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O’Henry

O QUARTO
DA
CLARABOIA
– contos –

Tradução:
Nils Skare
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

O’Henry, 1862-1910.
O quarto da Claraboia : contos / O’Henry ;
tradução Nils Skare. -- Curitiba, PR :
L-Dopa Publicações, 2010.

ISBN 978-85-99441-05-3

1. Contos norte-americanos I. Título.

10-02218 CDD-813

Índices para catálogo sistemático:


1. Contos : Literatura norte-americana 813

Projeto Gráfico e Diagramação: Flávio Bá


Ilustrações: Mário de Alencar

ldopaeditora.wordpress.com
[Índice]

Apresentação 07

Memórias de um Cão Amarelo 11

Sonho de uma Noite de um Varão 21

O Pragmatismo Superior 31

O Resgate do Chefe Vermelho 43

A Princesa e o Puma 61

Nos Braços de Morfeu 73

As Rosas Vermelhas de Tonia 81

O Quarto da Claraboia 97
Apresentação:

O’Henry era o pseudônimo de William


Sydney Porter (1862 – 1910), autor de mais de
quatrocentas histórias e um dos nomes funda-
mentais na definição do conto como uma forma
literária. Considerado por uns como um protos-
surrealista pela maneira como há sempre um cer-
to absurdo poético em seus textos, foi incluído
por André Breton em sua “Antologia do Humor
Negro” e comparado ao jovem Chaplin. Já outros
o têm como uma espécie de Guy de Maupassant
norte-americano, por seus finais inesperados.
Nascido na Carolina do Norte, Porter
mudou-se para o Texas aos vinte anos devido a
complicações de saúde. Em 1884 mudou-se para
Austin e adotou o pseudônimo que o tornou fa-
moso. Trabalhou alguns anos no Primeiro Banco
Nacional de Austin. Porter foi acusado de pecu-
lato, ao que alegou inocência. Mas, abandonando
sua esposa e filha pequena, fugiu para Nova Orle-
ans e depois para Honduras. (Foi ali que cunhou o
termo “república de banana”). Retornou quando
a saúde de sua esposa começou a deteriorar, mas
ela morreu logo depois. Depois disso, em 1898, foi
condenado e passou três anos na cadeia. Do fundo
desse poço, recuperou-se. Sob o pseudônimo de
O’Henry, escreveu centenas de seus contos, princi-
palmente para o New York World Sunday Magazine.
Casou-se novamente em 1907, mas sua segunda
esposa o abandonou em 1909, devido ao forte al-
coolismo que o escritor desenvolveu. Morreu em
1910 de cirrose, completamente arruinado.
8 O QUARTO DA CLARABOIA

Os contos de O’Henry conseguiram tre- 2


mendo impacto frente ao público norte-america-
no, sendo um dos contistas mais populares de seu Alguns destes contos já se encontravam
país mesmo hoje. Além disso, influenciou autores traduzidos. Contudo, como tradutor e também
internacionais, como atestam as traduções de três organizador, julguei apropriadas suas retraduções
de seus contos – inclusive o famoso Os caminhos tendo por critério uma perspectiva diferente, igual-
que tomamos – feitas por Fernando Pessoa. Os con- mente aplicada aos contos inéditos em nossa lín-
tos de O’Henry são uma fotografia ingênua e oti- gua. O projeto desta tradução envolve três pontos:
mista de uma época em que Henry Ford não ven- em primeiro lugar a busca da clareza, evitando con-
dia mais que alguns milhares de carros por ano, a torções sintáticas “estrangeirizantes”; em segundo
moda eram saias enormes chamadas “crinolinas”, lugar a ênfase no aspecto lúdico da linguagem de
não havia ainda um sistema de tipos sanguíneos, O’Henry, notadamente nos muitos trocadilhos; e,
a primeira bilheteria de cinema do mundo atingia finalmente, a busca pela dicção coloquial com suas
a soma de 35 francos e nos salões franceses – cujas inflexões humorísticas e absurdas.
danças eram reguladas pela polícia – as mulheres
só podiam comparecer mascaradas. Depois veio Agradeço a Maurício Decker e Floresval
a guerra e as únicas coisas que permaneceram as N. Moreira Jr.
mesmas foram as ondas do mar.
Nils Skare
2009
MEMÓRIAS DE UM
CÃO AMARELO

Imagino que ninguém vai pular de seu


poleiro ao ler a contribuição de um animal. O sr.
Kipling e vários outros demonstraram que ani-
mais podem se expressar em inglês remunerável,
e revista alguma é impressa hoje em dia sem uma
história de animal, com exceção das mensais,
que ainda publicam fotos de Bryan do horror do
Monte Pelee1.
Mas vocês não precisam esperar coisas
de literatura convencida na minha narrativa, tais
como Ursolino, o urso, Cobralina, a cobra e Ti-
grolino, o tigre, à moda dos livros da selva. De
um cão amarelo que passou a maior parte de sua
vida em um apartamento barato em Nova York,
dormindo num canto sobre uma velha anágua de
cetim (em que a dona derramou vinho do por-
1. N. do T. – O Monte Pelee é um vulcão na Martinica que entrou
em erupção em 1902. A cidade de Saint-Pierre foi destruída e houve
apenas dois sobreviventes no caminho da lava.
12 O QUARTO DA CLARABOIA Memórias de um cão amarelo 13

to no banquete de Lady Longshoremen), não se ladrilhado com mármore de Paros no saguão de


deve esperar truques com a arte da fala. entrada e pedra polida acima do primeiro andar.
Nasci um cachorrinho amarelo; data, Nosso apartamento era o terceiro. Minha senho-
local, pedigree e peso desconhecidos. A minha ra o alugou desmobiliado, e colocou as coisas de
primeira lembrança é a de uma velha, carregan- praxe – uma sala de estar com um antigo estofa-
do-me dentro de um cesto na Broadway com a mento de 1903, cromos a óleo de gueixas em uma
Vinte-Três, tentando me vender para uma senho- casa de chá do Harlem, uma planta de plástico e
ra gorda. A empobrecida velha Hubbard estava um marido.
me empurrando como um puro fox terrier pome- Por Sirius! Aí estava um bípede pelo qual
rânio-hambletânio-rubro-irlandês-cochinchino- eu sentia pena. Ele era um homem baixinho, com
cocker-bassê. A senhora gorda caçou uma de 5 cabelo arenoso e bigodes parecidos com os meus.
pelos flancos das muitas flanelas de sua sacola de Cabresto? Bem, digamos que pangarés, burros e
compras até que a encurralou e passou de mãos. mulas iriam se amarrar nele. Ele lavava os pra-
A partir daquele momento eu era um bicho de tos, e escutava minha dona falar sobre as coisas
estimação – o docinho de coco da mamãe. Diga- rasgadas e baratas que a senhora com o casaco de
me, gentil leitor, já te aconteceu de uma mulher, pele de esquilo do segundo andar havia colocado
de 150 quilos, bafejando a um sabor de queijo Ca- para pendurar no varal. E toda tarde enquanto
membert e Peau d´Espagne, te pegar e esfregar o ela jantava, fazia com que ele me levasse para
nariz todo em você, comentando o tempo todo, passear na ponta de uma corda.
em um tom de voz como o de Emma Eames2, “Ui, Se os homens soubessem como as mu-
uu quem é o udidinho, budidinho, lindidinho, lheres passam o tempo quando elas estão sozi-
gudidinho pedacinho de docinho biluluzinho?” nhas, eles nunca se casariam. Bifes da marca Lau-
De um filhote amarelo, com pedigree, eu ra Lean, amendoinzinhos, um pouco de creme de
passei a ser um vira-lata amarelo e anônimo, pa- amêndoa nos músculos do pescoço, pratos sem
recendo um cruzamento entre um gato angorá e lavar, conversas de meia hora com o sorveteiro,
uma caixa de limões. Mas minha dona nunca se ler uma pilha de cartas velhas, dois ou três pi-
dava por vencida. Ela pensava que os dois filho- cles e duas ou três garrafas de extrato de malte,
tes primordiais que Noé levou para a arca não uma hora espiando, por um cantinho da cortina,
eram senão um ramo colateral de meus ances- o apartamento do outro lado do tubo de ventila-
trais. Foi preciso dois policiais para evitar que ela ção – e é isso tudo o que ela fazia. Vinte minutos
entrasse comigo no concurso do Madison Square antes da hora dele chegar em casa, vindo do tra-
Garden para siberianos puro-sangue. balho, ela dá uma arrumadinha na casa, ajeita o
Vou falar pra vocês sobre aquele aparta- hálito para não dar bandeira e costura um monte
mento. Era o tipo de coisa comum em Nova York, por dez minutos para o blefe final.
2. N. do T. – Cantora de ópera soprano.
14 O QUARTO DA CLARABOIA Memórias de um cão amarelo 15

Eu levava uma vida de cachorro naquele foi cachorrinho, gatos?”


apartamento. Na maior parte do dia eu ficava ali Gatos! E se eu podia falar!
no meu canto, olhando aquela mulher gorda ma- Mas, é claro, ele não podia entender. Foi
tar o tempo. Eu dormia às vezes e fazia castelos negada aos humanos a fala dos animais. O úni-
no ar, ao me imaginar caçando gatos em porões co lugar comum para a comunicação entre cães e
e rosnando para velhinhas com gatinhos pretos, homens é na ficção.
que é o que um cão deveria fazer. Aí ela pulava No apartamento em frente ao saguão do
em mim com aquele torturante palavrório poo- nosso, vivia uma senhora com um terrier preto e
dle e me beijava no nariz – mas o que eu podia marrom. Seu marido o levava para passear toda
fazer? Um cachorro não pede socorro. tarde, mas ele sempre voltava para casa assobian-
Comecei a sentir pena de Hubby, atirem do e alegre. Um dia eu encostei no focinho do ter-
o cão pelo canhão se não senti. Nós nos parecí- rier no saguão, e pedi que ele me elucidasse.
amos tanto que as pessoas começaram a notar “Escuta aqui, Sr. Abana-o-rabo”, eu dis-
quando saíamos; então trilhamos as ruas que os se, “você sabe que não é da natureza de um ho-
coches de Morgan descem, e tomamos gosto em mem de verdade dar uma de ama-seca de um
subir as pilhas de neve do último dezembro nas cachorro em público. Eu, pessoalmente, nunca vi
ruas onde os miseráveis moram. nenhum encoleirado a um au-au que não pare-
Uma tarde estávamos passeando assim cesse como se não precisasse ser perdoado por
– eu estava tentando parecer com um São Ber- cada homem que olhasse pra ele. Mas o teu dono
nardo premiado, e ele estava tentando parecer vem todo dia aprumadinho e arrumadinho como
que não gostaria de ter assassinado o organista um prestidigitador amador fazendo o truque do
importuno que ouviu tocando a marcha nupcial ovo. Como ele consegue? Não venha me dizer
de Mendelssohn. Olhei para ele e disse, ao meu que ele gosta.”
modo: “Ele?”, disse o preto e marrom. “Ora, ele
“Por que você está com esta cara tão usa o remédio da própria natureza. Abre o cárcere
amarga, seu cara de lagosta? Ela não te beija. de vidro e lacre em que o vinho se abafa, e canta
Você não tem que sentar no colo dela e ouvir as fraternalmente. Da primeira vez que saímos, ele
bobagens que fariam o livro de uma comédia estava tão tímido como o sujeito no navio a vapor
musical soar como as máximas de Epíteto. Você que prefere jogar amarelinha quando todos estão
deveria agradecer por não ser um cachorro. Dis- tirando a sorte grande. Mas lá pelas tantas, de-
ponha dela e dê adeus às dores.” pois de entrarmos em oito bares, ele está pouco
O mártir matrimonial olhou-me quase se importando se o que está na ponta da coleira é
com uma inteligência canina no rosto. um cachorro ou um bagre. Perdi dois centímetros
“Cachorrinho” – ele disse – “bom cachor- do meu rabo tentando desviar daquelas portas
rinho. Até parece que você poderia falar. O que giratórias.”
16 O QUARTO DA CLARABOIA Memórias de um cão amarelo 17

Aquele terrier farejou o osso – por favor todos se exaurido, exceto pelo pão de centeio, ele
copiem, pessoal da comédia – que eu estava pro- me soltou da perna da mesa e brincou comigo
curando. do lado de fora, assim como um pescador brinca
Uma tarde, lá pelas seis, minha dona com um salmão. Lá fora ele tirou minha coleira e
mandou que ele se aprontasse e desse um pou- a jogou na rua.
co de ar puro para o Amorzim. Eu o escondi até “Pobre cachorrinho”, disse ele, “bom,
agora, mas é assim que ela me chamava. O preto bom cachorrinho. Ela não vai mais te beijar. Você
e marrom era chamado “Miminho”. Acho que nunca mais vai ver aquela vergonha. Vai cachor-
teria a dianteira dele se, digamos, fôssemos ca- rinho, vai, vai, seja atropelado por um bonde e
çar um coelho. Ainda assim, “Amorzim” é como seja feliz.”
uma lata de nomenclatura de alumínio amarrada Eu me recusei a ir embora. Pulei e brin-
no rabo do autorrespeito de alguém. quei ao redor das pernas do homem, feliz como
Num lugar quieto em uma rua segura, um cão que pegou uma perdiz.
eu puxei a coleira de meu guardião em frente a “Seu velho vira-lata cabeça-de-pulgueiro,
um bar refinado e atraente. Eu me joguei de cabe- caçador-de-marmota”, eu disse, “uivador-pra-lua,
ça nas portas, ganindo como um cachorro em um farejador-de-coelho, ladrão-de-ovos, será que você
comunicado de imprensa que informa à família não consegue ver que eu não quero te deixar? Será
que a pequena Alice se atolou enquanto colhia que você não consegue ver que nós somos dois
lírios perto do riacho. filhotes no meio da mata e que a senhora é o tio
“Ora, o que estou vendo”, disse o ho- cruel com o babador e o antipulga e o laço rosa
mem, com um sorrisinho, “até parece que este para amarrar no meu rabo? Por que não jogar lon-
filho de uma limonada da cor do açafrão está me ge isso tudo e vamos ser livres para sempre?”
convidando para tomar um drinque. Deixe-me Vocês dirão que ele não entendeu – tal-
ver – quando foi a última vez que eu economizei vez não. Mas, como já tinha tomado alguns bons
couro de sapato deixando um pé no descanso do scotchs, ficou parado por um minuto, pensando.
engraxate? Acho que vou entrar.” “Cachorrinho”, ele disse, finalmente,
Agora ele era meu. Ele tomou alguns “nós não vivemos mais do que uma dúzia de vi-
scotchs, sentado numa mesa. Por uma hora ele fez das nesta terra, e bem poucos de nós ultrapas-
os Campbells virem. Sentei do seu lado abanando sam os 300 anos. Se eu vir, de longe ou de perto,
o rabo para o garçom, e aproveitando a comida aquele apartamento, não me aprumo mais, e, à
de graça que nem a mamãe em seu apartamento parte, aposto 60 pra 1 como o Oeste ganha pelo
conseguia igualar, comprando coisas na comprimento de um dachshund.”
panificadora oito minutos antes do papai chegar Não havia coleira, mas eu passeei junto
em casa. com meu dono até o trem na Vinte-Três. E os ga-
Quando os produtos da Escócia tinham tos no caminho tiveram motivos para dar graças
18 O QUARTO DA CLARABOIA 19

por suas garras contráteis.


No lado de Jersey, meu dono disse para
um estranho que estava comendo um cachorro-
quente:
“Nós vamos, eu e meu cachorro, para as
Montanhas Rochosas.”
Mas o que mais me agradou foi quando
ele puxou minhas orelhas até eu uivar e disse:
“Seu filho de um capacho, cabeça-de-macaco, ra-
bo-de-rato, da cor do enxofre... você sabe do que
eu vou te chamar?”
Pensei em “Amorzim”, e gani desconsolado.
“Eu vou te chamar de Pete”, disse meu
dono, e mesmo se eu tivesse cinco rabos eu não
teria conseguido abanar o suficiente.
SONHO DE UMA
NOITE DE UM VARÃO
“Os varões estão mortos
Nas espadas só há sujeira
Senão por alguns que lutam verdadeira-
Mente o tempo todo
Pra tirar a poeira.”3

Querido leitor, era verão. O sol brilhava


sobre a cidade com uma ferocidade impiedosa. É
difícil para o sol ser feroz e mostrar remorso ao
mesmo tempo. O calor – ah, para que se importar
com termômetros? – quem se importa com medi-
das, de qualquer forma? Estava tão quente que –
Os jardins no último andar tinham tan-
3. Versos no original:
“The knights are dead
 Their swords are rust
 Except a few who have to hust-
 Le all the time
 To raise the dust.”
22 O QUARTO DA CLARABOIA Sonho de uma noite de varão 23

tos garçons a mais que você podia esperar con- to rosado, alerta, vestido formalmente e com um
seguir seu gim na hora – assim que todas as olhar preocupado ao redor dos olhos. Ele limpou
outras pessoas tivessem conseguido o delas. Os a testa e riu alto quando um homem gordo de
hospitais estavam colocando camas a mais para macacão parou e falou com ele.
transeuntes. Pois quando cachorros pequenos e “Não senhor”, ele gritou em tom de desa-
felpudos esticam suas línguas e dizem “au, au” fio e desprezo. “Sem essa, para mim, de pântanos
para as pulgas que os mordem, e velhas senhoras cheios de mosquitos e montanhas de arranha-céus
de bombazina preta gritam “Cachorro louco!” e sem elevadores. Quando quero escapar do tempo
os policiais começam a atirar, alguém vai se ma- quente eu sei exatamente o que fazer. Nova York,
chucar. Aquele homem de Prompton, Nova Jer- senhor, é a melhor estação de verão do país. Fique
sey, que sempre veste um casaco em julho, tinha na sombra e cuidado com o que come, e não fique
aparecido num hotel na Broadway bebendo um muito longe de um ventilador. Vá em frente e fale
whisky ao invés de sua parcela anual de cálcio. sobre a natureza e os caipiras! Há mais conforto na
Filantropos estavam pedindo para o Legislativo cidadezinha de Manhattan do que no resto do país
passar uma lei que tornasse as escadas de incên- junto. Não senhor! Sem comida enlatada vinda di-
dio mais espaçosas, para que as famílias pudes- reto da cidade para mim. A boa e velha Nova York
sem morrer todas juntas de calor ao invés de uma aceita alguns poucos hóspedes de verão: para os
ou duas de cada vez. Tantos homens estavam te confortos e conveniências dos lares – é isso que eu
falando sobre o número de banhos que eles to- digo toda vez.”
mavam por dia, que você se perguntava como “Você precisa de férias”, disse o homem
eles se viravam quando o verdadeiro locatário do gordo, olhando atentamente para o outro. “Você
apartamento voltava pra cidade e lhes agradecia não sai da cidade há anos. É melhor vir comigo
por tomar conta tão bem do lugar. O jovem que por umas duas semanas. As trutas em Beaverkill
pedia em voz alta um bife frio e cerveja no restau- estão pulando em qualquer coisa que se pareça
rante, reclamando que o rosbife e a Burgundy es- com uma isca. Harding me escreveu dizendo que
tavam realmente pesados demais para aquele cli- pegou uma de meio quilo semana passada.”
ma, se envergonhava quando via seu olhar, pois “Bobagem!” gritou o outro homem. “Vão
você o ouviu o inverno todo pedindo, em tons em frente, se vocês gostam, e tropecem por aí
modestos, aquelas mesmas viandas ascéticas. So- com suas botas de borracha tentando fisgar pei-
pas, livros de bolso, cinturas, atores e desculpas xes. Quando eu quero um, eu vou a um bom res-
no baseball estavam todos ficando mais magros. taurante e peço um. Rio toda vez que penso que
Sim, era verão. vocês estão se empurrando no calor, no meio do
Um homem estava na Trinta e Quatro mato, achando que estão se divertindo. Para mim
esperando por um carro para o centro. Um ho- é o pomar da Grande Maçã, com um bom cami-
mem nos seus quarenta, de cabelos cinza, de ros- nho na sombra no meio dela.”
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O homem gordo suspirou por seu ami- Mas a mais brilhante entre as estrelas era Mary
go e foi embora. O homem que achava que Nova Sewell. Cada um dos jovens queria arranjar as
York era o melhor lugar do verão pegou um bon- coisas para que pudesse lhe pagar contas milio-
de e foi até o escritório. No caminho ele jogou nárias, arrumar seu aquecimento e tirar a parte
fora o jornal e olhou para uma faixa de céu acima de “Sewell” de seu nome para sempre. Aqueles
dos telhados. que só podiam ficar uma semana ou duas iam
“Meio quilo!”, ele murmurou alheio. “E embora feridos no coração pela sua formosura,
Harding não está mentindo. Acho que, seu eu tão bela e clara, como a distante Vênus em sua lu-
pudesse – mas é impossível – eles têm que ter ou- minosa esfera. Mas Compton permanecia como
tro mês – outro mês pelo menos.” as próprias montanhas, pois ele podia pagar. E
Em seu escritório, o simpatizante das ale- Gaines permanecia porque era um lutador, não
grias do verão urbano mergulhou, de cabeça, nos tinha medo de filhos de milionários e – bem, ele
negócios. Adkins, seu secretário, veio e jogou um adorava o campo.
monte de cartas, propagandas e telegramas. “O que você acha, srta. Mary?”, Comp-
Às 5 da tarde, o ocupado homem se re- ton perguntou certa vez. “Conheci um sujeito em
costou em sua cadeira de escritório, pôs os pés na Nova York que alegava gostar de lá no verão.
mesa e se perguntou alto: Dizia que era possível se refrescar mais do que
“Qual isca será que Harding usou?” no mato. Ele não era um tolo? Acho que eu não
conseguiria respirar na Broadway depois do pri-
* meiro de junho.”
Ela estava toda de branco naquele dia, e “Minha mãe estava pensando em voltar
portanto Compton perdeu uma aposta para Gai- na semana depois da próxima”, disse a srta. Mary
nes. Compton tinha apostado que ela usaria azul- com um charmoso cenho franzido.
claro, e ele sabia que aquela era sua cor favorita; “Mas parando para pensar”, disse Gai-
além disso, Compton era o filho de um milioná- nes, “há vários ótimos lugares na cidade no ve-
rio, e isto o fazia propenso a apostar numa coi- rão. Os jardins no último andar, você sabe, e –
sa certa. Mas o branco foi sua escolha, e Gaines ahn – os jardins no último andar.”
ergueu sua cabeça com o ar senhoril dos vinte e O lago naquele dia estava do azul mais
cinco anos. escuro – o dia em que eles brincaram de duelo,
O pequeno hotel nas montanhas tinha e os homens cavalgavam em pôneis desajeitados
uma multidão vivaz naquele ano. Havia dois ou nas matas e pegavam anéis de cortina com a pon-
três graduandos, alguns artistas e um jovem ofi- ta de uma lança. Oh, diversão!
cial naval de um lado. Do outro, havia suficientes Fresco e seco como o melhor vinho, veio
belezas entre as jovens para que um repórter de o vento da floresta sombreada. O vale abaixo era
coluna social se referisse a elas como “beldades”. uma visão enxergada através de uma opala. Uma
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névoa branca de cataratas escondidas esvoaçava to os outros hóspedes e o pessoal da cidadezinha


o verde dos topos das árvores meio caminho até aplaudiam, ele a colocou na cabeça da rainha.
o desfiladeiro. A juventude andava alegre, de “Você é um cavaleiro galante”, disse a
mãos dadas, com o verão. Não havia nada na srta. Mary.
Broadway assim. “Se eu pudesse ser sempre o seu cavaleiro”,
O pessoal do campo se juntou para ver o começou Gaines, mas a srta. Mary começou a rir,
pessoal da cidade fazer suas bobagens. As matas pois Compton vinha chegando um minuto depois.
soavam com o riso de fadas e nereidas e ninfas. Que aurora foi quando voltaram para o
Gaines pegou a maioria dos anéis. Era dele o pri- hotel! A opala do vale virou lentamente cor-de-
vilégio de coroar a rainha do torneio. Ele era o va- rosa, a mata escura servia de moldura para o
rão vencedor – até onde dizia respeito aos anéis. lago, como se fosse um espelho, e a força do ar
Em seu braço, um lenço branco. Compton usava puro chegava a tocar a alma de cada um. As pri-
azul-claro. Ela havia declarado sua preferência meiras e pálidas estrelas surgiam sobre as monta-
por azul, mas estava de branco naquele dia. nhas onde havia ainda um leve brilho de –
Gaines procurou a rainha para coroá-la.
Ele ouviu sua alegre risada, vinda como se das *
nuvens. Ela havia escapulido e subido na Rocha “Como assim, sr. Gaines?”, disse Adkins.
da Chaminé, um pequeno escarpado de granito, O homem que acreditava que Nova York
e lá estava, uma fada branca entre os loureiros, era o melhor lugar do verão abriu seus olhos e
trinta metros acima de suas cabeças. chutou a garrafa térmica debaixo de sua mesa.
Imediatamente ele e Compton aceitaram “Acho, acho que eu estava dormindo”,
o desafio implícito. O escarpado era facilmente ele disse.
escalado pela parte de trás, mas a parte da frente “É o calor”, disse Adkins. “É algo terrível
só oferecia um pequeno apoio para a mão ou para na cidade nestes –”
o pé. Cada um escolheu seu caminho e começou “Bobagem!”, disse o outro. “A cidade dá
a escalar. Uma fissura, um arbusto, uma pequena de dez a zero no campo. Bobocas saem por aí em
projeção, um ramo de vinha ou de árvore – tudo pântanos lamacentos se matando para pegar pei-
isso eram ajudas que contavam na corrida. Era xinhos do tamanho do seu dedo. Fique na cidade
tudo brincadeira – não havia nada em jogo, mas e fique confortável – essa é a minha ideia.”
havia a juventude, caro leitor, e corações leves, “Algumas cartas chegaram”, disse
e mais alguma coisa que a srta. Clay escreve tão Adkins. “Pensei que você gostaria de dar uma
bem a respeito. olhada nelas antes de ir pra casa.”
Gaines pegou um bom impulso na raiz de Vamos olhar por cima de seu ombro e ler
um loureiro e chegou aos pés da srta. Mary. Nos apenas algumas linhas de uma delas:
seus braços ele carregava a coroa de rosas; enquan-
28 O QUARTO DA CLARABOIA 29

Meu querido, querido: acabei de receber sua


carta dizendo para ficarmos mais um mês... A tosse da
Rita quase se foi... Johnny anda brincando por aí como
um indiozinho... Vai ser o melhor pras crianças... tra-
balha tanto, e ainda sei que o serviço mal chega para
nos manter aqui... melhor homem que já... sempre fin-
giu que gosta da cidade no verão... pescar trutas que
você gosta tanto... tudo para nos fazer felizes... iria
ficar com você se não estivesse fazendo tão bem pras
crianças... fiquei ontem de noite na Rocha da Chami-
né no mesmo lugar onde você me coroou rainha... por
todo o mundo... quando você disse que seria meu cava-
leiro... quinze anos atrás querido, pare pra pensar!...
sempre foi isso para mim... para sempre e sempre,

Mary

O homem que dizia que achava Nova


York o melhor lugar para passar o verão parou
num bar no seu caminho para casa, e pediu um
copo de cerveja sob o ventilador.
“Qual isca será que o velho Harding
usou?”, perguntou para si mesmo.
O PRAGMATISMO SUPERIOR
I

Onde procurar sabedoria tem se tornado


uma questão de séria importância. Os antigos es-
tão desacreditados: Platão não tem mais plateia;
Aristóteles é história; Marco Aurélio ficou velho;
Esopo teve seus direitos autorais registrados em
Indiana; Salomão é muito solene; e é impossível
arrancar qualquer coisa de Epíteto, mesmo com
uma picareta.
A formiga, que por muitos anos serviu
como modelo de inteligência e diligência nos li-
vros de escola, teve a idiotice comprovada, pois
desperdiça tempo e energia. Os pios da coruja
viraram motivo de piada. Encontros universitá-
rios abandonaram a cultura e adotaram o jogo
da amarelinha. Senhores aparentemente sérios
servem de testemunha para os milagres de reju-
venescedores de cabelos. Há erros tipográficos
nos almanaques publicados pelos jornais diários.
32 O QUARTO DA CLARABOIA O pragtmatismo superior 33

Professores universitários se tornaram – “Ah não, não”, disse ele. “Você não é um
Mas vamos parar com isso. repórter. Repórteres não falam assim. Eles fingem
Sentar nas salas de aula, mergulhar nas ser um de nós, e dizem que acabaram de vir num
enciclopédias ou nas páginas de grandes feitos, vagão de St. Louis. Consigo identificar um repór-
não irá nos fazer sábios. Como diz o poeta, “o co- ter na hora. Nós mendigos do parque acabamos
nhecimento vem, mas a sabedoria tarda”. Sabe- sendo bons juízes da natureza humana. Senta-
doria é orvalho, que, embora não o saibamos, nos mos aqui o dia todo e vemos as pessoas passar.
molha, nos refresca e nos faz crescer. O conheci- Consigo avaliar quem quer que passe pelo meu
mento é um forte fluxo de água atirado em nós banco de uma maneira que iria te surpreender.”
por uma mangueira. Ele perturba nossas raízes. “Bem”, eu disse, “vá em frente e me diga.
Então, vamos ajuntar sabedoria. Mas Como você me avalia?”
como fazer isso exige conhecimento. Se nós co- “Devo dizer”, disse o estudante da na-
nhecemos uma coisa, nós a conhecemos; mas, tureza humana com uma hesitação imperdoável,
muito frequentemente, nós não somos sábios “que você estava, digamos, no ramo dos negó-
para o fato de que somos sábios, e – cios – ou talvez trabalhasse numa loja – ou então
Mas vamos lá com a história. é um pintor de letreiros. Você parou no parque
para terminar seu cigarro, e pensou que conse-
II guiria um pouco de monólogo de graça de mim.
Enfim, você pode ser um pedreiro ou um advo-
Há algum tempo eu achei um vagabun- gado – está ficando um pouco escuro, sabe como
do desses que pedem dez centavos no banco de é. E a sua esposa não te deixa fumar em casa.”
um pequeno parque de uma cidade. De qualquer Eu franzi o cenho sombriamente.
forma, esta foi a quantia que ele me pediu quan- “Mas, pensando de novo”, disse o leitor de
do sentei no banco, perto dele. Era um vagabun- homens, “eu diria que você não tem uma esposa.”
do bolorento, sujo e roto, com algumas histórias “Não”, eu disse, levantando inquieto.
curiosas pra contar, eu tinha certeza. Ele acabou “Não, não, não, eu não tenho. Mas eu vou ter, pe-
revelando que tinha algumas, sim. las flechas do Cupido! Isto é, se –”
“Sou um jornalista”, disse para ele, para Minha voz deve ter desaparecido e se
instigá-lo. “Tenho que escrever sobre a experi- desfeito em incerteza e desespero.
ência de alguns dos desafortunados que passam “Vejo que você tem uma história você
suas noites neste parque. Posso lhe perguntar a mesmo”, disse o vagante sujo – insolentemente,
que você atribui sua queda a esta –” me pareceu. “Digamos que você pegue os seus
Fui interrompido por uma risada – uma dez centavos de volta e chore sua história para
risada tão enferrujada e sem jeito que tive a certeza mim. Eu, de minha parte, estou interessado nos
de que tinha sido a sua primeira em muitos dias. altos e baixos dos desafortunados que passam
34 O QUARTO DA CLARABOIA O pragtmatismo superior 35

suas tardes no parque.” Expliquei que meu valor era tão peque-
De algum modo, aquilo me divertiu. no, meus rendimentos tão poucos e meus medos
Olhei para aquele sujo abandonado com mais tão grandes que eu não tinha a coragem para lhe
interesse. Eu tinha, de fato, uma história. Por falar da minha adoração. Disse que, na presença
que não contar para ele? Eu não havia contado a dela, só conseguia ficar vermelho e gaguejar, e
nenhum de meus amigos. Sempre tinha sido um que ela me olhava com um sorriso maravilhoso,
homem reservado e contido. Era timidez, ou sen- e enlouquecedor, de diversão.
sibilidade – ou ambos. E sorri para mim mesmo, “Tipo, ela está na classe profissional, não
maravilhado, quando senti um impulso de fazer é?”, perguntou Mack
uma confidência a este estranho vagabundo. “A família Telfair –”, comecei, altiva-
“Jack”, disse eu. mente.
“Mack”, disse ele. “Eu quis dizer beleza profissional”, disse
“Mack”, eu disse, “vou te contar.” meu ouvinte.
Eu lhe dei um dólar. “Ela é vastamente admirada”, respondi,
“Os dez centavos”, eu disse, “eram o cautelosamente.
preço para ouvir a sua história.” “Alguma irmã?”
“Bem na mosca”, disse ele. “Continue.” “Uma.”
E então, embora possa parecer incrível “Você conhece outras garotas?”
para os amantes do mundo que confiam suas “Ora, várias”, respondi. “E algumas outras.”
tristezas somente ao vento noturno e à lua cor- “Bem”, disse Mack, “me diga uma coisa
covada, eu desnudei meu segredo para aquela – você consegue dar em cima das outras garotas?
ruína dentre todos os seres, que você suporia ser Você consegue surpreendê-las no momento certo,
simpático ao amor. deixá-las com aqueles grandes olhos de matinê e
Contei-lhe dos dias e semanas e meses aí levá-las a nocaute? Você sabe o que eu quero
que passei adorando Mildred Telfair. Falei do dizer. Você só é tímido com esta senhorita em par-
meu desespero, meus dias sombrios e noites em ticular – a beleza profissional –, não é mesmo?”
claro, minhas esperanças esvanescentes e meu “De certa forma você esboçou, aproxi-
cansaço mental. Até mesmo descrevi para este madamente, a situação”, admiti.
fugidio ser das noites sua beleza e dignidade, a “Foi o que pensei”, disse Mack, de um
grande influência que ela tinha na sociedade e o jeito sinistro. “Bem, isso me lembra do meu pró-
esplendor de sua vida como filha mais velha de prio caso. Vou te contar.”
uma família antiga cujo orgulho sobrepujava os Eu estava indignado, mas escondi. O que
dólares dos milionários da cidade. era o caso desse vagabundo, ou de quem quer
“Por que você não chega junto dela?”, per- que seja, comparado com o meu? Além disso, ti-
guntou Mack, trazendo-me de volta à terra e à gíria. nha lhe dado um dólar e dez centavos.
36 O QUARTO DA CLARABOIA O pragtmatismo superior 37

“Pegue no meu músculo”, disse meu pararam de entrar. Eu não tinha mais a chance de
companheiro, flexionando seus bíceps. Peguei lutar com um profissional – ou muitos amadores.
mecanicamente. Os sujeitos nas academias estão Mas deixe eu te contar – eu era tão bom quanto
sempre pedindo para você fazer isto. Seu braço a maioria dos homens dentro ou fora do ringue.
era duro como ferro. Era apenas aquele sentimento besta de estar con-
“Quatro anos atrás”, disse Mack, “eu tra um profissional que sempre acabava comigo.
conseguia arrebentar qualquer homem em Nova Bem, senhor, depois de estar fora dos ne-
York fora do ringue profissional. O seu caso e o gócios, acabei desenvolvendo um enorme de um
meu são a mesma coisa. Sou do Lado Leste – en- ressentimento. Eu costumava passear pela cida-
tre a Treze e a Catorze – não vou te dar o núme- de arrebentando cidadãos comuns e não-profis-
ro da casa. Eu era briguento quando tinha dez, e sionais só pra me divertir. Arrebentava policiais
quando tinha vinte, nenhum amador conseguia em ruas escuras, motoristas de bonde, taxistas e
aguentar quatro rounds comigo. Isso é fato. Co- carrinheiros assim que eu pudesse começar uma
nhece Bill McCarty? Não? Ele arranjava alguns briga com um deles. Não fazia nenhuma dife-
lutadores para aqueles clubes de aposta. Bem, eu rença o tamanho deles, ou a técnica que tinham,
arrebentava tudo que Bill punha na minha frente. eu acabava com todos. Se ao menos eu tivesse
Eu era peso-médio, mas podia lutar até com um aquela mesma confiança dentro do ringue, hoje
peso-pesado. Lutei boxe por todo o Lado Oeste estaria vestindo pérolas negras e meias de seda
em competições, eventos beneficentes e entrete- heliotrópica.
nimentos particulares, e nunca me derrubaram. Um dia eu estava andando pela boca do
Mas, na primeira vez em que pus os lixo, pensando nas coisas, quando vem um gru-
pés no ringue com um profissional, eu não era po. Eram uns seis ou sete, de casacos e com aque-
mais do que, digamos, lagosta enlatada. Não sei les chapéus de seda que não brilham. Um dos
como era – parecia que eu gorava. Vai ver eu te- caras me empurra pra fora da calçada. Eu não
nho imaginação demais. Havia uma formalidade tinha brigado fazia uns três dias, então só digo:
e aquela coisa pública que parecia acabar com ‘O-bri-ga-do!’ e acerto ele atrás da orelha.
meus nervos. Nunca ganhei uma luta no ringue. Bem, aí aconteceu. Aquele Fulano até
Pesos-pena e todo tipo de lutador costumavam que serviu pra uma briguinha decente, como as
vir assinar com meu agente e, aí, dar uma tapa que a gente vê nos filmes. Foi numa rua menor, e
no meu pulso para me ver cair. No instante em não havia tiras por perto. Ele tinha bastante téc-
que eu via a multidão e o monte de gente em suas nica, mas só me levou seis minutos para acabar
roupas de gala na minha frente, e via um profis- com ele.
sional entrar nas cordas, eu ficava tão fraquinho Alguns dos caras de casaco arrastaram ele
quanto cerveja aguada. e começaram a abaná-lo. Outro vem até mim e diz:
É claro, não demorou até que os cheques “Jovem, você sabe o que você acabou de fazer?”
38 O QUARTO DA CLARABOIA O pragtmatismo superior 39

“Ah, pare com isso”, eu disse. “Não fiz vai perder do jeito que eu perdi.”
mais do que um servicinho num saco de panca- “Por que você acha que eu vou perder?”,
das. Pegue o garoto e leve ele de volta pra Yale, e perguntei, irritado.
diga pra ele parar de ficar estudando sociologia “Porque”, disse ele, “você tem medo de
no lado errado da calçada.” entrar no ringue. Você não se segura na frente de
“Meu camarada”, disse ele, “eu não sei um profissional. O seu caso e o meu são o mes-
quem você é, mas gostaria de saber. Você acabou mo. Você é um amador, e isto quer dizer que é
de nocautear Reddy Burns, o campeão mundial melhor você ficar fora das cordas.”
de peso-médio. Ele veio pra Nova York ontem, “Bem, eu tenho que ir”, eu disse, levan-
pra tentar arranjar uma luta com Jim Jeffries. Se tando e olhando com elaborado cuidado para o
você –” meu relógio.
Assim que acordei do meu desmaio, eu Quando eu estava a uns dez metros, ele
estava deitado numa farmácia, recebendo sais me chamou.
aromáticos de amônia. Se eu soubesse que era “Muito obrigado pelo dólar”, ele disse.
Reddy Burns, teria entrado no bueiro e rastejado, “E pelos dez centavos. Mas você nunca vai con-
ao invés de lhe dar uma lição como eu fiz. Se al- seguir ela. Você está na classe dos amadores.”
gum dia estivesse no ringue e o visse subindo, eu “Bem feito”, eu disse para mim mesmo,
teria dado no pé.” “por ficar batendo papo com um vagabundo.
“Então é isso que sua imaginação faz”, con- Quanto atrevimento!”
cluiu Mack. “E, como eu disse, o seu caso e o meu são Mas, enquanto eu andava, suas palavras
idênticos. Você nunca vai ganhar. Você não consegue pareciam se repetir várias e várias vezes dentro
se meter com os profissionais. Vou te dizer, é banco de do meu cérebro. Acho que cheguei a ficar bravo
praça pra você nesse negócio de romance.” com o sujeito.
Mack, o pessimista, riu desagradavelmente. “Vou mostrar pra ele!”, finalmente disse,
“Acho que não vejo o paralelo”, eu disse, em voz alta. “Vou mostrar pra ele que eu também
friamente. “Tenho só uma leve noção do que seja posso lutar com Reddy Burns – mesmo sabendo
um ringue.” quem ele é.”
O vagabundo tocou na minha manga Corri até uma cabine telefônica e liguei
com seu indicador, para ênfase, enquanto ele ex- para a residência Telfair.
plicava a parábola. Uma voz doce e macia respondeu. Eu
“Todo homem”, disse ele, com alguma conhecia aquela voz? Minha mão segurando o
dignidade, “está de olho em algo que parece bom telefone tremia.
pra ele. Com você, é esta senhorita pra quem “É você?”, eu disse, usando as palavras
você tem medo de dizer o que você tem de dizer. bobas que formam o vocabulário de todo falante
Comigo, era ganhar dentro do ringue. Bem, você de telefone.
40 O QUARTO DA CLARABOIA O pragtmatismo superior 41

“Sim, sou eu”, voltou a resposta naque- para o teto, “qualquer um pode aprender com
les tons claros e baixos que são uma herança dos qualquer um. Foi boa a filosofia de Mack, de
Telfairs. “Quem é, por favor?” qualquer modo. Ele não tirou as vantagens de
“Sou eu”, eu disse, com mais egoísmo do sua experiência, mas eu tiro. Se você quer entrar
que gramática. “Sou eu, e tem algumas coisas que na classe profissional, você tem que –”
eu quero te dizer agora e ir direto ao ponto.” Então parei de pensar. Alguém estava
“Minha nossa”, disse a voz. “Oh, é você, descendo as escadas. Meus joelhos começaram a
sr. Arden!” tremer. Soube então como Mack se sentia quando
Eu me perguntei se a ênfase na primeira um profissional subia no ringue.
palavra era intencional; Mildred era ótima em di- Olhei ao redor, tolamente, procurando
zer coisas em que você tinha que ficar pensando uma porta ou uma janela pela qual escapar. Se
depois. fosse qualquer outra garota se aproximando, eu
“Sim”, eu disse, “espero que seja eu talvez tivesse –
mesmo. E agora vamos cortar a conversa fiada.” Mas então a porta se abriu, e Bess, a irmã
Achei isso um vernacularismo exagerado, se é mais nova de Mildred, entrou. Nunca a tinha vis-
que existe tal palavra, tão logo o disse; mas não to se parecer tanto com um anjo glorioso. Ela veio
parei para pedir desculpas. “Você sabe, é claro, até perto de mim, e... e...
que eu te amo, e tenho feito papel de idiota por Eu nunca havia notado que maravilho-
muito tempo. Não quero mais bobagens sobre sos olhos perfeitos, e cabelo, Elizabeth Telfair ti-
isso – isto é, eu quero saber de você agora. Você nha.
quer ou não se casar comigo? Fique na linha, por “Phil”, ela disse, naquele tom doce e
favor. Alô, alô. Você quer ou você não quer?” emocionante dos Telfairs, “por que você não me
Este foi o direto no queixo de Reddy contou antes? Eu pensei que era a minha irmã
Burns. A resposta veio: que você queria o tempo todo, até que você me
“Ora, Phil, querido, é claro que eu quero! telefonou alguns minutos atrás!”
Eu não sabia que você – isto é, você nunca dis- Acho que Mack e eu vamos ser sempre
se – oh, venha até aqui em casa, por favor – não amadores. Mas, do jeito que as coisas aconteceram
posso dizer o que quero pelo telefone. Você foi no meu caso, eu me sinto muito feliz por isso.
inoportuno. Mas ah, por favor, venha aqui em
casa, você viria?
Eu iria?
Toquei a campainha da casa Telfair vio-
lentamente. Algum humano veio até a porta e me
levou até a sala.
“Bem”, disse comigo mesmo, olhando
O RESGATE DO
CHEFE VERMELHO

Parecia uma boa, mas esperem só até


eu contar pra vocês. Nós estávamos no Sul, no
Alabama – Bill Driscoll e eu – quando essa ideia
de sequestro nos ocorreu. Ela surgiu, como Bill
posteriormente mencionou, “durante uma visão
mental momentânea”. Mas nós não nos demos
conta disso até mais tarde.
Tinha uma cidade por ali, achatada como
um bolo de fubá, e, é claro, chamada Summit.
Seus habitantes eram do tipo mais inofensivo e
contente que jamais apinhou uma cidade.
Juntos, Bill e eu tínhamos um capital de
cerca de 600 dólares, e só precisávamos de mais
dois mil pra completar um esquema imobiliá-
rio fraudulento no oeste de Ilinois. Discutimos
o assunto nos degraus do hotel. A “filoproge-
nitividade”, nós achávamos, era marcante em
comunidades semirrurais; por isso, e por tantas
44 O QUARTO DA CLARABOIA O resgate do chefe vermelho 45

outras razões, um projeto de sequestro poderia velho”, diz Bill, saltando do vagão.
funcionar melhor aqui do que nos círculos para O garoto resistiu como se fosse um urso
onde jornais enviam seus repórteres em roupas marrom peso-pesado, porém, por fim, consegui-
casuais para inventar histórias sobre essas coi- mos colocá-lo no fundo da carroça e fomos em-
sas. Sabíamos que Summit só poderia vir atrás bora. Nós o levamos até a caverna, e eu amarrei
de nós com, no máximo, algum guardinha, tal- o cavalo num dos cedros. Depois de escurecer,
vez alguns sabujos não muito bem-intencionados levei a carroça de volta ao vilarejo onde a tínha-
e uma ou duas reprovações na Revista Semanal mos alugado, a três milhas dali, e voltei a pé até a
dos Fazendeiros. Então, parecia uma boa. montanha.
Nós escolhemos como vítima o filho úni- Bill estava passando mertiolate nos cor-
co de um proeminente cidadão chamado Ebene- tes e nas feridas do rosto. Havia uma fogueira
zer Dorset. O pai era respeitável e severo, um hi- atrás da pedra grande da entrada da caverna, e
potecário, além de ser um diácono austero e um o garoto olhava fixamente para uma chaleira de
cobrador executivo. O garoto era um moleque de café, com duas penas da cauda de um falcão pre-
dez anos, com sardas em baixo-relevo, e o cabelo sas no cabelo ruivo. Ele aponta uma vara para
da cor da capa da revista que você compra nas mim quando chego perto, e diz:
banquinhas quando vai pegar um trem. Bill e eu “Ha! Maldito cara-pálida! Como você
imaginamos que Ebenezer iria se derreter, e acei- ousa entrar no território do Chefe Vermelho, o
taria um resgate de 2 mil dólares, nem um centa- terror das planícies?”
vo a menos. Mas esperem só até eu contar para “Agora ele está bem”, diz Bill, puxan-
vocês. do a calça e examinando um hematoma na ca-
A cerca de duas milhas de Summit ha- nela. “Nós estamos brincando de índio. Como
via uma montanha, coberta por uma floresta de nos circos que Buffalo Bill monta quando chega
cedros. No pico posterior desta montanha havia às cidades. Eu, por exemplo, sou o velho Hank,
uma caverna. É lá que estavam nossas provisões. o trapeiro, cativo do Chefe Vermelho, e vou ser
Certa tarde, depois do pôr-do-sol, passamos de escalpelado com o nascer do sol. Por Gerônimo!
carroça pela casa do velho Dorset. O garoto esta- Esse pirralho sabe chutar forte!”
va na rua, atirando pedras num gatinho do outro Sim senhor, parecia que aquele garo-
lado da cerca. to nunca tinha se divertido tanto. A emoção de
“Ei, garotinho”, diz Bill, “você gostaria acampar numa caverna o tinha feito esquecer
de um montão de doces, e de dar uma volta com que, ele próprio, era um cativo. Ele imediata-
a gente?” mente me apelidou de Olho-de-Cobra, o espião,
O moleque acerta Bill em cheio, bem no e anunciou que, quando seus guerreiros voltas-
olho, com um pedaço de tijolo. sem da batalha, eu seria tostado na fogueira com
“Isso vai custar mais uns 500 paus pro os primeiros raios da aurora.
46 O QUARTO DA CLARABOIA O resgate do chefe vermelho 47

Aí jantamos. Ele encheu a boca de bacon, “Vamos ficar aqui na caverna por um tempo.”
pão e molho de carne, e começou a falar. Seu dis- “É isso aí!”, ele disse. “Vai ser ótimo.
curso era algo mais ou menos assim: Nunca me diverti tanto na vida!”
“Gosto demais disso, eu nunca tinha Fomos dormir lá pelas onze. Colocamos
acampado antes. Eu tinha um gambá de esti- alguns cobertores e lençóis quentes, com o Chefe
mação. Fiz nove anos no último aniversário. Eu Vermelho entre nós. Não tínhamos medo de que
odeio ir pra escola. As ratazanas comeram de- ele fosse fugir. Ele ainda nos manteve acordado
zesseis ovos da tia de Jimmy Tallbot. Será que por três horas, pulando, pegando seu rifle e dan-
tem índios de verdade nestas matas? Quero mais do gritinhos: “Eia! Apaches!”, nos meus ouvidos
molho. Será que é o movimento das árvores que e nos de Bill, enquanto o murmúrio de uma folha
faz o vento soprar? Lá em casa, tínhamos cinco ou o estalar de um galho davam asas à sua ima-
cachorrinhos. Hank, por que seu nariz fica tão ginação infantil, que achava que um bando de
vermelho? Meu pai tem pilhas e pilhas de dinhei- foras-da-lei se aproximava. Por fim, eu adormeci,
ro. Será que as estrelas são quentes? Eu dei duas e tive um sono atribulado; sonhei que tinha sido
chicotadas em Ed Walker, no sábado. Não gosto sequestrado e acorrentado a uma árvore por um
de meninas. Pra pegar sapos, tem que ter um bar- pirata ferocíssimo de cabelo vermelho.
bante. Bois fazem barulho? E por que as laranjas Com os primeiros raios de sol, acordei
são redondas? Tem cama pra dormir nesta ca- com vários gritos horríveis de Bill. Não eram
verna? Papagaios falam, mas macacos ou peixes gritos, ou berros, ou urros, ou uivos, ou choros,
não. Quantos números precisa pra fazer doze?” ou algo que você esperaria de cordas vocais mas-
De vez em quando, ele se lembrava de culinas – eram simplesmente gritos humilhados,
que era um temível pele-vermelha, e pegava a aterrorizados, indecentes, assim como os de mu-
vara – seu rifle de faz-de-conta – e, pé ante pé, ia lheres quando veem fantasmas ou lagartas. É
até a entrada da caverna, para fazer a ronda con- algo horrível ouvir um homem, gordo e forte,
tra os odiados caras-pálidas. Vez por outra, sol- gritar desesperadamente numa caverna ao nas-
tava um grito de guerra que fazia o velho Hank, cer do sol.
o trapeiro, tremer de medo. O moleque aterrori- Saltei da cama para ver o que era. O
zara Bill desde o começo. Chefe Vermelho estava sentado no peito de Bill,
“Chefe Vermelho”, disse para o garoto, puxando, com uma mão, seu cabelo. Na outra,
“você gostaria de ir pra casa?” tinha a faca pontiaguda usada para cortar bacon,
“Não. Pra quê?”, disse ele. “Eu nunca me e estava, de modo diligente e bem realista, ten-
divirto em casa. Odeio ir pra escola. Gosto mes- tando arrancar o escalpo de Bill, de acordo com
mo é de acampar. Olho-de-Cobra, você não vai a sentença que lhe havia sido imputada na noite
me levar de volta pra casa, vai?” anterior.
“Não, pelo menos não agora”, disse. Tirei a faca do moleque, e o fiz deitar-se
48 O QUARTO DA CLARABOIA O resgate do chefe vermelho 49

novamente. Mas, daquele momento em dian- superficial do Alabama, à minha vista. “Talvez”,
te, tinha sido quebrado o espírito de Bill, que se eu disse para mim mesmo, “ainda não descobri-
deitou do seu lado da cama e nunca mais fechou ram que os lobos levaram a terna ovelhinha do
os olhos para dormir enquanto o menino estava curral. Os céus ajudem os lobos!”, disse, e desci a
conosco. Cochilei por uns instantes, porém, com montanha para o café da manhã.
o sol nascendo, lembrei que o Chefe Vermelho ti- Assim que cheguei à caverna, encontrei
nha dito que eu iria para a fogueira com a aurora. Bill acuado contra uma das paredes, ofegante, e o
Eu não estava nervoso, nem com medo, contudo, garoto ameaçando esmagá-lo com uma pedra do
me sentei, reclinado contra uma pedra, e acendi tamanho de um coco.
meu cachimbo. “Ele pôs uma batata fervendo nas mi-
“Por que você está de pé tão cedo, Sam?”, nhas costas”, explicou Bill, “e ainda por cima a
perguntou Bill. amassou com o pé; eu lhe dei um safanão nas
“Eu?”, perguntei. “Oh, eu estou com orelhas. Você tem uma arma com você, Sam?”
uma dor no ombro, e pensei que, se eu sentasse, Peguei a pedra do garoto e tentei ajeitar
iria descansar.” a situação. “Eu vou dar um jeito em você”, disse
“Mentiroso!”, disse Bill. “Você está com o moleque para Bill. “É melhor que nenhum ho-
medo! Você ia ser queimado ao raiar do sol. E ele mem ouse tocar o Chefe Vermelho, pois vai levar
bem que faria isso, se conseguisse achar um fós- o que merece. É melhor vocês se cuidarem!”
foro. Não é horrível, Sam? Você acha que alguém Após o café da manhã, o moleque pega
vai pagar pra levar um diabinho desses de volta do bolso um pedaço de couro amarrado com fios,
pra casa?” e sai da caverna desenrolando-o.
“Claro!”, eu disse. “Um moleque danado “E agora, o que ele vai fazer?”, diz Bill,
como esse é bem o tipo pelo qual os pais se derre- ansioso. “Você não acha que ele vai fugir, Sam,
tem.” ou acha?”
Subi o pico da pequena montanha e pas- “Relaxa”, eu disse. “Ele não parece ser
sei os olhos pela vizinhança. Na direção de Sum- um garoto muito caseiro... Mas temos que ar-
mit, eu esperava ver robustos fazendeiros da vila rumar um plano quanto ao resgate. Não parece
armados com foices e forquilhas vasculhando que está tendo muita comoção em Summit, mas
os campos pelos malvados sequestradores. Mas talvez eles ainda não perceberam que ele se foi.
o que vi foi uma pacífica paisagem, pontilhada Seus pais podem estar pensando que ele está pas-
apenas por um homem arando com uma mula sando a noite com a tia Jane ou algum dos vizi-
cinzenta. Ninguém sondava o riacho; nenhum nhos. De um jeito ou de outro, vão notar a falta
mensageiro corria de cá pra lá trazendo notícias dele hoje. Hoje à noite, temos que mandar uma
a pais aflitos. Havia uma atitude natural de so- mensagem para o pai dele, exigindo dois mil dó-
nolência dorminhoca que se infiltrava na camada lares para devolvê-lo.”
50 O QUARTO DA CLARABOIA O resgate do chefe vermelho 51

Bem nessa hora eu ouvi um tipo de grito sa de negócios. Bem, agora vá lá e faça as pazes
de guerra, assim como o que Davi teria soltado com ele, e peça desculpas por tê-lo machucado,
quando derrubou o gigante Golias. Era um esti- ou você vai parar em casa, agora mesmo.”
lingue que o Chefe Vermelho tinha tirado de seu Eu fiz com que ele e Bill apertassem as
bolso, e que fazia girar ao redor de sua cabeça. mãos, e separadamente, com Bill, contei sobre
Desviei, ouvi uma pancada forte e algo ir para Poplar Cove, uma minúscula vila a três
como um suspiro por parte de Bill, como o que milhas da caverna, e tentar descobrir como o se-
um cavalo dá quando a gente tira a sela. Um pe- questro tinha sido visto em Summit. Além disso,
dregulho do tamanho de um ovo tinha acertado achei por bem mandar uma carta ameaçadora ao
Bill atrás da orelha esquerda. Ele começou a girar velho Dorset naquele mesmo dia, exigindo o res-
e caiu no fogo, bem em cima da frigideira com gate e impondo nossas condições.
água quente para lavar os pratos. Eu o tirei dali “Sabe de uma coisa Sam”, disse Bill, “eu
e joguei água fria no seu rosto por cerca de meia estive com você sem piscar em terremotos, in-
hora. cêndios e inundações – em jogos de pôquer, em
Aos pouquinhos, Bill se senta, sente o explosões de dinamite, em batidas policiais, as-
calombo atrás da orelha e diz: “Sam, você sabe saltos a trem e ciclones. Mas eu ainda não havia
quem é meu personagem bíblico favorito?” afrouxado até nós sequestrarmos esse foguete
“Tente se acalmar”, eu disse. “Você logo disfarçado de pirralho. Ele sabe me tirar do sério.
vai estar novinho em folha.” Você não vai me deixar sozinho com ele, vai?”
“O rei Heródoto”, ele falou. “Você não “Eu volto lá por de tarde”, eu falei. “Você
vai me deixar sozinho aqui, vai, Sam?” tem que manter o moleque ocupado e quieto até
Fui, peguei o moleque e o chacoalhei até eu voltar. E agora vamos escrever a carta ao ve-
suas sardas tremerem. lho Dorset.”
“Se você não se comportar”, eu disse, Bill e eu pegamos papel e lápis, e começa-
“vou te levar agora mesmo para casa. E aí, vai ser mos a fazer a carta enquanto o Chefe Vermelho,
bonzinho ou não?” com um lençol amarrado, dançava protegendo a
“Eu só estava brincando”, ele falou, mal- entrada da caverna. Com lágrimas nos olhos, Bill
humorado. “Não tive a intenção de machucar o me implorou para pedir de resgate só mil e qui-
velho Hank. Mas por que ele me bateu? Prometo nhentos ao invés de dois mil. “Não estou tentan-
me comportar, Olho-de-Cobra, se você não me do”, ele falou, “denegrir o celebrado aspecto mo-
mandar pra casa, e se você me deixar brincar de ral da afeição paterna, mas nós estamos lidando
desbravador hoje.” com seres humanos aqui, e não é humano para
“Não conheço essa brincadeira”, disse. quem quer que seja pagar dois mil dólares por
“Isso você e o sr. Bill decidem. Ele vai brincar esta fera sardenta. Eu aceito mil e quinhentos.
com você hoje. Eu vou sair um pouco, por cau- Pode descontar a diferença de mim.”
52 O QUARTO DA CLARABOIA O resgate do chefe vermelho 53

Assim, para acalmar Bill, cedi, e a carta Vermelho, “e eu tenho que cavalgar até o forte
ficou algo mais ou menos assim: para avisar os colonos de que os índios estão che-
gando. Eu cansei de brincar de índio. Agora eu
“Ebenezer Dorset, quero ser desbravador.”
Nós escondemos seu garoto em Summit. É “Tudo bem”, disse “Parece bem inofen-
inútil mesmo para os melhores detetives tentar encon- sivo. Acho que o sr. Bill irá te ajudar a se livrar
trá-lo. Nossas exigências são, em termos absolutos, as desses selvagens ferozes.”
seguintes: nós exigimos mil e quinhentos dólares em “O que eu tenho que fazer?”, Bill per-
dinheiro para devolvê-lo; o dinheiro deve ser deixado guntou, olhando, suspeitoso, para o garoto.
à meia-noite no mesmo lugar e na mesma caixa que “Você é o corcel”, disse o desbravador.
a sua resposta – como descrito aqui. Se você concor- “Fique de joelhos e com as mãos no chão. Como
dar com esses termos, envie uma resposta por escrito, eu posso cavalgar até o forte sem um corcel?”
através de um mensageiro, às oito e meia. Após cruzar “É melhor você mantê-lo ocupado”, fa-
o Owl Creek, na estrada para o Poplar Cove, há três lei, “até nosso plano estar em andamento. Procu-
grandes árvores separadas por cerca de cinquenta me- re relaxar.”
tros, próximas à cerca do trigal que fica no lado direito. Então Bill fica de quatro, e dá aquele
O mensageiro deverá colocar a resposta nesta caixa e olhar de um coelho que está preso numa armadi-
voltar imediatamente a Summit. lha.
Se você tentar qualquer tipo de esperteza ou “Qual é a distância até o forte, garoto?”,
não cumprir nossas exigências, você nunca mais verá ele pergunta, com a voz um pouco rouca.
o seu garoto. “Cem quilômetros”, diz o desbravador.
Se você pagar o dinheiro como necessário, ele “E é melhor você ir até lá no pinote, pra chegar-
estará de volta em menos de três horas. Estas exigên- mos a tempo. Upa, vamos!”
cias são absolutas, e se você não concordar com elas, “Pelo amor de Deus”, diz Bill, “volte o
não haverá mais comunicação alguma. mais rápido que puder. Agora eu bem que gosta-
DOIS HOMENS DESESPERADOS” ria de não termos feito o resgate mais de mil. Ei
você, pare de me esporear ou você vai ver o que
Enderecei a carta a Dorset, e coloquei-a é bom.”
no meu bolso. Assim que eu ia sair, o moleque Fui andando até Poplar Cove e sentei por
chega pra mim e diz: ali entre o correio e a loja vizinha, falando com
“Ei, Olho-de-Cobra, você disse que eu mascates que vinham fazer negócios. Um bebum
podia brincar de desbravador!” me diz que Summit está em polvorosa, pois o fi-
“Brinque, é claro!”, falei. “O sr. Bill vai lho do velho Ebenezer Dorset sumiu ou foi rapta-
brincar com você. Que tipo de brincadeira é?” do. Era tudo o que eu queria saber. Comprei um
“Eu sou o desbravador”, disse o Chefe pouco de fumo, fiz alguma referência casual ao
54 O QUARTO DA CLARABOIA O resgate do chefe vermelho 55

preço das ervilhas e, subrepticiamente, coloquei ganhei aveia. Mesmo a areia não é um substituto
minha carta e voltei. O agente do correio disse tão palatável. E então, por uma hora, eu tentei ex-
que o carteiro chegaria em cerca de uma hora plicar pra ele por que não há nada dentro de bu-
para levar as cartas para Summit. racos, como uma estrada pode ir de um lado para
Quando voltei à caverna, não havia nem o outro e o que faz a grama ser verde. Eu te digo,
sinal de Bill ou do garoto. Explorei a vizinhan- Sam, há um limite para o que um humano pode
ça da caverna e arrisquei um ou dois chamados, aguentar. Peguei ele pelo colarinho e o arrastei
mas não houve resposta. pela montanha. Nisso, ele ficou me chutando dos
Então eu acendi meu cachimbo e sentei joelhos pra baixo até ser tudo um hematoma só.
num tronco cheio de musgos para esperar o que E têm duas ou três mordidas no meu dedão que
ia acontecer. vão ter que ser suturadas.”
Em cerca de meia hora ouvi os arbustos “Mas ele se foi”, continua Bill, “foi pra
quebrarem, e Bill surgiu na entradinha da caver- casa. Eu mostrei a ele a estrada que vai até Sum-
na. Atrás dele estava o moleque, pisando macio mit e dei-lhe um belo chute naquela direção. Des-
como um desbravador, e com um largo sorriso culpe termos perdido o resgate; mas era ou isso
no rosto. Bill parou, tirou o chapéu e enxugou a ou Bill Driscoll no hospício.”
testa com um lenço vermelho. O garoto parou, Bill está arfando e espumando, mas há
cerca de uns cinco metros atrás dele. um olhar de paz indescritível e crescente conten-
“Sam”, diz Bill, “Imagino que você deve tamento no seu rosto rosado.
pensar que eu sou um fraco, mas eu não pude “Bill”, eu falei, “não tem nenhum proble-
evitar. Sou um homem adulto com propensões ma de coração na sua família, tem?”
masculinas e hábitos de autodefesa, mas há um “Não”, diz Bill, “nada crônico exceto ma-
momento em que todos os sistemas do ego e da lária e acidentes. Por quê?”
predominância entram em pane. O garoto se foi. “Então é melhor você se virar”, eu disse,
Eu mandei ele pra casa, e tudo deu em nada. “e ver o que tem atrás de você.”
Houve mártires nos velhos tempos”, continua Bill vira e vê o garoto, perde a compostu-
Bill, “que sofreram a morte ao invés de ceder al- ra, desmonta no chão e começa a arrancar, dispa-
guma coisa. Nenhum deles jamais foi subjugado ratadamente, grama e gravetos. Por um instan-
a torturas tão sobrenaturais quanto às que eu fui. te eu temi por sua sanidade. Então lhe falei do
Tentei ser fiel a nossas cláusulas de depredação; meu plano, de colocar o projeto em andamento
mas as coisas têm um limite.” imediatamente, que iríamos conseguir o resgate
“Qual é o problema, Bill?”, eu lhe perguntei. e dar no pé até meia-noite se o velho Dorset con-
“Eu fui cavalgado”, disse Bill, “por cem cordasse com nossas condições. Nisso, Bill reu-
quilômetros até o forte, sem parar por um cen- niu força suficiente para dar ao garoto um frágil
tímetro. Aí, quando os colonos foram salvos, eu sorrisinho e a promessa de brincar de russos na
56 O QUARTO DA CLARABOIA O resgate do chefe vermelho 57

guerra com o Japão assim que ele se sentisse um à noite, pois os vizinhos acreditam que ele se perdeu,
pouco melhor. e eu não me responsabilizaria pelo que eles fariam a
Eu tinha um plano para pegar o resgate qualquer um que vissem trazendo-o de volta.
sem o perigo de ser pego por tramoias, que de- Respeitosamente,
veria ser recomendado a todos os sequestrado- EBENEZER DORSET.”
res profissionais. A árvore sob a qual a resposta
deveria ser deixada – e o dinheiro mais tarde – “Pelos piratas dos sete mares!”, eu disse,
estava próxima da cerca da estrada com campos “entre todos os sacanas...”
amplos. Se um grupo de detetives estivesse vi- Mas olhei para Bill, e hesitei. Ele tinha o
giando para ver se alguém viesse com o recado, olhar mais suplicante que eu jamais vira no rosto
eles poderiam vê-lo vindo pelos campos ou pela de um brutamontes.
estrada. Mas não senhor! Às oito e meia eu esta- “Sam”, ele disse, “o que são duzentos
va em cima daquela árvore, escondido como um e cinquenta dólares, afinal? Nós temos a grana.
sapo de árvore, esperando o mensageiro chegar. Mais uma noite com este moleque e eu vou fi-
Na hora exata, um rapazola vem pela car pinel. Além de ser um distinto cavalheiro, eu
estrada de bicicleta, localiza a caixinha na cerca, acho que o sr. Dorset é uma alma generosa por
coloca um pedaço de papel dobrado ali e pedala nos fazer uma oferta tão liberal. Você não vai dei-
de volta até Summit. xar essa chance escapar, vai?”
Esperei por uma hora, e concluí que es- “Pra te falar a verdade, Bill”, eu falei,
tava tudo azul. Desci da árvore, peguei o bilhete, “esse carneirinho tem me dado nos nervos tam-
passei pela cerca até chegar na mata e, em meia bém. Vamos levá-lo para casa, pagar o resgate e
hora, estava de volta na caverna. Abri o recado, escapulir daqui.”
me aproximei da lanterna e li para Bill. Estava Nós o levamos pra casa naquela noite.
escrito a caneta, numa letra tremida, e o tom e o Convencemos ele a ir dizendo que o pai havia
conteúdo eram estes: comprado um rifle prateado e um par de botas
para ele, e que íamos caçar ursos no dia seguinte.
“Dois Homens Desesperados, Era meia-noite quando batemos na porta
Senhores: recebi hoje a carta de vocês pelo cor- da frente de Ebenezer. Bem na hora em que eu
reio, concernente ao resgate que vocês pedem pelo meu deveria estar tirando os mil e quinhentos dólares
filho. Creio que, quanto às exigências, são um bocado da caixa na árvore, de acordo com o plano origi-
desmedidas, e venho por meio desta fazer uma contra- nal, Bill estava pondo na mão de Dorset duzentos
oferta, que eu acredito que os senhores irão aceitar. Se e cinquenta dólares.
vocês me trouxerem Johnny para casa e me pagarem Quando o garoto descobriu que nós ía-
duzentos e cinquenta dólares, em dinheiro vivo, acei- mos deixá-lo em casa, ele começou a uivar como
tarei tirá-lo das mãos de vocês. É melhor vocês virem um órgão a vapor e grudou nas pernas de Bill
58 O QUARTO DA CLARABOIA 59

como uma sanguessuga. Seu pai conseguiu, gra-


dualmente, arrancá-lo dali, como um reboco po-
roso.
“Quanto tempo você consegue segurá-
lo?”, perguntou Bill.
“Já não sou mais tão forte assim”, disse o
velho Dorset, “mas acho que posso te prometer
uns dez minutos.”
“É o suficiente”, diz Bill. “Em dez minu-
tos eu cruzo todos os estados do Centro, do Sul e
do Meio-Oeste, e vou estar correndo até a borda
do Canadá.”
E, embora estivesse escuro, e embora eu
fosse um bom corredor, ele estava na minha fren-
te uns bons cinco quilômetros longe de Summit
antes que eu conseguisse alcançá-lo.
A PRINCESA E O PUMA
Tinha que haver um rei e uma rainha,
é claro. O rei era um velho terrível que andava
com revólveres de seis tiros e esporas, e gritava
numa voz tão possante que as cascavéis na planí-
cie corriam para seus buracos sob as pereiras es-
pinhentas. Antes que houvesse uma família real,
eles chamavam o velho de “Ben Sussurrante”.
Quando ele passou a ter 50 mil acres de terra e
mais gado do que podia contar, eles o chamaram
de O’Donnel, “o rei do gado”.
A rainha era uma garota mexicana de
Laredo. Ela era uma esposa doce, calma, do Co-
lorado-claro, e até mesmo conseguiu ensinar Ben
a mudar sua voz o suficiente, em casa, para evitar
que os pratos quebrassem. Quando Ben passou a
ser rei, ela passou a sentar na varanda do Rancho
Espinosa e a fazer capachos de junco. Quando a
riqueza tornou-se tão irresistível e opressiva que
cadeiras estofadas e uma mesa de centro foram
trazidos de San Antonio em vagões, ela curvou
62 O QUARTO DA CLARABOIA A princesa e o puma 63

sua cabeça lisa e escura, e compartilhou do desti- Rancho dos Dois Olmos para perguntar sobre
no das Dânaes. uns bezerros perdidos. Ele se demorou para vol-
Para evitar lesa-majestade, vocês foram tar, e o sol já se punha quando ele chegou à En-
apresentados primeiro ao rei e à rainha. Eles não cruzilhada do Cavalo Branco, em Nueces. De lá
entram na história, que podia se chamar “A Crô- até o seu campo eram dezesseis quilômetros. Até
nica da Princesa, o Pensamento Feliz e o Leão o Rancho Espinosa eram doze. Ele decidiu passar
que estragou seu trabalho”. a noite na Encruzilhada.
Josefa O’Donnel era a filha sobreviven- Havia um bom buraco de água no leito
te, a princesa. De sua mãe ela herdou um calor do rio. As margens eram apinhadas de grandes
natural e uma beleza crepuscular, semitropical. árvores, e cobertas de arbustos. A 50 metros do
Do real Ben O’Donnel ela adquiriu uma provi- buraco d’água havia um trecho com grama ver-
são de intrepidez, bom senso e a habilidade de dejante – jantar para seu cavalo e cama para ele.
liderar. A combinação valia percorrer quilôme- Givens amarrou seu cavalo, e pôs os cobertores
tros para ver. Josefa, ao galopar um pônei, con- de sua sela para secar. Sentou-se com as costas
seguia colocar cinco de seis balas numa lata de contra uma árvore e enrolou um cigarro. De al-
tomate balançando na ponta de um barbante. Ela gum lugar em meio à densa floresta, próximo do
podia brincar por horas com um gatinho branco rio, veio um uivo súbito, furioso, estremecedor.
que tinha, vestindo-o com todo tipo de roupas O pônei dançava na ponta de sua corda e soltou
absurdas. Desprezando um lápis, ela podia te di- um bufo de medo. Givens tragou seu cigarro,
zer de cabeça quanto 1.545 bebês fariam na fral- mas pôs a mão, tranquilamente, no seu coldre,
da a $8,50 o quilo. Em termos gerais, o Rancho que estava na grama, e rodou o cilindro da arma,
Espinosa mede 40 quilômetros por 30 de largura experimentando-a. Um peixe grande mergulhou
– mas era na maior parte terra arrendada. Josefa, ruidosamente no buraco d’água. Um coelhinho
no seu pônei, tinha inspecionado cada quilôme- marrom saltitou ao redor de um monte de unhas-
tro. Cada vaqueiro na região a conhecia de vista de-gato e sentou coçando seus bigodes, olhando
e era um vassalo leal. Ripley Givens, capataz de com humor para Givens. O pônei continuou co-
um dos bandos de Espinosa, viu-a um dia e co- mendo grama.
locou na cabeça formar uma aliança matrimonial É bom estar razoavelmente prevenido
real. Presunçoso? Não. Naqueles dias, no conda- quando um leão mexicano começa a cantar em
do de Nueces, um homem era um homem. E, afi- soprano perto dos arroios no pôr-do-sol. O es-
nal, o título de rei do gado não pressupõe realeza tribilho de sua canção pode ser que bezerros e
de sangue. Frequentemente só significa que seu ovelhas gordas estejam raras, e que ele tem um
portador veste a coroa em virtude de suas mag- desejo carnívoro de ser seu conhecido.
níficas qualidades na arte de roubar gado. Na grama havia uma lata de frutas va-
Um dia Ripley Givens cavalgou até o zia, jogada ali pelo último residente temporário.
64 O QUARTO DA CLARABOIA A princesa e o puma 65

Givens a viu com um grunhido de satisfação. No gida pela raiz de um carvalho. O leão estava imó-
bolso do seu casaco, amarrado atrás da sela, ha- vel. Givens, sentindo-se lesado, e suspeitando de
via um punhado ou dois de café moído. Café pre- truques, balançou os punhos para o leão e gritou:
to e cigarros! O que mais um rancheiro poderia “Ora eu te pego se você...”, e então voltou a si.
querer? Josefa estava no seu canto, calmamente
Em dois minutos ele havia começado recarregando sua 38 prateada. Não tinha sido um
uma pequena fogueira. Ele foi, com sua lata, até o tiro difícil. A cabeça do leão tinha sido um alvo
buraco de água. Quando estava a uns dez metros mais fácil do que uma lata de tomate balançando
da beirada ele viu, entre os arbustos, um pônei na ponta de um barbante. Havia um sorriso pro-
com a sela de lado e as rédeas caídas pastando vocador, desafiador, enlouquecedor em sua boca
um pouco à sua esquerda. Acabando de se erguer e em seus olhos escuros. O pretenso cavaleiro
do buraco de água estava Josefa O’Donnel. Ela sentiu o fogo de seu fiasco queimar até o último
havia bebido água, e limpava a areia das palmas de sua alma. Aqui estivera sua chance, a chance
de suas mãos. A dez metros, à direita dela, meio com a qual ele sonhara; e Momo, não Cupido, a
escondido por um punhado de prosópis, Givens havia presidido. Os sátiros no mato estavam, sem
viu a silhueta agachada do leão mexicano. Suas dúvida, segurando o mais hilário dos risos. Tinha
pálpebras de âmbar reluziam esfomeadamente; a havido algo de circense – digamos, algo como o
três metros deles estava a ponta do rabo esticada Signor Givens e seu engraçado espetáculo com o
reto, como um ponteiro. Seus quadris balança- leão empalhado.
vam com o movimento que a tribo dos gatos faz “É você, sr. Givens?”, disse Josefa, em
antes de saltar. sua deliberada voz de contralto de sacarina.
Givens fez o que podia. Sua seis-tiros es- “Você quase estragou meu tiro quando gritou.
tava trinta metros longe, na grama. Ele soltou um Você machucou a cabeça quando caiu?”
alto grito, e correu entre o leão e a princesa. “Oh, não”, disse Givens, quietamente;
O “incidente”, como Givens o chamaria “aquilo não doeu.” Ele se abaixou enxovalhada-
mais tarde, foi breve e um tanto quanto confuso. mente e arrastou seu melhor chapéu Stetson por
Quando ele chegou à linha de ataque, viu uma debaixo da besta. Ele estava amassado e dobrado
vaga listra no ar, e ouviu alguns ruídos secos. En- em um ótimo efeito cômico. Então ele se ajoelhou
tão, oitenta quilos de leão mexicano caíram sobre e acariciou docemente a cabeça boquiaberta do
a sua cabeça e o amassaram, com um choque pe- feroz leão morto.
sado, ao chão. Ele se lembrava de gritar: “Vamos, “Pobrezinho do Bill!”, ele exclamou,
levante-se – amassar não vale!”, e então rastejou amargamente.
de debaixo do leão como uma minhoca, com a “Como assim?”, perguntou Josefa, de
boca cheia de grama e sujeira, e um grande galo maneira incisiva.
na parte de trás da cabeça onde ela havia sido atin- “É claro que você não sabia, senhori-
66 O QUARTO DA CLARABOIA A princesa e o puma 67

ta Josefa”, disse Givens, com um ar de quem se do contrário não teria fugido. Ele sempre tinha
permite à magnanimidade triunfar sobre a dor. medo de sair de perto do acampamento.”
“Ninguém pode lhe culpar. Eu tentei salvá-lo, Josefa olhou para o corpo do feroz ani-
mas não consegui te fazer saber a tempo.” mal. Givens gentilmente acariciou uma das patas
“Salvar quem?” que teriam matado um bezerro com um só golpe.
“Ora, Bill. Eu o estive procurando o dia Lentamente, um rubor invadiu o rosto oliva-escu-
todo. Sabe, ele foi nosso bicho de estimação no ro da garota. Era o sinal da vergonha do verdadei-
acampamento durante dois anos. Pobrezinho, ele ro esportista que abateu uma presa inocente? Os
não machucaria um coelhinho. Vai entristecer to- seus olhos ficaram mais doces, e as pálpebras, ao
dos os rapazes quando eles souberem. Mas você se abaixarem, expulsaram toda a leve zombaria.
não tinha como saber, é claro, que Bill estava ape- “Eu sinto muito”, ela disse, humilde-
nas tentando brincar com você.” mente; “mas ele parecia tão grande, e pulou tão
Os olhos negros de Josefa queimaram so- alto que –”
bre ele. Ripley Givens enfrentou o teste com su- “Pobrezinho do Bill, ele estava faminto”,
cesso. Ficou mexendo com os caracóis loiro-mar- interrompeu Givens, em rápida defesa do defun-
rons da cabeça pensativamente. Em seus olhos to. “Nós sempre o fazíamos pular para ganhar o
havia arrependimento, inseparáveis de uma cen- jantar no acampamento. Ele se abaixava e rolava
sura gentil. Os traços em seu rosto formavam um por um pedaço de carne. Quando ele te viu, pen-
padrão de tristeza indiscutível. Josefa hesitou. sou que ia ganhar algo de comer de você.”
“O que o bicho de vocês estava fazen- Subitamente os olhos de Josefa se abri-
do aqui?”, ela perguntou, numa última dúvida. ram, enormes.
“Não há nenhum acampamento perto da Encru- “Eu podia ter atirado em você!”, ela ex-
zilhada do Cavalo Branco.” clamou. “Você correu bem no meio. Você arris-
“O velho safado fugiu do acampamento cou sua vida para salvar seu bicho! Isto foi nobre,
ontem”, respondeu Givens, prontamente. “É de sr. Givens. Gosto de homens que são gentis com
admirar que os coiotes não o assustaram até a os animais.”
morte. Sabe, Jim Webster, nosso domador de ca- Sim, agora havia até admiração no seu
valos, trouxe um pequeno filhote de terrier para o olhar. Afinal, havia um herói surgindo das ruínas
acampamento na semana passada. O cachorrinho de um anticlímax. O olhar no rosto de Givens lhe
tornava a vida miserável para Bill – ele costuma- teria assegurado uma alta posição na Sociedade
va caçá-lo e morder suas patas traseiras por horas Protetora dos Animais.
a fio. Toda noite, na hora de dormir, Bill vinha e “Eu sempre os amei”, disse ele; “cavalos,
dormia debaixo do cobertor de um dos rapazes, cachorros, leões mexicanos, vacas, jacarés –”
para evitar que o cachorrinho o encontrasse. Eu “Odeio jacarés”, objetou instantaneamen-
imagino que ele devia estar bem desesperado ou te Josefa; “coisinhas enlameadas e asquerosas!”
68 O QUARTO DA CLARABOIA A princesa e o puma 69

“Eu disse jacarés?”, disse Givens. “Eu pela grama macia, a princesa e o homem que era
quis dizer jabutis, é claro.” gentil com os animais. Na pradaria, os odores da
A consciência de Josefa a levou a se des- terra frutífera e o delicado desabrochar eram for-
culpar mais. Ela estendeu sua mão penitente. Ha- tes, e doces, ao redor deles. Coiotes uivando lá
via uma lágrima clara, prestes a cair, em cada um em cima no morro! Sem perigo. E, ainda assim –
de seus olhos. Josefa se aproximou. Uma mãozinha pa-
“O senhor vai me desculpar, sr. Givens, recia se estender. Givens a encontrou junto à sua.
não é mesmo? Eu sou só uma garota, e estava Os pôneis mantiveram uma distância pequena.
um pouco assustada de princípio. Eu sinto, sin- As mãos se juntaram, e a dona de uma delas ex-
to muito por ter atirado em Bill. Você não sabe plicou.
como me sinto envergonhada. Não teria feito “Nunca tive medo antes, mas pare pra
uma coisa dessas por nada.” pensar! Como seria terrível encontrar um leão
Givens tomou a mão estendida. Ele a selvagem de verdade! Pobre Bill! Estou tão con-
segurou por um tempo enquanto permitia que tente que você veio comigo!”
a generosidade de sua natureza superasse a dor O’Donnel estava sentado na varanda do
pela perda de Bill. Por fim estava claro que ele a rancho.
tinha perdoado. “Olá Rip!”, ele gritou – “é você?”
“Por favor não fale mais nisso, senhorita “Ele veio comigo”, disse Josefa. “Eu me
Josefa. O jeito do Bill era o suficiente para assus- perdi e estava ficando tarde.”
tar qualquer dama. Deixe que eu explicarei tudo “Muito agradecido”, disse o rei do gado.
para os rapazes.” “Pare um pouco aqui, Rip, e vá pro acampamen-
“Você tem certeza de que não me odeia?”, to de manhã.”
Josefa se aproximou dele, impulsivamente. Os Mas Givens não podia. Tinha que ir até o
olhos dela eram doces – oh, doces e implorando acampamento. Havia um bando de novilhos que
uma graciosa penitência. “Eu odiaria quem quer tinham de ser levados com o nascer do sol. Ele
que matasse meu gatinho. E que ousado e nobre disse boa-noite, e foi-se embora.
de sua parte arriscar levar um tiro quando você Uma hora mais tarde, quando as luzes ti-
tentava salvá-lo! Muito poucos homens fariam nham se apagado, Josefa, já no seu robe noturno,
isso!” A vitória emergia da derrota! O circense foi até sua porta e chamou o rei em seu próprio
transformara-se em drama! Bravo, Ripley Givens! quarto, do outro lado do corredor de tijolos.
Agora era o crepúsculo. É claro que a se- “Ei papai, você sabe aquele velho leão
nhorita Josefa não podia cavalgar até o seu ran- mexicano que eles chamam de ‘Demônio da ore-
cho sozinha. Givens recolocou a sela em seu pô- lha cortada’ – aquele que matou Gonzales, o pas-
nei apesar dos olhares reprovadores do animal, tor do sr. Martin, e cerca de cinquenta novilhos
e cavalgou com ela. Lado a lado eles galoparam no pasto da Salada? Bem, hoje de tarde acertei
70 O QUARTO DA CLARABOIA 71

as contas com ele lá na Encruzilhada do Cavalo


Branco. Coloquei duas balas na cabeça dele com
minha 38 enquanto ele estava no pulo. Eu o re-
conheci pelo corte na sua orelha esquerda que o
velho Gonzales fez com seu facão. Você não teria
dado um tiro melhor, papai.”
“Bom pra você!”, trovejou Ben Sussur-
rante da escuridão de seu aposento real.

NOS BRAÇOS DE MORFEU
 

Nunca consegui entender exatamente


como Tom Hopkins chegou a fazer aquela bo-
bagem, pois ele tinha passado um ano inteiro na
faculdade de medicina – antes de herdar uma
fortuna de sua tia – e era considerado bom em
terapêutica.
Nós estivéramos fazendo uma ligação
juntos naquela noite, e depois Tom correu para
meus quartos, no andar superior, para pegar um
cachimbo e conversarmos, antes que ele fosse
para seu luxuoso apartamento. Assim que pisei
no outro quarto, ouvi Tom dizer:
“Ei Billy, vou tomar uns quatro gramas
de quinino, se você não se importar – estou todo
azul e tremendo. Acho que devo estar gripado.”
“Tudo bem”, respondi. “A garrafa está
na segunda prateleira. Tome uma colherada da-
quele elixir de eucalipto junto. Ajuda a tirar o
gosto amargo.”
74 O QUARTO DA CLARABOIA Nos braços de Morfeu 75

Depois que voltei, sentamos perto do fogo Fiquei sozinho com Tom, que nós tínha-
e acendemos nossos cachimbos. Em cerca de oito mos colocado num sofá. Ele estava bem quieti-
minutos Tom afundou para trás num leve colapso. nho, e seus olhos estavam semicerrados. Come-
Fui direto até a prateleira de remédios e cei meu trabalho de tentar mantê-lo acordado.
inspecionei. “É, meu velho”, eu disse, “essa foi por
“Seu caipira incurável!”, gritei. “Olhe só o pouco, mas você conseguiu se safar. Quando
que o dinheiro faz com o cérebro de um homem!” você estava indo para as aulas, Tom, algum pro-
Lá estava a garrafa de morfina sem a fessor chegou a mencionar que ‘morfia’ e ‘quinia’
tampa, assim como Tom a deixara. se escrevem diferente, especialmente em doses
Chamei outro jovem médico que mora- de quatro gramas? Mas não vou jogar nada na
va no andar de cima, e o mandei chamar o velho sua cara até que você esteja de pé. Mas você de-
dr. Gales, que morava a duas esquinas dali. Tom via ser um farmacêutico, Tom, você é bem quali-
Hopkins tinha dinheiro demais para ser atendido ficado para preencher prescrições.”
somente por jovens médicos. Tom me olhou de leve e com um sorriso tolo.
Quando Gales chegou, nós aplicamos “B`ly”, ele murmurou, “eu mi sintu comu
em Tom os tratamentos mais caros que os recur- um beija-flô voandu em volta das rosa mais ca-
sos da profissão permitem. Depois dos remédios ras. Nem mi amoli. Vou durmi agora.”
mais drásticos, nós lhe demos citrato de cafeína E ele dormiu, por cerca de dois segun-
em doses frequentes e café forte, e o fizemos ca- dos. Eu o chacoalhei pelo ombro.
minhar entre nós dois. O velho Gales o beliscou, “Escute, Tom”, eu disse, severamente,
e o estapeou na cara, e deu duro pelo cheque “assim não vai dar. O médico disse que você tem
grande que ele podia ver se aproximando. O jo- que ficar acordado por pelo menos mais uma
vem médico do outro andar deu um senhor chu- hora. Abra os olhos. Você ainda não está comple-
te em Tom, de todo coração, e depois me pediu tamente seguro, você sabe. Acorde.”
desculpas. Tom Hopkins pesa quase cem quilos. Ele
“Eu não podia evitar”, ele disse. “Nun- me deu outro sorrisinho solene, e caiu num sono
ca tinha chutado um milionário antes na minha pesado. Eu podia ter tentado movê-lo, mas seria
vida. Talvez eu nunca mais tivesse outra opor- mais fácil tentar convencer Cleópatra a fazer a val-
tunidade.” sa da agulha comigo. Tom começou a estertorar, e
“Bem”, disse o dr. Gales, após algumas ho- isso, associado à morfina, significava perigo.
ras, “ele vai aguentar. Mas mantenha-no acordado Então comecei a pensar. Eu não podia
por mais outra hora. Você pode fazer isso falando erguer seu corpo; eu deveria tentar excitar sua
com ele, e sacudindo-o ocasionalmente. Quando mente. “Deixe ele com raiva”, foi uma ideia que
seu pulso e sua respiração estiverem normais, dei- se sugeriu. “Ótimo!”, pensei; mas como? Não
xe-o dormir. Vou deixá-lo com você agora.” havia uma fresta na armadura de Tom. Querido
76 O QUARTO DA CLARABOIA Nos braços de Morfeu 77

colega! Ele tinha sido sempre de boa natureza, ela deve pensar sobre aquela particular classe de
um cavalheiro galante, bom e verdadeiro e cla- pessoas que ela aprendeu a adorar – o cavalheiro
ro como o raio de sol. Ele era de algum lugar do sulista? Me desculpe, Hopkins, se eu tive que fa-
Sul, onde ainda havia ideais e um código. Nova lar essas coisas, mas é que você escondeu tão bem
York o tinha encantado, mas não estragado. Ele as coisas, e fingiu tão bem seu papel que eu teria
tinha aquela velha reverência cavalheiresca com jurado que você estava acima de tais truques in-
as mulheres, isto – Eureca! – aí estava a minha dignos.”
ideia! Trabalhei a coisa por um minuto ou dois Pobre Tom. Eu mal podia evitar de rir na
na minha imaginação. Ri comigo mesmo pensan- cara dele, vendo-o lutando contra os efeitos do
do em usar uma coisa dessas com o velho Tom opioide. Ele estava claramente bravo, e eu não
Hopkins. Então o peguei pelo ombro e o balan- podia culpá-lo. Tom tinha um temperamento
cei até que suas orelhas se mexeram. Ele abriu os sulista. Seus olhos estavam abertos agora, e eles
olhos preguiçosamente. Assumi uma expressão mostravam um brilho ou dois de fogo. Mas a
de escárnio e desprezo, e apontei meu dedo em droga ainda enevoava sua mente e enrolava sua
direção a seu nariz. língua.
“Escute-me, Hopkins”, eu disse, num “F-f-fingir o quê?”, ele gaguejou, “eu v-
tom incisivo e claro, “eu e você temos sido bons v-vou te queblá.”
amigos, mas quero que você saiba que, no futu- Ele tentou se levantar do sofá. Com todo
ro, minhas portas estarão fechadas para qualquer seu peso, ele estava muito fraco agora. Eu o em-
homem que age como um canalha, como você purrei de volta com um braço. Ele ficou lá arden-
fez.” do como um leão numa armadilha.
Tom não parecia estar o mínimo interessado. “Isso vai te segurar por um tempo, seu
“Qual u poblema, Billy?”, ele murmu- velho doido”, disse para mim mesmo. Levantei e
rou, comportadamente. “Tuas loupas não cabim acendi meu cachimbo, porque estava precisando
ni você?” fumar. Andei um pouco, me congratulando pela
“Se eu estivesse no seu lugar”, continuei, minha ideia brilhante.
“que, graças a Deus, eu não estou, acho que te- Ouvi um ronco. Olhei ao redor. Tom es-
ria medo de fechar meus olhos. E quanto àquela tava dormindo de volta. Fui até lá e lhe dei um
garota que você deixou esperando entre os soli- soco na mandíbula. Ele olhou para mim calmo
tários pinheiros do Sul – a garota que você es- e sem reclamar, como um idiota. Fumei do meu
queceu desde que herdou todo aquele dinheiro? cachimbo e passei para ele.
Ah, eu sei do que estou falando. Enquanto você “Quero que você se recupere e saia daqui
era um estudante pobre de medicina, ela era boa o mais rápido que puder”, eu disse, insultando-o.
o suficiente para você. Mas agora, já que você é “Já te disse o que penso de você. Se você tiver
um milionário, é diferente. Eu me pergunto o que qualquer honra ou honestidade ainda, você irá
78 O QUARTO DA CLARABOIA Nos braços de Morfeu 79

pensar duas vezes antes de tentar se associar com Encontrei Tom de pé e vestido quando
cavalheiros. Ela é uma garota pobre, não é?”, fa- acordei na manhã seguinte. Ele tinha voltado
lei com desprezo. completamente a si, com a exceção de nervos em
“Um pouco simples e fora da moda de- frangalhos e uma língua que parecia uma lasca
mais para nós, já que agora nós temos nosso di- de carvalho branco.
nheiro. Teria vergonha de andar na Quinta Ave- “Que idiota eu fui”, ele disse, pensativa-
nida com ela, não teria? Hopkins, você é quaren- mente. “Lembro ter pensado que aquela garrafa
ta e sete vezes pior do que um cafajeste. Quem de quinino parecia esquisita enquanto eu estava
se importa com o seu dinheiro? Eu não. Aposto tomando a dose. Tiveram muito trabalho pra cui-
que aquela garota não. Quem sabe se você não ti- dar de mim?”
vesse, seria um pouco mais homem. Do jeito que Eu lhe disse que não. Sua memória pa-
está, você fez um idiota de si mesmo, e” – achei recia estar toda afetada com todo o incidente.
aquilo bem dramático – “talvez tenha partido um Concluí que ele não se lembrava de minhas ten-
coração fiel.” (O velho Tom Hopkins partindo tativas para mantê-lo acordado, e decidi deixar
um coração fiel!) “Deixe-me livrar de você assim as coisas assim. Uma outra hora, pensei, quando
que eu puder.” ele estivesse se sentindo melhor, nós iríamos nos
Dei as costas para Tom, e pisquei para divertir com isso.
mim mesmo num espelho. Eu o ouvi se mexen- Quando Tom estava quase indo ele pa-
do, e virei rápido. Não queria cem quilos caindo rou, com a porta aberta, e apertou minha mão.
em mim pela retaguarda. Tom tinha apenas par- “Muito agradecido, meu velho amigo”,
cialmente virado, e estava deitado com um bra- ele disse, quietamente, “por cuidar tão bem de
ço em cima do rosto. Ele falou algumas palavras mim – e pelo que você disse. Vou agora telegrafar
ainda mais claras do que antes. para aquela garota.”
“Eu nunca telia – fa-fa-lado assim – com
fossê, Billy, mesmo si as pessoas – mentissi sobre
fossê. Mas azim que eu pudé f-ficar de pé – fou
queblá seu pescoço – não esqueça.”
Eu me senti um pouquinho envergo-
nhado na hora. Mas era para salvar o Tom. De
manhã, quando eu explicasse, nós dois daríamos
uma boa risada por causa daquilo.
Em vinte minutos Tom caiu num sono
leve. Senti seu pulso, ouvi sua respiração, e dei-
xei-o dormir. Tudo estava normal, e Tom estava a
salvo. Fui até o outro quarto e me joguei na cama.
AS ROSAS VERMELHAS
DE TONIA

Um cavalete queimou na Ferrovia Inter-


nacional. O expresso que ia para o Sul, vindo de
San Antonio, foi interrompido pelas quarenta e
oito horas seguintes. Naquele trem estava o cha-
péu de Páscoa de Tonia Weaver.
Espirition, o mexicano, que havia sido
enviado por cinquenta quilômetros numa carreta
desde o Rancho Espinosa para buscá-lo, voltou
dando de ombros e com as mãos vazias, exceto
por um cigarro. Na pequena estação, Nopal, ele
ficara sabendo do atraso do trem e, como não re-
cebera ordens para esperar, pôs seu pônei, nova-
mente, no caminho do rancho.
Agora, se alguém supuser que a Páscoa,
a Deusa da Primavera, se importa mais com al-
gum desfile que tem depois da igreja na Quin-
ta Avenida do que com seu leal séquito que se
reúne num casarão em Cactus, Texas, então esse
alguém está cometendo um erro. As esposas e as
82 O QUARTO DA CLARABOIA As rosas vermelhas de Tonia 83

filhas dos rancheiros do condado de Frio flores- de ovelhas do Vale Quintana. Ambos achavam
cem chapéus e enfeites novos de Páscoa como se Tonia Weaver adorável, especialmente quando
faz em qualquer lugar, e o Sudeste é, por um dia, ela dizia se ferrar para as ferrovias e ameaçava
uma mistura de particulares aparições, Paris e os homens. Ambos teriam dado suas epidermes
paraíso. E agora era a Sexta-feira Santa, e o cha- para fazer para ela um chapéu de Páscoa, mais
péu novo de Páscoa de Tonia Weaver ruborizava alegremente do que um avestruz daria seu bico
no ar do deserto em um vagão impotente, além ou a garça-azul daria sua própria vida. Porém,
do cavalete queimado. No sábado à tarde, as ga- nenhum dos dois tinha como suprir aquela triste
rotas Rogers, do Rancho Cadarço, Ella Reeves, de carência para o sabático. O rosto marrom e pro-
Âncor-O e as sras. Bennet e Ida, do Vale Verde, fundo de Pearson e seu cabelo claro bronzeado
iriam se congregar em Espinosa e levar Tonia. pelo sol lhe davam a aparência de um jovem es-
Com seus chapéus de Páscoa e vestidos cuidado- tudante de quem uma das profundas e insondá-
samente dobrados para não se sujarem de poeira, veis melancolias da idade havia tomado conta. A
o belo bando iria, então, alegremente, cruzar os desgraça de Tonia se gravava no fundo de sua
dez quilômetros até Cactus, onde, no dia seguin- alma. Thompson Burrows era o mais hábil e dó-
te, elas iriam se colocar em formação, subjugar os cil. Ele provinha de alguma região do Leste, usa-
homens, homenagear a Páscoa e causar um ciu- va gravatas e sapatos, e ficava bobo na presença
mento alvoroço entre os lírios do campo. daquela mulher.
Tonia sentou-se nos degraus do Rancho “O poço artesiano de Sandy Creek”, dis-
Espinosa, e tristemente procedeu a chicotear um se Pearson, tentando arrumar, mal e mal, a situa-
tufo de prosópis encaracolado. Ela tinha o cenho ção, “encheu com a última chuva.”
franzido e fazia beicinho, esforçando-se para ir- “Ah é? Encheu?”, disse Tonia ferinamen-
radiar uma aura de desagrado e tragédia. te. “Obrigada pela informação. Imagino que um
“Odeio ferrovias”, ela anunciou com fir- chapéu novo não seja nada para você, sr. Pearson.
meza. “E homens. Homens fingem que entendem Imagino que você acha que uma mulher deve
dessas coisas. Será que alguém pode dar um bom simplesmente vestir um velho Stetson de cinco
motivo para um cavalete pegar fogo? O chapéu anos atrás sem mudar coisa alguma, como você
de Ida Bennet vai ser arrematado com violetas. E faz. Se o seu poço artesiano tivesse ao menos apa-
eu, eu não vou dar um passo sequer rumo a Cac- gado o incêndio daquele cavalete, então acho que
tus sem um chapéu novo. Se eu fosse um homem, você teria algum motivo para falar sobre ele.”
conseguiria um.” “Eu lamento muito”, disse Burrows, já
Desconfortavelmente, dois homens ou- de sobreaviso pelo destino da fala de Pearson,
viam esta depreciação de seu gênero. Um era “e fico triste que não tenha recebido seu chapéu,
Wells Pearson, capataz do Rancho Mucho Calor. srta. Weaver – sinto muito, muito. Se houvesse
O outro era Thompson Burrows, o próspero dono algo que eu pudesse fazer...”
84 O QUARTO DA CLARABOIA As rosas vermelhas de Tonia 85

“Não se preocupe”, interrompeu Tonia, clarou Burrows, olhando para seu relógio. “Ora
com doce sarcasmo. “Se houvesse qualquer coisa vejam só, é quase cinco horas! Preciso voltar ao
que você pudesse fazer, você já estaria fazendo, é meu redil a tempo de cercar aquelas ovelhas doi-
claro. Não há.” das.”
Então Tonia fez uma breve pausa. Uma Eles pareciam ter sido atacados por uma
súbita centelha de esperança brilhou em seu grave necessidade de sair dali correndo. Deram-
olho. O cenho franzido fraquejou, e ela teve uma lhe um adeus cerimonioso, e então se apertaram
inspiração. as mãos com a elaborada e solene cortesia de
“Há uma loja lá na Encruzilhada do Car- quem é do Sudoeste.
valho Velho, em Nueces”, ela disse, “que vende “Espero vê-lo novamente em breve, sr.
chapéus. Eva Rogers conseguiu o dela lá. Ela dis- Pearson”, disse Burrows.
se que era de última moda. Talvez ainda tenham “O mesmo”, disse o vaqueiro, com o ros-
alguns. Mas o Carvalho Velho fica a trinta quilô- to sério de alguém cujo amigo está prestes a em-
metros.” barcar numa caça à baleia. “Ficaria feliz de vê-lo
As esporas dos dois homens, que se er- em Mucho Calor qualquer hora dessas, se estiver
gueram prontamente, tiniram, e Tonia quase sor- passando por perto.”
riu. Os cavaleiros, afinal de contas, não haviam Pearson montou em Papa-Léguas, o
todos desaparecido no pó, nem suas armaduras mais robusto dos cavalos de Frio, e deixou ele se
sido duramente atingidas pela ferrugem. acalmar durante um minuto, como sempre fazia
“É claro”, disse Tonia, olhando pensati- quando o montava, mesmo no fim do dia.
vamente para uma nuvem branca velejando pela “Qual era o tipo daquele chapéu, srta.
abóbada cerúlea, “ninguém conseguiria ir e vol- Tonia”, ele chamou, “que você pediu de San An-
tar do Carvalho Velho até a hora em que as meni- tonio? Sinto muito por ele.”
nas vão me chamar amanhã. Bem, acho que nessa “Era um chapéu de palha”, disse Tonia,
Páscoa eu vou ter que ficar em casa.” “da última moda, é claro, enfeitado com rosas
E então ela sorriu. vermelhas. É disso que eu gosto: rosas verme-
“Bem, srta. Tonia”, disse Pearson, pe- lhas.”
gando seu chapéu, manhoso como um bebê dor- “É a cor que melhor combina com seu
mindo. “Acho que vou pegar meu caminho de rosto e seu cabelo”, disse Burrows, admirando-a.
volta até Mucho Calor. Há umas lenhas que têm “É do que eu gosto”, disse Tonia. “De
que ser cortadas de manhãzinha, e eu e o Papa- todas as flores, deem-me as rosas vermelhas. Fi-
Léguas temos que estar lá. É uma pena que seu quem com as rosadas e as azuis para vocês. Mas
chapéu tenha ficado retido. Talvez consertem o de que adianta isso, quando cavaletes queimam
tal cavalete até a Páscoa.” e te deixam sem nada? Vai ser uma Páscoa pobre
“Tenho que ir também, srta. Tonia”, de- pra mim!”
86 O QUARTO DA CLARABOIA As rosas vermelhas de Tonia 87

Pearson tirou seu chapéu e galopou Papa- peito de Pearson. Na presença de Tonia, sua voz
Léguas até o curral a leste do Rancho Espinosa. era doce como a de um sapo-boi, no verão, em
À medida que seu estribo rufava contra seu juncal. Com sua risada alegre, porém, coe-
os arbustos, o alazão de pernas compridas de lhos, a um quilômetro de distância, tapavam os
Burrows chegou por fim ao acesso estreito da ouvidos, e mesmo plantas sensíveis fechavam
pradaria a sudoeste. suas pétalas, temerosas.
Tonia guardou seu chicote e foi até a sala. “Você está levando suas ovelhas pra bem
“Eu sinto muito, minha filha, pelo que longe do rancho, hein, vizinho?”, perguntou Pearson,
aconteceu com o chapéu”, disse sua mãe. enquanto Papa-Léguas se alinhava com o alazão.
“Ah, não se preocupe mãe”, disse Tonia, “Trinta quilômetros”, disse Burrows, pa-
calmamente. “Eu terei um, novinho em folha, até recendo um pouco abatido. A risada de Pearson
amanhã.” acordou uma coruja que estava num carvalho per-
Quando Burrows alcançou o fim da to do rio, a meio quilômetro de distância dali.
pradaria, ele puxou seu alazão para a direita, e “Está bem então, senhor pastor. Eu mes-
deixou-o seguir, caprichosamente, um local pelo mo gosto de uma partida honesta. Nós somos
qual corria, já seco, o leito de um arroio. Então, dois lelés, cada qual com seu corcel, numa caça
sobre um monte vinícola, apinhado de arbustos, ao chapéu em meio à floresta. Mas vou avisan-
o cavalo disparou, emergindo, por fim, com um do, Burr, limpe seu próprio curral. A largada deu
relincho de satisfação, numa pradaria mais ele- empate, e quem conseguir o chapéu vai subir no
vada, verde-grama e pontilhada com o verde- pódio em Espinosa.”
claro de prosópis e suas renovadas folhagens de “Você tem um bom pônei aí”, disse Bur-
primavera. Burrows barrou o alazão de ir para rows, fitando o porte cilíndrico do corpo e as pa-
a esquerda, pegou a velha trilha dos índios que tas sapateantes que se moviam com a regularida-
seguia Nueces pelo sul e que passava, trinta qui- de de um trem a vapor de Papa-Léguas. “É uma
lômetros pelo sudeste, por Carvalho Velho. Nes- corrida, é claro; mas não acho que você vai sair
te ponto, Burrows pôs o alazão a trotar unifor- disparando por aí, vai? Sugiro que a gente viaje
memente. Enquanto ele se arrumava na sela para juntos até chegar na reta final.”
a longa viagem, ouviu o tamborilar de cascos, o “Serei sua companhia”, concordou Pe-
som seco de galhos sendo quebrados por um es- arson, “e eu admiro seu bom-senso. Se há algum
tribo, o grito de um comanche, e Wells Pearson chapéu em Carvalho Velho, um deles estará sobre
surgiu do meio dos arbustos, do lado direito da os cabelos da srta. Tonia amanhã, e você não esta-
trilha, como um pintinho amarelinho precoce de rá na coroação. Mas Burr, sem me gabar, pra uma
um ovo de Páscoa verde-escuro. cavalgada, este teu bicho não vai aguentar.”
Exceto na presença da feminilidade des- “Pois o meu cavalo contra o teu”, ofere-
lumbrante, a melancolia não achava morada no ceu Burrows, “como a srta. Tonia vestirá em Cac-
88 O QUARTO DA CLARABOIA As rosas vermelhas de Tonia 89

tus o chapéu que eu irei levar para ela amanhã.” um, e um de nós volta antes com ele e o outro
“Aceito!”, gritou Pearson. “Só que ah, não.”
isto é como se fosse roubar cavalo pra mim! Eu “Nunca houve duas almas”, Pearson
posso usar esse alazão como um cavalo para se- proclamou para as estrelas, “batendo em um úni-
nhoras quando – quando alguém vier visitar Mu- co coração como eu e você. Você e eu podería-
cho Calor – e...” mos estar cavalgando um unicórnio e pensando
O rosto escuro de Burrow carregou-se a mesma coisa.”
tanto, subitamente, que o cowboy interrompeu a Um pouco depois da meia-noite, os cava-
frase. Mas Pearson não era do tipo que se sentia leiros chegaram no Carvalho Velho. As cerca de
pressionado por muito tempo. meia centena de casas do vilarejo estavam escu-
“Qual é a desse negócio de Páscoa, hein, ras. Em sua única rua, a grande loja de madeira
Burr?”, ele perguntou, divertidamente. “Por que se erguia fechada e trancada.
todas as mulheres têm, por regra, que ter chapéus Após algum tempo, os cavalos foram
novos ou complicar-se todas tentando consegui- atados e Pearson estava alegremente batendo na
los?” porta do velho Sutton, o dono da loja.
“É um desses mandamentos sazonais”, O cano de uma Winchester surgiu atra-
explicou Burrows. “É uma ordem do Papa, ou vés de uma portinhola, seguido de um breve in-
algo assim. E tem algo a ver com o Zodíaco. Não quérito.
sei exatamente, mas acho que foi inventado pelos “Wells Pearson, de Mucho Calor, e Bur-
egípcios.” rows, de Vale Verde”, foi a resposta. “Nós que-
“Deve ser uma festa boa se os gentios remos comprar algumas mercadorias na loja.
conseguiram pôr suas mãos nela”, disse Pearson, Desculpe acordá-lo a esta hora, mas são coisas de
“ou do contrário Tonia não iria ter nada a ver primeira necessidade. Vamos, tio Tommy, abra
com isso. E fazem isso na igreja, também. Agora, aí.”
imagine só se só tiver um chapéu em Carvalho Tio Tommy estava lerdo, mas, por fim,
Velho, Burr!” conseguiram colocá-lo atrás do balcão, ilumina-
“Então”, disse Burrows, soturnamente, do por um lampião de querosene, e contar-lhe de
“o melhor homem dentre nós irá levá-lo a Espi- sua necessidade urgente.
nosa.” “Chapéus de Páscoa?”, disse o tio
“Ah, cara!”, gritou Pearson, jogando seu Tommy, sonolento. “Ora, sim, eu devo ter um ou
chapéu para o alto e pegando-o de volta, “acho dois sobrando. Só pedi uma dúzia nesta prima-
que nunca vi um pastor melhor do que você. vera. Vou mostrar pra vocês.”
Você fala bem e é apropriado à ocasião. E se tiver Enfim, tio Tommy Sutton era um comer-
mais do que um?” ciante, estando ele meio dormindo ou meio acor-
“Aí”, disse Burrows, “nós escolheremos dado. Dentro de umas caixas empoeiradas de pa-
90 O QUARTO DA CLARABOIA As rosas vermelhas de Tonia 91

pelão debaixo do balcão, ele tinha dois chapéus topo de um monte, o Rancho Espinosa, um pon-
de primavera que sobraram. Mas eis que, apesar to branco contrastando com um torrão repleto de
de toda sua probidade comercial naquele come- teixos, a cinco quilômetros.
cinho de manhã de sábado, eles eram chapéus de A visão fez Pearson se erguer da posição
duas primaveras anteriores, e um olho feminino em que se inclinara sobre a sela. Ele sabia o que
teria detectado a fraude sem sequer piscar. Mas Papa-Léguas podia fazer. O alazão estava espu-
para o exame estulto de um vaqueiro e um pastor mando, e tropeçando frequentemente; Papa-Lé-
de ovelhas, eles pareciam novos, com o frescor guas estava suando por todos os poros.
do então presente abril. Pearson virou-se para o pastor e riu:
Os chapéus eram de um tipo conheci- “Adeus, Burr”, e acenou. “É uma corrida agora.
do então como “roda de vagão”. Eram de palha Estamos na reta final.”
dura, avermelhados e com abas chatas. Ambos Ele pressionava Papa-Léguas com os jo-
eram exatamente iguais, e rendilhados luxurio- elhos, indo em direção a Espinosa. Papa-Léguas
samente em suas coroas com rosas artificiais, ma- começou a galopar, virando a cabeça e relinchan-
duras, imaculadas e brancas. do, como se estivesse estado um mês pastando
“Isso é tudo?”, perguntou Pearson. “Que em grama verde.
seja. Sem muita escolha aqui, Burr. Escolha um.” Pearson cavalgou trinta metros e ouviu o
“Eles são da última moda”, mentiu tio inconfundível som da alavanca de uma Winches-
Tommy. “Você os veria na Quinta Avenida, se ter disparando um cartucho no cano. Ele caiu
você estivesse em Nova York.” seco em cima de seu cavalo antes que o barulho
Tio Tommy embrulhou e amarrou com do rifle chegasse a seus ouvidos.
cuidado cada chapéu em um metro de chita es- É possível que Burrows quisesse apenas
cura para proteger. Pearson amarrou um primo- aleijar o cavalo – ele era bom de mira, o suficien-
rosamente na correia de sua sela; o outro virou te, para acertar o tiro sem machucar o cavaleiro.
parte do fardo de Papa-Léguas. Agradeceram e Mas a bala acertou Pearson, que se curvou, e atin-
se despediram de tio Tommy, e foram a meio ga- giu o pescoço de Papa-Léguas. O cavalo caiu e o
lope madrugada adentro. cowboy bateu a cabeça no chão duro da estrada;
Os homens cavalgaram com toda sua nenhum deles tentou se mexer.
habilidade. Foram mais lentamente no caminho Burrows cavalgou sem parar.
de volta. As poucas palavras que trocaram não Em duas horas, Pearson abriu os olhos e
chegaram a ser hostis. Burrows tinha uma Win- fez um inventário. Conseguiu se levantar e man-
chester sob a perna esquerda junto à sela. Pear- cou até onde Papa-Léguas estava deitado.
son tinha uma de seis tiros na cintura. Era assim Papa-Léguas estava deitado ali, mas pa-
que os homens cavalgavam no condado de Frio. recia confortável. Pearson o examinou e notou
Às sete e meia da manhã, avistaram, do que a bala só tinha passado de raspão. Ele havia
92 O QUARTO DA CLARABOIA As rosas vermelhas de Tonia 93

sido atingido temporariamente, mas não estava amigas, que “rodas de vagão” não podiam ser ves-
seriamente machucado. Porém estava cansado, e tidos, estando já há três estações fora de moda.
estava caído sobre o chapéu da srta. Tonia, co- “Vista seu chapéu velho e venha, Tonia”,
mendo folhas de um arbusto de prosópis crescia elas a apressavam.
perto da estrada. “Para o Domingo de Páscoa?”, ela per-
Pearson fez o cavalo se levantar. O cha- guntava. “Prefiro morrer.” E soluçava de novo.
péu de Páscoa, que se soltara da sela, estava ali Os chapéus das afortunadas eram curvos
em seu embrulho de chita, uma coisa disforme e entortados, à moda da última e solene procla-
devido ao tempo que ficara debaixo da sólida car- mação primaveril.
caça de Papa-Léguas. Então, Pearson desmaiou Um ser estranho veio cavalgando dentre
e caiu de cabeça, novamente, sobre o pobre cha- os arbustos, e ali colocou seu cavalo languidamen-
péu, amassando-o sob seus ombros feridos. te. Ele estava manchado e desfigurado com o ver-
É difícil matar um cowboy. Em meia de da grama e o musgo das estradas pedregosas.
hora ele se ergue de novo – o suficiente para uma “Olá, Pearson”, disse o Papai Weaver.
mulher desmaiar duas vezes e ainda tomar um “Parece que você se meteu numa boa. Que é que
sorvete, no meio tempo, para tentar se recuperar. você tem amarrado na sela – um sapo no saco?”
Levantou-se com cuidado e achou Papa-Léguas, “Ora, vamos lá, Tonia”, disse Betty Ro-
que estava ocupado com a grama próxima. Ele gers. “Nós não podemos esperar mais. Guarda-
amarrou o desafortunado chapéu à sela nova- mos um lugar na charrete para você. Esqueça o
mente e ali conseguiu subir, também, após mui- chapéu. Essa musselina charmosa que você tem
tos fracassos. fica uma beleza com qualquer chapéu velho.”
À tarde, um alegre e alvoroçado grupo Pearson estava lentamente desamarran-
esperava na frente do Rancho Espinosa. As garo- do a coisa estranha de sua sela. Tonia olhou para
tas Rogers estavam em sua nova charrete, as Ân- ele com uma esperança súbita. Pearson era um
cor-O em suas roupas e o povo do Vale Verde – a homem que criava esperança. Ele a soltou e en-
maioria mulheres. E cada uma vestia seu novo tregou para ela, cujos dedos rapidamente rasga-
chapéu de Páscoa, mesmo estando nas pradarias ram a embalagem.
solitárias, pois queriam muito brilhar em honra “Foi o melhor que pude fazer”, disse Pe-
do festival que se aproximava. arson, com vagar. “O que Papa-Léguas e eu fize-
No portão estava Tonia, com lágrimas mos com ele completa tudo.”
inconfundíveis em suas bochechas. Em sua mão “Oh, oh! É do tamanho exato”, soou a
estava o chapéu de Carvalho Velho que trouxera voz esganiçada de Tonia. “E rosas vermelhas! Es-
Burrows, que, com suas rosas brancas, odiadas, a perem até eu vesti-lo!”
fazia soluçar. Pois suas amigas lhe estavam con- Ela disparou até o espelho e voltou, lu-
tando, com a alegria incontida de verdadeiras zente, radiante, florida.
94 O QUARTO DA CLARABOIA 95

“Oh, vermelho não combina com ela?”,


as garotas soaram em uníssono. “Vamos logo,
Tonia!”
Tonia parou por um momento ao lado de
Papa-Léguas.
“Obrigada, obrigada, muito obrigada”,
ela disse, feliz. “É bem o que eu precisava. Você
não quer vir a Cactus comigo amanhã, para ir-
mos na igreja?”
“Se eu puder”, disse Pearson. Ele olhava
curiosamente para o chapéu dela, e então deu um
débil sorriso.
Tonia voou para a charrete como um
pássaro. Os veículos se foram para Cactus.
“O que você andou fazendo, Pearson?”,
perguntou Papai Weaver. “Você não parece tão
bem quanto de costume.”
“Eu?”, disse Pearon. “Eu estava pintan-
do flores. Aquelas rosas estavam brancas quando
deixei Carvalho Velho. Me ajude a deitar, Papai
Weaver, porque não tenho mais tinta com que
pintar.”
O QUARTO DA CLARABOIA
Primeiro a sra. Parker iria te mostrar os
salões duplos. Você não ousaria interromper
sua descrição das vantagens e dos méritos dos
senhores que os ocuparam por oito anos. Então,
você teria que balbuciar a confissão de que você
não é nem médico nem dentista. O jeito da sra.
Parker de receber esta confissão era tal que, depois,
você nunca mais teria os mesmos sentimentos em
relação a seus pais, que não o treinaram numa
das profissões condizentes com os salões da sra.
Parker.
Depois você subiria um lance de escadas
e olharia para a parte de trás do segundo andar,
por $8. Convencido por seus modos de segundo
andar de que valia os $12 que o sr. Toosenberry
sempre pagava – até que fora embora para cuidar
de uma plantação de laranja na Flórida, perto de
Palm Beach, e onde a sra. McIntyre sempre passa-
va os invernos –, com quarto duplo e banho pri-
vado, você conseguiria balbuciar que queria algo
98 O QUARTO DA CLARABOIA O quarto da claraboia 99

ainda mais barato. muito maior. Era uma garota muito pequena, com
Se você sobrevivesse ao escárnio da sra. olhos e cabelo que continuaram crescendo mesmo
Parker, você era levado para dar uma olhada na depois que ela tinha parado, e sempre pareciam
grande sala do sr. Skidder, no terceiro andar. Ele dizer: “Deus do céu! Por que você não nos acom-
escrevia peças e fumava cigarros o dia todo. Mas panhou?”
quem quer que estivesse atrás de quartos era le- A sra. Parker lhe mostrou os salões du-
vado para visitar o dele para admirar os lambre- plos. “Neste armário”, ela dizia, “pode-se guardar
quins. Após cada visita, o sr. Skidder, do susto um esqueleto ou um anestésico ou carvão –”
causado pelo possível despejo, iria pagar algo de “Mas eu não sou nem médica nem dentis-
seu aluguel. ta”, disse a srta. Leeson, com um calafrio.
Então – oh, então – se você ainda estives- A sra. Parker lhe deu aquele olhar incré-
se de pé, com uma mão agarrando os três dólares dulo, gelado, presunçoso e carregado de pena que
molhados no seu bolso, e tendo roucamente pro- ela reservava para os que fracassavam em se qua-
clamado sua odiosa e culposa pobreza, então não lificar como médicos ou dentistas, e a levou até a
mais a sra. Parker seria sua cicerone. Ela buzinaria parte de trás do segundo andar.
bem alto a palavra “Clara”, te daria as costas, e “Oito dólares?”, disse a srta. Leeson. “Po-
desceria. Então Clara, a ama negra, iria te escoltar bre de mim! Eu não sou feita de grana. Sou só uma
por uma escada acarpetada, o quarto lance de es- pobre garota trabalhadora. Me mostre algo mais
cadas, e te mostrar o Quarto da Claraboia. Ele ocu- barato.”
pava 3x4 metros no meio de um salão. Em cada O sr. Skidder deu um pulo e espalhou bitu-
lado havia um armário escuro para guardar lenha cas de cigarro no chão ao ouvir a batida na porta.
e uma despensa. “Com licença, sr. Skidder”, disse a sra.
Nele havia um catre de ferro, uma pia e Parker, com um sorriso demoníaco ao vê-lo em-
uma cadeira. Uma estante era o guarda-roupa. palidecer. “Eu não sabia que você estava aqui.
Suas quatro paredes nuas pareciam se fechar so- Convidei esta dama para olharmos os seus lam-
bre você como os lados de um caixão. Sua mão ia brequins.”
até a garganta, você engasgava, você olhava para “Eles são belos demais”, disse a srta. Leeson,
cima como de um poço – e respirava novamente. sorrindo exatamente do jeito que os anjos sorriem.
Através do vidro da pequena claraboia, você via Depois que elas se foram, o sr. Skidder fi-
um quadrado de infinidade azul. cou muito ocupado apagando a heroína alta e de
“Dois dólar, é?” Clara diria em sua voz cabelos escuros de sua última peça de teatro (não
meio-arrogante, meio-caipira. produzida) e colocando uma mais baixinha, com
Um dia a srta. Leeson veio procurando cabelo claro e com traços vivazes.
por um quarto. Ela trazia uma máquina de es- “Anna Held vai delirar com isso”, disse
crever feita para ser carregada por uma senhorita o sr. Skidder para si mesmo, colocando seus pés
100 O QUARTO DA CLARABOIA O quarto da claraboia 101

contra os lambrequins e desaparecendo atrás de Especialmente o sr. Skidder, que a havia


uma nuvem de fumaça como alguma espécie de colocado como estrela no elenco de um drama
polvo aéreo. particular e romântico (mudo) na vida real. E espe-
Presentemente o toque de alarme chaman- cialmente o sr. Hoover, que tinha quarenta e cinco
do “Clara!” fez soar ao mundo a situação da bolsa anos, e era bobo, balofo e boboca. E especialmen-
da srta. Leeson. Um anãozinho escuro a acompa- te o bem jovem sr. Evans, que tossia em falso para
nhou, subiu a escadaria do Estige, mostrou-lhe a induzi-la a pedir que largasse o cigarro. Os homens
câmara mortuária com um lampejo de luz no topo votavam nela como “a mais bonita e mais divertida
e balbuciou as perigosas e cabalísticas palavras: que já existiu”, mas os narizes arrebitados nos de-
“Dois dólar!” graus de cima e de baixo eram implacáveis.
“Eu aceito!”, suspirou a srta. Leeson,
afundando na cama de ferro, que rangia. *
Todo dia a srta. Leeson saía para trabalhar. Rogo que vocês deixem o drama parar
À noite ela trazia papéis com coisas escritas neles e enquanto o Coro vem à frente e deixa cair uma
fazia cópias com sua máquina de escrever. Às vezes lágrima de um epicédio pela gordura do sr. Hoo-
ela não tinha trabalho à noite, então ela se sentava ver. Afinem as gaitas para a tragédia do sebo, para
nas escadas do alpendre com os outros moradores. o desastre da adiposidade, para a calamidade da
A srta. Leeson não havia sido feita para um quarti- corpulência. Falstaff podia ter rendido mais ro-
nho com claraboia no dia da criação. Ela era alegre mance por tonelada do que o magrelo Romeu por
de coração e cheia de gostos carinhosos e capricho- quilo. Um amante pode suspirar, mas ele não deve
sos. Uma vez ela deixou o sr. Skidder ler para ela bufar. No caminho de Momo vão-se todos os ho-
três atos de sua grande comédia (não publicada) “É mens gordos. Em vão bate o mais fiel dos corações
Não Garoto; ou, O Herdeiro do Metrô.” acima de um cinto de 30 centímetros. Avante Hoo-
Havia regozijo entre os senhores sempre ver! Hoover, quarenta e cinco anos, bobo, balofo e
que a srta. Leeson tinha tempo de sentar naque- boboca, poderia ter raptado a própria Helena; mas
les degraus por uma ou duas horas. Mas a srta. Hoover, quarenta e cinco anos, bobo, balofo e bo-
Longnecker, a loira alta que ensinava numa esco- boca é um peso-pesado arruinado. Nunca houve
la pública e dizia “Ora, convenhamos” para tudo chance para você, Hoover.
o que você dissesse, sentava no degrau no alto e Enquanto os moradores da casa da sra.
arrebitava o nariz. E a srta. Dorn, que atirava em Parker sentavam-se assim numa tarde de verão,
patos em Coney todo domingo e trabalhava numa a srta. Leeson olhou para o firmamento e soltou
loja de departamentos, sentava no degrau de bai- uma risadinha alegre:
xo e arrebitava o nariz. A srta. Leeson sentava no “Olhem só, lá está Billy Jackson! Eu consi-
degrau do meio e os homens rapidamente se agru- go vê-lo daqui também.”
pavam ao redor dela. Todos olharam para cima – alguns para
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as janelas dos arranha-céus, outros procurando a srta. Leeson não trazia mais formidáveis papéis
um avião, guiado por algum Jackson. para copiar em casa. E quando saía de manhã, ao
“É aquela estrela”, explicou a srta. Leeson, invés de trabalhar, ela ia de escritório em escri-
apontando com o dedinho. “Não aquela grande tório e deixava seu coração derreter em meio às
que pisca – a azul próxima dela. Eu consigo vê-la recusas frias transmitidas por garotos de recados
toda noite pela minha claraboia. Eu a chamei de insolentes. E isso continuou.
Billy Jackson.” Houve uma noite em que, penosamente,
“Ora, convenhamos!”, disse a srta. Longne- subiu as escadas do alpendre da sra. Parker na
cker. “Não sabia que você era astrônoma, srta. Leeson.” hora em que costumava voltar da janta no restau-
“Ah sim”, disse a pequena observadora rante. Só que ela não tinha jantado.
de estrelas, “eu sei tanto sobre elas quanto eu sei Assim que pisou no salão, o sr. Hoover a
qual vai ser o próximo estilo de mangas que vão viu e agarrou a sua oportunidade. Ele a pediu em
usar no outono que vem em Marte.” casamento, com sua gordura ameaçando encobri-
“Ora, convenhamos!”, disse a srta. Long- la como uma avalanche. Ela desviou, e se agarrou
necker. “A estrela à qual você se refere é Gamma, na balaustrada. Ele tentou pegar a mão dela, ela a
da constelação de Cassiopeia. É quase de segunda ergueu e o atingiu de leve no rosto. Passo a passo
magnitude, e sua passagem meridiana é –” ela subiu, se arrastando pelo corrimão. Ela pas-
“Ah”, disse o bem jovem sr. Evans, “acho sou o quarto do sr. Skidder, enquanto ele estava
que Billy Jackson é um nome muito melhor.” passando a limpo algumas direções cênicas para
“Eu também”, disse o sr. Hoover, desa- Myrtle Delorme (a srta. Leeson) em sua comédia
fiando a srta. Longnecker. “Eu acho que a srta. (recusada) para “dar uma pirueta da esquerda do
Leeson tem o mesmo direito de dar nome para as palco até os balcões”. Subindo a escada acarpeta-
estrelas que os velhos astrólogos tinham.” da, ela por fim se arrastou e abriu a porta do quar-
“Ora, convenhamos!”, disse a srta. Longnecker. to da claraboia.
“Será que é uma estrela cadente?”, per- Ela estava fraca demais para acender o
guntou a srta. Dorn. “Quando atirei em Coney, no lampião ou para trocar de roupa. Caiu na cama,
último domingo, caíram nove patos e um coelho.” seu frágil corpo debilmente pressionando as mo-
“Ele não aparece muito bem daqui”, disse las do colchão. E naquele Érebo do quarto da cla-
a srta Leeson. “Vocês tem que vê-lo do meu quar- raboia, ela lentamente levantou suas pálpebras
to. Sei que é possível ver estrelas até mesmo de pesadas, e sorriu.
dia do fundo de um poço. De noite meu quarto Pois Billy Jackson estava brilhando sobre
é como uma mina de carvão, e faz Billy Jackson ela, calmo, claro e constante através do céu. Não
parecer o grande broche de diamante com que a havia mais mundo para ela. Ela havia mergulhado
Noite fecha seu quimono.” em um poço de escuridão, sem ter senão aquele
Depois disso, houve um tempo em que pequeno quadrado de luz pálida vindo de uma
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estrela a que ela havia caprichosamente e, oh, sem Evidentemente o médico da ambulância
efeito dado o nome. A srta. Longnecker devia es- estava familiarizado com a localização de quartos
tar certa; devia ser Gama, da constelação de Cas- de claraboias. E se foi, subindo as escadas, quatro
siopeia, e não Billy Jackson. E, no entanto, ela não degraus de cada vez. A sra. Parker seguiu, como
podia deixar que fosse Gama. mandava a sua dignidade.
Enquanto ela estava deitada de costas, No primeiro lance ela já o encontrou tra-
tentou duas vezes levantar seu braço. Na terceira zendo a astrônoma nos braços. Ele parou e soltou
vez, ela conseguiu erguer dois dedos finos para todas as farpas que tinha na língua. Gradualmente
seus lábios e mandar um beijo do poço escuro a sra. Parker soçobrou como uma roupa tesa que
para Billy Jackson. Seu braço caiu pesadamente. cai do cabide. E continuaram havendo rugas dali
“Adeus Billy”, ela murmurou levemente. em diante na sua mente e no seu corpo. Às vezes
“Você está a milhões de quilômetros e não pisca algum pensionista curioso lhe perguntaria o que o
uma vez sequer. Mas você ficou aí onde eu podia médico lhe dissera.
te ver quando não havia mais nada além de escu- “Deixe estar”, ela responderia. “Se algum
ridão para ver... Milhões de quilômetros... Adeus, dia eu tiver perdão pelo que ouvi, estarei satisfeita.”
Billy Jackson.” O médico da ambulância caminhou com a
Clara, a ama negra, encontrou a porta paciente no colo entre a alcateia sempre curiosa, e
trancada às dez da manhã seguinte, e eles a ar- mesmo eles ficaram perturbados, pois o seu rosto
rombaram. Vinagre e tapinhas no rosto de nada era o de alguém que carrega um de seus próprios
adiantaram, então alguém correu até o telefone mortos.
para uma ambulância. Eles perceberam que ele não a colocou
Após algum tempo, ela chegou com todo na cama da ambulância da mesma maneira que
o estardalhaço, e o jovem médico, no seu casaco a carregava, e tudo o que disse foi: “Pé na tábua,
de linho branco, pronto, ativo, confiante, com seu Wilson”, para o motorista.
imberbe rosto meio afável, meio sombrio, dançou Isso é tudo. É uma história? No jornal da
seu caminho escadas acima. manhã seguinte eu vi uma pequena notícia, e a
“Oh, sim, doutor”, fungou a sra. Parker, última frase dela talvez possa ajudar vocês (como
como se o problema dela fosse haver problema na me ajudou) a costurar os incidentes.
casa. “Não consigo pensar qual possa ser o proble- A notícia informava sobre a chegada no
ma com ela. Nós tentamos tudo e nada a trouxe a Hospital Bellevue de uma jovem que havia sido
si. É uma jovem, uma tal de srta. Elsie – sim, srta. removida do n° 49 da rua ***, sofrendo de debili-
Elsie Leeson. Nunca antes em minha casa – ” dade por fome. Concluía com estas palavras:
“Qual quarto?”, gritou o médico numa voz “O dr. William Jackson, o médico da am-
terrível com que a sra. Parker não estava acostumada. bulância que atendeu o caso, disse que a paciente
“O quarto da claraboia. Ele –” irá se recuperar.”

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