconheclvel.
.. Hermonthis acendeu uma tocha e se pôs a andar à (•) O tau é um instrumento sagrado com a forma. da letra grega desse
.. minha frente. nome, que as divindades egipcias levavam na mão como emblema de imortali­
dade; o pedum é um cetro atnbutdo à maioria dos deuses; o bari corrcspondc à
.. Eram corredores talhados na rocha viva; os muros,

l
emt arcaçlo que transporta os mortos at� o Amcnthi, a região ocidental onde as
cobertos de painéis de hieróglifos e de procissões alegóri- ai: as dos mortos vão ser pesadas c julgadas por Oslri s. (N. do T.)
.. tI
..

80 TH_eOPHILE OAUTIER O PÉ DA MÚMIA 81

gatos, os ibis e os crocodilos contemporâneos deles, torna­ O faraó escancarou os olhos de vi·tro, surpreso com o
dos ainda mais monstruosos pelas faixas em que estavam meu gracejo e com o meu pedido.
envoltos. -De que pais és e. qual é·a tua idade?
'

Todos os faraós lá estavam,Quéops,Quéfren, Psamé­ - Sou francês e tenho vinte e sete anos, venerável
tico, Sesóstris, Amenotep; todos os negros dominadores Faraó.

I
das pirâmides e dos juncais; sobre um estrado mais elevado - Vinte e sete anos I E quer desposar a princesa Her­
assentava-se o rei Cronos e Xixutros, que foi contemporâ­ monthis, que tem trinta séculos!- bradaram a um só tem­
neo do dilúvio, e Tubalcaim, que o precedeu. po todos os tronos e todos os círculos de nações.
A barba do rei Xixutros havia crescido de tal modo Só Hermonthis não pareceu achar inconveniente o
que já fazia sete vezes a volta da mesa de granito à qual ele meu pedido.
se apoiava, muito sonhador e sonolento. - Se pelo menos tivesses dois mil anos - continuou
Mais ao longe, num vapor poeirento, através do ne­ o velho rei-, eu te concederia de bom grado a mão da
voeiro da eternidade, eu distinguia vagamente os setenta e princesa, mas a desproporção é demasiada, e além disso
dois reis pré-adamitas com seus setenta e dois povos para nossas filhas precisam de maridos que durem; vós não
sempre desaparecidos. sabeis mais conservar-vos: os últimos que foram trazidos
Após ter-me deixado por alguns minutos a fim de des­ há apenas quinze séculos não passam agora de um punha­ '
frutar esse espetáculo vertiginoso, a princesa Hermonthis do de cinzas; vê, minha carne é dura como basalto, meus

!
apresentou-me ao faraó seu pai, que me fez um aceno de ossos são barras de aço.
cabeça deveras majestoso. "Assistirei ao derradeiro dia do mundo com o corpo e
-Achei o meu pé! achei o meu pé!- gritava a prin­ o rosto que eu tinha quando vivo; minha filha Hermonthis
cesa batendo as mãozinhas, com todos os sinais de uma
doida alegria. -Foi este senhor quem me devolveu.
durará mais do que uma estátua de bronze. f,
"Quando o vento tiver dispersado o último grão da I
As raças de Kemé, as raças de Nahasi, todas as nações tua poeira, a própria Ísis, que soube reencontrar os peda­
negras, bronzeadas, acobreadas, repetiam em coro: ços de Osíris, teria dificuldade em recompor o teu ser. I.
-A princesa Hermonthis. achou o seu pé. ''Vê coino sou vigoroso ainda e como meus braços I
O próprio Xixutros se comoveu: Ergueu a pálpebra são firmes - disse, sacudindo-me a mão à inglesa, de ma­ li
I
�ntorpecida, passou os dedos pelo bigóde ·e lançou sobre neira a cortar-me os dedos com meus próprios e.néis.
mim o seu olhar carregado de séculos. Apertou com tanta força que eu despertei, e distin­
- Por Oms, cão dos infernos, e por Tmeí, filha do gui meu amigo Alfred, que me puxava pelo braço e me
Sol e da Verdade, eis um belo, bravo e digno rapaz- disse sacudia, para fazer-me levantar.
o faraó estendendo para mim o seu cetro terminado numa • h nco, será que e. preci-
- Vamos 1� s�u zm!)rl� rl�rm'J!
.

flor de lótus. - O que queres como recompensa? so levar-te para a rua e soltar um fogo de artifício nas tuas
Fortalecido por essa audácia que dão os sonhos, onde orelhas? Já passou do meio-dia; não te lembras de que me
nada parece imposslvel, pedi-lhe a mão de Hermonthis: havias prometido vir-me pegar para ir ver os quadros espa­
a mio pelo pé me parecia uma recompensa antitética de nhóis do sr.Aguado?
muito bom aoato. -Deus meu! já nem lembrava d:sso- respondi-lhe,
82 THÉC HILE GAUTIER

vestindo-me. - Vamos at:é lá, sim: tenho a autorização


·

aqui na minha secretária.


Adiantei-me de fatro para pegá-la, mas imaginai o
·

meu espanto, quando, e·m lugar do pé da múmia que eu


havia comprado na vésp1era1, vi, em seu lugar, a figurinha
de massa verde que ali for
1 -a. colocada pela princesa Her­
monthis!

Titulo do original: "L, pied de rnomie" in: Théophile Gautier,


Rkits fantastiques, ed. ;Jr Marc Eigeldinger, Paris, Flarnrnarion,
1981.

Você também pode gostar