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DELEUZE PARA AS FÉRIAS

Tradução: Z
Sumário

Nota para a edição italiana de Lógica do Sentido 1


Tornar audíveis forças não-audíveis por si mesmas 3
Oito anos depois: entrevista oitenta 6
A pintura inflama a escrita 9
Resposta a uma série de questões 13
Carta a Uno: como nós trabalhamos a dois 15
As praias de imanência 17
Prefácio para a edição italiana de Mil platôs 19
Resposta a uma questão sobre o sujeito 21
Carta-prefácio a Jean-Clet Martin 23
Prefácio: uma nova estilística 25
Nós inventamos o ritornelo 29
Nota para a edição italiana de Lógica do sentido

Gilles Deleuze

É difícil, para o autor, refletir sobre um livro escrito há alguns anos. Há uma tendência a
bancar o esperto ou a fingir um ar de indiferença ou, pior ainda, a se tornar seu próprio
comentador. Não que um livro seja necessariamente ultrapassado; mas, mesmo que ele continue
presente, trata-se de um presente “deslocado”. É necessário um leitor benevolente para lhe
restituir sua atualidade e lhe dar um prolongamento. Adoro este Lógica do sentido, porque ele
marca, para mim, uma ruptura: foi a primeira vez que busquei um pouco uma forma que não
fosse a da filosofia tradicional; e, depois, era um livro alegre, sob diversos aspectos; e, além disso,
eu o escrevi durante um período de enfermidade. Não tenho nada a mudar.
Seria melhor perguntar por que eu precisava de Lewis Carrol e de seus três grandes livros,
Alice no país das maravilhas, Alice através do espelho, Sílvia e Bruno. O fato é que Lewis Carroll
tem o dom de se renovar de acordo com as dimensões espaciais, os eixos topológicos. Ele é um
explorador, um experimentador. Em Alice no país das maravilhas, as coisas se passam em
profundidade e em altura: os subterrâneos, as covas, as galerias, as explosões, as quedas, os
monstros, os frutos da terra, mas também aquilo que vem do alto ou é aspirado em direção ao
alto, como o gato de Cheshire. Em Alice através do espelho, há, ao contrário, uma surpreendente
conquista das superfícies (sem dúvida, preparada pelo papel das cartas sem espessura no final de
Alice no país das maravilhas): não se trata mais de se enfiar na terra, mas de deslizar. Superfície
plana do espelho ou tabuleiro de xadrez. Até os monstros se tornam laterais. Pela primeira vez, a
literatura se declara, assim, arte das superfícies, agrimensura dos planos. Com Sílvia e Bruno, é,
novamente, outra coisa (talvez pré-figurada por Humpty Dumpty em Alice através do espelho):
duas superfícies coexistem com duas histórias contíguas – e dir-se-ia que essas duas superfícies se
enrolam de uma tal maneira que passamos de uma história à outra, enquanto que elas
desaparecem de um lado para reaparecer do outro, como se o jogo de xadrez tivesse se tornado
esférico. É nesses termos que Eisenstein fala das pinturas cilíndricas japonesas, nas quais ele via a
primeira aparição da montagem cinematográfica: “A fita em rolo se enrola retangularmente! Só
que ela não se enrola sozinha (como a fita se enrola em rolo), mas sobre a superfície (no plano do
quadro) se enrola a representação da imagem”.
Em Lógica do sentido, tento dizer como o pensamento se organiza de acordo com eixos e
direções semelhantes: por exemplo, o platonismo e a altitude que orientarão a imagem tradicional
da filosofia; os pré-socráticos e a profundidade (o retorno aos pré-socráticos como retorno ao
subterrâneo, às cavernas pré-históricas); os estóicos e sua nova arte das superfícies... Há outras
direções para o futuro? Avançamos e recuamos, todos, hesitamos entre todas essas direções,
construímos nossa topologia, carta celeste, cova subterrânea, agrimensuras de planos e de
superfícies, e de mais outras coisas. Segundo as direções, não se fala da mesma maneira, não se
encontra as mesmas matérias: com efeito, é sempre uma questão de linguagem ou de estilo.
Mesmo que, de minha parte, eu não estivesse mais satisfeito com a história da filosofia,
meu livro Diferença e repetição aspirava, entretanto, ainda a uma espécie de altitude clássica e
mesmo a uma profundidade arcaica. O esboço que eu fazia, de uma teoria da intensidade, estava
presente como surgindo das profundezas (mas não é por essa razão que não gosto de certas
[2]

páginas desse livro, em particular aquelas sobre a fadiga e sobre a contemplação). Em Lógica do
sentido, a novidade consistia, para mim, em conhecer alguma coisa das superfícies. As noções
permaneciam as mesmas: “multiplicidade”, “singularidade”, “intensidade”, “acontecimento”,
“infinito”, “problemas”, “paradoxos” e “proporções” – mas reorganizadas de acordo com essa
dimensão. As noções mudavam, pois, assim como o método, uma espécie de método serial
próprio das superfícies; e a linguagem mudava também, uma linguagem que eu queria que fosse
cada vez mais intensiva, procedendo por pequenas rajadas.
O que não estava bem neste Lógica do sentido? Evidentemente, ele demonstrava ainda
uma complacência ingênua e culpável para com a psicanálise. Mas a única desculpa seria a
seguinte: eu tentava, entretanto, muito timidamente, tornar a psicanálise inofensiva, ao
apresentá-la como uma arte das superfícies, que se ocupa dos acontecimentos como se fossem
entidades superficiais (Édipo não é mau, Édipo só tem boas intenções...).
Mas de toda maneira, os conceitos psicanalíticos permanecem intactos e respeitados.
Melanie Klein e Freud. E agora? Felizmente, me é, a partir de agora, quase impossível falar em
meu nome, pois o que se passou depois de Lógica do sentido depende, para mim, de meu
encontro com Félix Guattari, de meu trabalho com ele, daquilo que fazemos juntos. Creio que
buscamos outras direções porque tínhamos vontade de fazê-lo. O Anti-Édipo não tem mais nem
altitude, nem profundidade, nem intensidade. Aí tudo chega, se faz, as intensidades, as
multiplicidades, os acontecimentos, sobre uma espécie de corpo esférico ou quadro cilíndrico:
corpo sem órgãos. A dois, nós queríamos ser o Humpty Dumpty ou os Laurel e Hardy da filosofia.
Uma filosofia-cinema. Creio também que essa mudança de modo implica uma mudança de
matérias ou, inversamente, que uma certa política toma o lugar da psicanálise. Um método que
seria também uma política (uma micropolítica) e uma análise (uma esquizo-análise) que se
proporia o estudo das multiplicidades sobre os diferentes tipos de corpos sem órgãos. Um rizoma,
no lugar de séries, diz Guattari. O Anti-Édipo é um bom começo, desde que se rompa com as
séries. Ao leitor que pensasse: “esta nota é idiota e imodesta”, eu responderia: “você não sabe
quanto ela é realmente modesta e mesmo humilde. A palavra de ordem é: devir imperceptível,
produzir rizoma e não criar raiz”.

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. p. 58-60.

Nota da edição original : Traduzido do italiano. “Notta dell’autore per l’edizione italiana” in Gilles
Deleuze, Logica del senso, Milan Feltrinelli, 1976, p. 293-295. Trad. It. da nota: Armando
Verdiglione.
[3]

Tornar audíveis forças não-audíveis por si mesmas

Gilles Deleuze

Por que nós, não-músicos?


O método empregado por Pierre Boulez selecionou cinco obras musicais. As relações entre
essas obras não são relações de filiação nem de dependência; não há progressão ou evolução
entre cada uma dessas obras e as outras. É, antes, como se as cinco obras fossem semi-
aleatoriamente escolhidas, formando um ciclo no qual elas entrassem em reação uma
relativamente à outra. Assim, se tece um conjunto de relações virtuais, do qual se poderia extrair
um perfil particular de tempo musical que não valeria senão para as cinco obras. Poder-se-ia
perfeitamente conceber que Boulez escolhesse quatro ou cinco outras obras: ter-se-ia um outro
ciclo, outras reações e relações, e um outro perfil singular do tempo musical, ou de uma outra
variável que não a do tempo. Isso não se faz por um método de generalização. Não se trata, de se
elevar, a partir de obras tomadas como exemplos musicais, em direção a um conceito abstrato de
tempo do qual se poderia dizer “Eis aqui o que é o tempo musical”, Trata-se, a partir de ciclos
restritos, determinados sob certas condições, de extrair perfis particulares do tempo, com a
possibilidade, em seguida, de superpor esses perfis, de fazer uma verdadeira cartografia das
variáveis; e esse método diz respeito à música, mas pode também dizer respeito a mil outras
coisas.
No caso preciso do ciclo escolhido por Boulez, o perfil particular de tempo não pretende
absolutamente esgotar a questão do tempo muscial em geral. Vê-se que, de um tempo pulsado,
se despreende uma espécie de tempo não pulsado, com a possibilidade de que o tempo não
pulsado retorne a uma nova forma de pulsação. A obra nº 1 (Ligeti) mostrava como, através de
uma certa pulsação, se elevava um tempo não pulsado; as obras 2, 3 e 4 desenvolviam ou
mostravam aspectos diferentes desse tempo não pulsado; a última obra, nº 5, de Carter, mostrava
como, a partir de um tempo não pulsado, encontrava-se uma nova forma de pulsação original,
muito particular, muito nova.
Tempo pulsado, tempo não pulsado, é algo completamente musical, mas é também toda
uma outra coisa. A questão seria a de saber em que consiste precisamente esse tempo não
pulsado. Essa espécie de tempo flutuante, que corresponde um pouco ao que Proust chamava de
“um pouco de tempo em estado puro”. A característica mais evidente, mais imediata, é que um tal
tempo, dito não pulsado, é uma duração, é um tempo liberado da medida, quer a medida seja
regular ou irregular, quer ela seja simples ou complexa. Um tempo não pulsado nos coloca,
inicialmente, e antes de tudo, em presença de uma multiplicidade de durações heterócronas,
qualitativas, não coincidentes, não comunicativas. Vemos, desde logo, o problema: como essas
durações heterócronas, heterogêneas, múltiplas, não coincidentes, como elas vão se articular, pois
tudo mostra que estamos privados do recurso à solução mais geral e clássica que consiste em
confiar ao espírito o cuidado de apor uma medida comum ou uma cadeia métrica a todas as
durações vitais. Desde o início, essa solução está interditada.
Correndo o risco de entrar em um domínio completamente diferente, penso que
atualmente, quando os biólogos falam de ritmos, eles encontram questões análogas. Também eles
deixaram de acreditar que os ritmos heterogêneos possam se articular, ao cair sob a dominação
de uma forma unificante. As articulações entre ritmos vitais, os ritmos de 24 horas, por exemplo,
[4]

eles não buscam a explicação para isso em uma forma superior que os unificaria, nem mesmo em
um seqüência regular ou irregular de processos elementares. Eles buscam-na em um lugar
completamente diferente, em um nível sub-vital, infra-vital, naquilo que eles chamam de uma
população de osciladores moleculares capazes de atravessar sistemas heterogêneos, nas
moléculas oscilantes colocadas em acoplamentos que, desde logo, atravessarão conjuntos e
durações díspares. A colocação em articulação não depende uma forma unificável ou unificativa,
nem métrica, nem de uma cadência ou medida, quaisquer que sejam, regulares ou irregulares,
mas da ação de certos pares moleculares, deixados livres através de camadas diferentes e de
ritmicidades diferentes. Não é apenas por metáfora que se pode falar de uma descoberta
semelhante em música: moléculas sonoras antes que notas ou tons puros. Moléculas sonoras em
acoplamento capazes de atravessar camadas de ritmicidade, camadas de duração inteiramente
heterogêneas. Eis aí a primeira determinação de um tempo não pulsado.
Há um certo tipo de individuação que não reporta a um sujeito (Mim), nem mesmo à
combinação de uma forma e de uma matéria. Uma paisagem, um acontecimento, uma hora da
tarde, uma vida ou um fragmento de vida... procedem diferentemente. Tenho o sentimento de
que o problema da individuação em música, que é certamente muito complicado, é antes do tipo
dessas segundas individuações paradoxais. O que é chamamos de individuação de uma frase, de
uma pequena frase em música? Gostaria de partir do nível mais rudimentar, do aparentemente
mais fácil. Ocorre que uma música nos faz lembrar uma paisagem. Assim, o caso célebre de
Swann em Proust: o bois de Boulogne e a pequena frase de Vinteuil. Ocorre também que os sons
evocam cores, seja por associação, seja por fenômenos ditos de sinestesia. Ocorre, enfim, que os
motivos nas óperas estejam ligados a personagens, por exemplo: considera-se que um motivo
wagneriano designa um personagem. Um tal modo de escuta não é nulo ou sem interesse, talvez
mesmo num certo nível de distensão, seja preciso passar por aí, mas cada um sabe que isso não é
suficiente. É que, em um nível mais tensionado, não é o som que remete a uma paisagem, mas a
música, ela própria, que envolve uma paisagem propriamente sonora que lhe é interior (é o que
ocorre com Liszt). Poder-se-ia dizer a mesma coisa para a noção de cor, e considerar que as
durações, os ritmos, os timbres (com maior razão), são, em si mesmos, cores, cores propriamente
sonoras que vêm se superpor às cores visíveis, e que não têm as mesmas velocidades nem as
mesmas paisagens que as cores visíveis. Ocorre o mesmo com a terceira noção, a de personagem.
Pode-se considerar, na ópera, certos motivos em associação com um personagem; mas os motivos
em Wagner não se associam apenas a um personagem exterior, eles se transformam, têm uma
vida autônoma em um tempo flutuante não pulsado, no qual eles se tornam, eles mesmos, e por
si mesmos, personagens interiores à música.
Essas três noções diferentes de paisagens sonoras, de cores audíveis, de personagem
rítmica, aparecem, então, como aspectos sob os quais um tempo não pulsado produz suas
individuações de um tipo muito particular.
Somos levados, creio, de todos os lados, a não pensar em termo de matéria-forma. Ao
ponto que paramos de acreditar, em todos os domínios, na hierarquia que iria do simples ao
complexo, matéria-vida-espírito. Nós chegamos mesmo a pensar que a vida seria, antes, uma
simplificação da matéria; pode-se acreditar que os ritmos vitais não encontram sua unificação em
uma forma espiritual, mas, ao contrário, em acoplamentos moleculares. Toda essa hierarquia
matéria-forma, uma matéria mais ou menos rudimentar e uma forma sonora mais ou menos
elaborada, não foi isso que paramos de ouvir, e o que os compositores pararam de produzir? O
[5]

que se constitui é um material sonoro muito elaborado, não mais uma matéria rudimentar que
receberia uma forma. E o acomplamento se faz entre esse material sonoro muito elaborado e
forças que por si mesmas não são sonoras, mas que se tornam sonoras ou audíveis pelo material
que as torna apreciáveis. É o que ocorre com o Diálogo entre o vento e o mar, de Debussy. O
material está aí para tornar audível uma força que não seria audível por si mesma, a saber, o
tempo, a duração, e mesmo a intensidade. A dupla matéria-forma é substituída pela dupla
material-forças.
Boulez: Éclats. Todo o material sonoro muito elaborado, com a extinção dos sons, estava
feito para tornar sensível e audível dois tempos, eles próprios não sonoros, definidos, um como o
tempo da produção em geral e o outro como o tempo da meditação em geral. Portanto, no lugar
da dupla matéria/simples forma sonora, a última das quais informaria a primeira, colocamos um
acoplamento entre um material elaborado e forças imperceptíveis que se tornam perceptíveis por
meio desse material. A música, portanto, não é um assunto apenas dos músicos, na medida em
que ela não tem por elemento exclusivo e fundamental o som. Ela tem por elemento o conjunto
das forças não sonoras que o material sonoro elaborado pelo compositor vai tornar perceptíveis,
de tal maneira que se poderia até mesmo perceber as diferenças entre essas forças, todo o jogo
diferencial dessas forças. Estamos todos diante de tarefas bastante semelhantes. Em filosofia: a
filosofia clássica se concede uma espécie de matéria rudimentar de pensamento, uma espécie de
fluxo, que tentamos submeter a conceitos ou a categorias. Mas, cada vez mais, os filósofos têm
procurado elaborar um material de pensamento muito complexo para tornar sensíveis forças que
não são pensáveis por si mesmas.
Não existe um ouvido absoluto, o problema é o de ter um ouvido impossível – tornar
audíveis forças que são não audíveis por si mesmas. Em filosofia, trata-se de um pensamento
impossível, isto é, tornar pensável, por meio de um material de pensamento muito complexo,
forças que não são pensáveis.

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. P. 142-146.
Nota da edição original: Texto distribuído durante um sessão de síntese do IRCAM, em fevereiro
de 1978. Trata-se, aqui, de uma versão revista.
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Oito anos depois: entrevista 80

Gilles Deleuze

Questão – Que diferença existe entre a obra de 1973, O Anti-Édipo, e a de 1980, Mil platôs?
Gilles Deleuze – A situação de O Anti-Édipo era relativamente simples. O Anti-Édipo tratava de um
domínio familiar, reconhecido: o inconsciente. Ele propunha substituir o modelo teatral ou familial
do inconsciente por um modelo mais político: a fábrica em vez do teatro. Era uma espécie de
“construtivismo” à russa. Daí a idéia de produção desejante, de máquinas desejantes. Enquanto
que Mil platôs é mais complicado, porque ele tenta inventar seus domínios. Os domínios não mais
preexistem, eles são traçados pelas partes do livro. É a seqüência de O Anti-Édipo, mas a
seqüência ao ar livre, “in vivo”. Por exemplo, o devir animal do homem, e seu encadeamento com
a música.
Q. – Não é verdade que há também diferenças circunstanciais entre os dois livros?
G. D. – Certamente. O Anti-Édipo veio depois de 68: era uma época de efervescência, de busca.
Hoje há uma reação muito forte. É toda uma economia do livro, uma nova política, que impõe o
conformismo atual. Há uma crise do trabalho, uma crise organizada, deliberada, tanto no nível dos
livros quanto nos outros níveis. O jornalismo toma, cada vez mais, o poder na literatura. E, depois,
uma massa de romances redescobrem o tema familial mais raso, e desenvolvem ao infinito todo
um papai-mamãe: é inquietante, quando se encontra um romance inteiramente feito, pré-
fabricado, na família que se tem. É verdadeiramente o ano do patrimônio. Sob esse aspecto, O
Anti-Édipo foi um fracasso completo. Seria uma análise longa, mas a situação atual é muito difícil e
sufocante para os escritores jovens. Não posso dizer por que tenho tantos maus pressentimentos.
Q. – Deixemos, pois, isso para uma outra vez. Mas Mil platôs é literatura? Há uma diversidade de
domínios abordados, etnologia, etologia, política, música, etc.. Em que gênero se poderia colocar
esse livro?
G. D. – Filosofia, nada mais que filosofia, no sentido tradicional da palavra. Quando se pergunta o
que é a pintura, a resposta é relativamente simples. Um pintor é alguém que cria na ordem das
linhas e das cores (ainda que as linhas e as cores existam na natureza). Bem, um filósofo é a
mesma coisa, é alguém que cria na ordem dos conceitos, alguém que inventa novos conceitos. Aí
ainda, há evidentemente o pensamento fora da filosofia, mas não sob essa forma especial de
conceitos. Os conceitos são singularidades que reagem sobre a vida ordinária, sobre os fluxos de
pensamento ordinários ou quotidianos. Há muitas tentativas de conceitos em Mil platôs: rizoma,
espaço liso, hecceidade, devir-animal, máquina abstrata, diagrama, etc. Guattari inventa muitos
conceitos, e eu tenho a mesma concepção da filosofia.
Q. – Mas qual seria a unidade de Mil platôs, uma vez que não há mais referência a um domínio de
base?
G. D. – Seria talvez a noção de agenciamento (que substitui a de máquinas desejantes). Há toda
espécie de agenciamentos, e composições de agenciamentos. De um lado, nós tentamos substituir
a noção de comportamento por essa: daí a importância da etologia em Mil platôs, e a análise dos
agenciamentos animais, especificamente, por exemplo, dos agenciamentos territoriais. Um capítulo
como o do Ritornelo considera ao mesmo tempo agenciamentos animais e agenciamentos
propriamente musicais: é o que nós chamamos um “platô”, que coloca em continuidade ritornelos
de pássaros e ritornelos como os de Schumann. De outro lado, a análise dos agenciamentos,
[7]

tomados em seus diversos componentes, nos abre para uma lógica geral: não fizemos mais do
que esboçá-la, e essa será, sem dúvida, a seqüência de nosso trabalho, fazer essa lógica, aquilo
que Guattari chama de “diagramatismo”. Nos agenciamentos, há estados de coisas, de corpos,
misturas de corpos, ligas, há também enunciados, modos de enunciação, regimes de signos. As
relações entre os dois são muito complexas. Por exemplo, uma sociedade não se define por suas
forças produtivas e por sua ideologia, mas, antes, por suas “ligas” e seus “vereditos”. As ligas são
misturas de corpos praticados, conhecidos, permitidos (há misturas de corpos interditadas, tal
como o incesto). Os vereditos são os enunciados coletivos, isto é, as transformações incorporais,
instantâneas, que têm curso numa sociedade (por exemplo, “a partir de tal momento tu não és
mais uma criança...”).
Q. – Você descreve esses agenciamentos, mas eles não estão, me parece, isentos de julgamento
de valor. Mil platôs não é também um livro de moral?
G. D. – Os agenciamentos existem, mas eles têm, com efeito, componentes que lhes servem de
critério e permitem qualificá-los. Os agenciamentos são conjuntos de linhas, um pouco como em
uma pintura. Ora, há toda espécie de linhas. Há linhas segmentares, segmentarizadas; há linhas
que se afundam ou caem em “buracos negros”; há linhas que são destrutivas, que desenham a
morte; há, enfim, linhas que são vitais e criadoras. Essas últimas abrem um agenciamento, em vez
de o fechar. A noção de linha abstrata é uma noção muito complicada: uma linha não pode
representar nada, ser puramente geométrica, ela não é ainda verdadeiramente abstrata, na
medida em que ela tem um contorno. A linha abstrata é a linha que não tem contorno, que passa
entre as coisas, uma linha mutante. Afirmou-se isso a propósito de Pollock. Nesse sentido, a linha
abstrata não é, absolutamente, a linha geométrica, é a linha mais viva, a mais criadora. A
abstração real é uma vida não-orgânica. A idéia de uma vida não-orgânica é constante em Mil
platôs e justamente é a vida do conceito. Um agenciamento é arrastado por suas linhas abstratas,
quando ele é capaz de tê-las ou de traçá-las. Hoje, assistimos a algo de muito curioso: a vingança
do Silício. Os biólogos freqüentemente se perguntaram por que a vida “passou” pelo Carbono e
não pelo Silício. Mas a vida das máquinas modernas passa pelo silício: é toda uma vida não-
orgânica, distinta da vida orgânica do carbono. Falar-se-á, nesse sentido, de um agenciamento-
silício. Nos domínios os mais diversos, deve-se considerar os componentes de agenciamento, a
natureza das linhas, os modos de vida e de enunciado.
Q. – Pode-se ter a impressão, ao ler vocês, que os cortes reconhecidos como os mais importantes
desapareceram: o corte cultura-natureza, de um lado, o corte epistemológico, de outro.
G. D. – Há duas maneiras de suprimir ou de atenuar o corte natureza-cultura. Uma consiste em
aproximar comportamento animal e comportamento humano (Lorenz fez isso, com conseqüências
políticas inquietantes). Quanto a nós, nós dizemos que a noção de agenciamento pode substituir a
de comportamento e que, relativamente a essa noção, a distinção natureza-cultura não é mais
pertinente. Um comportamento, de uma certa maneira, é ainda um contorno. Enquanto que um
agenciamento é, inicialmente, aquilo que faz manter juntos elementos muito heterogêneos, um
som, uma cor, um gesto, uma posição, etc., natureza e artifício: é um problema de “consistência”
que precede os comportamentos. A consistência é uma relação muito especial, ainda mais física
que lógica ou matemática. Como as coisas adquirem consistência? Entre coisas muito diferentes,
pode haver uma continuidade intensiva. Quando nós tomamos de empréstimo a Bateson a palavra
“platô” foi justamente para designar essas zonas de continuidade intensiva.
Q. – De onde vem essa noção de intensidade que rege o “platô”?
[8]

G. D. – Foi Pierre Klossowski que voltou a conceder, recentemente, às intensidades um estatuto


muito profundo, filosófico e mesmo teológico. Ele extraiu daí toda uma semiologia. Era uma noção
muito viva na física e na filosofia da Idade Média. Ela foi ou menos nublada pelo privilégio
concedido às quantidades extensivas e à geometria da extensão. Mas a física não cessou de
encontrar, à sua maneira, os paradoxos das quantidades intensivas, a matemática enfrentou os
espaços não extendidos, a biologia, a embriologia, a genética descobriram todo um mundo de
“gradientes”. E aí ainda, não há como isolar procedimentos que seriam científicos ou
epistemológicos. As intensidades são questões de modo de vida e de prudência experimental. São
elas que constituem a vida não-orgânica.
Q. – Não seria, assim, talvez, sempre fácil ler Mil platôs?
G. D. – É um livro que nos exigiu muito trabalho e que exige muito trabalho por parte do leitor.
Mas uma determinada parte, que nos parece difícil, pode parecer muito fácil para alguma outra
pessoa. E inversamente. Independentemente da qualidade ou não desse livro, trata-se do gênero
de livro sobre o qual se deve pensar hoje. Temos, pois, a impressão de fazer política mesmo
quando falamos de música, de árvores ou de rostos. Para todo escritor, a questão é de saber se
outras pessoas têm, por pouca que seja, uma utilização para seu trabalho, no trabalho que elas
fazem, em sua vida ou em seus projetos.

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. P. 162-166.

Nota da edição original: Entrevista feita por Catherine Clément, in L’Arc, nº 49: Deleuze, nova
edição, 1980, p. 99-102.
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A pintura inflama a escrita

Gilles Deleuze

– Antes de o texto ter sido produzido que forma assumia sua admiração por Bacon?
Gilles Deleuze – Na maior parte das pessoas, Bacon provoca um choque. Ele próprio diz que seu
trabalho consiste em produzir imagens, e se trata de imagens-choque. O sentido desse choque
não remete a algo de “sensacional” (o que é representado), mas depende da sensação, isto é, de
linhas e de cores.
Confrontamo-nos com a presença intensa de figuras, às vezes solitárias, às vezes com
vários corpos, suspensos horizontalmente, em uma eternidade de cores. Perguntamo-nos, então,
como esse mistério é possível. Vemo-nos a imaginar a imaginar o lugar de um pintor desses na
pintura contemporânea, e mais geralmente na história da arte (por exemplo, a arte egípcia).
Parece-me que a pintura atual ofereceria três grandes direções, que seria preciso definir não
formalmente, mas material e geneticamente: a abstração, o expressionismo, e aquilo que Lyotard
chama de Figural, que é diferente do figurativo, exatamente uma produção de Figuras. Bacon vai
mais longe nessa última direção.
– Em um certo momento, você estabelece um vínculo entre os personagens de Bacon e os de
Kafka: escrever sobre Bacon depois de ter escrito sobre Sacher-Masoch, Proust, depois Kafka, há
também aí um vínculo?
G. D. – O vínculo é múltiplo. Trata-se de autores de Figuras. Seria preciso distinguir vários níveis.
Inicialmente, eles nos apresentam sofrimentos insondáveis, angústias profundas. Depois, tomamos
consciência de uma espécie de “maneirismo”, no sentido artístico da palavra, à la Miguel Ângelo,
pleno de força e de humor. E nos apercebemos que, longe de ser uma sobrecarga de complicação,
trata-se do fato de uma pura simplicidade. Aquilo que acreditávamos ser tortura ou contorsão
remete a posturas muito naturais. Bacon parece produzir personagens torturados, diz-se a mesma
coisa de Kafka, poderíamos acrescentar Beckett, mais basta olhar alguém que é obrigado a ficar
sentado durante um longo tempo, por exemplo uma criança na escola, para ver que seu corpo
assume apenas as posturas mais “econômicas” em função de todas as forças que se exercem
sobre ele. Kafka tem a obsessão de um teto que pesa sobre a cabeça de alguém: ou então o
queixo se enfia horrivelmente no peito, ou ainda a extremidade do crânio vai furar o teto... Em
suma, há duas coisas muito diferentes: a violência das situações, que é figurativa, mas também a
incrível violência das posturas, que é “figural” e muito mais difícil de apreender.
– Como se escreve um livro sobre a pintura, apelando-se a coisas ou a seres da literatura, aqui
Kafka, Proust, Beckett?
G. D. – Aquilo que se chama em literatura de estilo existe em pintura: trata-se de um conjunto de
linhas e de cores. E se reconhece um escritor por sua maneira de envolver, de desenrolar ou de
quebrar uma linha em “sua” frase. O segredo da grande literatura está em ir em direção a uma
sobriedade cada vez maior. Para citar um autor que eu adoro, uma frase de Kerouac termina por
uma linha de desenho japonês, ela mal se apóia sobre o papel. Um poema de Ginsberg é como
uma linha expressionista quebrada. Pode-se, assim, imaginar um mundo comum ou comparável
entre pintores e escritores. É essa precisamente a jogada da caligrafia.
– Escrever sobre a pintura lhe proporcionou um prazer particular?
[10]

G. D. – Deu-me medo, parecia-me verdadeiramente difícil. Há dois perigos: ou se descreve o


quadro, e nesse momento um quadro real não é necessário (com seu gênio, Robbe-Grillet e
Claude Simon conseguiram descrever quadros que não precisavam existir), ou então se cai na
indeterminação, a efusão sentimental da metafísica aplicada. O problema próprio da pintura está
nas linhas e nas cores. É difícil extrair conceitos científicos que não sejam do tipo matemático ou
físico, que não sejam tampouco da literatura projetada sobre a pintura, mas que sejam como que
talhados pela e na pintura.
– Não seria isso também uma maneira de subverter o vocabulário crítico, de reanimá-lo?
G. D. – A escrita tem seu próprio calor, mas é ao pensar na pintura que apreendemos melhor a
linha e a cor de uma frase, como se o quadro comunicasse algo às frases... Raramente fiz um livro
com tal prazer. Quando se trata de um colorista como Bacon, a confrontação com a cor é
transtornante.
– Quando você fala do clichê ambiente que preexiste à tela, você não aborda também o problema
do escritor?
G. D. – A tela não é uma superfície branca. Ela já está toda carregada de clichês, ainda que não os
vejamos. O trabalho do pintor consiste em destruí-los: o pintor deve passar por um momento em
que ele não vê mais nada, por um desmoronamento das coordenadas visuais. É por isso que eu
digo que a pintura incorpora uma catástrofe, ela é mesmo a matriz do quadro. Isso já é evidente
em Cézanne, Van Gogh. No caso das outras artes, a luta contra os clichês é muito importante, mas
ela permanece exterior à obra, ainda que ela seja interior ao autor. Exceto em casos como o de
Artaud, no qual o desmoronamento das coordenadas lingüísticas ordinárias pertence à obra. Em
pintura, ao contrário, trata-se de uma regra: o quadro provém de uma catástrofe ótica, que
permanece presente sobre o próprio quadro.
– Você escreveu com as pinturas à sua frente?
G. D. – Escrevi com as reproduções à minha frente, e aí tomei de Bacon o seu método: quando ele
pensa em um quadro, ele não vai vê-lo, ele tem fotos coloridas dele ou mesmo fotos em preto em
branco. Volto para ver os quadros apenas no meio do trabalho de escrita ou depois.
– Você tem, às vezes, necessidade de se desligar da obra, de esquecê-la?
G. D. – Não tenho necessidade de esquecê-la. Havia um momento em que a reprodução não
servia mais para nada porque ela já tinha me remetido a uma outra reprodução. Um exemplo: eu
olho os trípticos e tenho o sentimento de que há uma espécie de lei interior. Isso me força a saltar
de uma reprodução a outra para compará-las. Segundo momento: tenho a impressão de que se
essa lei existe, ela deve estar ali de uma maneira oculta, mesmo nos quadros simples. Era uma
idéia que estava no ar e que me veio entre os trípticos.
Terceiro momento, ao folhear as reproduções dos quadros simples, caio num quadro
intitulado O Homem e a Criança, no qual a construção em tríptico me parece evidente. Ele
representa uma jovem estranha, com pés enormes, e que tem um ar sério, os braços cruzados, e
que olha para um homem, como faz Bacon, sentado sobre um banquinho regulável, do qual não
se sabe se ele está descendo ou subindo. É evidente que esse quadro, por sua organização, é um
tríptico envolvido em vez de ser um tríptico desenvolvido. Assim, as reproduções me remetiam
umas às outras, mas é geralmente entre duas delas que se tem uma idéia que remete a gente a
uma terceira reprodução...
– De que maneira as entrevistas de David Sylvester com Bacon foram uma base de trabalho,
diferente dos quadros?
[11]

G. D. – É uma base necessária. Primeiramente, as entrevistas são bonitas, e Bacon diz muitas
coisas. Em geral, quando os artistas falam daquilo que fazem, eles têm uma modéstia
extraordinária, uma severidade com eles próprios, e uma grande força. Eles são os primeiros a
sugerir muito fortemente a natureza dos conceitos e dos afectos que se despreendem de sua obra.
Os textos de um pintor agem, portanto, de uma maneira inteiramente diferente da de seus
quadros. Quando se lêem as entrevistas, tem-se sempre a vontade de fazer perguntas
suplementares, e como a gente sabe que não se poderá fazê-las, é preciso se virar inteiramente
sozinho.
– Você não encontrou Bacon?
G. D. – Sim, mais tarde, depois desse livro. Sente-se nele potência e violência, mas também um
charme muito grande. Se ele fica sentado durante uma hora, ele se torce em todos os sentidos,
dir-se-ia que é, verdadeiramente, um Bacon. Mas sua postura é sempre simples, por causa de uma
sensação que ele aprova, talvez. Bacon distingue a violência do espetáculo, que não lhe interessa,
e a violência da sensação como objeto da pintura. Ele diz: “Começo por pintar o horror, as
touradas ou as crucificações, mas isso é ainda demasiadamente dramático. O que conta é pintar o
grito”. O horror é ainda demasiadamente figurativo, e ao passar do horror ao grito, obtém-se um
ganho formidável na sobriedade, toda a facilidade da figuração cai. Os Bacon mais belos são
personagens que dormem, ou um homem visto de costas, barbeando-se.
– Seu livro tem, de qualquer maneira, a aspiração, por detrás de sua dimensão de homenagem, de
fazer com que se vejam melhor as pinturas de Bacon?
G. D. – Se ele fosse bem sucedido, teria necessariamente esse efeito. Mas acredito que ele tem
uma aspiração mais alta, com a qual todo mundo sonha: aproximar-se de algo que seja como que
um fundo comum das palavras, das linhas e das cores, e mesmo dos sons. Escrever sobre pintura,
escrever sobre música implica sempre essa aspiração.
– O segundo volume do livro (as reproduções das pinturas), que não segue a ordem cronológica
da obra de Bacon, deveria sê-lo da história de sua ligação com Bacon, isto é, reconstituir uma
ordem de visão?
D. G. – Com efeito, na margem do texto, há números que remetem à reprodução dos quadros.
Essa ordem de surgimento é um pouco perturbada por razões técnicas (o lugar dos trípticos). Mas,
em sua sucessão, ele não remete a uma cronologia de Bacon. Ele vai, antes, logicamente, de
aspectos relativamente simples a aspectos relativamente complexos. Um mesmo quadro pode,
pois, ressurgir quando se descobre nele um aspecto mais complexo.
Quanto à cronologia, Sylvester distingue nas entrevistas três períodos de Bacon e os define
muito bem. Mas, após um certo tempo, Bacon se lança em um novo período: a potência que tem
um pintor de se renovar. Ao que eu saiba, não há mais que três quadros: um jato d’água, um jato
de erva e um jato de areia. É inteiramente novo, toda “figura” desapareceu. Quando encontrei
Bacon, ele dizia que sonhava em pintar uma onda, mas que ele não ousava acreditar no sucesso
de um tal empreendimento. Trata-se de uma grande lição de pintura, um grande pintor que chega
a dizer: “Seria muito bom se eu pudesse apreender uma pequena onda...”. É muito proustiano; ou
então Cézanne: “Ah, se eu pudesse chegar a pintar uma pequena maçã!”.
– Você descreve a obra, você tenta definir seus sistemas, mas em nenhum momento você diz
“eu”.
G. D. – A emoção não diz “eu”. Você mesmo o diz, a gente está fora de si. A emoção não é da
ordem do mim, mas do acontecimento. É muito difícil apreender um acontecimento, mas não
[12]

acredito que essa apreensão implique a primeira pessoa. Seria preciso, antes, recorrer, como
Maurice Blanchot, à terceira pessoa, quando ele diz que há mais intensidade na proposição “ele
sofre” que em “eu sofro”.

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. P. 167-172.

Nota do original: Entrevista feita por Hervé Guibert. Le Monde, 3 de dezembro de 1981, p. 15. A
propósito da publicação de Francis Bacon, Logique de la sensation, Paris, Editions de la Différence,
1981, 2. vol. [reed. Paris, Seuil, col. “L’ordre philosophique”, 2002].
[13]

Resposta a uma série de questões (1981)


Gilles Deleuze

Arnaud Villani – Você é um “monstro”?


Gilles Deleuze – “Monstro” é, para começar, um ser composto. E é verdade que escrevi sobre
assuntos aparentemente variados. “Monstro” tem um segundo sentido: alguma coisa ou qualquer
um cuja extrema determinação deixa plenamente subsistir o indeterminado (por exemplo, um
monstro ao estilo de Goya). Nesse sentido, o pensamento é um monstro.
AV – A physis parece exercer um grande papel em sua obra.
GD – Você tem razão, creio que eu giro em torno de uma certa idéia da Natureza, mas não
cheguei ainda a considerar essa noção diretamente.
AV – Pode-se designá-lo como “sofista”, no bom sentido, e o antilogos, trata-se de um retorno,
para além do golpe de força de Platão contra os sofistas?
GD – Não. O antilogos, para mim, está menos ligado à astúcia no sentido dos sofistas do que ao
involuntário de Proust.
AV – O pensamento é, na sua obra, “espermático. Ele tem uma relação clara, nesse sentido, com a
sexualidade?
GD – Isso é verdade até Lógica do sentido, no qual existe ainda uma relação enunciável entre
sexualidade e metafísica. Depois, a sexualidade me parece, antes, uma abstração mal fundada.
AV – Pode-se modelizar a sua evolução por meio de sínteses?
GD – Vejo a minha evolução de forma diferente. Você conhece a “Carta a Michel Cressole”: é aí
que explico minha evolução tal como a vejo.
AV – O pensamento como audácia e aventura?
GD – Naquilo que escrevi, creio muito nesse problema da imagem do pensamento e num
pensamento liberto da imagem. É já Diferença e repetição, mas também em Proust, e ainda Mil
platôs.
AV – Você tem uma capacidade para encontrar, apesar de tudo e de todos, os verdadeiros
problemas.
GD – Se isso for verdadeiro é porque eu acredito na necessidade de construir um conceito do
problema. Tentei em Diferença e repetição e gostaria de retomar essa questão. Mas praticamente
isso me leva a buscar, em cada caso, como um problema pode ser colocado. É dessa maneira,
parece-me, que a filosofia deve ser considerada como uma ciência: determinar as condições de
um problema.
AV – Há um início de rizoma Deleuze – Guattari – Foucault – Lyotard – Klossowski – etc.?
GD – Isso poderia ter sido feito, mas não se fez. Na verdade, só há rizoma entre Félix e mim.
AV – A conclusão de Mil platôs consiste em um modelo topológico radicalmente original em
filosofia. Ele é traduzível matematicamente, biologicamente?
GD – A conclusão de Mil platôs é, na minha cabeça, uma tabela de categorias (mas incompleta,
insuficiente). Não à maneira de Kant, mas à maneira de Whitehead. Categoria assume, pois, um
novo sentido, muito especial. Eu gostaria de trabalhar esse ponto. Você pergunta se há
transposição matemática e biológica possível. É provavelmente o inverso. Sinto-me bergsoniano,
quando Bergson diz que a ciência moderna não encontrou sua metafísica, a metafísica que ela
necessitaria. É essa metafísica que me interessa.
[14]

AV – Pode-se dizer que um amor pela vida, em sua amedrontadora complexidade, o conduz ao
longo de toda a sua obra?
GD – Sim. O que me desgosta, teoricamente, praticamente, é toda espécie de queixa
relativamente à vida, toda cultura trágica, isto é, a neurose. Suporto muito mal as neuroses.
AV – Você é um filósofo não-metafísico?
GD – Não, eu me sinto um puro metafísico.
AV – Um século, para você, poderá ser deleuziano, leve? Ou você é pessimista sobre a
possibilidade de se livrar da identidade e do poder dos traços?
GD – Não, não sou, de forma alguma, pessimista porque não creio na irreversibilidade das
situações. Tomemos o estado catastrófico atual da literatura e do pensamento. Isso não me
parece grave para o futuro.
AV – Depois de Mil platôs?
GD – Terminei agora um livro sobre Francis Bacon e só tenho agora dois projetos: um sobre
“Pensamento e cinema” e um outro será um livro grande sobre “O que é a filosofia?” (com o
problema das categorias).
AV – O mundo é duplo, macrofísico (e a imagem do pensamento aí funciona muito bem) e
microfísico (é o seu modelo que, há anos, depois da mesma revolução em ciência, em arte, dá
conta disso). Há uma relação polêmica entre esses dois pontos de vista?
GD – A distinção entre o macro e o micro é muito importante, mas ela pertence mais a Félix que a
mim. A mim toca, antes, a distinção entre dois tipos de multiplicidade. Isso é o essencial para
mim: o fato de que um desses dois tipos remete às micromultiplicidades não passa de uma
conseqüência. A mesma coisa para o problema do pensamento, e mesmo para as ciências, a
noção de multiplicidade, tal como é introduzida por Riemann, me parece mais importante que a da
microfísica.

In Arnaud Villani. La guêpe et l’orchidée. Paris : Belin, 1999. p. 129-131.

Nota do tradutor: este é o único texto desta antologia que não está transcrito no livro Deux
régimes de fous. Traduzi diretamente do livro de Arnaud Villani.
[15]

Carta a Uno: como nós trabalhamos a dois

Gilles Deleuze

Caro Ckuniichi Uno,

Você me pergunta como Félix Guattari e eu nos encontramos e como trabalhamos juntos.
Não posso lhe dar mais do que meu ponto de vista; o de Félix seria talvez diferente. O que é certo
é que não há receita ou fórmula geral para se trabalhar junto.
Foi justamente depois do 1968 francês. Não nos conhecíamos, mas um amigo comum
queria que nos conhecêssemos. Entretanto, à primeira vista, não tínhamos nada para nos
entender. Félix sempre teve muitas dimensões, muitas atividades, psiquiátricas, políticas, trabalho
de grupo. Era uma “constelação” de grupo. Ou, antes, seria preciso compará-lo ao mar: sempre
móvel na aparência, com lampejos de luz o tempo todo. Ele pode saltar de uma atividade à outra,
ele dorme pouco, ele não pára. Ele não se detém. Ele tem velocidades extraordinárias. Quanto a
mim, eu sou mais como uma colina: me mexo muito pouco, sou incapaz de fazer duas tarefas ao
mesmo tempo, minhas idéias são idéias fixas, e os raros movimentos que tenho são interiores.
Adoro escrever sozinho, mas não gosto muito de falar, exceto nas aulas, quando a palavra está
submetida a uma outra coisa. Nós dois, Félix e eu, poderíamos ter sido, juntos, um bom lutador
japonês.
Só que se olhamos Félix mais de perto, percebemos que ele é muito sozinho. Entre duas
atividades, ou no meio de muita gente, ele pode mergulhar em uma grande solidão. Ele
desaparece, para tocar piano, para ler, para escrever. Raramente encontrei um homem que seja
tão criativo e que produza tantas idéias. E ele não pára de modificar suas idéias, de as revolver, de
mudar suas figuras. Ele é igualmente capaz de se desinteressar completamente delas, e até
mesmo de esquecê-las, para melhor manipulá-las, redistribuí-las. Suas idéias são desenhos, ou até
mesmo diagramas. A mim o que me interessa são os conceitos. Parece-me que os conceitos têm
uma existência própria, eles são animados, são criaturas invisíveis. Mas justamente, eles precisam
ser criados. A filosofia me parece ser uma arte de criação, tanto quanto a pintura e a música: ela
cria conceitos. Não se trata de generalidades e nem mesmo de verdades. É antes da ordem do
Singular, do Importante, do Novo. Os conceitos são inseparáveis dos afectos, isto, dos efeitos
potentes que eles têm sobre nossas vidas, e dos perceptos, isto é, de novas maneiras de ver ou de
perceber que eles nos inspiram.
Entre os diagramas de Félix e meus conceitos articulados, tínhamos vontade de trabalhar
juntos, mas não sabíamos bem como. Líamos bastante, etnografia, economia, lingüística. Esses
eram os materiais. Eu estava fascinado pelo que Félix extraía deles. E ele, pelas injeções de
filosofia que eu tentava fazer. Muito rapidamente, no caso do Anti-Édipo, nós ficamos sabendo o
que queríamos dizer: uma nova apresentação do inconsciente como máquina, como fábrica, uma
nova concepção do delírio, indexada sobre o mundo histórico, político e social. Mas como fazer
isso? Começamos por longas cartas, desordenadas, intermináveis. Depois, tivemos reuniões a dois,
de vários dias ou várias semanas. Espero que você compreenda isso. Era um trabalho muito
cansativo, mas, ao mesmo tempo, nós ríamos o tempo todo. E cada um, por sua parte, nós
desenvolvíamos este ou aquele ponto, em direções diferentes, nós misturávamos as escritas,
[16]

criamos palavras cada vez que tínhamos necessidade delas. O livro, por vezes, assumia uma forte
coerência que não se explicava mais nem por um nem pelo outro.
É que nossas diferenças nos atrapalhavam, mas também nos ajudavam. Nunca tivemos o
mesmo ritmo. Félix me xingava por não responder às cartas que ele me enviava: é que eu não
estava pronto, naquele momento. Eu não era capaz de aproveitar suas idéias a não ser mais tarde,
quando Félix já tinha passado para outra coisa. E em nossas reuniões, não falávamos nunca
juntos: um falava, e outro escutava. Eu não largava Félix, mesmo quando ele já estava cheio, mas
Félix insistia comigo, mesmo quando eu já não podia mais agüentar. Pouco a pouco, um conceito
assumia uma existência autônoma, que continuávamos às vezes a compreender de maneira
diferente (por exemplo, nunca chegamos a compreender da mesma maneira o “corpo sem
órgãos”). O trabalho a dois nunca foi uma uniformização, mas, antes, uma proliferação, uma
acumulação de bifurcações, um rizoma. Eu poderia dizer quem é o responsável pela origem deste
ou daquele tema, desta ou daquela noção: na minha opinião, Félix tinha verdadeiros relâmpagos e
eu era uma espécie de pára-raios, eu enfiava o problema na terra, para que aquilo renascesse de
uma outra maneira, mas Félix insistia, etc., e assim avançávamos.
Para Mil platôs, foi, outra vez, diferente. A composição desse livro é muito mais complexa,
os domínios tratados muito mais variados, mas tínhamos adquirido certos hábitos de tal forma que
um podia facilmente adivinhar em que direção o outro ia. Nossas conversas continham elipses
cada vez mais numerosas, e nós podíamos estabelecer toda espécie de ressonâncias, não mais
entre nós, mas entre os domínios que atravessávamos. Os melhores momentos desse livro,
quando estávamos escrevendo-o, foram: o ritornelo e a música; a máquina de guerra e os
nômades; o devir-animal. Aí, com o impulso de Félix, eu tinha a impressão de territórios
desconhecidos no qual viviam estranhos conceitos. É um livro que me fez feliz e que, de minha
parte, eu não consigo esgotar. Não veja nisso nenhuma vaidade, falo por mim, não pelo leitor.
Depois, Félix e eu, foi preciso que cada um de nós voltasse a trabalhar sozinho, para retomar o
fôlego. Mas me persuadi de uma coisa: nós vamos, novamente, trabalhar juntos.
É isso, caro Uno, espero ter respondido uma parte de suas questões. Saudações.

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. P. 218-220.

Nota da edição original: Carta datada de 25 de julho de 1984 e publicada em japonês em Gendai
shisõ (A Revista do Pensamento Hoje), Tóquio, nº 9, 1984, p. 8-11. Trad. Jap. Kuniichi Uno.
[17]

As praias de imanência

Gilles Deleuze

Tem-se com freqüência descrito o universo como um “universo em escada”, o que


corresponde a toda uma tradição platônica, neo-platônica e medieval. É um universo que está
pendurado no Uno como princípio transcendente, e que procede por uma série de emanações e de
conversões hierárquicas. O Ser é, aí, equívoco ou analógico. Os seres têm, com efeito, mais ou
menos “ser”, mais ou menos “realidade”, de acordo com seu distanciamento ou com sua
proximidade relativamente ao princípio. Mas, ao mesmo tempo, toda uma outra inspiração
atravessa esse cosmos. É como se praias de imanência fossem sendo empurradas através dos
andares ou dos degraus, e tendessem a se juntar entre níveis. Ali o Ser é unívoco, igual: isto quer
dizer que os seres são igualmente ser, no sentido em que cada um efetua sua própria potência em
uma vizinhança imediata com a causa primeira. Não há mais causa distanciada: o rochedo, a flor
de lis, o animal e o homem cantam igualmente a glória de Deus em uma espécie de anarquia
coroada. As emanações-conversões dos níveis sucessivos são substituídas pela coexistência de
dois movimentos na imanência, a complicação a explicação, nos quais Deus “complica todas as
coisas” ao mesmo tempo que “cada coisa” explica Deus. O múltiplo está no uno que o complica,
da mesma forma que o uno está no múltiplo que o explica.
E, provavelmente, a teoria não cessará de conciliar esses dois aspectos ou esses dois
universos e, sobretudo, de subordinar a imanência à transcendência, de medir o Ser de imanência
segundo a unidade de transcendência. Mas quaisquer que sejam os compromissos teóricos, há nos
empurrões de imanência alguma coisa que tende a transbordar do mundo vertical, a tomá-lo ao
revés, como se a hierarquia engendrasse uma anarquia particular, ou o amor de Deus, um ateísmo
interno que lhe fosse próprio: a cada vez nós roçamos a heresia. E a Renascença não cessará de
desenvolver, de estender esse mundo imanente, que não se concilia com a transcendência sem a
ameaçar com um novo dilúvio.
É isso que nos parece tão importante na obra de Maurice de Gandillac: a maneira pela qual
ele enfatizou esse jogo da imanência e da transcendência, esses empurrões da imanência da Terra
através das hierarquias celestes. A filosofia de Nicolas de Cues é um grande livro: é surpreendente
que não se possa encontrá-lo, que não tenha sido reeditado.1 Assistimos à eclosão de um conjunto
de conceitos, lógicos e ontológicos, que caracterizarão a filosofia dita moderna através de Leibniz e
dos românticos alemães. Assim ocorre com a noção de Possest que exprime a identidade imanente
do ato e da potência. E essa aventura da imanência, essa concorrência da imanência com a
transcendência, é já o que atravessa a obra de Eckhart, a dos místicos renanos ou, de uma outra
maneira, a de Petrarca. Mas bem além disso, desde o início do neo-platonismo, Gandillac insiste
sobre esses germes e esses espelhos de imanência. Em seu livro sobre Plotino, um dos mais belos
que já se escreveu sobre Plotino, ele mostra como o Ser procede do Uno, mas não complica
menos todos os seres em si mesmo, ao mesmo tempo que ele se explica em cada um deles.2
Imanência da imagem no espelho, e da árvore no germe: são as duas bases de uma filosofia
expressionista. E mesmo no pseudo-Dionísio, o rigor das hierarquias deixa um lugar virtual para as
praias da igualdade, da univocidade, da anarquia.
Os conceitos filosóficos são também, para aquele que os inventa ou os libera, modos de
vida e modos de atividade. Reconhecer o mundo das hierarquias, mas ao mesmo tempo
[18]

atravessá-las por essas praias de imanência que as abalam mais do que as abalaria colocá-los
diretamente em causa é justamente uma imagem de vida inseparável de Maurice de Gandillac. Há
nele como que um homem da Renascença. Há nele um humor vivo, que se confunde precisamente
com essa tecelagem de uma imanência: complicar as coisas ou as pessoas as mais diversas em
um só e mesmo tecido, ao mesmo tempo que cada coisa, cada pessoa, explica o todo. Tolstoi dizia
que, para atingir a alegria, era preciso prender, como em uma teia de aranha, e sem nenhuma lei,
“uma velha, uma criança, uma mulher, um comissário de polícia”. É uma arte de viver e de pensar
que Gandillac sempre exerceu e reinventou. E é seu sentido concreto de amizade.3 Nós a
encontramos também em outra atividade de Gandillac, a de “debatedor”: se, com Geneviève de
Gandillac, ele deu uma nova vida aos Colóquios de Cerisy, foi por meio do escalonamento das
conferências sucessivas, ao inspirar um tipo de debate que traça precisamente praias de
imanência ou as partes de um só e mesmo tecido. As intervenções explícitas de Gandillac podem
ser breves, elas têm um estranho teor e uma riqueza que fazem com que elas devessem ser
reunidas como bocados escolhidos. Esse teor vem do fato de que elas são muito freqüentemente
filológicas, e nós tocamos uma vez mais em uma das atividades de Gandillac: se ele é
profundamente filólogo, e por isso mesmo germanista e tradutor, é porque o pensamento
originário de um autor deve compreender, de alguma maneira, tanto o texto original quanto o
texto derivado, ao mesmo tempo que o texto derivado deve, à sua maneira, explicar o original
(sem, entretanto, nenhum desenvolvimento suplementar). As traduções de Gandillac –
especialmente seu Zaratustra – podem ter suscitado, por sua força mesma,4 controvérsias: é que
elas implicam toda uma teoria e toda uma concepção novas da tradução, sobre as quais Gandillac
não deu até agora senão alguns indicações bastante raras. Mas é certamente um único e mesmo
empreendimento que Gandillac persegue como filósofo, como historiador da filosofia, como
professor, como tradutor, e como homem.

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. P. 244-246.

Nota do original: L'art des confins. Mélanges offerts à Maurice De Gandillac. PUF, Paris 1985: p.
79-81,
Maurice de Gandillac, nascido em 1906, filósofo, especialista em pensamento medieval, tradutor
do latim e do alemão, professor na Sorbonne, de 1946 a 1977, responsável pelo Centro Cultural
Internacional de Cerisy-la-Salla, foi professor de Deleuze e, depois, seu orientador de tese
(Diferença e repetição).

Notas:
1. La Philosophie de Nicolas de Cues, Paris, Aubier, 1942.
2. La Sagesse de Plotin, Paris, Hachette, 1952.
3. Cf. “Approches de l’amitié”, in L’Existence, Gallimard, 1946.
4. Ainsi parlait Zarathoustra, tr. fr. Maurice de Gandillac, in Oeuvres complètes, vol. VI, Paris,
Gallimard, 1971.
[19]

Prefácio para a edição italiana de Mil platôs

Gilles Deleuze e Félix Guattari

Para Giorgio Passerone

Os anos passam, os livros envelhecem, ou, ao contrário, adquirem uma segunda


juventude. Ora eles se espessam e incham, ora eles modificam seus traços, acusam suas arestas,
fazem subir à superfície novos planos. Não cabe aos autores determinar um determinado destino
objetivo. Mas cabe a eles refletir sobre o lugar que um determinado livro adquiriu com o tempo no
conjunto de seu projeto (destino subjetivo), ao passo que ele ocupava todo o seu projeto no
momento em que foi escrito.
Mil platôs (1980) é a seqüência de O Anti-Édipo (1972). Mas eles têm tido, objetivamente,
destinos muito diferentes. Sem dúvida, por razões de contexto: a época agitada de um, que faz
ainda parte de 68, e a calma já monótona, a indiferença em que o outro surgiu. Mil platôs foi o
mais mal recebido de nossos livros. Entretanto, se nós o preferimos, não é como uma mãe prefere
seu filho pouco gracioso. O Anti-Édipo teve muito sucesso, mas esse sucesso se replicava em um
fracasso mais profundo. Ele pretendia denunciar os estragos de Édipo, do “papai-mamãe”, na
psicanálise, na psiquiatria e mesmo na anti-psiquiatria, na crítica literária, e na imagem geral que
se faz do pensamento. Nós sonhávamos em acabar com Édipo. Mas era uma tarefa
demasiadamente grande para nós. A reação contra 68 deveria mostrar a que ponto o Édipo
familial se portava bem e continuava a impor seu regime de lamúria pueril na psicanálise, na
literatura e em todas as partes do pensamento. Ainda que o Anti-Édipo permanecesse nosso
projétil. Ao passo que Mil platôs, malgrado seu fracasso aparente, nos fazia dar um passo adiante,
ao menos para nós, e abordar terras desconhecidas, virgens de Édipo, que o Anti-Édipo tinha visto
apenas de longe sem penetrá-las.
Os três temas de O Anti-Édipo eram os seguintes:
1) O inconsciente funciona como uma fábrica e não como um teatro (questão de produção
e não de representação);
2) O delírio, ou o romance, é histórico-mundial e não familial (deliramos as raças, as tribos,
os continentes, as culturas, as posições sociais...);
3) Há, precisamente, uma história universal, mas é a da contingência (como os fluxos, que
são o objeto da História, passam por códigos primitivos, por sobrecodificações despóticas e por
descodificações capitalistas que tornam possível uma conjunção de fluxos independentes).
O Anti-Édipo tinha uma ambição kantiana, era preciso tentar uma espécie de Crítica da
razão pura no nível do inconsciente. Daí a determinação de sínteses próprias ao inconsciente; o
desenrolamento da história como efetuação dessas sínteses; a denúncia do Édipo como “ilusão
inevitável”, falsificando toda produção histórica.
Mil platôs reivindica, ao contrário, uma ambição pós-kantiana (ainda que decisivamente
anti-hegeliana). O projeto é “construtivista”. É uma teoria das multiplicidades por si mesmas, ali
onde o múltiplo passa ao estado de substantivo, enquanto que o Anti-Édipo o considerava ainda
nas sínteses e sob as condições do inconsciente. Em Mil platôs, o comentário sobre o Homem dos
Lobos (“um só ou vários lobos”) constitui nosso adeus à psicanálise, e tenta mostrar como as
multiplicidades extravasam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a
[20]

história, entre o corpo e a alma. As multiplicidades são a realidade mesma, e não supõem
nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade, assim como não remetem a nenhum
sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que
produzem e aparecem nas multiplicidades. As principais características das multiplicidades dizem
respeito a seus elementos, que são singularidades: suas relações, que são devires, seus
acontecimentos, que são hecceidades (isto é, individuações sem sujeito); seus espaços-tempos,
que são espaços e tempos lisos; seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao
modelo da árvore); seu plano de composição que constitui platôs (zonas de intensidade contínua);
os vetores que os atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização.
A história universal da contingência ganha aí uma maior variedade. Em cada caso, a
questão é: onde e como se faz esse reencontro? Em vez de seguir, como em O Anti-Édipo, a
sucessão tradicional Selvagens-Bárbaros-Civilizados, nós nos encontramos agora diante de toda a
espécies de formações coexistentes: os grupos primitivos, que operam por séries, e por avaliação
do “último” termo, em um estranho marginalismo; as comunidades despóticas, que constituem, ao
contrário, conjuntos submetidos a processos de centralização (aparelhos de Estado); as máquinas
de guerra nômades, que não se apoderarão dos Estados sem que esses não se apropriem da
máquina de guerra que eles não tinham inicialmente; os processos de subjetivação que se
exercem nos aparelhos estatais e guerreiros; a efetuação da convergência entre esses processos,
no capitalismo e através dos Estados correspondentes; as modalidades de uma ação
revolucionária; os fatores comparados, em cada caso, do território, da terra e da
desterritorialização.
Os três fatores, pode-se vê-los aqui jogar livremente, isto é, esteticamente, no ritornelo. As
pequenas canções territoriais, ou canto dos pássaros; o grande canto da terra, quando a terra
urrou; a possante harmonia das esferas ou a voz do cosmo? É exatamente isso que este livro
queria: agenciar ritornelos, lieder, correspondendo a cada platô. Porque a filosofia, também ela,
não é outra coisa: da pequena canção ao mais possante dos cantos – uma espécie de
sprechgesang [canção falada] cósmico. O pássaro de Minerva (para falar como Hegel) tem seus
gritos e seus cantos; os princípios em filosofia são gritos, em tornos dos quais os conceitos
desenvolvem verdadeiros cantos.

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade.
Nota da edição original: Com Félix Guattari. In Deleuze-Guattari. Capitalisme e schizophrenia 2:
Mille piani, Roma, Bibliotheca bibliographia, 1987. Trad. It. Giorgio Passerone.
[21]

Resposta a uma questão sobre o sujeito

Gilles Deleuze

Um conceito filosófico cumpre uma ou várias funções, nos campos de pensamento que são,
também eles, definidos por variáveis interiores. Há, enfim, variáveis exteriores (estados de coisas,
momentos da história) em uma relação complexa com variáveis internas e funções. Significa dizer
que um conceito não nasce e não morre por prazer, mas na medida em que novas funções em
novos campos relativamente destituem-no. É por isso também que não é nunca interessante
criticar um conceito: é melhor construir novas funções e descobrir novos campos que o tornem
inútil ou inadequado.
O conceito de sujeito não escapa a essas regras. Ele já cumpriu suas funções: inicialmente,
uma função de universalização, em um campo no qual o universal não era mais representado por
essências objetivas, mas por atos noéticos ou lingüísticos. Nesse sentido, Hume assinala um
momento importante na filosofia do sujeito, porque ele invoca atos que ultrapassam o dado (o que
se passa quando digo “sempre” ou “necessário”?). O campo correspondente, desde então, não é
mais, absolutamente, o do conhecimento, mas, antes, o da “crença”, como nova base do
conhecimento: sob quais condições uma crença é legítima, segundo a qual eu digo mais do que
aquilo que me é dado? Em segundo lugar, o sujeito cumpre uma função de individuação, em um
campo no qual o indivíduo não pode ser uma coisa nem uma alma, mas uma pessoa, viva e vivida,
falante e falada (“eu-tu”). Esses dois aspectos do sujeito, o Eu universal e o Mim individual, estão
necessariamente ligados? Mesmo ligados, não existe conflito entre eles, e como resolver esse
conflito? Todas essas questões animam aquilo que se pode chamar de filosofia do sujeito, já em
Hume, mas também em Kant, que confronta um Eu como determinação do tempo e um Mim como
determinável no tempo. Em Husserl ainda, questões análogas se porão na última das Meditações
cartesianas.
Pode-se atribuir novas funções e variáveis capazes de causar uma mudança? Trata-se de
funções de singularização que invadiram o campo do conhecimento, em favor de novas variávies
de espaço-tempço. Por singularidade, é preciso não entender alguma coisa que se oponha ao
universal, mas um elemento qualquer que pode ser prolongado até a vizinhança de um outro, de
maneira a formar uma junção: trata-se de uma singularidade no sentido matemático. O
conhecimento e mesmo a crença tendem, pois, a ser substituídos por noções como
“agenciamento” ou “dispostivo”, que designam uma emissão e uma repartição de singularidades.
São essas emissões, do tipo “lance de dados”, que constituem um campo transcendental sem
sujeito. O múltiplo se torna o substantivo, multiplicidade, e a filosofia ´a teoria das multiplicidades,
que não remetem a nenhum sujeito como unidade prévia. O que conta não é mais o verdadeiro
nem o falso, mas o singular e o regular, o remarcável e o ordinário. É a função de singularidade
que substitui a de universalidade (em um novo campo que não tem mais utilidade para o
universal). Vê-se isso até mesmo no direito: a noção jurídica de “caso”, ou de “jurisprudência”,
destitui o universal, em favor de emissões de singularidades e de funções de prolongamento. Uma
concepção do direito fundada na jurisprudência dispensa todo “sujeito” de direitos. Inversamente,
uma filosofia sem sujeito apresenta uma concepção do sujeito fundada na jurisprudência.
Correlativamente, talvez, se impuseram tipos de individuação que não eram mais pessoais.
Pergunta-se sobre o que faz a individualidade de um acontecimento: “uma vida, uma estação, um
[22]

vento, uma batalha, cinco horas da tarde...”. Pode-se chamar de hecceidadade ou ecceidade essas
individuações que não constituem mais pessoas ou mins. E surge a questão de saber se não
somos essas heceidades em vez de mins. A filosofia e a literatura anglo-americana são, a esse
respeito, particularmente interessantes, porque elas se destacam, freqüentemente, por sua
incapacidade por encontrar um sentido atribuível à palavra “mim”, exceto o de uma ficção
gramatical. Os acontecimentos colocam questões de composição e de decomposição, de
velocidade e de lentidão, de longitude e de latitude, de potência e de afectos muito complexas.
Contra todo personalismo, psicológico ou lingûístico, eles implicam a promoção de uma terceira
pessoa, e mesmo de uma “quarta” pessoa do singular, não-pessoa ou Ele, na qual nos
reconhecemos melhor, nós mesmos e nossa comunidade, do que em vãs trocas entre um Eu e um
Tu. Em suma, cremos que a noção de sujeito perdeu muito de seu interesse em favor de
singularidades pré-individuais e de individuações não-pessoais. Mas, precisamente, não é
suficiente opor os conceitos entre si para saber qual é o melhor. É preciso confrontar os campos
de problemas aos quais eles respondem, para descobrir sob quais forças os problemas se
transformam e exigem, eles próprios, a constituição de novos conceitos. Nada do que os grandes
filósofos escreveram sobre o sujeito envelhece, mas esta é a razão pela qual nós temos, graças a
eles, outros problemas a descobrir, em vez de efetuar “retornos” que mostrariam apenas nossa
incapacidade em segui-los. A situação da filosofia não se distingue, aqui, fundamentalmente, da
situação das ciências e das artes.

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. P. 326-328.

Nota da edição original: O texto original datilografado é datado de fevereiro de 1988. O texto foi
publicado, inicialmente, em inglês, em uma tradução de Julien Deleuze para a revista Topoi,
setembro de 1988, p. 111-112, sob o título “A philosophical concept...”, antes de ser retraduzido
para uma revista francesa (o texto original tinha, então, se extraviado).
[23]

Carta-prefácio a Jean-Clet Martin

Gilles Deleuze

Ao ler seu livro, fico feliz que você se ocupe com meu trabalho, tamanha é sua
demonstração de rigor e de compreensão. Tento responder a algumas de suas observações, mas,
freqüentemente, a diferença entre nós é, antes, uma questão de palavras.
1. Creio na filosofia como sistema. Não gosto da noção de sistema quando se a remete às
coordenadas do Idêntico, do Semelhante e do Análogo. Foi Leibniz, creio, o primeiro a identificar
sistema e filosofia. No sentido em que ele o faz, eu concordo. As questões “ultrapassar a filosofia”,
“morte da filosofia” também nunca me sensibilizaram. Sinto-me um filósofo muito clássico. Para
mim, o sistema não deve apenas estar em perpétua heterogeneidade, ele deve ser heterogênese,
coisa que, parece-me, nunca se tentou fazer.
2. Desse ponto de vista, o que você diz sobre a metáfora ou, antes, contra ela, me parece
justo e profundo. Acrescento apenas algo que não contradiz em nada o que você diz, mas que vai
numa direção próxima: o duplo desvio, a traição, me parecem operações que instauram uma
imanência radical, tem-se aí um traçado de imanência – daí a relação essencial com a Terra.
3. Você percebe muito bem a importância, para mim, de definir a filosofia pela invenção ou
criação de conceitos, isto é, como não sendo nem contemplativa nem reflexiva, nem comunicativa,
etc., mas como atividade criadora. Creio que ela sempre foi isso, mas ainda não soube me explicar
sobre esse ponto. É por isso que eu queria tanto que o meu próximo livro fosse um texto curto
sobre O que é a filosofia?
4. Você percebe muito bem a importância, para mim, da noção de multiplicidade: é o
essencial. E, como você diz, multiplicidade e singularidade estão essencialmente ligadas
(“singularidade” é, ao mesmo tempo, diferente de “universal” e de “individual”). “Rizoma” é a
melhor palavra para designar as multiplicidades. Em contrapartida, parece-me que abandonei
completamente a noção de simulacro, que não vale grande coisa. Finalmente, é Mil platôs que é
consagrado às multiplicidades por si mesmas (devires, linhas, etc.).
5. Empirismo transcendental não quer, efetivamente, dizer nada se não se precisa as
condições. O “campo” transcendental não deve ser decalcado do empírico, como o faz Kant: ele
deve, sob esse aspecto, ser explorado por sua conta e, portanto, “experimentado” (mas trata-se
de um tipo de experiência muito particular). É esse tipo de experiência que permite descobrir as
multiplicidades, mas também o exercício do pensamento ao qual remete o terceiro ponto. Porque
creio que, além das multiplicidades, o mais importante para mim tem sido a imagem do
pensamento tal como tentei analisar em Diferença e repetição, depois em Proust, e em todos os
lugares.
6. Permita-me, enfim, um conselho de trabalho: é sempre interessante, nas análises de
conceito, partir de situações muito concretas, muito simples, e não de antecedentes filosóficos,
nem mesmo de problemas enquanto tais (o uno e o múltiplo, etc.); por exemplo, para as
multiplicidades, de onde é preciso partir, seria assim: o que é uma matilha? (diferente de um
animal sozinho), o que é um ossuário? Para os acontecimentos: o que é cinco horas da tarde? Por
exemplo, é na relação concreta entre o homem e o animal que é preciso buscar a crítica possível
da mimese. Não tenho, pois, mais que uma coisa a lhe dizer: não perca o concreto, volte a ele
constantemente. Multiplicidade, ritornelo, sensação, etc., se desenvolvem em puros conceitos, mas
[24]

são estritamente inseparáveis da passagem de um concreto a outro. É por isso que é preciso
evitar conceder a uma noção qualquer um primado sobre as outras: é cada noção que deve
implicar as outras, por sua vez e a cada momento [...]. Creio que quanto mais um filósofo é
dotado mais ele tem tendência, no começo, a deixar o concreto. Ele deve evitar isso, fazendo-o
apenas de tempos em tempos, o tempo de voltar às percepções, aos afectos, que devem
reduplicar os conceitos.
Perdoe-me a imodéstia dessas observações. A única razão foi a de ser breve. Desejo-lhe o
melhor em seu trabalho. Sinceramente seu.

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. P. 338-340.

Nota da edição original: Título do editor. “Lettre-préface de Gilles Deleuze”, in Jean-Clet Martin,
Variations – La philosophie de Gilles Deleuze, Paris, Payot & Rivages, 1993, p. 7-9. A carta é
datada de 13 de junho de 1990.
[25]

Prefácio: uma nova estilística

Gilles Deleuze

Este livro provém de uma dupla reflexão sobre a literatura italiana e a literatura francesa.
Ele tem sua fonte na fronteira dos dois países, embora ele se estenda para além dela. Giorgio
Passerone não nos propõe, entretanto, um tratado geral do estilo, mas o estudo de certos
processos em literatura. É possível que esses processos se desenvolvam e passem a outras artes,
ao se transformar. Mas essa transformação se fará tanto mais facilmente quanto mais o autor
mergulhar tão-somente na literatura. É por isso que todo o livro gira em torno de duas idéias
literárias. Em primeiro lugar, o estilo não é uma figuração retórica, mas uma produção sintática,
uma produção de sintaxe e pela sintaxe. Perguntar-se-á, então, que idéia Passerone faz da
sintaxe, que não é a de Chomsky, por exemplo. Em segundo lugar, o estilo é como uma língua
estrangeira na língua, seguindo uma fórmula célebre de Proust. E se perguntará que idéia da
língua faz Passerone, para que essa fórmula não seja uma simples metáfora, uma figura retórica,
mas, ao contrário, ela deve ser compreendida literalmente.
A lingüística considera uma língua em um momento dado como um sistema homogêneo,
próximo do equilíbrio. Passerone está mais perto da sócio-lingüística, não porque ele invoque a
ação de fatores sociais exteriores, mas porque ele trata cada língua como um conjunto
heterogêneo, longe do equilíbrio e bifurcando-se perpetuamente: uma espécie de black-english ou
de chicano. Não é que se salte de uma língua a outra, como em um bilingüismo ou um
plurilingüismo; é, antes, que há sempre, em uma língua, uma outra língua, ao infinito. Não uma
mistura, mas uma heterogênese. Sabe-se que o discurso indireto livre (muito rico em italiano, em
alemão, em russo) é uma forma sintática singular: ele consiste em um enunciado que depende de
um sujeito de enunciação dado, que introduz um outro sujeito de enunciação. “Percebi que ela ia
partir. Ele tomava todas as precauções para não ser seguida...”: o segundo “ela” é um novo
sujeito de enunciação, que surge em um enunciado que depende de um primeiro sujeito “eu”. É
como se todo sujeito de enunciação contivesse outros que falam, cada um, uma língua diferente,
uns nos outros. É o discurso indireto livre que leva Bakhtin à sua concepção polifônica da língua no
romance ou a língua no romance como contraponto, ou que inspira Pasolini em sua reflexão sobre
a poesia. Mas não se trata de teoria: é nos grandes autores, de Dante a Gadda, que Passerone
apreende o processo prático do discurso indireto livre. Esse processo pode permanecer oculto em
uma língua muito centralizada e uniformizada como o francês. Ele é, entretanto, coextensivo a
toda língua, elemento determinante da sintaxe: ele escava na língua outras tantas línguas que se
bifurcam e se correspondem. Mesmo em francês, Balzac parte a língua em outras tantas línguas,
assim como em outros tantos personagens, tipos e milieux. Ao ponto que se poderia dizer: “ele
não tem estilo”, mas esse não-estilo é precisamente o grande estilo, ou a criação do estilo em
estado puro.
A lingüística objetaria que não se trata de línguas, propriamente falando. Mas somos
sempre reconduzidos à questão prévia: a língua é um sistema homogêneo ou um agenciamento
heterogêneo em perpétuo desequilíbrio? Se a segunda hipótese está correta, uma língua não se
decompõe em elementos, mas em línguas ao infinito, que não são línguas diferentes, mas com as
quais o estilo (ou o não-estilo) comporá uma língua estrangeira na língua. O que a lingüística
considera como determinações secundárias, a estilística, a pragmática, tornam-se aqui fatores
[26]

primeiros da língua. O mesmo problema se encontra em outro nível: a lingüística considera


constantes ou universais da língua, elementos e relações; mas para Passerone e os teóricos aos
quais ele recorre, a língua não tem constantes, ela só tem variáveis, e o estilo consiste em colocar
as variáveis em variação. Cada estilo é uma tal colocação em variação, que é preciso seguir e
definir concretamente. Foi o estranho e profundo lingüista Gustave Guillaume que substituiu as
oposições distintivas de fonemas (constantes) pela idéia de posições diferenciais de morfemas: são
as variáveis-pontos que percorrem uma linha ou um movimento de pensamento determinável. Por
exemplo, o artigo indefinido “um” é uma variável que opera cortes ou assume pontos de vista
sobre um movimento de particularização; da mesma forma, o artigo definido “o”, sobre um
movimento de generalização. Guillaume desenvolverá, para os verbos em geral, movimentos de
incidência e decadência (poder-se-ia acrescentar a “procadência”) em relação aos quais os tempos
verbais são cortes, pontos de vista ou posições diferenciais. Por exemplo, o imperfeito de Flaubert.
E, sem dúvida, cada verbo envolverá dinamismos ou percursos especiais sobre os quais seus
tempos e seus modos assumem posições e operam cortes. As variáveis percorrem zonas de
variação finitas ou infinitas, contínuas ou descontínuas, que constituem o estilo como modulação
da língua.
A célebre fórmula de Buffon, “o estilo é o próprio homem”, não significa que o estilo
remeta à personalidade do autor. Buffon permanece aristotélico: o estilo é a forma que se atualiza
em uma matéria lingüística: é um molde. Mas como o demonstra a teoria do organismo em
Buffon, o molde goza de uma propriedade paradoxal: ele não se contenta em formar a aparência
ou a superfície, mas age em toda a espessura daquilo que ele forma (“molde interior”). É mais que
um molde, é uma modulação, isto é, uma moldagem de ação interna e transformação temporal.
Ao passar do molde à modulação, Passerone mostra como se desenvolve uma concepção melódica
do estilo: em Rousseau, que busca restaurar uma prática monofônica da melodia pura; mas já no
mundo barroco, depois no romântico, no qual a polifonia e a harmonia, os acordes constantes e
dissonantes formam uma modulação cada vez mais fina e autônoma, chegando até ao pós-
romantismo de Nietzsche, o maior filósofo-estilista. Está aí, talvez, o segredo da modulação: a
maneira pela qual ela traça uma linha sempre bifurcante e quebrada, rítmica, como uma nova
dimensão capaz de fundir harmonia e melodia. E essa está, sem dúvida, entre as páginas mais
fortes de Passerone: ele está seguro de que a língua faz ver alguma coisa, e o que ela faz vez são
as figuras de retórica; mas essas figuras são apenas o efeito superficial do que constitui o estilo,
isto é, a polifonia dos sujeitos de enunciação, a modulação dos enunciados. Como diz Proust, as
figuras ou metáforas não são senão a apreensão de objetos diferentes pelos e nos “aros
necessários de um bom estilo”. A imaginação depende sempre de uma sintaxe.
As variáveis de uma língua são como posições ou pontos de vista sobre um movimento de
pensamento, um dinamismo, uma linha. Cada variável passa e repassa por posições diversas sobre
uma linha de modulação particular: daí o estilo que caminha sempre por repetição-progressão.
Passerone analisa três casos decisivos na literatura francesa: a linha-dobra de Mallarmé, a linha
desdobrada de Claudel, a linha vibratória e rodopiante de Artaud. Mais geralmente, dir-se-ia que o
estilo tensiona a língua, ele aciona aí tensores que tendem a limites. É que a linha ou o movimento
de pensamento são exatamente, em cada caso, como o limite de todas as posições das variáveis
consideradas. Esse limite não está fora da língua, nem da linguagem, mas ele é o seu fora. Um
fora da linguagem que não está fora dela. Da mesma forma, quando se diz que o estilo é como
uma língua estrangeira não se trata de uma língua diferente da que falamos, trata-se de uma
[27]

língua estrangeira na língua que falamos. Tensionado em direção a um limite interior, ou em


direção ao fora da língua, essa se põe a gaguejar, a balbuciar, a gritar, a cochichar. Aí ainda, e de
uma segunda maneira, o estilo aparece como não-estilo, e constitui a loucura da língua, seu
delírio. Mandelstam diz: “Sobre mim e sobre muitos de meus contemporâneos pesa a gagueira do
nascimento; nós aprendemos não a falar, mas a balbuciar, e não é senão ao pôr-se à escuta do
ruído crescente do século e, uma vez lavado pela crista de sua escuma, que adquirimos uma
língua”.1 Como nomear essa linha de crista em direção à qual toda a língua se tensiona,
modulante? Mais ele se aproxima dessa linha, mais o estilo se torna sóbrio, “não-estilo!, como em
Tolstoi, como em Beckett. Os grandes escritores não gostam que os cumprimentemos por sua
obra passada, nem mesmo por sua obra presente: é eles sabem, só eles, a que ponto eles ainda
estão longe do que eles querem, do que eles buscam. Uma “linha abstrata”, diz Céline, que não
forma um contorno ou uma figura, mas que se pode encontrar nesta ou naquela figura, sob a
condição de a desfazer, de a extrair: “esta famosa linha, que alguns encontram na natureza, nas
árvores, nas flores, no mistério japonês...”.2 Ou então em uma hora do dia (Lorca, Faulkner), ou
então em um acontecimento que virá, ou que tarda tanto mais quanto ele já chegou, ou então em
uma postura do corpo ou em um movimento de dança: tensão de toda linguagem em direção à
pintura, à música, mas música e pintura que são as da língua e não pertencem senão a ela.
A língua como conjunto heterogêneo; o discurso indireto livre como coextensivo à língua;
as variáveis e sua colocação em variação, modulação; as tensões que atravessam uma língua; a
linha abstrata como fora ou limite da linguagem... Tememos precisamente ter tornado o livro de
Passerone demasiadamente abstrato. Cabe agora ao leitor perceber a que ponto este livro é
concreto, através da variação dos casos considerados, constituindo uma das mais novas, uma das
mais belas análises de uma noção difícil, o estilo.
1. In Le Bruit du temps, Lausanne, L’Age d’Homme, 77.
2. In Marc Hanrez, Céline, Gallimard, Paris, 1969, p. 219.
In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. P. 343-347.

Nota da edição original: In Giorgio Passerone, La Linea astratta – Pragmatica dello stile, Milano,
Edizioni Angelo Guerini, 1991, p. 9-13. O texto manuscrito é datado de setembro de 1990. Trad.
It. Giorgio Passerone.
No final dos anos 70, Passerone, jovem pesquisador italiano, veio acompanhar os cursos de
Deleuze na Universidade de Vincennes, depois na Universidade de Saint-Denis. Amigo de Deleuze,
Passerone traduziria Mil platôs para o italiano. La Linea astratta retoma o essencial da tese de
Passerone defendida na Universidade de Paris VIII sob a orientação de Deleuze e de René
Scherer.

Nota do tradutor: A diferença entre “Je” e “Moi” é, em geral, assinalada, em português, por
artíficios tais como, por exemplo, traduzir “Je” simplesmente por “Eu” e “Moi” por “Eu” colocado
entre colchetes: [Eu]. Nesta tradução e na de outros textos desta antologia, tive a temeridade de
inovar, traduzindo Moi por Mim, inspirado, sobretudo, no seguinte poema de Manuel Bandeira:

Peregrinação
[28]

O córrego é o mesmo,
Mesma, aquela árvore,
A casa, o jardim.
Meus passos a esmo
(Os passos e o espírito)
Vão pelo passado,
Ai tão devastado,
Recolhendo triste
Tudo quanto existe
Ainda ali de mim
– Mim daqueles tempos!

Manuel Bandeira, Lira dos Cinquent’anos

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. P. 343-347.
[29]

Nós inventamos o ritornelo

Gilles Deleuze e Félix Guattari

– A definição que vocês dão da filosofia é bastante ofensiva. Vocês não temem que vocês sejam,
assim, acusados de quererem manter – ou restaurar – o privilégio que a tradição parecia lhe
conceder?
– Pode-se dar muitas definições inofensivas da filosofia: conhecer-se, admirar-se, refletir, conduzir
seu pensamento de forma apropriada... Elas são inofensivas porque são vagas: elas não
constituem uma ocupação definida. Nós definimos a filosofia pela criação de conceitos. Cabe a nós
mostrar que a ciência, por sua vez, não procede por conceitos mas por funções. A filosofia não
extrai disso nenhum privilégio: um conceito não tem nenhuma superioridade sobre uma função.
– Eu lhes fiz essa pergunta porque vocês confrontam a filosofia com a arte e a ciência, mas não
às ciências humanas. Praticamente não se fala da história, por exemplo, no livro de vocês.
– Nós falamos muito de história. Apenas que o devir se distingue da história. Entre os dois, há
toda espécie de correlações e de reenvios: o devir nasce na história e aí recai, mas não lhe
pertence. É o devir e não o eterno que se opõe à história. A história considera certas funções
segundo as quais os acontecimentos se efetuam, mas o acontecimento, na medida em que ele
ultrapassa sua própria efetuação, é o devir como substância do conceito. O devir sempre foi o
problema da filosofia.
– Ao elaborarem a definição da filosofia como criação de conceitos, vocês atacam particularmente
a idéia de que a filosofia seria ou deveria ser “comunicação”. Tem-se a impressão de que os
últimos livros de Jürgen Habermas e sua teoria da “ação comunicativa” são um dos alvos principais
de vocês.
– Não, não atacamos particularmente Habermas, nem qualquer outra pessoa. Habermas não é o
único a querer indexar a filosofia de acordo com a comunicação. Uma espécie de moral da
comunicação. A filosofia é, inicialmente, pensada como contemplação, e isso deu como resultado
obras esplêndidas, por exemplo com Plotino. Depois como reflexão, com Kant. Mas justamente era
preciso, inicialmente, nos dois casos, criar um conceito de contemplação ou de reflexão. Não
estamos certos de que a comunicação tenha encontrado, por sua vez, um bom conceito, isto é,
um conceito realmente crítico. O “consenso” ou as “regras de uma conversação democrática”, à
maneira de Rorty, não bastam para formar um conceito.
– Contra essa idéia de comunicação, da filosofia como “diálogo”, vocês propõem a “imagem do
pensamento” que vocês inserem num quadro muito mais geral. É o que vocês chamam de
“geofilosofia”. Esse capítulo está no cerne do livro de vocês. É, ao mesmo tempo, uma filosofia
política e quase uma filosofia da natureza.
– Há certamente razões para que a filosofia nasça nas cidades gregas e continue nas sociedades
capitalistas ocidentais. Mas são razões contingentes, o princípio de razão é um princípio de razão
contingente e não necessário. É por isso que essas formações são focos de imanência,
apresentando-se como sociedades de “amigos” (competição, rivalidade) e implicam uma promoção
da opinião. Ora, esses três traços fundamentais definem apenas as condições históricas da
filosofia; a filosofia como devir está em relação com eles, mas não se reduz a isso, ela é de uma
outra natureza. Ela não pára de colocar em questão suas próprias condições. Se essas questões de
[30]

geofilosofia tem muita importância é porque pensar não se faz nas categorias do sujeito e do
objeto, mas em uma relação variável entre o território e a terra.
– Nessa “geofilosofia”, vocês apelam à “filosofia revolucionária” e à necessidade de “revoluções”.
É quase uma manifesto político o que vocês propõem. E isso pode parecer paradoxal, no contexto
atual.
– A situação atual é muito confusa. Tende-se a confundir a conquista das liberdades com a
conversão ao capitalismo. É duvidoso que os prazeres do capitalismo sejam suficientes para liberar
os povos. Glorifica-se o fracasso sangrento do socialismo. Mas não parecem considerar como um
fracasso o estado do mercado mundial capitalista, com as sangrentas desigualdades que o
condicionam, as populações colocadas fora do mercado, etc. Há muito tempo que a “revolução”
americana fracassou, assim como a soviética. As situações e tentativas revolucionárias são
engendradas pelo próprio capitalismo e, lamento dizê-lo, senhores, não correm o risco de
desaparecer. A filosofia continua ligada a um devir revolucionário que não se confunde com a
história das revoluções.
– Fiquei impressionado com um ponto do livro de vocês: o filósofo, dizem vocês, não discute. Sua
atividade criadora só pode ser isolada. Trata-se de uma grande ruptura com todas as
representações tradicionais. Vocês pensam que o filósofo não deve mesmo discutir com seus
leitores, com seus amigos?
– Já é difícil compreender o que alguém diz. Discutir é um exercício narcísico, no qual cada um se
exibe, por sua vez: muito rapidamente, não se sabe mais sobre o que se fala. O que é difícil é
determinar o problema ao qual esta ou aquela proposição responde. Ora, se se compreende o
problema formulado por alguém, não se tem nenhuma vontade de discutir com ele: ou se se
formula o mesmo problema, ou então se formula um outro e se tem, antes, vontade de avançar
nessa direção. Como discutir se não se tem um fundo comum de problemas, e por que discutir
quando se o tem? Tem-se sempre as soluções que correspondem aos problemas que se formulam.
As discussões representam muita perda de tempo para problemas indeterminados. As
conversações são outra coisa. É preciso certamente entrar em conversações. Mas a menor
conversação é um exercício esquizofrênico que se passa entre indivíduos que têm um fundo
comum, e um grande gosto por elipses e atalhos. A conversação é feita de pausas, de longos
silêncios; ela pode dar idéias. Mas a discussão não faz, absolutamente, parte do trabalho filosófico.
Terror da fórmula “vamos discutir um pouco”.
– Quais são, na opinião de vocês, os conceitos criados pelos filósofos do século XX?
– Quando Bergson fala da “duração”, ele emprega essa palavra insólita porque ele não quer nós a
confundamos com o devir. Ele cria um novo conceito. Da mesma forma, a memória, determinada
como coexistência de camadas do passado. Ou o elã vital como conceito da diferenciação.
Heidegger criou um novo conceito de Ser, seu duplo componente do velamento e do
desvelamento. Um conceito exige, às vezes, uma palavra estranha, com etimologias quase
malucas, às vezes, uma palavra corrente, mas da qual se extrai harmonias as mais longínquas.
Quando Derrida escreve “différance”, com um a, trata-se evidentemente de propor um novo
conceito de diferença. Em A arqueologia do saber, Foucault cria um conceito de enunciado que
não se confunde com o de frase, de proposição, de ato de palavra, etc. A primeira característica
própria de um conceito consiste em operar um corte inédito nas coisas.
– E vocês, quais conceitos vocês acham que criaram?
– O ritornelo, por exemplo. Nós criamos o conceito de “ritornelo” em filosofia.
[31]

In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org.
de David Lapoujade. P. 353-356.

Nota da edição original: Entrevista conduzida por Didier Eribon in Le Nouvel Observateurs,
setembro de 1991, p. 109-110. Por ocasião da publicação de O que é a filosofia?.

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