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LENDAS DE UM KIRAYA
Parte I
Rildo Moraes

LENDAS DE UM KIRAYA - PARTE I


Autor RILDO MORAES

Ilustrações LUCAS VENTURIM - lucasventurim@gmail.com


KYAN-PÔ – BRASIL
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Brasília – 2014

MATERIAL REGISTRADO NA BIBLIOTECA NACIONAL

POR FAVOR, NÃO REPRODUZA.

Adquira o seu pelo tel. (61) 3322-7880 ou (61) 8583.5360


(oi/whats) – é mais barato e é legal!

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OBSERVAÇÃO

Este livro fala de uma lenda moderna.


Trata-se do agrupamento de diversos “causos” contados pelos
antigos instrutores de Kyan-pô. Cujo objetivo maior é relatar
conhecimentos e experiências que não fazem mais parte do curso
de Kyan-pô. Há uma mescla de ficção com realidade que – mesmo
para os mais atentos – não será tão simples de distinguir! Divirta-se
com isso!Espero que lhe agrade a leitura e que lhe proporcione
momentos de satisfação e de rica instrução.
Distinguir o real do ilusório é seu papel, caro leitor.

DEDICATÓRIA

Kiraya1 significa “buscador” e por isso, esse livro é dedicado a


todos os buscadores, àqueles que querem respostas e não temem
fazer perguntas.

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em especial, á Persephanny – uma guerreira sagrada


cujo apoio foi fundamental na elaboração desta obra. E também a
Litah, que me estimulou muito a concluir esta exótica obra, mesmo
eu não sendo escritor!

O AUTOR

Rildo Moraes conheceu o kyan-pô em 1987 em São Paulo.


Afastou-se e retornou, como um filho pródigo. Hoje é um kokashi –
aquele que representa um mestre. Ministra cursos de kyan-pô em
Brasília desde 2008.

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Hoje esse termo é usado para os alunos de nível vermelho. Os alunos de nível
branco, amarelo e laranja são designados como Purayas (crianças).
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Índice:

1. A Vida é Cheia de Mistérios ............................................................................ 5


2. A Revelação .................................................................................................... 6
3. Eirunepé? ...................................................................................................... 10
4. Contato ......................................................................................................... 12
5. Um Passeio e uma Descoberta ..................................................................... 19
6. Sonho? .......................................................................................................... 23
7. Começa o Treinamento................................................................................. 25
8. Graus de Consciência .................................................................................... 30
9. Importância do Calar .................................................................................... 34
10. Cuidando do Corpo ..................................................................................... 38
11. Contratempos ............................................................................................. 41
12. Mudanças ................................................................................................... 44
13. A Volta a Eirunepé ...................................................................................... 47
14. Resultado de uma Batalha .......................................................................... 50
15. Funeral ........................................................................................................ 52
16. Mathias e a Magia Negra ............................................................................ 54
17. Uma Noite Agitada...................................................................................... 58
18. Redefinindo Orientadores........................................................................... 62
19. Novos Conhecimentos ................................................................................ 63
20. Esoterismo Cristão ...................................................................................... 64
21. O Cristo ....................................................................................................... 69
22. Quando não se quer fazer uma coisa... ....................................................... 73
23. Espíritos ...................................................................................................... 78
24. Que Droga! ................................................................................................. 82

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1. A Vida é Cheia de Mistérios

Era janeiro de 2000, Gilmar e seu grande amigo Marco saíram


de Taguatinga para acampar na Chapada dos Veadeiros. Esses
jovens eram como irmãos: Gil era claro, de olhos e cabelos
castanhos e Marco era um negro forte, simpático e risonho.
Saíram de Taguatinga, passaram por Sobradinho, por
Planaltina e entraram na estrada que iria a São Gabriel de Goiás.
Quando chegaram próximo à cidade de Alto Paraíso de Goiás,
dirigiram-se à Vila São Jorge e seguiram por uma tortuosa estrada
de terra. Passaram da Vila e, conforme orientações previamente
repassadas por um grupo de amigos que acampavam na região,
seguiram por uma esburacada estrada até verem uma placa caindo
aos pedaços, com os dizeres “Gênesis”. Seguiram a indicação da
placa e, depois de quase meia hora pararam o carro. Era um local
com árvores e gramado, onde havia destroços de uma antiga casa.
- É aqui mesmo! - gritava Gil diante do atônito amigo.
- Credo! Destruíram uma casa por aqui. É melhor ficarmos
distante dela, pode ter escorpiões e aranhas!
Rapidamente tiraram as bagagens e montaram a barraca. O
local era, como perceberiam depois, muito interessante. Era uma
grande clareira na mata e estava perto de um riacho.
Curiosos, foram atrás do riacho. Surpresos, descobriram muito
mais que um simples riacho, pois havia uma magnífica piscina
natural entre as pedras.
A sexta-feira e o sábado passaram ligeiro. Os dias cheios de
diversões e as noites, sempre estreladas. No domingo pela manhã,
Marco levantou primeiro, mas rapidamente estava de volta à
barraca gritando:
- Gil, acorda!!!! Tem uma coisa doida acontecendo no mato!
- O que foi? – perguntou sonolento.
- Tem alguma coisa doida de demais acontecendo no mato!
Tem luzes piscando p’ra tudo quanto é lado! É coisa de louco! É luz
que brilha saindo do nada! Parece coisa do outro mundo!

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Aqueles valorosos rapazes, munidos de facões, seguiram o


caminho até o famigerado lugar. Gil levava também, uma máquina
fotográfica.
Ao chegarem perto, um frio em forma de silêncio tomou conta
dos rapazes. De fato, haviam estranhas luzes que brilhavam no ar
sem motivo algum. Nenhum som se ouvia. Gil ligou sua máquina
fotográfica e tirou uma foto que, para espanto geral, parece que
causou algo junto àqueles brilhos, pois logo após a fotografia, elas
sumiram!
Voltaram assustados para o acampamento. O consenso dizia,
em silêncio, que o acampamento já estava na hora de ser
encerado. Chegaram às suas casas mais cedo que o previsto.
Contaram suas aventuras, mas não acharam prudente tocar no
caso das luzes. Sabiam que essas histórias poderiam prejudicar a
autorização para futuros acampamentos. E, afinal, aquilo deveria
ter sido uma grande bobagem que não conseguiram entender!

2. A Revelação

Segunda-feira, logo pela manhã, Gil foi levar o filme para ser
revelado. A seguir, foi para casa do Marco, onde se divertiram com
as fotos. Sobre as luzes, apareceu apenas uma foto escura com
pontos luminosos! Ficaram decepcionados. Como falar dessa
história para alguém, se não havia provas? Marco achou melhor
esquecer essa história e Gil, sem ter argumentos, concordou.
Indo para casa, algo intrigava Gil.
À tarde, ele procurou seu amigo fotógrafo, o Vladimir. Queria
uma análise do negativo e ele era a pessoa certa para isso, pois
era também ufólogo e disse ter tirado fotos de naves no interior de
São Paulo. Outra decepção, ele não estava lá, estava com um
grupo de ufólogos em uma convenção no litoral da Bahia.
Voltando para casa teve uma idéia: colocar os negativos
contra a luz do sol. Mais uma decepção: nada aparecia naquele
filme escuro, apenas pontos de luzes.
À noite, uma agradável surpresa, sua amiga Kelly, aquela
menina que ele sempre gostou, estava na frente de sua casa. Ela
desceu do carro e, após as tradicionais recepções que são dadas
as pessoas queridas, perguntou:
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- Gil, você ainda conserta coisas nas horas de folga?


- Claro! Aliás, horas de folga é o que não me faltam. O que
foi?
- Veja, isso é um equipamento que projeta ‘Luz Negra’ e está
com defeito, pode dar uma olhadinha? É de uma amiga minha que
trabalha com eventos.
- Vou abrir e farei o possível para consertar.
A noite estava diferente, não apenas pelo vento frio que fazia
a longa cabeleira dessa menina dançar, mas principalmente pelos
sorrisos desses jovens. A conversa iria longe, mas o pai do Gil fez
questão de interromper. Gil pede desculpas e diz:
- Se possível, passe aqui amanhã!
Assim que ela saiu, ele entrou em sua casa, passou na
cozinha para pegar alguma fruta e se trancou no quarto, sob
observações ranzinzas do seu pai.
Na bancada que há no quarto, colocou as fotos, o negativo e o
aparelho de luz negra. Estava ansioso para concertar esse
aparelho, pois queria impressioná-la. Não demorou muito para
descobrir que o aparelho não está com problemas, mas o plug que
vai à tomada é que estava com mau contato. Como ele tinha um
sobressalente, trocou e o aparelho funcionou perfeitamente.
Testando o aparelho, ele observou que ao jogar essa luz
sobre os negativos, em um fotograma formou-se uma imagem!
Surpreso e se utilizando de uma lupa, descobriu que nesse
fotograma (cuja foto saiu toda escura), apareciam uma série de
pessoas com espadas e que os pontos de luzes estavam
exatamente no ponto em que as espadas se chocavam! Havia
imagens de algumas pessoas trajando estranhas roupas e
manuseando espadas. Viu também o rosto de um velho que
deveria estar quase na frente dele quando tirou a foto.
Assombrado, Gil fez muitas perguntas a si mesmo. Afinal, o
que era aquilo? Por que não apareceram na foto? Aliás, por que
não eram visíveis? Eram fantasmas? Bruxos?
Eram três horas da madrugada e o sono não vinha... Gil
observava minúcias nas fotos. Aquele velho, em primeiro plano,
parecia fazer pose para ser fotografado. Embora a curiosidade
fosse grande, teve uma hora em que o sono o venceu. Ele
adormeceu com as luzes do quarto acesas.

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No outro dia, seu pai gritou:


- Quer me levar à indigência? Seu irresponsável! São quase
10 horas! Depois que sua mãe morreu você virou um merd*!
Apague essa porr* dessas luzes e atenda uma menina que ta lá no
portão!
Gil levantou assustado. Correu ao banheiro, lavou o rosto e foi
atendê-la. Era Kelly, que se espantava em vê-lo com a mesma
roupa de ontem, todo amassado – as roupas e o rosto.
- Você está bem?
Com isso, iniciou-se um agradável diálogo entre esses jovens
que terminou com um convite para um passeio ao Parque da
Cidade. Gil aproveitou para entregar o equipamento, deixando-a
mais surpresa.
Algum tempo depois de iniciarem a caminhada pelo parque,
Gil queria falar da fotografia, mas se conteve. Afinal, o momento
propiciava outro tipo de conversa. Falaram sobre filmes, sobre o
trabalho de Kelly, sobre o acampamento. Caminhavam próximo ao
parque de diversão que, estranhamente, tinha muita gente para
uma manhã de terça-feira. Gil fez uma pausa na conversa e
observou um velho que estava mais à frente recolhendo latinhas
das lixeiras. Era o mesmo da foto do acampamento!
- É ele! - gritou Gil enquanto corre em sua direção.
O velho jogou no chão um saquinho de couro que tirou do
bolso e se misturou na multidão. Kelly, sem entender, correu atrás
do Gil, que também desapareceu. Algum tempo depois, ela
encontrou Gil com o saquinho na mão, olhando em todas as
direções.
- O que está acontecendo? Quem era aquele velho? -
perguntou Kelly com olhar assustado.
Gil olhou para ela e percebeu que, ou contava a verdade ou
teria que inventar rapidamente uma desculpa muito boa. Disse que
aquele velho parecia o pai de um grande amigo que perdera
contato há muitos anos. Falou também do seu mal-estar súbito, por
isso teria que voltar para casa. Disse também que o aparelho de
luz negra merecia mais alguns ajustes e acabou levando-o de volta
para sua casa.
Em seu quarto ele fazia o seguinte cálculo: zero no quesito
“simpatia com Kelly”, mas dez no quesito “estou descobrindo

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alguma coisa”. Ligou a luz negra e confirmou, o velho que viu no


parque era o mesmo da foto. Abriu bem devagar o saquinho de
couro. Seu coração batia cada vez mais rápido.
- Caramba!!! - exclamou Gil.
No bilhete que encontrou estava escrito:

Para Dragões adormecidos - Mateus 10:34 - Mateus 11:12


- Eirunepé - segundo equinócio de 2000

Assustado e estranhando muito, ele pegou a Bíblia e leu a


primeira citação: ”Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim
trazer a paz, mas a espada”, achou muito esquisito e leu a segunda
citação: “E desde os dias de João, o Batista, até agora, o reino dos
céus é tomado a força, e os valentes o tomam de assalto.” . Gil
nunca tinha lido esses textos, embora gostasse de ler
esporadicamente a Bíblia.
Mas que raios é Eirunepé e o que é equinócio? Acessou a
Internet e descobriu o que era equinócio2 e também que o segundo
equinócio de 2000 deveria ocorrer ainda naquele ano, no dia 22 de
setembro. Mas não conseguiu descobrir o que era Eirunepé!
- Porr*, atenda esse telefone, Gil! – gritou seu pai.
- Oi Kelly... Sim, estou melhor... Ok, podemos sair amanhã
sim...
Kelly, com todos seus encantos, fez Gil esquecer aquelas
histórias esquisitas, além da constante bebedeira de seu pai. O
tempo seguiu seu rumo e, hora e outra, Gil lembrava-se de
Eirunepé. Mas que raios era aquilo? Lembrou-se também, e com
saudades, de seu amigo Marco, que se mudou para o interior de
São Paulo.
Em fevereiro de 2000, Gil completou 18 anos e ganhou de
presente um estágio na mesma empresa em que Kelly trabalhava.
O mundo deve ser mesmo cheio de surpresas! Kelly era
responsável por um projeto e Gil entrou para sua equipe. Afinal,
todos aqueles cursos que ele fez não foram em vão. Os meses
passaram e ele demonstrava cada vez mais competência e

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Ponto da órbita da Terra onde se registra igual duração do dia e da noite.
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inteligência. Três meses depois, Gil foi contratado como


programador.

3. Eirunepé?

- Uau... Isso é incrível - exclamou Kelly quando leu o e-mail do


seu chefe. Pessoal, parem o que estão fazendo, tenho uma notícia
fabulosa a todos! Aquele projeto em Manaus foi autorizado!!!!
Iremos para lá na semana que vem.
Em 17 de setembro, Kelly, Gil, Roberto e Rosa
desembarcaram em Manaus. No dia seguinte, se apresentaram à
empresa que havia solicitado o trabalho de implantação de
sistemas de segurança. O período da manhã foi dedicado a
reuniões com técnicos da empresa local, quando conheceram
Irineu, o gerente técnico, um simpático senhor de descendência
indígena. Após o almoço com Irineu, este apresentou alguns
pontos turísticos da cidade à equipe de Kelly. No período da tarde
continuaram as reuniões e discussões com a empresa de Manaus
para concluírem os últimos detalhes antes de executarem o serviço
contratado. Nos dias posteriores, o trabalho de instalação de
programas exigiu muito da equipe de Brasília devido às
configurações e às adaptações para aquela região. O almoço
ocorria sempre por volta das 13 h, e sempre na companhia do
Irineu.
No almoço do último dia, Irineu contava outra estória da
floresta quando sua secretária fez o seguinte comentário:
- Ah! O Irineu você só sabe contar estórias da mata, mas
também, nasceu num vilarejo perdido na floresta chamado
Eirunepé!
- Eirunepé???!!! - exclamou Gil - Onde fica isso???
Todos se espantaram com a postura dele, pois quase pulou
no colo do Irineu. Depois de tantas perguntas, Gil descobriu que
existia uma cidade com esse nome no meio da floresta.
De volta ao trabalho, Gil aproveitou para verificar na Internet a
questão do equinócio. Arregalou os olhos: “É hoje, dia 22 de
setembro!!!!! E agora???”
Naquela da tarde a equipe de Kelly trabalhou apenas para
concluir os últimos testes. O sistema estava perfeito. Eram 15h.
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Saíram da empresa e foram ao hotel, com retorno marcado para


Brasília ainda naquela tarde. Não saia da cabeça de Gil a questão
de Eirunepé. Irineu tinha lhe dito que havia vôos semanais até
Tefé, sendo ainda necessária uma conexão até Carauarí e depois
até Eirunepé. Entretanto, Irineu ressaltou que não havia mais vôos
para Tefé naquela semana. Chegando ao aeroporto, Gil disse
queria olhar uma loja e se desligou do grupo. Na verdade, ele foi
até o guichê de vôos regionais. Sabia que não tinha vôo para
Eurinepé, mas também tinha certeza que se não fosse averiguar
pessoalmente, iria se arrepender para sempre. Isto era apenas
para deixar sua consciência livre, pois se no futuro sua mente lhe
cobrasse, diria então que realmente não havia mais vôos para
aquele lugar. Chegou até o guichê e informou-se dos vôos e de seu
real destino. Mas a resposta foi inesperada:
- Você vai para Eirunepé? Cara, você é um rapaz de sorte, tá
saindo um vôo direto daqui a quinze minutos – disse uma simpática
atendente do guichê, que por sinal parecia ser japonesa!
Meu Deus! E agora? Por essa ele não esperava! Havia um
vôo. Perdê-lo significaria perder a possibilidade de saber o que
eram realmente aquelas luzes que tinha visto no início daquele
ano. Significaria também perder um sonho que sempre trouxe
dentro de si, o sonho de descobrir se realmente havia algo a mais
nesse universo. Uma questão que sempre lhe inquietou. "Pense
rápido! Pense rápido!” - dizia Gil a si mesmo – “Já sei, transfiro
minha passagem de retorno, vou a essa cidade, vejo o que tenho
que ver e volto para cá, daqui retorno direto para Brasília”. Assim
ele concluiu
Quando retornou junto ao grupo, expôs à Kelly, a responsável
pela sua equipe, a sua intenção. Faltaria um dia do trabalho, mas
poderia repor em um sábado ou domingo, ou até mesmo à noite,
ou durante o horário de almoço. Deixou bem claro que sua decisão
era irrefutável!
O grupo todo estranhou o comportamento de Gil, mas não
havia mais tempo para discussões, Gil já havia comprado a
passagem e o vôo já estava quase saindo.
Kelly olhava decepcionada para ele. Seu comportamento
beirava a loucura, pensava ela. O que ele procuraria numa cidade

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perdida na floresta?! Roberto e Rosa diziam que o calor de Manaus


derreteu o cérebro deste jovem. Riram bastante.
Gil estava de costas para o grupo, Kelly colocou sua mão
sobre o ombro do rapaz, ele se virou e ela insistia: “Você vai
mesmo?”.
Ele saiu correndo para pegar o seu avião. Não correu devido
ao horário, correu por medo... Medo de não ser capaz de manter
em pé seu plano, medo de se enfraquecer frente às opiniões
alheias.

4. Contato

Na viagem até Eirunepé, havia momentos em que aquele


pequeno avião parecia que iria cair. Mas o piloto assobiava tão
tranquilamente que acalmava os passageiros.
- Você sabe quanto tempo irá durar nossa viagem? -
perguntou uma jovem simpática, de belíssimos cabelos escuros e
pele morena.
- Me disseram que são 4 horas e meia - respondeu um
homem de aproximadamente 40 anos de cabelos longos e
amarrados, que simpaticamente se apresentou ao demais. Ivan era
seu nome.
A jovem simpática se apresentou: Cynthia e Gil também.
- Nossa, a floresta é imensa! - exclamou Gil ao perceber que
os outros dois passageiros também olhavam admirados pela
imensidão do verde. E assim, gradativamente a conversa
começava a entrosá-los.
- Que estranho, a velocidade aumentou muito. O que está
acontecendo? - perguntou Ivan.
Repentinamente, o piloto virou-se para trás, em direção aos
três passageiros. E, diante do olhar espantado de seus
passageiros, ele disse: “Não se preocupem, está no piloto
automático”.
Ivan não se conteve: - Piloto automático?! Esse teco-teco tem
piloto automático?!
Sorrindo, o piloto respondeu: - Não tinha, mas Arlek
providenciou isso. Não se preocupem, essa aeronave é diferente
das demais. Aliás, foi ele que modificou o motor também!
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Perceberam que a velocidade foi triplicada? Além do mais, não


usamos combustíveis convencionais, mas uma geléia malcheirosa
que permite quase 100 horas de vôo!
Isso criou bastante tensão no grupo... As perguntas em geral
eram: “O que está acontecendo? Onde está nos levando? Quem é
Arlek?”.
Pacientemente o piloto tirou seus grandes óculos escuros.
- Meu Deus! - exclamavam os jovens de uma só vez.
- O mendigo! - exclamou Gil.
- O carteiro! - exclamou Ivan.
- O homem que foi atropelado! - exclamou Cinthya.
A apreensão do grupo era grande, pois todos ali conheceram
o piloto em situações diferentes, e ficou claro que todos estavam
atrás do mesmo objetivo: participar da reunião que estava no
bilhete! Sem tirar o sorriso peculiar, o piloto falou:
- Acalmem-se, vou contar o que está acontecendo e, antes de
tudo, saibam que esse avião irá retornar depois de uma hora no
solo e vocês poderão voltar para suas casas. Nenhum mal irá lhes
acontecer. Meu nome é Naymaúde, sou responsável em trazer ao
grupo as pessoas que me são indicadas. Vocês três têm algo em
comum: são pessoas que buscam o conhecimento sagrado,
querem respostas e não se contentam com meias-verdade. Porém,
perderam-se nos labirintos de seus próprios dogmas, conceitos e
preconceitos. Mas, como outrora já participaram desse grupo que
vou lhes apresentar novamente, creio que não vão estranhar tanto
assim. Estávamos esperando que amadurecessem para se
reintegrarem ao grupo. Sei que a memória convencional não lhes
permitirá compreender o que lhes digo. Sei também que o grau de
amadurecimento é difícil de ser medido, portanto, corro o risco de
trazê-los no momento errado. Entretanto, espero que tenham, ao
menos, coragem para ouvirem o que nosso mestre tem para lhes
dizer. Asseguro também que o retorno ocorrerá ao fim da conversa.
Não iremos descer exatamente em Eirunepé, pousaremos em
outro local, entre o rio Jutaí e Itaguaí. Nada têm a temer. Quanto a
Arlek, ele é nosso assessor de assuntos tecnológicos, não estará
lá, mas é um sujeito muito interessante.
Gil estava atônito. Cinthya parecia não acreditar no que ouvia.
Ivan contemplava Naymaúde como um filho que reencontrava o

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pai. Após uma pequena pausa, o piloto perguntou: - Qual é o


dilema de cada um de vocês? O que os incomodam na vida? Estão
cansados do trabalho? Passam por dramas sócio-econômicos?
Têm dificuldades emocionais? Digo-lhes que o dilema que os
trazem aqui é por estarem longe da sua verdadeira linhagem. É
pelo fato de viverem uma vida de fantoches, cientes que são uns
estranhos dentro da sociedade em que vivem.
- Então, quem nós somos? - interrompeu Ivan.
- Vocês... Vocês são Purayas! Embora todas as pessoas
tenham laços com as forças superiores ou inferiores, poucos
buscam suas origens e vocês estão buscando, não é mesmo?!
- Continuo não entendendo... O que significa Purayas? Que
grupo é esse que diz que pertencemos? - continuou Ivan.
Gil aproveitou também para questionar: Quem é esse mestre
que vamos ter que ouvir?
- Bem, nós, os Kirayas, prezamos muito o livre-arbítrio. Nós
apenas estamos colocando vocês frente a frente com a verdadeira
linhagem a qual pertencem. Ficar ou não, é decisão particular de
cada um. Em solo ouvirão a história dos Kirayas com mais
detalhes, mas, para entenderem um pouco, direi apenas que
Kirayas são guerreiros.
- Guerreiros, que tipo de guerreiros? - interrompeu Gil.
- Como estava dizendo, os Kirayas são guerreiros que lutam
para manterem o equilíbrio das forças. Puraya é todo aquele que,
sendo da linhagem dos Kirayas, ainda não têm condições de atuar
como tal, ou seja, um Puraya é um protótipo de um Kiraya, é uma
criança. A questão da maturidade é o que faz com que vocês
estejam aqui e outros não. Alguns Purayas ficam por muito tempo
adormecidos no mundo sem buscarem suas origens; outros ficam
agoniados, por isso se envolvem com diferentes instituições, seitas
ou religiões, mas nunca ficarão satisfeitos. Contudo, um dia se
despertarão para suas verdadeiras origens.
Cinthya levantou a mão.
- Diga, senhorita.
- Você sempre fala no masculino... e porque estou aqui?
- Mil perdões! Homens e mulheres são iguais em combates
sagrados. Observem, não estou me referindo a lutadores - pessoas
treinadas para brigas. Falo de guerreiros sagrados, homens e

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mulheres que são capazes de se sacrificarem pelos seus irmãos. E


a mulher cumpre um papel muito importante, mas isso já é outro
assunto. Bem, antes de continuarmos as conversa, deixem-me
verificar algumas coisas no painel, afinal esse é meu primeiro vôo!
- O queeeê!! - disseram em coro os passageiros.
- Sim, meu primeiro vôo... Com vocês, é claro!
O piloto, rindo, virou sua cadeira para frente, ficando assim, de
costas para seus passageiros. Eles se entreolhavam numa mescla
de sentimentos: pareciam assustados, felizes, preocupados,
ansiosos... Depois de uma longa pausa, Ivan comentou: Meu Deus!
Isso parece um sonho! Há anos que me sinto perdido e agora
estou prestes a encontrar o meu grupo! - tamanha emoção lhe
trazia lágrimas aos olhos.
- Estou assustada! - dizia Cinthya - não sei se estou
preparada para isso agora. E a nossa vida, como vai ficar?
Gil também não se conteve: Ai.. ai...ai... Aonde será que a
gente se meteu?
Seus comentários foram calados pela voz do piloto: Segurem-
se pessoal, vamos fazer algumas manobras um pouco delicadas...
E logo, logo estaremos em terra.
Os passageiros estavam muito inquietos. O piloto começou a
assobiar, imitando um pássaro. Seu canto era suave e muito
agradável. Os passageiros se aquietaram para ouví-lo melhor. A
velocidade estava diminuindo. Alguns minutos depois, Gil
comentou:
- Pôxa, me sinto mais calmo, mas ainda tenho medo.
- Normal, sempre há medo quando há novidades – sentenciou
Cynthia.
- Ah-há, a senhorita está certa! - falou Naymaúde, sem olhar
para trás - o medo é um obstáculo que deve ser vencido. E eu até
diria que ele deve ser o primeiro a ser vencido! Por falar em medo,
espero que não se assustem com o pouso!
Do céu viam um pequeno vilarejo com uma pista de pouso no
meio. Aquela pista de terra não era exatamente um tapete
acolhedor e a aterrissagem foi feita com muitos solavancos e
derrapagens. Assustados e ao mesmo tempo admirados com tudo,
os passageiros desceram do avião.
Um índio os aguardava:

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- Bem-vindos, sou Jaguaressá3, eu os levarei até nosso


mestre, sigam-me – assim falou o jovem de cabelos curtos. Seu
corpo seminu evidenciava alguns desenhos de serpentes que
saiam da nuca e envolviam seus peito e costas.
Seguiram Jaguaressá. Por onde passavam recebiam
saudações em forma de sorriso ou de um inclinar da cabeça.
Respondiam assim também. Logo chegaram até uma grande e
estranha construção de pedras.
Ao entrarem, ficaram boquiabertos. Foram levados até uma
sala de recepção e perceberam que seu interior era ricamente
decorado com uma textura da parede que impressionou a todos.
- Meu Deus! Essas paredes são de plástico! - exclamou Ivan
enquanto tocava com as mãos.
- Não, não é plástico, é uma resina natural. Coisas do Arlek.
Bem, descansem e comam algumas frutas que estão sobre a
mesa. Há água naqueles potes ali. Daqui a pouco, nosso mestre,
Arok-ta-Beish virá até vocês. Aguardem alguns momentos - disse
Jaguaressá enquanto saía da sala.
O grupo estava assustado e, todavia, curioso. Mantinham os
olhos arregalados e faziam comentários sobre as esculturas de
madeira que se assemelhavam a totens! Havia vasos com flores
frescas que exalavam um perfume gostoso que se mesclava ao
aroma que surgia de um pote onde se queimavam algumas ervas.
Minutos depois chegou um negro alto, forte e de cabelos
brancos curtos. Possuía olhos vivos e um sorriso simpático. Nada
falou e todos perceberam que ele era Arok-ta-Beish. Esses
visitantes já haviam reparado nas roupas excêntricas que as
pessoas usavam, mas esse negro vestia uma túnica tão branca
que parecia ser impossível mantê-la assim no meio daquela
floresta. Seu cinturão parecia ser de ouro e trazia estranhos
desenhos. Calçava sandálias de couro. Possuía braceletes que
pareciam prata, cheio de desenhos de sóis, luas e estrelas.
Apoiava-se em um cajado de madeira vermelha onde se via uma
serpente e uma águia ricamente entalhadas. Fazendo sinal para
que todos se sentassem e sentando-se em seguida, esse estranho

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Em guarani, significa Olho de Onça.
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personagem começou a falar. Sua voz era tão límpida e clara que
parecia um canto e não um discurso. Assim começou a conversa:
- Desculpe se essa viagem causou algum desconforto a
vocês. Peço que abram seus corações e não suas mentes, pois o
que vou falar é para alma e não para o intelecto. Vou começar
contando quem nós somos e porque vocês estão aqui... – fez uma
pausa e continuou: saibam primeiro que continuar ou não aqui
depende apenas da vontade de vocês. Nós somos Kirayas,
guerreiros sagrados, guardas de honra do Melquisedeck4·, o
sacerdote imortal. Toda vez que Shambala, a capital do mundo, é
atormentada pelas forças negativas, os Kirayas saem para
defendê-la. Como soldados, somos treinados para diferentes tipos
de combates, em diferentes dimensões e regiões. Mas, lutar é
apenas uma forma de provarmos o quanto somos incompletos.
Quando se luta contra si mesmo (e esse é o nosso maior objetivo)
podemos nos transformar em seres completos, em Nirayas. Esses
já não lutam, pois estão muito acima das dimensões conhecidas.
Todo grande Kiraya acaba se convertendo em Niraya e abandona
seu posto, por isso, um pouco antes de surgir um novo Niraya,
chamamos os Purayas – pessoas que serão iniciadas nas artes -
para treinarem e ocuparem o lugar do Kiraya. Como poucos
Purayas conseguem se tornar Kirayas, chamamos vários Purayas
para testes. Existem doze comunidades como essa espalhada pelo
mundo e cada comunidade chama diversos Purayas. Há épocas
em que de vinte Purayas convidados conseguimos só um Kiraya...
Há épocas em que não conseguimos nenhum! Não quero dizer que
todos vocês não possam se converter em Kirayas, mas adianto que
é uma tarefa muito difícil. Vocês
estão aqui porque trazem no coração
uma marca, a marca que simboliza
que um dia já foram guerreiros e,
acreditamos que já está na hora de
juntarem-se a nós.
Houve uma pausa e o mestre
olhava admirado, tal como uma
criança, o semblante assustado dos

4
Gênesis 14:18; Salmo 110:04; Hebreus 5:6-10; Hebreus 6:20; Hebreus 7:1-17
17
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visitantes. Depois continuou: A vida, no seu incessante sobe-e-


desce, faz reis transformarem-se em mendigos e transforma
covardes em gloriosos combatentes, mas raramente se traz as
lembranças do passado. E isso é bom, pois assim somos capazes
de conviver com antigos inimigos que estão colocados ao nosso
lado para redimirem seus erros. Embora não se lembrem
exatamente o que foram, tenho certeza que há uma angústia
silenciosa dentro de cada um de vocês que se deve ao fato de
estarem afastados de suas linhagens. A linhagem de vocês é igual
a minha, é a linhagem do guerreiro. Afinal, vocês não se sentem
familiarizados com tudo isso? Bem, considerem que estão sendo
convidados a participarem de nossa Ordem. Todo ser humano tem
direito a optar pelo que quer fazer. O livre-arbítrio é um dom divino
que merece respeito. Mas, lembrem-se: não haverá outra ocasião!
Gil não se conteve e perguntou:
- O que será de nós caso não consigamos nos tornar Kirayas?
Cinthya aproveitou o momento e questionou:
- E o que será de nossa família, trabalho e escola enquanto
estivermos sendo treinados aqui?
Ivan apenas sorria.
Arok-ta-Beish sorriu e respondeu: Estamos sujeitos a
fracassos, porque não somos perfeitos. Caso fracassem, não há
punição, pois o próprio fracasso é a punição. Se não conseguirem
se tornar Kirayas, voltarão ao seu dia a dia e dirão apenas que nós,
os Kirayas, somos loucos. E em pouco tempo esquecerão-se de
nós e nós nos esqueceremos de vocês. Quanto à pergunta dessa
jovem, serei mais claro: o treinamento não ocorre aqui, ocorrerá na
cidade de vocês, junto à escola, à família e ao trabalho. Somente
quando se tornarem Kirayas é que poderão conviver em nossas
comunidades.
De repente, surgiu pela porta um senhor alto e forte. Seus
cabelos ruivos mesclados com brancos eram longos e trançados.
Possuía uma barba espessa. Trajava um ‘vestido’ sem mangas
cujo tamanho lhe chegava até um pouco abaixo de seus joelhos,
no meio, um cinturão cheio de estranhos símbolos. Calçava uma
sandália que lembrava os antigos romanos. Fez um estranho sinal
com a mão e Arok-ta-Beish diz:

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- Arcrus me chama, terei que sair agora. Fiquem à vontade


para caminharem pela nossa comunidade, em breve estarei com
cada um de vocês.
Todos se entreolhavam e, ainda assustados, permaneciam
em silêncio. Ninguém ousou sair da sala.

5. Um Passeio e uma Descoberta

- Meu Deus! - repetiu Ivan emocionado.


- Vamos sair? - propôs Cinthya, já se dirigindo até a porta. Os
rapazes a acompanharam. Ao olharem para fora, percebiam tipos
diferentes indo e vindo. A comunidade não parecia grande, mas
muito diversificada. Viram orientais, negros, índios, brancos...
- Quero dar uma volta sozinho... Quero tentar entender o que
está acontecendo dentro de mim - disse Gil, dirigindo-se a uma
trilha contornada com pedras amarelas. Embora temesse pelo
lugar desconhecido, ainda assim, um estranho sentimento de ‘estar
em casa’ o impulsionava a caminhar tranquilamente.
Cinthya seguiu rumo a um perfumado jardim e Ivan foi
bisbilhotar uma estranha construção em forma de pirâmide.
Gil andou em passos lentos, observando aquele mundo
totalmente estranho. Chegou até um riacho onde havia crianças
brincando. Sentou-se junto a uma pedra e ficou olhando para
aquelas crianças. Pensava muitas coisas. Sempre sentiu anseio de
ir mais além, sempre achou que a vida deveria ter algo a mais.
Achava que nascer, crescer, procriar, envelhecer e morrer era
muito pouco, não fazia sentido. Mas, questionava se o que estava
vivendo ali era real.
Repentinamente, chegou uma menininha e gritou para as
demais crianças:
- Gente! Está havendo treinamento de Pon-Sai5!
Todos saíram correndo atrás dela. Gil acabou seguindo-a
também, afinal que raios seria isso? Logo chegaram a uma clareira
onde havia alguns homens e mulheres enfileirados lateralmente e

5
Uma das Jóias dos Dragões Dourados, trata-se do “soco da alma” uma técnica para
atingir pessoas ou objetos à distância sem mover muito os braços. Infelizmente essa
é uma das técnicas perdidas do kyan-pô.
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potes de barro, também enfileirados lateralmente, que estavam a


uns 50 metros de distância deles. Um velho de traços orientais
mantinha a ordem. Ao seu comando, aquela tropa enfileirada fazia
movimentos com os braços e ao se deferir um soco no ar, o pote
que estava distante, mas na sua frente, estourava. E as crianças se
divertiam trazendo novos potes. Uma nova sessão de explosões de
potes se verificou. E, dessa vez, apenas algumas pessoas
movimentaram-se mais do que deviam e por isso, recebiam novas
orientações. Gil estranhou, mas se divertiu ao mesmo tempo em
que tentava entender como se processavam aquelas explosões.
- A força da mente é incrível! - exclamou em voz alta. E por
isso foi abordado por uma jovem que estava do seu lado:
- Você também não é um Kiraya, não é mesmo?
- Como descobriu? .
- Fácil! Só quem não é Kiraya é que acha que a mente faz
isso! Também sou nova aqui, vim da Índia, pois meu amado é
colombiano e vive aqui.
- Que coisa maluca... Você é indiana, namora um colombiano
e fala português!
- Você parece meio confuso... Nós não estamos falando em
português!
- Não??!!! - exclamou ao mesmo tempo em que olhava o
desempenho daquelas pessoas que estavam estourando jarro. Ao
olhar novamente para a jovem, ela sumiu.
Essa conversa deixou Gil mais confuso! Ele continuava com
suas indagações internas quando viu algo surpreendente. Aquele
senhor que coordenava o treinamento estava - com estranhos
poderes - remontando os vasos quebrados e dizia que destruir é
fácil, curar é mais difícil e mais importante. Gil sentia-se
agradavelmente perdido em meio aquela estranha exibição. Foi
quando Jaguaressá aproximou-se dele e disse:
- O bendito Arok-ta-Beish quer falar com você, por favor, me
acompanhe.
Seguindo-o, Gil viu muitas outras coisas estranhas pelo
caminho. Em um local, viu alguns homens fazendo espadas de
cristal, o que não demorou a intrigar Gil.
- De cristal?! Mas isso é fácil de quebrar!

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O mensageiro riu e lhe explicou: Não é cristal comum, é


kobak. Cristal que vem de um planeta muito distante. Duro como
diamante.
Mal teve tempo de analisar o comentário do mensageiro
quando viu algo insólito logo à frente: um círculo de nove mulheres
mantinha um homem flutuando em seu centro. Ele parecia ferido.
Seus trajes estavam rasgados.
- O que está acontecendo?
- Aquele é Sandoval, chegou há pouco tempo. Está em uma
sessão de cura. Pelos comentários, parece que foi ferido pelo o
guardião da Torre da Cruz Negra numa emboscada perto da
cidade de Góbi. Mas há de se recuperar!
Conversaram mais um pouco e, após alguns minutos,
chegaram até a construção que ele já estivera. Ficou diante do
poderoso Arok-ta-Beish. Estavam agora em outra sala do templo.
As paredes eram forradas de palmeiras secas e pintadas com
cores alegres. Nesse ambiente, Gil sentou-se em uma confortável
cadeira em frente à Arok, que disse:
- Existem verdades que não podem ser ditas, mas apenas
sentidas. O que você viu e ouviu foi apenas para ter uma pequena
idéia do que são Kirayas – disse Arok-ta-Beish com um sorriso,
mas não foi um sorriso comum. Gil sentiu que a sua própria alma
sorria também. Sentiu que foi convidado a ingressar na Ordem dos
Kirayas, e sabia que já estivera entre eles. Por alguns instantes, Gil
sentiu-se um Kiraya.
Aquele senhor negro mais parecia uma divindade viva. Seu
olhar e seu sorriso marcaram profundamente a decisão daquele
jovem. No entanto, Gil viu também a tristeza e dor através dos
olhos daquele ser e isto lhe perturbou. Era como uma mensagem
que lhe dizia: “se aceitar, seu destino não será mais o mesmo”.
Teve medo.
Percebendo isso, Arok-ta-Beish lhe acalmou:
- Meu filho, você têm razão. A dor irá lhe acompanhar por
muito tempo, mas engana-te se achas que ela irá acompanhá-lo
apenas se for um Kiraya. Se você se transformar em um guerreiro,
sua dor será causada pela luta honesta contra a raiz da sua própria
ignorância. Assim, sua vida terá sentido amplo, irá vivê-la
plenamente e, aos poucos, descobrirá que a perdê-la será o

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grande trunfo. Não será uma perda covarde ou inútil, mas uma
perda que lhe trará ganho, morrendo em si mesmo viverá a
plenitude da vida. Caso não seja um guerreiro, retornará como um
jovem comum, que viverá a eterna luta da sobrevivência. Lutas
sem códigos, sem nobreza. Viverá a alegria efêmera que sempre
será substituída pelo medo do futuro. Não haverá tranqüilidade, e
assim, tentará se encher de coisas que sua sociedade produz.
Tentará saciar o vazio do seu espírito com riquezas ou mulheres
que trarão alegrias passageiras, que irão tirar-lhe mais do que lhe
dar. Ou então, se embrenhará na leitura de livros sagrados, sempre
tendo algum cego para guiá-lo. Ou viverá a busca de um sonho
que jamais se realizará por completo. As duas opções, ser um
guerreiro ou não, têm algo em comum: é vida! A primeira opção é
para pessoas que necessitam de algo a mais para darem sentido à
sua vida, na segunda opção, a pessoa não necessita deste algo a
mais, pois sua vida não tem anelos superiores.
Gil ouvia e, aflito, perguntou:
- Essa opção tem volta?
Já sem o característico sorriso, Arok-ta-Beish falou:
- Como lhe disse antes, você não é obrigado a optar em ser
um Kiraya. Mesmo que queira, estará sujeito ao fracasso e uma
forma de fracasso é a desistência. Ou seja, poderá desistir e assim
terá o mesmo fim dos fracassados. Esse caminho é cheio de
espinhos e serpentes. Se vencer a tudo isso, será motivo de glória
para seu Espírito. Se cair, a divindade apenas perceberá que ainda
não está na sua hora e calmamente, irá esperar pelos séculos
vindouros na esperança que um dia você desperte.
- Se eu optar por ser um Kiraya, quando começa o
treinamento?
- Preocupe-se com isso apenas se quiser ser um guerreiro...
- Mas eu quero ser um guerreiro! Pois meu Pai Celestial sabe
que inicio essa jornada para chegar até Ele, custe o que custar! -
respondeu de forma tão imperiosa que assustou a si mesmo com
essa frase. Sentiu que uma voz no seu interior é que respondeu.
Arok-ta-Beish sorriu e orientou:
- Você terá cinco orientadores e todas suas dúvidas serão
esclarecidas. Procure alguém que tenha esse anel - dizia Arok-ta-

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Beish enquanto mostrava uma estrela de cinco pontas, o que ele


chamou de pentagrama.
- E se eu não achar?
- No momento certo, tenho certeza que encontrará.
- E os outros que estavam comigo? Já optaram? Onde estão?
- Estão no avião aguardando você para retornarem. - disse
isso enquanto batia a palma das mãos, o que fez aquele
mensageiro aparecer novamente e o levar até o avião.
Ivan e Cinthya também estavam chegando agora, cada um
vinha de uma direção diferente e também eram guiados por
mensageiros. Sorriram ao se verem e em seguida embarcaram no
avião.

6. Sonho?

O avião partiu, deixando para trás muitos mistérios e dúvidas.


O comentário a bordo era grande. Descobriu-se que todos
optaram pelo treinamento e, em meio a tantas conversas,
percebeu-se que todos estavam conversando com Arok-ta-Beish
antes de virem para o avião - o que causou outro grande espanto
em todos. Significa dizer que todos estavam simultaneamente com
ele!
- Não se espantem, Arok-ta-Beish é um Niraya e Nirayas não
estão presos a formas físicas nem ao tempo - disse Naymaúde.
- Como ele conseguiu fazer isso? - indagou Cinthya.
- Ah... Ele tem o dom da ubiqüidade. Pode se fazer presente
em vários lugares simultâneos. Há algum tempo atrás, ele e
Milarepa6 estiveram aqui e nos concílios que ocorriam
simultaneamente em vinte e dois lugares diferentes!
- Nossa! Isso parece inacreditável! Se é que alguma coisa
pode, a partir de hoje, ser inacreditável! – exclamou Ivan.
De forma muito agradável, Naymaúde sentenciou: As coisas
continuam existindo mesmo que não acreditemos.

6
Grande mestre tibetano especialista em Kyan-pô. Seu onipenetrante amor e nunca
superada bondade faziam dele um homem comum nas assembléias de anjos e
deuses. Famoso pelo dom da ubiqüidade.
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- Isso tem a ver com os poderes da mente? - aproveitou Gil


para tirar uma dúvida que uma mulher lhe colocou na cabeça.
- A mente é nossa inimiga. Nunca percebeu o número de
problemas que a mente nos causa? Não é ela que fica imaginando
problemas que não existem? Não é ela que não nos deixa
concentrar, fazendo surgir centenas de pensamentos
desnecessários? Não é ela que quer explicar as coisas espirituais
sem ter competência para tal? Nós temos a mente como nosso
único inimigo7! Esqueça os poderes da mente - que até existem - e
comece a pensar nos poderes do espírito.
Após responder outras perguntas, Naymaúde voltou sua
atenção ao seu painel, virando seu banco para frente. Os
passageiros comentavam as coisas que viram naquela
comunidade. Falaram da fabricação de espadas de cristais, do
treinamento de levitação, do círculo de cura, das aulas de plantas
mágicas, dos estranhos golpes que faziam vasos quebrarem, das
técnicas de reorganização energéticas etc. De repente, o piloto
avisou a todos para segurarem-se, pois iriam passar rapidamente
por uma névoa negra.
Segundos depois, uma densa névoa negra tomou conta até
do interior do avião. Assustados, todos se calaram e seguraram
com firmeza nas poltronas. No escuro, alguém pôs a mão no
ombro do Gil, assustado, ele virou-se e percebeu que a névoa tinha
passado... Percebeu ainda que ele estava no saguão do aeroporto
e a Kelly estava lhe perguntando:
- Você vai mesmo para esse tal de Eirunepé?
Tudo retornou ao ponto inicial. Gil olhou para todos e, atônito,
não conseguiu entender o que aconteceu. Como foi parar de volta
ao aeroporto? Cadê o avião? Afinal, o que estava acontecendo?
Assustado, disse para esperarem um pouco. Foi até o guichê de
vôos regionais e descobriu que está fechado. Não havia ninguém
nem para dar orientações. Descobriu também que não havia
nenhuma passagem aérea em seu bolso, apenas o dinheiro!
Aturdido, voltou para junto da sua equipe. Todos riram e
comentaram que o calor de Manaus não tinha feito bem para

7
Eis aqui o primeiro conselho do Kyan-pô: “você só tem um inimigo e um campo de
batalha, a sua mente”.
24
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aquele rapaz. Retornaram à Brasília, mas Gil não era mais o


mesmo.

7. Começa o Treinamento

Na casa do seu amigo Tucão, um assunto especial vem à


tona:
- Tucão, to ficando muito doido!
- O que “qui” tá rolando, Gil?
- Eu tenho que contar pra alguém! Cara, rolou um negócio
muito, mas muito louco em Manaus! Eu não disse que ia para lá a
serviço? Pois é, cara, aconteceu algo que não consigo entender...
Assim, Gil começa a narrar os acontecimentos que vivenciou
(ou não?) em Manaus.
- Pô Gil, put* viagem! Tu tá doidão mesmo! Só tem um jeito de
saber se isso é verdade ou uma viagem...
- Qual?
- Tu é meu “bróder”! Olha esse baseado que tenho aqui... é do
bom...
- Pô Tucão, já te falei que não quero essa merd*! Respeito
você e já falamos disso antes. Olha, vou dar umas voltas por aí. To
indo nessa.
Gil estava quase saindo, voltou-se ao amigo e alertou:
- Olha aí, Tucão, não fala disso pra ninguém, ok?
Após uma gargalhada, Tucão respondeu:
- Porr* Gil, tu é meu “bróder”, não vou queimar teu filme!
...
Os dias passaram e os acontecimentos em Manaus não
saíam da sua cabeça. Era uma sábado e ele estava absorto em
seus pensamentos em pleno restaurante. Estava acompanhado de
sua nova namorada: a Kelly.
Sem perceber o que ocorria, ela lhe interrompeu:
- Gostaria que me acompanhasse na missa dominical de
amanhã. Faz parte da minha vida e eu quero compartilhar isso com
você. Vamos?
Retornando de seus pensamentos, ele tenta situar-se e
responde:

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- Claro! Será um prazer compartilhar com você seus


momentos sagrados! Mas hoje é sábado e quero te levar a um
lugar super legal. Vamos?
No domingo, na igreja, Kelly sugeriu:
- Vamos sentar lá na frente, disseram que teremos um
convidado especial, pois o padre Antônio recebeu a visita de um
monge beneditino e dizem que faz ótimos comentários ao final da
missa. Quero ficar na frente para poder vê-lo de perto.
Gil já tinha participado da catequese, mas por discordar de
alguns pontos e questionar outros, se afastou da Igreja. Agora, ao
retornar, recebeu calorosos abraços de seus antigos colegas.
A missa transcorreu normalmente. Ao final, o padre Antônio
apresentou a todos, o monge Mathias, que estava atrás do altar
quase escondido. Pediu para ele fazer seu sermão junto ao
microfone instalado no canto do altar. Kelly ficou surpresa, pois o
comentado monge Mathias não se parecia em nada com a imagem
que tinha em mente. Ele era baixo e forte, seus cabelos grisalhos
eram bem curtos e escondiam seus 50 e poucos anos. Trajava
uma túnica marrom com um cordão branco n cintura.
Ao chegar até o microfone, ajustou-o a sua altura e com uma
voz forte, fez a seguinte pergunta:
- Vocês sabem quem inventou Deus?
A igreja fez um incomodado silêncio. As pessoas
entreolhavam-se e acomodavam-se em seus bancos. O padre
Antônio aparentou um leve desconforto. Kelly arregalou os olhos e
virou-se para Gil. Ele, por sua vez, estava impressionado e curioso,
afinal que resposta aquele monge daria a sua própria pergunta?
- O Homem - foi a resposta que o monge deu, depois de
quase um minuto de silêncio. E o silêncio deu lugar a uma
sussurrada expressão de espanto - Não, não estou falando do
verdadeiro Deus. Estou me referindo a esses deuses que
inventamos para nos ajudar, para arrumar emprego, para largar
vícios, para trazer a pessoa querida, para trazer melhoras
financeiras, etc. Confesso a vocês que eu também já criei um deus,
um deus feito à minha imagem e semelhança, um deus que eu
pudesse comprar com meu dízimo ou cantando hinos de louvor,
um deus que gostasse muito de mim, me protegesse e que
lançasse meus inimigos ao inferno. Um deus que morreu por mim,

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e assim me livrou de qualquer esforço para conseguir chegar ao


Reino Celestial. Sim, eu também inventei um deus. Quem de vocês
nunca inventou um deus?
Gil ficou assombrado com a verdade dita por aquele homem.
Kelly sentia-se incomodada, assim como muitos dos presentes.
E o monge continuou:
- Seguir leis e mandamentos para se chegar até ao Pai é
8
fácil . Não matar é fácil, basta que nosso ódio seja contido
externamente enquanto mutilamos nosso inimigo dentro da nossa
mente. É fácil não roubar, principalmente porque muitas atitudes
não são consideradas como roubo, como ficar com o que não nos
pertence, não devolver o troco a mais que o cobrador do ônibus
nos deu, como não lembrar a mocinha do caixa do supermercado
que ela não anotou a lata de ervilha, etc. Também é fácil não
cometer falso testemunho, quando nosso silêncio por si só já
compromete a outra pessoa. Também é fácil falar em amor ao
próximo quando simplesmente damos dinheiro para nossa igreja e
dizemos 'com isso estou contribuindo para que haja mais igrejas
para o bem da humanidade'. Tudo isso é fácil, meus amigos, mas
amar ao próximo é muito difícil. Por isso, achamos que isso não é
importante, achamos que o importante são os 10 mandamentos. É
esse o deus que criamos... Pois ele aceita muito bem tudo isso,
porque ele foi feito de acordo com nossas necessidades, ele está
aí para nos ajudar e não para indicar uma longa caminhada. Por
falar em deus, não podemos esquecer o diabo. Aliás, bendito seja
o diabo! Graças a ele podemos cometer uma série de bobagens e
depois colocamos a culpa nele. Tão bom quanto inventar um deus
para nos ajudar, é inventar um diabo para culpar! Pois bem, o Pai
Celestial existe, o demônio também. Entretanto está na hora de
tirarmos a sujeira da nossa vista e vê-los realmente tal como são, e
não como queremos que sejam. Portanto, termino meu sermão
com a seguinte orientação: busquem a Deus por amor e não por
necessidade, pois quem é um necessitado apenas quer ajuda e
isso é pouco para se chegar ao Pai Celestial. Isso é tudo o que
tinha para lhes dizer. Obrigado e até mais.

8
O conselho 21 do Kyan-pô afirma: “leis organizam, mas não se evolui cumprindo
leis”
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O padre Antônio finalizou a missa, agradeceu as palavras do


monge Mathias – sem ousa fazer algum comentário - e deu sua
benção final.
Todos se levantaram para sair, Kelly - mais tranqüila agora -
queria encontrar com suas amigas que foram à secretaria da igreja.
Gil disse que depois a encontraria, pois queria fazer uma pergunta
ao monge. Kelly alertou-o que ele é um monge muito esquisito!
Gil havia percebido que o monge tinha um anel com um
pentagrama, a estrela de cinco pontas. Pode parecer bobagem,
mas Gil chegou a achar que ele seria um Kiraya.
Algumas pessoas estavam conversando com o monge. Gil
aproximou-se e ficou aguardando uma oportunidade de falar-lhe e,
enquanto isso, observava o estranho anel.
Após alguns minutos, o monge dirigiu-se ao rapaz e disse:
- Me acompanhe.
Pediu licença aos demais e levou Gil até uma saleta atrás do
altar. Gil o acompanhava ligeiramente assustado e pensava. O que
ele quer de mim?
Chegando lá, o monge pediu-lhe que se sentasse, fechou a
porta e disse:
- Pensei que não viria!
- Como assim? Você estava me esperando? Por quê?
- Claro, meu jovem. Afinal estou aqui a pedido do venerável
Arok-ta-Beish. E devo confessar-lhe que meu sermão foi
exclusivamente para abrir os seus olhos.
Boca aberta e olhos arregalados, essa foram as expressões
de Gil. E isso durou vários segundos.
- Aguardo você amanhã. Estarei aqui dando algumas
orientações gerais para a equipe de catequese. Te espero por volta
das 20h, tudo bem?
Boca aberta e olhos arregalados, essas foram as respostas de
Gil.
- Meu filho, você está bem?
Após recuperar-se do susto, Gil perguntou:
- Você é um Kiraya? Então tudo aquilo que sonhei era
verdade?
- Madre amada! Não, não sou um Kiraya, sou o Papai Noel! -
respondeu o monge seguindo de uma gargalhada.

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- Mas... Como um monge pode ser um guerreiro?


- É... Você tem muito que aprender... Por acaso acha que sou
apenas um pacato monge, não é verdade? Pois saiba que entrei no
mosteiro e descobri que há linhagens de Kirayas nas barbas da
Igreja. Homens santos e sagrados, de origem cristã, foram grandes
guerreiros. Eu, particularmente, fui educado de acordo com os
segredos do Abade Tritemo9 e do monge Eliphas Levi10, grandes
guerreiros do passado, mais conhecidos pelo título de alquimistas!
- Nossa! Existiram alquimistas dentro da Igreja?
- Ah... E ainda existem! Isso sem falar de Roger Bacon 11·,
Cister12, São Tomás de Aquino13, Raimundo Lulle14, Basile
Valentin15, John Cremer16 e tantos outros
- Nossa! Só faltava ter papas!
- Pois então, meu jovem, estude a vida do Papa Silvestre II –
um grande alquimista do século X e a vida do Papa João XXII 17.
Mas, chega de conversas. Espero-te aqui amanhã, às 20 h.
Entendeu? Ah, sim... Caso queira vir, óbvio.
- Mas é claro que virei!
O monge sorriu e acenou um tchau. Ao sair, Gil encontrou-se
com Kelly e lhe disse:
- Vamos embora, querida? Essa missa foi muito profunda para
mim, quero ir para casa para refletir.
9
Abade alemão que viveu no século XV-XVI, grande mestre alquimista. Descobriu
manuscritos sagrados dentro do próprio mosteiro. Iniciou-se nos grandes mistérios.
Foi mestre de Paracelso.
10
Grande mestre cabalista do século XIX.
11
Monge franciscano francês que viveu no século XIII, chamado de doctor mirabilis –
doutor admirável. Autor de vários textos alquímicos, entre eles, o famoso Secretum
Secretorum
12
Monge e alquimista francês.
13
São Tomás de Aquino era teólogo, filósofo e alquimista, autor do Tratado da
Pedra Filosofal, viveu na Itália no século XIII.
14
Monge franciscano espanhol do século XIII. Grande alquimista e autor do De
alquimia, magia naturali.
15
Ocultista, alquimista e monge beneditino do século XV.
16
Abade inglês de Westminster
17
Esse Papa escreveu no século XIV o tratado alquímico Ars Transmutatoria,
entretanto, 17 anos depois – após lhe negarem o segredo último, fulminou contra
os alquimistas a bula Spondent Pariter I
29
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Em casa, Gil acessou a Internet e tentou procurar alguns dos


nomes mencionados pelo monge. Ele, que nunca se interessara
muito por alquimia, agora estava extasiado pelo assunto.

8. Graus de Consciência

Segunda-feira. 20h. Tucão deixou o Gil em frente à Igreja, no


mesmo local onde ao guardará. Ao entrar na saleta que já esteve,
atendeu ao sinal do monge para fechar a porta e sentar-se. Gil
estava alterado, o medo e a curiosidade afetavam seus
movimentos. O monge apenas o observava. Dessa vez não estava
de túnica, usava uma calça jeans e uma camisa pólo branca.
- Bem, eu... Eu estou aqui... E... E agora? – questionou Gil um
pouco nervoso.
Mathias percebeu o nervosismo do rapaz, por isso, orientou:
- Respire fundo e solte o ar pela boca, bem devagar, mas
fazendo esse som – disse Mathias enquanto exalava fazendo um
som que mais parecia uma pessoa dando seu último suspiro18.
Vamos – continuou o monge – faça várias vezes, vai se acalmar.
Obediente, logo Gil se acalmou. Mais tranqüilo, ele observou
que o monge colocou um pano sobre um relógio que estava sobre
a mesa. O relógio marcava 20h15min h.
- Muito bem, meu jovem. Antes de qualquer coisa, saiba que
existe um princípio fundamental que você deve obedecer para
continuar nesses estudos. Trata-se do SILÊNCIO! Não fale nada a
ninguém sobre esses estudos. Não conte a ninguém sobre suas
vivências ente os Kirayas do Amazonas, entendeu?
- Sim, não irei comentar nada com ninguém.
Um frio percorreu a espinha do jovem. Afinal, já havia contado
muito a seu amigo Tucão.
- Muito bem, meu jovem – exclamou o monge que bateu
levemente as palmas, pois percebia ter um pupilo perspicaz.
Para elucidar mais, comentou que o aprendizado das artes
sagradas é ditado por pessoas com capacidade para isso, portanto,
não cabe ao orientado falar de seus aprendizados junto às pessoas
mundanas. Deixou claro que romper com esse princípio equivale a

18
Esta é a respiração do guerreiro, ideal para neutralizar o medo.
30
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pedir pela expulsão sumária e, dependendo do grau de informação


que seja repassada a estranhos, poderá sofrer uma punição.
Citando a Bíblia, lembrou a passagem em que o Mestre disse para
não atirar pérolas aos porcos19.
Falou também que o buscador da verdade deve ter coragem
para questionar as orientações recebidas. Só os tolos aprendem de
cabeça baixa. Mas, duvidar significa: tentar experimentar o que foi
falado. Não é função do orientador entregar verdades 20, pois a
verdade deve ser experimentada por si próprio.
Concluiu que o aprendizado se faz quando se permite
aprender. Conceitos, tradições, medos e orgulho deverão ser
sabiamente desfeitos, afinal, conhecimentos novos pedem uma
mente nova. Citou novamente os livros sagrados.21
– Entenda Gilmar, só a prática o fará capaz de caminhar em
uma das cinco linhagens de um Kiraya.
- Como assim? Quais são essas linhagens?
- Bem, os cinco caminhos – como também é chamado – são:
o Caminho Contemplativo (para quem se identifica com orações e
meditações); o Caminho Combativo (para quem tem ímpeto de
combates físicos); o Caminho Curativo (aqui estão os que gostam
de curar); o Caminho Psicológico (para quem quer estudar a psique
humana) e o Caminho Mágico (para quem tem afinidades com
energias e rituais). Tudo isso compõe um antigo conhecimento
chamado Kyan-pô.
- Nossa! Que interessante, mas eu não sei que caminho
seguir! E o que significa a palavra kyan-pô?
Mathias fez silêncio. Observava as inquietudes do jovem
Gilmar. Sua fome por respostas e sua notória agitação psicológica.
Gil observava, admirado, o monge. Após o breve silencio, Mathias
falou:

19
Matias refere-se ao Evangelho de Mateus 7:6 “Não deis aos cães o que é santo,
nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, para não acontecer que as pisem e,
voltando-se, vos mordam.”
20
Uma regra fundamental nos ensinamentos secretos.
21
Provavelmente Matias citou Marcos 2:22 “E ninguém deita vinho novo em odres
velhos; do contrário, o vinho novo romperá os odres, e perder-se-á o vinho e
também os odres; mas deita-se vinho novo em odres novos.”
31
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- Não se preocupe com o Caminho a escolher, ele irá se


mostrar a você. Kyan-pô é uma palavra tibetana que significa
“estreito” ou “difícil”. Bom, já falamos muito, vamos agora a sua
aula. Sua primeira lição começa agora. Vamos tratar primeiro dos
graus de consciência. Você já percebeu a quantidade de diferentes
igrejas sustentadas pelo mesmo livro, a Bíblia? (ou qualquer outro
livro sagrado?). Por que tantas contradições, tantas interpretações
diferentes?
Gil, que já havia se detido nessa questão antes, aguardava
ansioso pela explicação.
- A reposta é simples, é que existem quatro diferentes graus
de consciência e cada grau interpreta a vida de seu jeito. O grau
mais baixo de consciência chama-se Eikásia. Possui esse grau as
pessoas rudes, brutas e instintivas, possuidores de uma concepção
religiosa que só venha lhes oferecer o que necessitam e nunca
cobrar nada deles. São capazes até de orar antes de cometer um
crime. O segundo grau de consciência é o estado de Pistis. Nesse
grau vivem pessoas cheias de opiniões, crenças, fanatismos,
teorias sem nenhum tipo de percepção direta da verdade. Medo e
tradição mantêm muitas pessoas nesse estado, o que os
impossibilita de entenderem coisas mais profundas. Por não
entenderem com profundidade, fazem leituras superficiais dos
livros sagrados e tiram conclusões precipitadas. Já o terceiro grau
de consciência é conhecido como Dianóia. Ao estado dianolético
pertencem a pessoas que estão revisando seus conhecimentos,
suas crenças e têm coragem para buscar respostas plausíveis e
perceptíveis. Aqui vivem os Purayas e Kirayas.
O monge fez uma pausa, admirou os olhos arregalados do Gil
e continuou:
- O mais alto grau de consciência recebe o nome de Nous, é
a consciência desperta e em pleno funcionamento. Pessoas nesse
grau de consciência possuem elevado grau de percepção, intuição
e iluminação. Vivenciam toda a verdade que expressam, por isso,
não possuem crenças nem dogmas, apenas a vida vivida
plenamente de acordo com a Verdade absoluta.
Ao observar o término da exposição de Mathias, Gil não se
conteve e começou uma série de perguntas, estava com tantas
dúvidas e curiosidades, que as perguntas surgiam na velocidade

32
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de uma metralhadora. Ele queria saber em que grau estava, se as


pessoas poderiam mudar de grau e como isso ocorreria, qual o
grau do monge etc.
- Calma, meu jovem. Uma pergunta de cada vez. Para
descobrir em que grau você está, temos que fazer uma análise
sincera da qualidade de suas percepções. Ou seja, qual é o grau
de crença e de verdade em seu interior? Qual o grau de misticismo
barato e de sensações reais em sua mente? É assim,
questionando e analisando nosso comportamento, que iremos
descobrir em que grau nós estamos. É obvio que, quem está em
Nous, não ira perder tempo com isso!
Sobre a possibilidade de a pessoa mudar seu grau de
consciência, Mathias explicou:
- Isso é possível, seja de forma temporária ou permanente.
Por exemplo, em certo momento de sua vida, uma pessoa que têm
o grau Pistis pode questionar toda sua crença (e isso é Dianóia) e
assim – por alguns momentos - aumentar seu grau... Também
pode acontecer que uma pessoa que viva em Pistis e siga sua
religião como um robozinho, ao perder um ente querido, pode se
revoltar contra Deus e começar a viver – por um bom tempo - um
estado de Eikásia. Ou seja, a oscilação ou a mudança, ocorre tanto
para cima como para baixo. Mas, dessa forma, é temporário. Para
obter mudanças ascendentes permanentes é necessário esforços.
Temos que trabalhar nossa conduta, nossa mente e nosso
coração. Todo Niraya vive em estado de Nous. E ninguém chega
nisso sem esforços. Entendeu?
Gil fez um sim com a cabeça.
- Ótimo! Terminaremos a primeira aula com uma lição para
casa: para ver se você entendeu isso, quero que me traga
exemplos vivos de pessoas nesses quatros estados de
consciência, ou melhor, apenas nos três primeiros graus.
Entendeu? Voltaremos na próxima segunda, nesse horário. Analise
tudo que lhe falei. Anote e estude. Até mais. Ah.. Já ia me
esquecendo. Amanhã - aliás, todas as terças - seu orientador será
o Sócrates, o professor de violão da escola Toque Mágico. Aqui
está o cartão dele, ele estará te esperando também às 20h. Pode
fechar essa boca, seu treinamento será mais exótico do que

33
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imagina. Haverá cinco orientadores e aulas todos os dias, portanto,


organize-se!
Gil queria fazer mais perguntas, mas o monge interrompeu:
- Sei que ainda tem muitas perguntas, mas se eu for
respondê-las todas, ficaremos dias aqui, certo? Agora, tenho outras
atividades.
O monge levantou-se rapidamente e saiu. Gil ficou parado por
alguns instantes e, curioso para saber as horas, retirou o pano que
cobria o relógio, ele marcava 20h16minh. Gil estranhou;
aparentemente o relógio estava funcionando, mas sua hora estava,
obviamente, errada, pois quando ele foi coberto, eram 20h15minh.
Na saída da igreja, Tucão ficou assustado:
- Já? Não rolou nada?
Ainda sem entender o ocorrido, descobriu que o tempo
realmente não passou!
- Fala, cara! O que o monge te disse?
- Você não vai acreditar! Vamos embora que te conto no
caminho.
Aproveitando a suspensão do tempo, ficou até tarde
conversando no carro do amigo, que achava tudo muito estranho e
no fundo, duvidava do Gil.
Nessa noite demorou mais para dormir. Fez anotações em um
caderno e refletia sobre as orientações que recebeu. Eram tantas
as novidades e tantas as perguntas, que isso lhe causava um
estranho desconforto. Afinal, onde isso tudo o levaria?
O telefone lhe obrigou a fazer uma pausa em seus
pensamentos. Era Kelly.

9. Importância do Calar

Terça-feira. O coração batia a mil. A curiosidade, o temor e a


vontade mesclava-se num único sentimento. Tucão novamente
deixou Gil no endereço solicitado. Gil entrou na escola e procurou
pelo professor.
- É na terceira porta à esquerda – orientou uma recepcionista
sorridente.

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Enquanto Gil caminhava pelo corredor até a sala do professor


Sócrates, sentiu um novo calafrio Parou frente à porta indicada,
bateu e aguardou.
- Entre - respondeu uma voz forte.
Abriu a porta devagar e viu um sujeito sentado numa cadeira
afinando um violão. Pareceria ter uns 30 anos, era alto e forte,
cabelo negro e curto, pele bem morena. Vestia uma velha calça
jeans e uma camiseta estilo hindu. Ele olhou para o rapaz e
perguntou:
- Você é o Gilmar, certo?
Gil fez sim com a cabeça. Não conseguia falar. Sócrates tirava
notas do violão recém-afinado. A melodia lembrava a famosa
musica dos Hare Khrisnas.
Ainda assustado, comentou:
- Eu não consigo entender que guerreiros possam ser
monges ou professores de música!
Sócrates se levantou e, pegando Gil pelo colarinho, encarou-
o e disse com firmeza:
- Seu linguarudo! Fala demais, fala sem pensar. Vai lá contar
para seu amigo que nós da comunidade dos Kirayas não
confiamos mais em você.
Assustado, não falou nada. Sócrates o soltou e voltou a tocar
seu violão. Em um momento de lucidez (dianóia, como disse o
monge Mathias), Gil se ajoelhou e, de cabeça abaixada, disse:
- Perdoe minha ignorância. Tudo é muito estranho para mim.
Fiz uma bobagem mais por ignorância do que por maldade.
Prometo ser discreto e fiel – não falarei mais nada a ninguém. Me
dê uma nova chance.
- Prove que merece e volte aqui amanhã.
Gil sentia que algo profundo acontecia em seu interior.
Agradeceu e saiu.
- Porr* Gil, de novo você entra e sai!!! Vai me dizer que
aconteceu milhões de coisas de novo? Tu ta é me enrolando, meu
irmão!
- Tucão, você está certo! Eu estou te enrolando. Não
aconteceu nada na Igreja e nada aqui.
- Cuméquié ???

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- É essa porcaria de maconha que tá fazendo isso comigo. A


partir de hoje não quero mais saber de droga nenhuma!
Tucão ficou indignado. Discutiram por quase meia hora.
Tucão entrou no carro e deixou Gil, que foi embora de ônibus.
Tucão lhe ligou a noite, querendo que Gil pedisse desculpas.
Isso não ocorreu. No outro dia, no ambiente de trabalho, Kelly
venho lhe falar:
- Ontem falei com o padre Antônio sobre aquele monge
maluco.
- Ué... falou o quê?
- Oras, fui dizer que aquele monge é metido com magia.
- Que papo é esse, Kelly? Quem te falou isso?
- O Tucão! Bem que eu suspeitava disso. Olha, não quero
que você de papo a esse monge não, viu? Ele é bruxo!
Que porcaria, pensou Gil. Como o Tucão é fofoqueiro!
Caramba, tô resolvendo a questão com o Sócrates. Agora essa
com o monge! É, Sócrates estava certo: sou um linguarudo, não
devia ter falado nada a ninguém!

À noite, estava novamente com Sócrates, contou sua atitude


e sua compreensão sobre silêncio. Ouviu apenas um “Vamos ver
até quando você controla sua língua”.
Alertado de que não terá uma nova chance se cometer esse
erro novamente, Gil sentou-se a pedido de seu novo instrutor.
Mudando de feição séria que mantinha, Sócrates ficou sorridente,
pôs a mão no ombro do Gil e disse:
- Cara! Começamos animados. Isso vai ser bom! Vejo que
tem sangue de guerreiro mesmo! Saber fazer escolhas é muito
importante, além disso, ser ousado é chave na vida de um Kiraya!
E agora, está preparado para iniciarmos a aula?
Feliz, Gil respondeu positivamente.
- Essa noite iremos falar da música, ou melhor, do Verbo –
dá um largo sorriso e continua - deixe-me lembrar o que disse o
apóstolo João: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com
Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus.
Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada
do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos
homens; a luz resplandece nas trevas, porém as trevas não a

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compreenderam’22. E eu direi mais, usando as citações do Anjo


Samael: ‘no amanhecer da vida, o Exército da Voz celebrou os
rituais do fogo, cantando em língua sagrada. A Grande Palavra
cristalizou-se em figuras geométricas que se condensaram
mediante a Matéria-Prima da Grande Obra, dando origem a todos
os fenômenos da natureza’23. Teria ainda que lhe lembrar das
trombetas de Jericó?24 Onde, por meio do som de sete trombetas,
derrubaram suas muralhas? O som é fundamental! Todo guerreiro
deve saber utilizar sua voz e sua ressonância. O poder do verbo
pode decidir batalhas. Mas verbo não é apenas falar, é o falar
impregnado do fazer!
A conversa animou-se. Gil descobriu, por exemplo, que não
utilizava corretamente a laringe para falar. Sócrates demonstrou
que o verbo tem que ser criado na garganta e não na boca. Vindo
da garganta, o verbo é mais forte. Falou-se também sobre os
mantrans, que são combinações sonoras que provocam mudanças
no estado emocional, espiritual ou físico de quem os utiliza. Gil
aprendeu que as palavras de baixo calão enfraquecem o poder do
nosso Verbo e por isso, devem ser evitadas.
Mais a vontade, Gil perguntou:
- Senhor Sócrates, já que o Verbo é tão importante, o que
acha daquele ditado que diz o silêncio é ouro?
- Putz... ”senhor?” – aí tu pegou pesado! Mas, tudo bem,
vamos lá... Respondendo: é tão mal falar quando se deve calar,
como calar quando se deve falar. Existem silêncios delituosos
assim como há palavras infames. Podemos ferir, magoar ou
incriminar tanto com palavras como pelo silêncio. Cuide das suas
palavras e do silêncio!
Falaram muito mais e por fim, Sócrates lhe alertou:
- Cara, antes que você ache que está louco, devo lhe dizer
que em todos esses treinamentos que teremos juntos, irei
suspender o tempo. Ao sair dessa sala, irá perceber que quase não
houve mudança nas horas. Essa é uma arte mágica que lhe será

22
João 1:1-5
23
Essa citação consta de um livro gnóstico intitulado Matrimônio Perfeito, capítulo
30.
24
Vide Josué, capitulo 6
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ensinada no futuro25. E amanhã, seu treinamento será com a Sra.


Mei-mei, uma grande guerreira, dotada de fabulosas faculdades
curativas. Ela está nesse endereço - entregou-lhe um bilhete - ela
estará te esperando amanhã, nesse mesmo horário. Nos veremos
na próxima terça-feira. Até lá.
Gil despediu-se animado e foi para casa.

10. Cuidando do Corpo

Cada noite era uma surpresa para Gil. Quinta-feira, no


horário combinado, tocou a campainha de uma velha casa situada
na cidade satélite de Taguatinga. Uma mulher de
aproximadamente 30 anos, de traços orientais, mais baixa que Gil,
com cabelos negros e longos, usando um kimono azul, abriu o
portão.
- Meu nome é Gilmar, procuro pela senhora Mei-mei.
- Eu também te procuro. Entre
A casa estava cheia de caixas e coisas empacotadas. Ante o
olhar curioso dele, ela disse:
- Mudei-me para cá recentemente. O bendito Arok-ta-Beish
solicitou que eu parasse o treinamento que fazia no meio da
chapada Diamantina, para vir orientá-lo.
Admirado, Gil exclamou:
- Nossa! Tudo isso por minha causa?
- Não, tudo isso pela causa dos Kirayas – corrigiu Mei-mei.
- Pôxa, é um orgulho para mim!
- Cuide-se do seu orgulho. O orgulho já fez muitos Kirayas
transformarem-se em Toripas, os detentores de poderes malignos.
Eles usam como querem esses poderes, pois não possuem honra,
caráter, nem lealdade.
Mei-mei estava sentada na única poltrona que havia na sala
e Gil estava no chão, sobre almofadas rosa e vermelha. Havia num
25
A suspensão do tempo fazia parte de uma antiga ciência chamada Ciência dos
Dzin ou Gênios. O que ocorre não era exatamente a suspensão do tempo, mas o
deslocamento para outra dimensão e seu retorno. Assim como um longo sonho
pode ser fruto de alguns minutos de cochilo, assim pode-se viver horas em outra
dimensão e retornar quase no mesmo instante em que se deslocou. Infelizmente,
essa ciência parece perdida.
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canto um conjunto de quadros e ainda várias caixas de papelão


indicando a mudança recente.
A aula começou com Mei-mei explicando que ela cuidará de
sua saúde física. Passando-lhe orientações de alimentação e
exercícios. Logo de inicio, ela solicitou:
- Retire seus sapatos e a camisa e dê algumas voltas pela
sala para que eu possa te observar
Gil, meio incomodado e levemente excitado, realizou a
tarefa. Ao olhar para Mei-mei, sentiu o fogo da repreensão dela.
Ela percebeu o desejo em Gil e sabiamente controlou a situação
dizendo:
- Percebo que seus hormônios já começaram a descarregar
em seu sangue os impulsionadores de estímulos eróticos. Isso é
natural e muito necessário. Entretanto, você deverá aprender a
controlar esses impulsos. Esse controle fará de você um homem
muito poderoso, como verá adiante.
Percebendo que ele ficou muito constrangido, ela continuou:
- Não fique constrangido. Falei isso apenas para
delimitarmos nossos contatos. O desejo sexual é importante e
necessário. Mas ocorrerá com sua amada, não comigo.
Gil, envergonhado, baixou a cabeça e continuou a caminhar
em círculos, mas foi rapidamente interrompido pela sua instrutora
que lhe disse:
- Não, não ande com a cabeça abaixada! Mas não é
necessário encher o peito, basta esticar a coluna vertebral e abrir
os ombros!
O rapaz sentiu-se um tolo, mas Mei-mei observava com
detalhes seus movimentos e, ora e outra, levantava-se e o observa
bem de perto. Depois de alguns minutos, pediu-lhe para parar e se
sentar.
Com um rosto pensativo, ela falou:
- Apontarei alguns problemas e pedirei que exercite a
correção até nosso próximo encontro. Mesmo após eu lhe mandar
levantar a cabeça, eu percebi que costuma andar com a cabeça
levemente abaixada. Isto não é saudável. Encaixe seu crânio na
coluna, ande olhando para frente e não para baixo. Estique sua
espinha. Sua respiração também está errada, você precisa
aprender a respirar fundo mais vezes, a respiração superficial

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mantém ar parado no pulmão, você só troca de ar na parte superior


e por isso, na parte inferior do pulmão há um ar parado que
causará distúrbios respiratórios. Parece também que têm
dificuldade em definir que rumo quer dar a sua vida, pois quase
tropeçou várias vezes.
Admirado com os comentários, ele revelou:
- Bem, estou vivendo um momento muito diferente e tenho
meus medos...
- Isso logo passará – comentou Mei-mei - agora, fique em pé,
e dê um soco - com toda sua força, em minha barriga
- Quêê??!!
- É só para saber como está sua estrutura óssea-muscular,
vamos lá. Não vai te doer nada, eu garanto!
- Você está brincando!
Ela fala num tom rígido e deixou claro que ela era a
orientadora. A ele, compete apenas obedecer. Gil, com cuidado,
deu um soco.
- Você é um homem ou rato?
Gil deu outro soco. Ela olhou com insatisfação. Ele, já meio
com raiva, deu-lhe um soco com toda a força que tinha. Mas o soco
foi desviado pelo braço de Mei-mei. Ela sorriu e disse:
- Estrutura óssea perfeita, estrutura muscular meio
abandonada, não é mesmo?
Gil, admirado pela rapidez na defesa, respondeu:
- Acho que estou meio fora de forma...
Mei-mei passou uma série de exercícios para ele fazer. A
conversa continuou por mais um tempo e, ao final, ela disse:
- Como percebeu, seu treinamento será todos os dias,
amanhã, procure este xamã, o grande Xurikaya – o Pássaro
Colorido, ele estará no parque da cidade, à noite, te esperando.
- Mas aonde vou achá-lo?
- É ele que vai te achar! – ela sorriu.
Os dois se despediram e Gil foi para casa.
Surpresa. Tal como a conversa com Sócrates, o tempo
também não passou! Ótimo, assim ainda pôde ligar tranquilamente
para Kelly.

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11. Contratempos

- Mas porque não podemos ir direto para o shopping? O filme


começa às 20h30minh. O que você tem que fazer de tão
importante na sua casa? Não estou gostando disso!
Gil ficou calado diante de uma Kelly nervosa. Acabaram de
sair do trabalho e, embora ele concordasse em ir ao cinema, disse
que teria que ir em casa primeiro. Na verdade, irá se encontrar com
seu outro orientador e, prevendo que ele irá suspender o tempo,
ainda pensa em assistir o filme com sua namorada.
Indignada com o silêncio do Gil, ela gritou:
- Quer saber? Você é um enrolado. Vou para casa. Tchau.
Ela foi embora de mau-humor. Gil foi para o parque da
cidade. Estava de ônibus e no meio do trajeto, sentiu vontade de
descer e voltar para Kelly. Sentiu que o relacionamento estava
prestes a piorar. Pensou também que esse seu treinamento
noturno, embora fosse muito rápido - pois suspendiam o tempo -
era uma saída noturna que ninguém conseguia entender. Seu pai
já lhe perguntou várias vezes, afinal, porque só chega em casa
depois das 20h? Kelly estava desconfiando de uma traição. Eram
tantos os pensamentos que lhe passavam pela cabeça do rapaz,
que mal percebeu que já estava próximo da parada. Assustado,
deu o sinal e desceu. E agora, o que fazer?
Gil começou a caminhar pelo parque. Cabisbaixo e
preocupado, não percebeu um senhor que se aproximou e disse:
- Menino triste? Noite estrelada com lua grande e prateada.
Não pode ficar triste!
- Problemas, meu bom senhor, problemas... – foi sua fria
resposta.
- Problemas existem para
serem solucionados, não para serem
lamentados.
Gil não estava disposto a
conversar com esse estranho, mas
achou seu comentário interessante,
por isso, mesmo caminhando sem
olhá-lo com atenção, comentou:

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- O meu é muito estranho. Ninguém iria entender!


- Tente expor com clareza. Problema bem exposto traz
metade da solução.
A insistência deste estranho lhe chamou a atenção, por isso,
atreveu-se a lhe contar seu problema:
- Eu estou fazendo um cursinho à noite e minha namorada
não entende! Como é um curso meio diferente, não posso contar
detalhes para ela. Assim, ela acha que estou fazendo algo errado.
- Hummmm. Talvez menino não esteja sendo claro com ela.
Se o curso te faz bem e não a prejudica, você poderia explicar
melhor, mas sem entrar em detalhes sobre os Kirayas.
- É verdade... - Gil fez uma pausa, olhou para aquele senhor
e, meio assustado, disse o senhor é o... o... Ai, esqueci seu nome!
- Xurikaya - disse de forma risonha aquele ancião magro,
alto, de cabelos longos e ainda negros. Pele morena e forte traços
indígenas.
Realmente era de se admirar aquele senhor, pois possuía
um sorriso de criança e falava com uma voz forte e ao mesmo
tempo, com ternura. Orientou-o a falar para Kelly que está fazendo
um curso à noite... o monge Mathias poderá ajudá-lo a disfarçar
esse processo.
Rapidamente concluíram o assunto e o índio começou a falar
dos poderes da natureza. Falava das almas das plantas e dos
animais. Ele chamava isso de espíritos da natureza e explicava
suas formas e suas origens, seus poderes e suas fraquezas. Gil
descobriu que o Elemental da galinha preta tem poderes de levar
pessoas ou objetos através de outra dimensão. Descobriu que o
Elemental do gato preto pode favorecer nossos sonhos com visões
e experiências espirituais. A certa altura da conversa, o índio
alertou: tudo pode ser usado para o bem ou para o mal. Com
sabedoria ou loucura. Mas faça o que quiser, tudo dará frutos!
Xurikaya falou também dos elementais dos quatro
elementos, também conhecidos como Compositas. Explicou que
vivem nos quatro elementos: as Ninfas na água, as Sílfos no ar, os
Gnomos na terra, e as Salamandras no fogo. Recebem outros
nomes também: Iaras, Ondinas, Silvestres, Pigmeus, Boitatás,
Vulcanos, etc. Disse que cada espécie se move unicamente no
elemento a que pertence, pois o elemento em que vive é

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transparente, invisível e respirável, como a atmosfera o é para nós.


Os Elementais não são espíritos, porque têm carne, sangue e
ossos; vivem e propagam sua espécie, comem e falam, atuam e
dormem, etc., e por possuírem sutileza em sua composição,
também não podemos chamá-los de humanos. São seres que
ocupam um lugar entre os homens e os espíritos, parecendo-se
aos homens e mulheres em sua organização e forma, e parecendo-
se aos espíritos na rapidez de sua locomoção. Raramente se
manifestam junto aos humanos.
Novamente alertou que a alta magia utiliza-se desses
elementais com muita freqüência, por isso, há tantas estórias de
homens que andaram sobre as águas ou através dos fogos,
histórias de homens que fazem chover ou ventar, etc.
- É certo que um dia poderei comandar tais elementais?
Em um tom enérgico, o índio falou:
- Menino faz pergunta perigosa. Como poderemos mandar
nos elementais da natureza se não aprendermos antes a governar
nossos próprios elementais que vivem em nosso corpo? Devemos
dominar as salamandras do nosso sangue e do nosso sexo, que
ardem com nossas paixões animais. Devemos dominar os silfos de
nosso próprio ar vital, sempre a serviço da imaginação
descontrolada, jogando com pensamentos sexuais e perversos. E o
que dizer das ondinas internas que vivem em nosso esperma,
originando sempre espantosas tempestades sexuais? Também
devemos controlar os gnomos da carne e dos ossos, que se
divertem com nossa preguiça, gula e cobiça. Menino deve ter em
mente uma coisa: dominar as criaturas da natureza, sem dominar a
si mesmo, é dar faca para uma criança. Muito perigoso.
Falaram mais, muito mais. Gil encantava-se com os novos
conhecimentos e foi novamente alertado:
- Guarde silêncio, para merecer saber mais. E, para finalizar,
respeite a natureza, ela é o corpo da Divindade. E não estranhe
tudo isso, o poder dos Deuses está além da nossa pobre
imaginação e de nossa definição. Afinal, os Deuses não têm que
dar satisfação para nós, não é mesmo?
Despediram-se e Gil recebeu um bilhete com o nome do
outro orientador: Sandoval – “Hei! Acho que o conheço de

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Eirunepé!”. Pegou um táxi e chegou a casa às 23h20minh! Xiii.. O


tempo não foi suspenso!
- Isto é hora de chegar, moleque? Tá pensando o quê? Vai
p’ra farra, sai c’as vagabundas e não avisa seu pai?
A discussão manteve-se por meia hora, embora dessa vez,
Gil procurasse ser diplomático, compreensivo e calmo. Quando a
discussão terminou, para alívio do Gil, foi ligar para Kelly, que não
quis atendê-lo.

12. Mudanças

Era sábado, Kelly continuava zangada e não deu brechas


para Gil se explicar. Em silêncio, ele sofria por isso. Era fim de
tarde quando ele pegou um táxi, deu o endereço e minutos depois
estava no Lago Sul. A cabeça estava a mil – só pensava nela.
Chegou ao endereço indicado – uma bela mansão. Ao tocar a
campainha, a primeira surpresa: Mei-mei apareceu para atendê-lo.
Ela abriu o grande portão em silencio. Em pé, na porta, a segunda
surpresa: lá estava o Monge Mathias! Gil se aproximou e, seguindo
a indicação do monge, entrou na sala, onde Sócrates e Xurikaya já
estavam. O silêncio tornou o ambiente tenso.
- O que está acontecendo? - perguntou Gil, entreolhando os
presentes e sentindo que há algo estranho no ar - Onde está
Sandoval?
- Menino deve sentar - disse Xurikaya com certa solenidade.
- Cara, o bicho ta pegando - falou Sócrates
Mathias foi mais claro: A comunidade dos Kirayas na floresta
foi seriamente atacada. Uma grande comitiva acompanhou Arok-ta-
Beish até Shambala e ficaram poucos Kirayas... E sendo assim,
aconteceu algo nunca antes visto: um exército de Toripas atacou o
santuário. Centenas de Kirayas foram convocados rapidamente.
Sandoval é um centurião, convocou sua tropa e fomos combater,
nós iremos agora. Assim, seu treinamento do menino foi suspenso.
- Eu também quero ir - disse Gil com uma voz forte que até a
ele assustou.
Os presentes se entreolharam.
- Embora pareça que não há mais Toripas por lá, ainda
assim pode ser perigoso - advertiu Mei-mei.
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- Acho que ele deve ir - posicionou-se Sócrates - além do


mais, isso irá acelerar seu treinamento.
Os Kirayas entreolham-se e, no silêncio, decidiram levá-lo.
Após alguns minutos, Mathias olhou para Gil e disse:
- Eu irei amanhã cedo, você poderá ir comigo, caso ainda
tenha vontade e coragem, mas lhe adianto uma coisa: você está
sendo treinado para ser um Kiraya, não um escoteiro. Portando
você poderá ver algo que não se vê num acampamento juvenil...
Está me entendendo?
- Obrigado! – disse Gil, que inclinou a cabeça em sinal de
gratidão.
Mei-mei pôs as mãos sobre suas têmporas e se encolheu
num canto da sala. Todos a olhavam e mantiveram-se em
silêncio...
- Sandoval está morto! - exclamou Mei-mei - Morreu como
um guerreiro, em combate. Mesmo tendo um braço dilacerado,
ainda assim conseguiu evitar que entrassem no santuário. Arok-ta-
Beish está retornando e convocando todos nós.
Rapidamente, todos foram saindo. Gil, calado e assustado
olhou para Mathias, o único que ficou na sala.
- Não se preocupe com Sandoval. Ninguém morre em vão
quando se morre em combates sagrados. Vamos embora também.
Amanhã, 7h esteja na igreja.
Entraram todos no carro de Mei-mei e deixaram Gil na
esquina da casa de Kelly. Eram 21h.
Kelly não estava em casa. Sua mãe disse que ela saiu com
suas amigas. Gil ficou indignado e ao mesmo tempo, aliviado, pois
não estava em condições de falar com ela. Foi para casa preparar
suas malas.
Ao chegar em casa, outra surpresa. Seu pai estava de mala
pronta. Com um rosto que demonstrava ter chorado, disse:
- Seu vagabundo, sempre atrasado. Olha, tô indo p’ra Minas,
seu tio Valdomiro morreu.
Abismado, Gil guardou silêncio.
Seu pai começou a lacrimejar. Sua voz mudou e, com
tristeza, informou:

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- Vou pegar o ônibus das 22h. To só esperando o táxi que


chamei. Vou ficar um período por lá e não sei quando vou voltar.
Cuida da casa direitinho.
- Desejo força a você, meu pai... Gosto muito do seu irmão,
infelizmente nós não sabemos o que o destino nos reserva. Mas, o
tio Valdomiro vai continuar vivo em minhas lembranças e
sentimentos.
Os dois se abraçaram. Gil não se lembrava quando foi a
última vez que isto ocorreu!
Seu pai já estava com a passagem, aguardava apenas o
táxi. Deu algumas orientações e disse que deixou um bilhete sobre
a mesa, pois achou que não iriam se encontrar.
- Ô taxi demorado... Vixe, foi só falar e ele chegou! –
resmungou seu pai.
Despediram-se novamente.
Entrou em casa e começou a preparar sua mala, sem ter
certeza do que e quanto deveria levar. Também pensou em como
avisar seu pai. Talvez ligasse no dia seguinte para sua tia e
aproveitaria e falaria com seu pai sobre uma viagem a trabalho.
Quanto a Kelly e ao trabalho, diria que por motivos pessoais e
urgentes, teve que viajar. Raciocinou que isso não é muito simples,
mas não perderia por nada conhecer um pouco mais sobre essas
pessoas tão estranhas e agradáveis.
A cabeça de Gil girava como um redemoinho. O seu tio - que
lhe ensinou a nadar e andar de bicicleta - morreu; seu novo
orientador morreu num combate que ainda não conseguiu
entender; fará uma viagem para uma cidade que não sabe nem
onde fica; poderá perder o emprego e a namorada. Mas,
OUSADIA26 não é uma palavra-chave entre Kirayas?
Ligou novamente para Kelly, ela – por insistência da mãe –
atendeu o telefone e disse que está cansada dele. Disse que ele é
um ingrato que só quis usá-la. Que confusão. Ele tentava se
explicar e jurou mudanças, mas para piorar, disse que teria que
viajar amanhã – foi a gota d’agua para ela.
- Eu não quero mais nada com você, não me procure depois
da sua viagem, entendeu? -
26
Diz o conselho 18: “ousadia deve ser uma estratégia, não um comportamento”

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Ela bate o telefone. Sozinha, ela pensa: “amo o Gil, mas não
sou trouxa para deixar ele ficar me enganado – ta na cara que ele
tem outra!”
Gil chorou até dormir. No outro dia, encontrou-se com o
monge e foram ao aeroporto, onde Mathias já havia providenciado
as passagens! Quis lhe falar sobre o incidente onde Kelly falou com
o padre Antonio, mas percebeu que isso era coisa pequena
comparado as gravidade do ocorrido na comunidade dos Kirayas.

13. A Volta a Eirunepé

Durante todo o trajeto, Gil tentava entender o que realmente


está acontecendo. Pensava em Sandoval, pensava na Kelly,
pensava em estranhas batalhas, voltava na Kelly. Sabia que
Mathias tinha outras preocupações, mas, achou de comentar com
o monge, nestas palavras:
- Que bobagem, a menina que gosto não gosta de mim e
isso está me perturbando.
- Isso não é uma bobagem!
- ???
- Teu sentimento é nobre, Gilmar. E o dela também!
- Sim, mas ela não quer voltar comigo! Como isso é nobre?
- O sentimento dela vem de um coração puro, mas a mente
está impregnada de orgulho e vaidades. Quanto a isso, você não
poderá fazer nada. Continue amando-a, pois se quiser esquecê-la
irá se lembrar dela a todo instante, então, ame-a profundamente,
sem querer nada em troca. O verdadeiro amor é doação. Ame e
fique em paz!
Mathias fez uma ampla explanação sobre os sentimentos
humanos, acalmando o jovem que assim pode se entreter com
outros assuntos. Voltando a questão de Eirunepé, Gil questionou
sobre a eterna luta do bem contra o mal.
- Gilmar, felizmente o mal nunca tomará conta do universo e,
felizmente, o bem também não. É o constante atrito entre essas
duas forças que faz gerar as luzes que nos levam ao Absoluto.
Veja, se não existisse a tentação, como você saberia que alguém é
santo? O mal é necessário, por isso a divindade nunca acabou com
ele. O mal é importante para que haja escolhas, caso contrário,
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seriamos apenas seres puros27. Lembre-se de que o bem e o mal


são necessários, mas nunca nos levarão totalmente até a Deus,
pois Ele está acima do bem e do mal. Ao lado dos Kirayas estão os
Toripas, que optaram pelo caminho negro e não medem esforços
para adquirirem a sua força. Acham que assim chegarão um dia a
ser como o Criador. Como eles, existem legiões de demônios,
magos negros e tantos outros que fazem o possível para aumentar
seus grupos, enfeitiçando e seduzindo seus discípulos. A eles, as
obras de seres como Arok-ta-Beish perturbam muito e por isso,
tentaram destruir a encantada cidade fundada por Arok-ta-Beish...E
é para recuperá-la que estamos indo para lá.
- Ainda bem que não atacaram Arok-ta-Beish!
O monge sorriu e disse:
- São maus, mas não são loucos. Arok é um Niraya, está
acima do bem e do mal, não entra nessas batalhas porque sua
função é orientar Kirayas para serem também Nirayas. Ele caminha
nos céus e nos infernos sem ser molestado. É um ser sagrado,
como diversos homens e mulheres que, embora sejam de
linhagens diferentes, ajudam a ascensão daqueles que buscam a
Verdade, que querem ir muito além da evolução!
- Ué, mas a evolução não é um processo contínuo?
- Não, ou melhor, sim, até certo ponto. Veja, há evolução no
bebê que se torna uma criança, depois um jovem e por fim um
adulto; e há involução nesse adulto que envelhece e morre. Há
evolução na semente que germina, cresce e vira uma grande
árvore; mas há involução nessa árvore que envelhece e cai. Não
espere a evolução levar você até os mais altos céus, pois a sua
irmã gêmea (a involução) irá te puxar pelo pé. Não é qualquer um
que escapa da carta dez do tarô.
- Carta dez do tarô? O que ela significa?
O monge pegou uma caneta e um papel. Fez uma roda com
alguns aros e acima, colocou uma esfinge segurando uma espada
e depois disse:
- Veja, aqui está um rascunho da carta dez do tarô. De um
lado sobe a divindade Hermanúbis e do outro desce o terrível Tifon
Bafometo. Eis aqui a roda dos séculos, a roda do Samsara, a roda
27
Essa frase do Mestre Matias recorda Apocalipse 3:15, que diz: “Conheço
as tuas obras, que nem és frio nem quente; oxalá foras frio ou quente!”
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da evolução e da involução. E é nessa roda que está o segredo da


Esfinge. E quando descobrirmos o mistério da esfinge, nós
obteremos sua espada e nos libertaremos dessa roda fatal.
Gil ouvia atento. Impressionava-se com alguns comentários,
e assim o tempo de vôo foi passando. Em um dado momento, Gil
perguntou:
- Quem era Sandoval?
- Sandoval era um grande guerreiro. Era magro como um
biscoito, simpático como esquilo e forte como um touro. Foi o
treinador de Arcrus. Já esteve em inúmeras batalhas e parecia ser
indestrutível. Sua força energética era impressionante. Suas
habilidades psíquicas lhe davam grande vantagem sobre seus
inimigos. Seu corpo etérico tinha grande proteção contra feitiços.
Mas, dependendo do ataque, qualquer Kiraya pode sucumbir. Seria
um grande orientador para você... Quando chegarmos lá, deverão
estar em cerimônias do funeral dos guerreiros mortos em combate.
Foram interrompidos:
- Iniciaremos nossos procedimentos de pouso – disse a
comissária.
Minutos depois, estavam todos no saguão do aeroporto de
Manaus.
Seguindo por caminhos diferentes, chegaram até aquele
teco-teco em que Gil voou até Eirunepé. Só que dessa vez, o piloto
era outro.
- Arlek! Você por aqui! – exclamou Mathias.
- Vamos, meu velho, entre logo - respondeu com tom
carinhoso um sujeito estranho.
- Apresento-lhe Gilmar... Este é o Arlek
Com um meio sorriso, Arlek falou:
- Olá rapaz. Pena que não é um momento muito agradável,
mas será um prazer tê-lo conosco
Arlek era muito estranho. Era alto e delgado. Seu cabelo
castanho e curto destacava-se sua pele levemente azulada. Seus
olhos eram azuis e sua fisionomia era jovial.
Quando o avião começou a decolar, parecia que não iria sair
do chão, mas minutos depois, alcançou alta velocidade. Gil nem
ousou conversar, tamanha era sua admiração.

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- Como estão as coisas agora? - perguntou Mathias para


Arlek.
- Os Toripas foram expulsos e agora estamos reerguendo
algumas residências e alguns templos com ajuda de muitas
pessoas vindas de outras comunidades. Hoje recebemos a visita
de um irlandês chamado Balthold, ele é especialista na magia da
reconstrução. Sabe, a batalha deixou um rastro muito triste, há
muitos amigos e amigas que desencarnaram! Arok-ta-Beish já está
lá e fará hoje à noite o funeral dos guerreiros. Em resumo, ainda há
muito trabalho e muita reflexão a fazer.
Arlek tranquilizou Mathias dizendo que não há mais Toripas
na região e, portanto, Gil não irá presenciar batalhas. No meio da
conversa, Arlek alertou: - Segurem-se que vou acionar uma nova
turbina!
- Nossa, Arlek, este teco-teco está cada vez mais rápido! –
admirou Mathias
- Oras.. Você sabe que isso não é um teco-teco
convencional, aliás, só sua aparência externa é de uma nave
terrestre. Afinal, você não ia querer que eu te esperasse lá com
uma nave-filhote venusiana, não é mesmo?
Gil olhou assustado para Arlek! Isso era uma brincadeira
dele? Os dois Kirayas se entreolharam e riram ao ver a cara de
espanto do rapaz.

14. Resultado de uma Batalha

Rapidamente chegaram à cidade sagrada dos Kirayas. Ao


pousar, algumas pessoas aproximaram-se da aeronave. Mathias
acompanhou um grupo de homens e mulheres, foi ver como
estavam as coisas e disse a Gil:
- Te procuro depois, dê uma andada por aí e ajude no que
puder.
Arlek foi chamado por um grupo de homens que vestiam
calças verdes e camisas azuis.
A cidade estava um caos e algumas grandes construções
estavam semi-destruídas.
Gil caminhou até um grande campo que havia próximo de
onde estava. Lá havia uma fila de corpos de homens e mulheres
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que morreram em combate. Um grupo de mulheres muito jovens


espargia um liquido perfumado sobre os corpos. Ao chegar mais
próximo, ouviu um velho índio dar a seguinte ordem a um rapaz de
turbante: “Ao pôr-do-sol, o bendito Arok-ta-Beish irá iniciar a
cerimônia fúnebre. Providencie uma grande fogueira e traga todo
nosso estoque de plantas aromáticas, pois queimaremos tudo em
honra aos irmãos que partiram. Assim é a vontade do bendito”.
Ambos se retiraram e Gil também. A cidade erguia-se em
meio à magia e trabalho duro. Madeiras eram cortadas na floresta
e transformava-se em vigas que eram levantadas através de magia
e se encaixavam de forma incomum. Outros traziam folhas de
palmeiras que recebiam um tratamento estranho e pareciam se
converter em metal. Gil chegou a tocar nessas folhas metalizadas -
ficavam mais resistentes e mantinham a aparência e a leveza
original mudando apenas a cor, pois ficavam prateadas. Outro
grupo passava uma estranha resina nas paredes.
Arlek ao vê-lo, gritou: - Ei! Gilmar! Venha até aqui. Vou lhe
apresentar Barthold e sua equipe.
Gil aproximou-se de um grupo de
senhores que se vestiam iguais e, após os
comprimentos, ficou à disposição desses
irlandeses para ajudá-los.
- Atuaremos primeiro no templo do
grande Arok-ta-Beish, por isso, precisaremos
de mais resinas – disse Barthold à Arlek, que
saiu em seguida.
Ao chegarem ao templo, observaram
algumas paredes quebradas, duas torres
destruídas e algumas portas arrombadas.
Gil não conseguia entender porque
começar por esse templo sendo que ele não está tão ruim. Mas
sua dúvida foi esclarecida por um dos assistentes de Barthold que
lhe disse: “Saiba você que essa cidade foi construída segundo a
numerologia, a astrologia, o feng-shui e a mandala desse templo.
Se a cidade foi semidestruída, ao reforçamos esse prédio, ele irá
fortalecer e facilitará a construção do restante da cidade. Toda
essa cidade está interligada a esse templo e vice-versa. E aqui

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está o maior interesse dos Toripas. É o tesouro que está nesse


templo que motivou esse ataque”.
Gil ficou intrigado e gostaria de mais detalhes, mas a equipe
começou a analisar o edifício, que não é tão pequeno como Gil
julgava. Ele possuía três pavimentos superiores e três pavimentos
no subsolo. Doze pequenas torres mantinham cristais em suas
pontas, sendo que duas estavam destruídas. Sentinelas em todas
as portas dão passagem ao grupo de Barthold. Sua equipe
começou a fazer estudos e iniciou-se uma estranha discussão
técnica com bússolas, mapas celestes, pêndulos e outros
estranhos objetos.
Gil colaborou auxiliando nas medições com cordas e
carregando objetos solicitados pelos estranhos engenheiros. O
tempo passava. Ele sentiu fome, mas só duas horas depois é que
uma mulher passou entregando cuias com um estranho e
consistente liquido. Gil olhou para a mulher e esta, lendo seu olhar
lhe informou: “São extratos de plantas fortificantes misturados com
frutas. Embora pareça pouca, esta poção alimenta um guerreiro
durante dias”.
Não que fosse muito agradável, mas Gil tomou tudo e
aguardou o resultado, pois seu estômago pedia comida, bastante
comida. E, em menos de quinze minutos, a fortificante bebida já
fazia efeito. Enquanto isso, a equipe de Barthold progredia na
reforma. As torres quebradas foram novamente construídas, novos
pilares foram erguidos, paredes foram modificadas para darem
mais energia ao templo. A parede e o portão de uma misteriosa
sala que ficava ao centro desse edifício foram reforçados.

15. Funeral

O sol começava a se pôr e o som de um sino tristonho


chamava a todos para o funeral. Naquele mesmo campo onde
estavam os defuntos, Gil via agora um palanque onde estava Arok-
ta-Beish e algumas outras pessoas que nunca vira antes. A alguns
metros deles, havia muita madeira espalhada no chão, prontas
para uma fogueira. Sobre estas madeiras, havia corpos envolvidos
em tiras de cipós secos, como se fossem múmias. Não se poderia
identificar assim, quem era quem. Deste conjunto de madeiras, um
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delicioso perfume expandia-se pelos ares. Curiosamente, Gil viu


muita gente triste, mas não desesperada. Pessoas que
lamentavam a perda de seus companheiros, mas não havia o
tradicional clima de velório, mas um profundo e respeitoso silêncio!
Arok-ta-Beish levantou a mão direita. Um silêncio tomou
conta do lugar. Até as aves e animais da floresta, que rodeavam o
lugar, aquietaram-se. Com voz solene, ele disse:
- Iniciaremos agora nossa despedida aos irmãos e irmãs que
morreram para proteger nossa comunidade, para proteger nosso
ideal e para proteger nossa linhagem. A dor da perda só não é
maior do que a certeza de que a morte não foi em vão. Sei que
muitos deixaram esposas ou esposos, mas lembrem-se: eles
morreram como guerreiros e não como vermes covardes. E por
isso, cada uma dessas árvores contará, nos séculos vindouros, a
coragem e a honra desses guerreiros. Coragem e honra que deve
ser exemplo para nós. Entretanto, sabemos que a vida é eterna e
apenas o corpo é passageiro, assim como nossos vínculos também
são passageiros. Esse corpo e esse vínculo irão desfazer-se na
fogueira. Procurem compreender isso para poderem compreender
a vida, que sempre é eterna.
Depois desse início, Arok começou a falar o nome dos que
morreram, sem ler nenhuma lista. Falava o nome e a multidão
respondia: “Você morreu. Não têm casa, nem esposa, nem filhos,
não voltem mais aqui. Busque a luz, busque a luz, busque a luz”.
Ao concluir todos os nomes, Arok bateu as palmas e um
fogo, vindo do nada, começou a arder sobre as madeiras e os
corpos. Em menos de uma hora a fogueira já estava apenas em
brasas, não se via corpos e apenas uma fragrância gostosa pairava
na noite escura da floresta.
Tochas eram acesas em toda parte e Arok fez uma grande
oração pelos mortos. Pediu força para que ninguém se sentisse
temeroso nessa jornada. E agradeceu a vontade de todos na
reconstrução da cidade. Fez menção especial aos Kirayas que
vieram de outras comunidades ajudar, e ao apoio dos Nirayas que
estavam presentes, que também fizeram comentários. A cerimônia
encerrou-se com a benção do bendito e todos se retiraram em
silêncio. Gil não sabia exatamente para onde ir até que Mathias
pegou-lhe pelo braço.

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Mathias levou-o até sua casa. Lá já estavam outros amigos,


inclusive aqueles engenheiros. Mas, antes de entrar, Gil não se
sentiu bem. Percebendo isso, Mathias convidou-o para uma
caminhada noturna. Saíram e caminharam pela cidade iluminada
por tochas. No caminho, o monge disse:
- Sei que tudo parece muito confuso, meu jovem. Nós mal
começamos o treinamento e você se deparou com esse incidente.
A partir de hoje, serei seu único orientador, pois os demais ficarão
por aqui, perdemos muitos guerreiros e não podemos nos dar ao
luxo de termos muitos atuando como orientadores.
Gil parecia não acreditar na cidade que via; no monge que
estava ao seu lado; no lugar distante em que se metera; nos
mortos que vira queimar. Sentia-se num sonho estranho e
perturbador. Queria acordar logo. Mathias percebia a angustia, a
dúvida e o medo, mas aguardava Gil se pronunciar.
- Não consigo entender muito bem as coisas, não sei direito
quem vocês são, o que fazem realmente, o porquê dessas mortes,
essa gente estranha, eu... eu tô com medo - Gil desabou a chorar.
Mathias abraçou-o como um pai, acariciava seu cabelo e
disse:
- Chore..., chore porque um guerreiro derrama lágrimas além
de seu sangue. Chore para que essa angústia libere sua mente
para compreender o que está realmente acontecendo. Chore, meu
bom rapaz.

16. Mathias e a Magia Negra

Após alguns minutos de choro, Gil começou a soluçar.


Naquele momento Gil respirou profundamente várias vezes até
parar o soluço e o choro. Ele sentiu o calor, a amizade e a afeição
do monge Mathias. Mais calmo, mas ainda com lágrimas no rosto,
perguntou:
- Como o senhor se tornou um Kiraya?
Mathias primeiramente expressou um sorriso, que fez Gil
sentir-se em paz. A expressão de Mathias era contagiante e estava
ciente que ao contar sua história poderia ajudar muito Gil, então
disse:

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- Na busca pela verdade, batemos em diferentes portas,


algumas nos levam para o abismo e não percebemos. E foi isso
que aconteceu comigo. Há muitos e muitos anos, eu vivia em uma
pacata cidade chamada São Paulo de Piratininga. Tinha dezesseis
anos quando conheci um místico muito misterioso e interessante,
ele conhecia tarô, astrologia, falava com espíritos e podia invocar
elementos da natureza. Sua aparência era santa e sagrada, sua
voz meiga e sábia, vestia-se com uma túnica branca e possuía
muitos adoradores. Eu estava no meio deles, julgando-o como um
deus vivo. Demorei em descobrir que era uma farsa. No fundo, ele
era um escravo das forças negativas. Seus poderes só existiam
para ele cumprir os desejos de seus Mestres. Fingia santidade para
atrair tolos como eu. No meu fanatismo, não percebi a mitomania
daquele homem. Fiquei anos aprendendo magia negra, criando
dores nos outros e aprendendo a manipular a mente alheia.
Comecei a ganhar dinheiro e respeito. Aos vinte anos, possuía a
mulher que eu quisesse e, no entanto, não percebia que estava
metendo meu pé no inferno. Aperfeiçoava minhas artes mágicas
fazendo experiências em pessoas comuns, pessoas que nem
imaginavam estar sob minha influência. Fiz uma mulher separar-se
para ficar alguns meses comigo. Fiz magia contra um homem rico e
eu mesmo fui lá oferecer meus serviços para desfazer a bruxaria.
Assim ganhava dinheiro, mulheres e poder.
Os olhos atentos de Gil e sua feição de curiosidade
estimularam o monge, que continuou:
- Certo dia, um homem muito rico apareceu em minha casa.
Ele queria que eu matasse a namorada de seu filho. Ela era uma
pobretona e o pai julgava que essa menina só queria o dinheiro de
seu filho. Para mim, isso era um trabalho rápido, simples e
lucrativo. Cobrei uma boa quantia e dei-lhe o mortífero pó de
Medéia28.
Gil interrompeu, e queria saber o que era o pó de Medéia.
- Ah, sim. Trata-se de um pó elaborado a partir de sapos,
víboras e aranhas que foram presos em uma garrafa e alimentados
com certo tipo de cogumelo. São atormentados todos os dias até
morrerem de fome e de raiva. São salpicados com espuma de

28
Famoso veneno utilizado desde a Idade Média.
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cristal em pó, cicuta e eufórbio. Após a incineração, separamos as


cinzas dos cadáveres, o líquido gosmento e um pó fino e
esbranquiçado. Esse é o mortífero pó de Medéia. Uma pitada na
bebida faz a vítima se desidratar e morrer em agonia, no máximo
em três dias29.
Mathias fez uma pausa, parecia que queria relembrar mais
detalhes.
- Bem, continuando. Uma semana depois, o homem que me
comprou o pó da Medéia reclamava que a mulher já tomou três
doses do veneno e nada aconteceu. Surpreso, na mesma noite
sacrifiquei um bode negro e, dominando seu espírito, ordenei-o a
romper o cordão de prata dessa menina (o cordão de prata é o elo
entre nosso corpo e nossa psique, ele só pode ser rompido pelos
Anjos da Morte ou através de alguns elementais, como o do bode
negro ou através de gênios malignos com poderes para tal).
Mesmo assim, também não tive sucesso. Eu estava indignado e
com raiva, pois meu status estava em jogo. Como todo mago
negro, a demência e a perversidade me alimentavam. Foi então
que utilizei a mais tenebrosa ferramenta: invoquei um gênio
maligno e o ordenei que matasse aquela menina. Ele foi até a casa
dela e depois retornou até mim dizendo: Não foi possível matá-la,
ela possui a proteção do Khristus.
Gil ficou admirado, embora não entendesse exatamente o
que ouvia!
- Assustado diante de tal revelação, pois nunca um gênio
maligno se curvou a outro poder, investiguei por mim mesmo que
poder era esse. Mas antes, fiz uma magia para aquele homem rico
esquecer que me procurou. Encontrei a menina e fingi amizade.
Comecei a freqüentar sua casa. Disse-lhe que queria saber mais
sobre o Khristus. O que ela me disse me apavorou. Falava sobre o
poder que há dentro de cada um de nós. Falou da magia que
constrói e fortifica, falava-me do Mestre Jesus e da Mestra Maria
Madalena. Quanto mais ela contava sobre o Khristus, mais
indignado eu ficava com a bobagem de servir seres tão fracos e
deturpados. Soube então que ela era uma Puraya (e hoje é uma
grande Kiraya na comunidade existente no deserto árabe). Meses

29
Obviamente a receita está muito incompleta!
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depois, entrei no mosteiro que ela me indicou. Lá conheci meu


grande orientador, o abade Cornélius. Grande alquimista e
estudioso de magia cristã. Começou ajudando-me na
desvinculação com a magia negra. Ele chegou a invocar demônios
e exigir que me deixassem em paz. Algum tempo depois, levou-me
a uma gruta secreta embaixo do mosteiro, onde havia um pequeno
grupo de Kirayas. Comecei estudar o cristianismo primitivo, li as
orientações do Cristo Jesus que não consta nos livros oficiais.
Purificava meu coração e perdia meu poder maligno, que era
substituído pelos verdadeiros dons cristãos.
- Nossa!!!
- O tempo passou e o abade Cornélius enviou-me para
estudar alguns anos num mosteiro na Espanha. Entretanto, isso
era o que todos pensavam. Fui, na verdade, aperfeiçoar-me nas
orientações sagradas junto a uma comunidade de Kirayas que
existe em Mont Serrat. Lá fui treinado e testado, lá conheci Arok-ta-
Beish que estava de passagem e que me convidou para ajudá-lo
aqui nessa comunidade, assim que terminasse meu treinamento.
Eu nem sabia quem ele era, mas disse que seria um prazer ajudá-
lo. Achei que ele era um Kiraya como outro qualquer. Quando
terminou meu treinamento, voltei ao mosteiro do abade Cornélius e
lhe disse do convite de Arok-ta-Beish. Ele me parabenizou e me
contou que Arok-ta-Beish era um Niraya que, por piedade a nós,
não entrou no mundo abstrato e divino para ficar nos orientando.
Cornélius me motivou a vir para essa comunidade. Quando Arok
soube que fui estudante de magia negra, me enviou ao Tibete para
estudar magia negra com grandes magos negros...
- Como é que é? Você Foi ao Tibete estudar magia negra?
Você ainda é um mago negro? Já li um livro de um monge tibetano
chamado Lobsang Rampa30, não parecia magia negra! Não estou
entendendo...
- Boa observação a sua. Deixe-me esclarecer alguns pontos.
Primeiro: é muito importante que haja na comunidade de Kirayas,
alguém que conheça bem a magia negra, pois isso ajuda nos
treinamentos e nos estudos de defesa. Segundo: o Tibete possui
um grande templo de Luz. E quanto maior a Luz, maior são as

30
Monge tibetano iniciado nos mistérios que, no século XX, escreveu vários livros.
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sombras. Isto é, sempre existirão templos de magia negra ao lado


de templos de magia branca. Esse monge que você me falou, eu o
conheci pessoalmente, e é claro que ele vem do templo de Luz.
Terceiro: conhecer não significa praticar.
- Então, me diga uma coisa, como a Magia Negra pode afetar
uma pessoa?
- Ahhhh... Têm várias formas. As mais comuns são: sugar
energias através dos sonhos; criando obsessões psíquicas;
causando inimizades; provocando enfermidades; estimulando
vícios; desequilibrando o desejo sexual; utilizando-se de falsos
profetas e, finalmente, com intervenções dos elementais da
natureza. Saiba também que os mais abomináveis magos negros
não são velhos carcomidos pelo tempo e pelas bobagens que fez.
Eles normalmente possuem poderes que mantém sua juventude e
força. Fazem as forças da natureza se curvarem aos seus desejos
e atuam de acordo com os princípios e planos da Irmandade
Esquerda. Não ficam vendendo trabalhos, fazendo amarrações,
isso fica para esses magos de terceira e quarta categoria, que são
numerosos e inúteis para a Irmandade Negra. Com essa classe,
não devemos nos preocupar.
- Nossa!
- Eu poderei ser atacado a qualquer momento? – pergunta
Gil, um pouco receoso.
- Claro, assim que perceberem que está em treinamento,
será atacado!
Gil estava de boca aberta com os novos conhecimentos. Em
poucos minutos, Mathias chamou sua atenção para a questão de
Magia Negra de uma forma que nunca tinha visto. Conversaram
sobre cada forma de ataque e como se defender. Ensinou orações
secretas para proteger o corpo enquanto se dorme, falou dos ebós
- cápsulas supra-sensíveis cheios de vírus que o mago negro cria e
envia pela atmosfera até sua vítima. Disse que a chave para
distinguir falsos profetas é a questão do dinheiro, do sexo e da
persuasão. Falaram sobre muitas coisas. Mathias notou que Gil
estava mais tranqüilo e resolveu terminar o assunto para dormirem.

17. Uma Noite Agitada

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Quando voltavam para casa de Mathias viram Mei-mei. Ela


estava com uma bolsa de couro e passou tão rápida que parecia
não vê-los. Gil gritou:
- Ei! Mei-mei!
Ela parou. Assustada, olhou para eles e disse a Mathias: -
Sinto que teremos problemas... Sinto que será com Shem-Tov...
Mas não tenho certeza; mesmo assim, vou acordá-lo.
Mathias franziu a testa e disse a Gil: - Mei-mei não costuma
falhar, vamos correr!
Deslizaram rapidamente pelas ruas iluminadas por tochas e
pararam em frente a uma casa. Mei-mei parecia entrar em transe e
gritou:
- musa sapientum serpentis.
Isso foi o suficiente para Mathias abrir a porta rapidamente (as
portas não são trancadas!) e gritou:
- Serpente negra! Serpente negra!
Na casa havia seis pessoas. Todos levantaram-se
rapidamente, foi um alvoroço. Conjurações e orações mágicas
eram faladas por todos. Até que um homem de estatura mediana,
forte, careca e com um grande bigode gritou “Argh!!”.
Simultaneamente ao seu grito, um rapaz que estava ao seu
lado, já com uma espada Kobak na mão, cortou a cabeça da
serpente negra que se desfez em uma verde e fétida fumaça.
Levado para fora, onde já havia outras pessoas, Mei-mei o
fez ingerir uma bebida enquanto esfregava algumas folhas no local
da picada. Gil soube então que ele era Shem-Tov
- O que aconteceu, afinal? Perguntou Gil para Mathias.
Mathias o tirou dali. Caminhavam agora para a sua casa.
Disse ao rapaz:
- Um dos truques fatais de
magia negra, consiste em pegar o que
chamamos de tripa de bananeira
(uma tira do caule da bananeira),
misturar com poções venenosas e
encantá-la com palavras mágicas que
a transformam em uma serpente
capaz de aparecer onde está a pobre
vítima. Uma serpente que nasce com

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um único propósito: matar uma pessoa. Felizmente Shem-Tov foi


atendido a tempo por Mei-mei. Isso é uma benção.
Gil ia fazer outra pergunta quando Arcrus passou por eles e,
ao ver Mathias, disse:
- Há algo errado, Mathias. Shem-Tov foi atacado por magia!
Quero ver o que os guardiões estão fazendo. Afinal, como uma
magia dessas atravessou a linha mágica?
- Estranho realmente. Iremos com você! - replicou Mathias.
Seguiram até uma gigantesca árvore que tinha o interior de
seu tronco escavado em forma de escadas em espiral. Subiram
muitos degraus. Arcrus à frente, seguido por Mathias e por Gil. Ao
fim desta escada, Arcrus abriu uma porta que dava acesso a um
grande galho. Nele havia um homem em pé com um cristal na mão.
Ele olhou calmamente para Arcrus e disse:
-Sei o que procura, mas não está nessa região, aqui a linha
está intacta.
Arcrus agradeceu e não falou mais nada. Desceram
rapidamente a escadaria.
Mathias informou Gil que aquela árvore é a Ponta Norte da
cidade e que iriam agora para a Ponta Oeste. Lá havia uma árvore
trabalhada como a anterior. Encontraram uma mulher com um
cristal na mão que também disse não haver interrupções na linha
mágica naquela área. Seguiram para a ponta Sul e depois para a
ponta Leste. Esses guardiões eram exatos ao falarem do não
rompimento da linha mágica.
Vendo a curiosidade estampada no rosto de Gil, Mathias
explicou-lhe que se trata de uma linha criada por alta magia que
impede que artifícios de magia negra andem pelo espaço que é
delimitado por essa linha. Gil soube que aqueles guardiões ficavam
com cristais mágicos que funcionavam como câmara de vídeo nos
limite da cidade, observando eventual entrada de estranhos, além
de permitirem ver a linha mágica.
Arcrus estava pensativo e após alguns segundos, bradou:
- Temos um feiticeiro nas redondezas da cidade! Vou pegar
esse verme e é agora!
Agradeceu a companhia de Mathias e de Gil e foi convocar
alguns guerreiros para acompanhá-lo nessa missão. Porém, deu
uns dez passos e, com seus aguçados reflexos, pegou com a mão

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direita uma seta envenenada que veio em direção ao seu pescoço.


Olhou rapidamente para a escura floresta, percebeu de onde
deveria ter vindo a seta e correu lá. Adentrou a floresta e Mathias o
seguiu. Gil, atônito - pois sequer viu a seta - ficou parado tentando
entender o que estava acontecendo.
Alguns minutos depois, um gemido mortal se ouviu, em
seguida, Mathias e Arcrus voltaram da floresta, trazendo o corpo de
um homem morto!
- O que aconteceu? Vocês mataram aquele homem?! – disse
Gil assustado!
- Explique para ele, Mathias. Enquanto isso, eu levarei esse
verme para ser cremado. – falou Arcrus.
Observando a cara de susto de Gil, Mathias disse:
- É, pelo jeito não vamos dormir tão já! Vamos fazer uma
caminhada, vou te contar algumas coisinhas. Meu jovem, não é
dado aos homens a permissão para matar outros homens. Porém,
a importância da vida vai, além disso. A vida é tão importante que é
seu dever cuidar de sua própria vida. É sua obrigação também
cuidar das pessoas que estão ao seu redor, mesmo que isto custe
sua vida. Se, para proteger as pessoas que estão ao seu redor,
você tiver que enfrentar um inimigo em um duelo mortal, eu torço
para que morra o inimigo! Mas, caso seja você quem morra, saberá
que morreu com honra, não como um verme covarde.
Mathias fez uma pausa, olhou para a escura floresta e
continuou:
- Em todo combate, é sempre interessante você olhar com o
Olho do Dragão (a visão da lama do outro!) para se certificar se
esse inimigo tem a chama da divindade em seu interior - o que
significa que ele pode se regenerar e, através de uma “limpeza”,
você pode conduzí-lo à Divindade, embora haja casos que só uma
boa paulada na orelha consiga redirecioná-lo! Agora, caso ele não
tenha nenhuma chama, como é o caso desse feiticeiro, sua morte é
irrelevante.
- Eu ainda não desenvolvi a terceira visão, como posso saber
se meu inimigo deve morrer ou não?
- Calma lá! Entenda primeiro que o fato de muitos feiticeiros,
assassinos e homens violentos não terem mais alma em seu
interior pode ser notado ou pela ausência dessa pequena chama

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azul ou por não possuírem a última faculdade da alma: o


arrependimento. É por isso que muitos homens violentos
comentem atrocidades e não têm nenhum remorso do que fazem.
São capazes de esfaquear uma mulher enquanto pisam no
pescoço de uma criança. São desalmados, não possuem a alma.
Esses indivíduos são chamados de cascas astrais, pois possuem
um corpo físico, mas já morreram há muito tempo. Bem, agora vou
dizer outra coisa: não é sua obrigação sair por aí matando cascas
vazias! É sua obrigação se proteger e proteger quem está contigo,
só isso!
- E o que você me diz sobre o famoso 'não matarás'?
- Digo que você deve cumprir com isso. Mas não queira
imitar um Cristo, pois estará se enganando. Quando você for
sagrado, o não matarás deixará de ser uma lei para fazer parte do
seu Ser. Por hora, não mate as criaturas ao seu bel-prazer,
somente mate se for realmente necessário.
- Alimentar-se e proteger-se é uma necessidade, certo?
- Sim, mas esse assunto é comprido e temos que dormir.
Alias, vamos dormir logo, antes que aconteça mais algum
imprevisto!
Trocaram mais umas poucas palavras e foram dormir.
Somente o cansaço poderia fazer Gil dormir depois de tantas
experiências incomuns.

18. Redefinindo Orientadores

No outro dia pela manhã, estavam no templo de Arok-ta-


Beish. Gil já estava com sua mochila. Lá encontrou com Cinthya e
com Ivan. Ficaram muito satisfeitos em se encontrarem,
começaram a falar e só pararam quando o bendito chegou na sala
onde estavam. Sorriu para todos e falou:
- Obrigado por terem vindo, vocês que são Purayas e
almejam serem Kirayas. Notei a colaboração de todos vocês na
reorganização dessa cidade. Muito obrigado! Meus queridos
amigos, por motivo que já perceberam, o treinamento de vocês
será modificado. A partir de agora, cada um de vocês terá apenas
um orientador. - Arok fez uma pausa, olhou atentamente para
aqueles cinco Purayas que estavam lado a lado, à sua frente,
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tendo seu orientador às costas e continuou - Sra. Saphira,


sucessos com a senhorita Cinthya. Monge Mathias, sucessos com
o jovem Gilmar. Senhor Abrapatius, sucessos com o Ivan. Desejo
revê-los em breve. Que a paz dos deuses esteja convosco. - Arok
retirou-se sobre o silêncio e admiração dos presentes.
Arlek surgiu para buscá-los. Gil trocou telefones e e-mail com
Cinthya e Ivan. Seguiram para Manaus, despediram-se e cada qual
seguiu para sua cidade. À noite, em Brasília, Gil ligou para seu pai
e depois para Kelly. Muitas coisas aconteceram na sua ausência.
Seu pai disse-lhe que ficaria mais alguns dias em Minas. Gil
conseguiu convencer Kelly a sair com ele na noite seguinte.

19. Novos Conhecimentos

A noite estava fria, Kelly também. Gil descobriu que era difícil
ficar ao lado de uma mulher que se gosta e que te olha de forma
indiferente. Ela ainda estava magoada desde a última conversa.
Gil, com muito jeito, aproximou-se dela e, com muito tato, carinho e
carícias, conseguiu roubar-lhe um beijo. Um beijo tão caliente que
põe fogo em seus corpos.
Para se recuperarem das longas carícias, estavam em uma
lanchonete tomando açaí. Ela acariciava o cabelo dele quando lhe
disse:
- Sabia que mudei de Igreja?
- Ué... Por quê? – perguntou Gil nem tanto admirado, afinal,
quando a conheceu, ela era espírita, depois virou umbandista, dias
atrás era católica, agora mudou-se para outra igreja!
- Lembra do dia em que te levei à igreja? Pois é, então você
deve se lembrar daquele monge idiota que começou um sermão
mais idiota ainda. Pois é, graças às besteiras que ele falou,
descobri a tolice que seria continuar lá. No outro dia, uma segunda-
feira, o Espírito Santo me iluminou e acompanhei uma amiga até a
Igreja da Sagrada Salvação. Lá é ótimo! Vou te levar um dia
comigo.
Gil se controlava para não brigar com ela, pois o Monge
Mathias era mais que um orientador, ele era um amigo!
Calmamente falou:
- Gostei muito daquele monge!
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- Bobagem. Ele é um idiota, cretino e deve ser pedófilo


também!
- Não julgue uma árvore sem conhecer seus frutos – Gil deu
um tom bíblico para esconder sua ira.
- Você tem que conhecer o Auxiliano de Jesus. Até seu
nome é santo. Ele fala de um Deus que está disposto a nos ajudar,
basta saber pedir. Um Deus que está á nossa disposição, basta ter
fé. É isso que ele ensina: como usufruir o poder de Deus em nossa
vida!
- Por falar em mudanças, você sabia que meu tio Valdomiro
morreu? – desconversou sabiamente.

20. Esoterismo Cristão

Era a mesma sala em que conversaram pela primeira vez. O


monge Mathias estava com uma túnica bege. Abriu um largo
sorriso para receber seu pupilo.
- Olá, meu jovem. Ué, que cara é essa?
- Oi... Ontem fiquei meio chateado com minha namorada. Ela
me disse que saiu desta igreja devido ao seu sermão. Ouvi as
críticas dela e não soube te defender.
- Ah... Bobagem. Já recebi várias críticas aqui, até o padre
me deu uns cutucões. Agradeço sua preocupação em querer me
defender... Isso é muito louvável. Mas não se preocupe com isso,
em outros momentos, poderá me defender. E o fato dela mudar de
igreja não significa nada para o Criador. Igreja é uma congregação
de pessoas que vêem a religião de certa forma. A nossa religião é
o Cristianismo. Igrejas cristãs têm muitas, e isso é bom, pois cada
qual pode escolher a que melhor lhe satisfaz. Infelizmente as
igrejas atuais são incompletas, pois trazem conhecimentos
superficiais do cristianismo. E isso o que acontece em todas as
grandes religiões.
- Como assim?
Mathias se levantou. Andou um pouco e, fixando-se nos
olhos do Gil, orientou:
- Gil, meu jovem, há muitas superficialidades nas religiões,
mas há algo muito profundo que devemos estudar, há aspectos
mais sagrados em cada religião. Do Cristianismo, há muita coisa
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boa nos ensinamentos dos Cátaros, dos Templários e dos


Alquimistas. Do Budismo, bem vale estudar o budismo zen. Já no
Hinduísmo, vale conhecer alguns tipos de Yoga, a Shakty e o
Tantrismo. Do Islamismo, são muito bons os ensinamentos do
Sufismo e os Derviches. E do Judaísmo, a Cabala.
Após uma pausa, o monge continuou:
- É claro que as religiões dos Maias, Incas e Astecas têm
muitos conhecimentos sagrados. Religiões africanas nos ensinam
o poder dos elementos da natureza. Há muita coisa interessante
nas antigas religiões dos egípcios, dos druidas e tantos outros
povos nos quais o Criador deixou sementes que germinaram em
forma de conhecimento e luz. Toda grande religião possui três
níveis de conhecimento: o primeiro nível é o exotérico, serve para
falar que Deus existe, que não devemos matar nem roubar. Ensinar
que, para irmos para o céu, temos que ser boas pessoas. É um
conhecimento muito superficial, mas têm um efeito social muito
importante, pois funciona como rédeas para as maldades das
pessoas. O segundo nível é o mesotérico, aqui começam a
apresentar os mistérios da religião, as faculdades dos homens e
dos deuses, começamos a experimentar a divindade fora do
contexto do “peça que Deus te ajuda”. O terceiro e último nível, é o
conhecimento esotérico. É o âmago da religião, é a fonte do
poder. Aqui não se fala mais de Deus, fala-se do Homem, que é o
próprio Deus! Aqui são detalhados os caminhos da divinização do
Homem. É claro que a maioria das igrejas só tem o lado exotérico
da religião, portanto, mudar de igreja, não faz diferenças no avanço
espiritual da pessoa. Perceba também que quem muito fala em
Deus, comumente não tem a vivência... Embora seu fanatismo não
o permita ver isso, mas em suas ações no dia-a-dia, fica claro que
está muito longe de Deus!
Mathias fez outra pausa e observava o olhar atento de Gil.
Em seguida, falou:
- Entenda uma coisa meu filho, é fácil falar de Deus e mais
fácil ainda ler a Bíblia como quem lê um livro de história. A Bíblia é
cheia de mistérios e de revelações. E não é a inteligência humana
ou cursos de Teologia que vão nos revelar esses mistérios, pois o
homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque

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para ele é loucura; e não pode entendê-las, porque elas se


discernem espiritualmente31.
Gil ficou admirado com as observações de Mathias. Após
alguns segundos de silêncio, talvez para digerir o que lhe foi
ensinado, Gil perguntou:
- Mas não se diz que temos que ir à igreja ou templo, porque
é a casa de Deus?
- Citando a Bíblia, te direi que o Altíssimo não habita em
templos feito por mãos de homens.32
- Então a Bíblia é muito complicada de se entender!
- Não é verdade... É que a Bíblia é um livro poético, histórico
e mitológico. Distinguir uma coisa de outra dá trabalho, mas não é
tão complicado assim.
- Você pode me contar alguns detalhes?
- Vamos ver... Ah, um detalhe interessante, lembra-se de
Moisés? Pois é... O grande Mestre Moisés não é judeu!
- Não?!
- Não... A bíblia diz que ele foi recolhido das águas pela filha
do faraó que se banhava no Nilo. Mas, preste atenção, o rio Nilo
sempre foi infestado de crocodilos, banhar lá não é coisa para a
corte egípcia, além disso, a corte do faraó ficava a mais de
trezentos quilômetros de distância! Menethon, o sacerdote egípcio
que forneceu várias informações a historiadores gregos na
antigüidade, já afirmava que Moisés era um sacerdote de Osíris e
que se simpatizou pelos judeus por ensinarem a adoração de um
Deus único. Conta-se que ao ver um soldado maltratando um
judeu, se indignou e acabou matando-o. Isso mudou toda sua vida!
- Nossa... Que estranho, e por que na Bíblia ele é judeu?
- Oras, a Bíblia é judaica, e por questão de nacionalismo,
tinham que dizer que o fundador de sua nação também tinha
sangue judeu! Ele, ao fugir com o povo, começou remodelar uma
nova religião. Mas é certo que o Gênesis foi escrito mais de
quinhentos anos após sua morte! Por isso, muitas das coisas que

31
Mathias citou um trecho de I Coríntios 2:14
32
Atos 7:48
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lá estão, são reminiscências dos grandes conhecimentos expostos


por Moisés e outros grandes sacerdotes por ele iniciado.33
- Ouvi dizer que há modificações entre a Bíblia original e a
atual. É verdade?
- As bíblias de nossos dias estão muito alteradas! Mal dá
para confiar muito nelas! Por exemplo, nos textos hebraicos
originais, fazia-se até menção ao primeiro animal que Adão deu
nome... Pasme, era o unicórnio! Consta, inclusive, que Eva foi a
terceira mulher de Adão. Ele teve antes Lilith e Nahemah, mas a
crueldade dessas mulheres fez com que fossem retiradas dos
textos. Bem, é claro que aqui estamos falando de algo muito
simbólico e é uma pena terem entendido ao pé da letra e por isso,
ao retirarem esses nomes, privaram as pessoas de conhecimentos
muito interessantes.
- Nossa!
- Para se ter idéia das alterações, veja que em uma parte da
Bíblia, se diz que Deus não se arrepende do que faz34 e, no
entanto, em outra parte, se diz que Deus se arrepende35... Isso
prova que esse livro não foi escrito por uma só pessoa em uma
única época. Mesmo assim, é um livro fabuloso!
- É verdade que as bíblias em português trazem muitas
diferenças?
- Não é só em português não! Mas é fato que nossas traduções
estão cheias de conceitos e crenças religiosas, pois cada qual
traduziu como lhe convém. Para ver como isso é grave, já no
século II, ou seja, 200 anos após o nascimento do Cristo, o

33
É curioso observar as semelhanças entre Moisés o e Deus Baco: a) Baco também
nasceu no Egito e teve duas mães: a geradora e quem o criou; b) Baco fui
encontrado em uma ilha, o que lhe valeu o nome de “salvo das águas”. Moisés fui
salvo do rio Nilo, por isso foi chamado de “salvo das águas”; c) Baco passou o Mar
Vermelho com um exercito de homens e mulheres para conquistar as Índias; d)
Baco, como Moisés, converteu águas em sangre; e) Como Moises, Baco se vingou de
um rei (faraó); f) Baco plantou vinhas por onde passou e na época de Moisés, os
exploradores que este enviou à Canaã, regressaram com enormes cachos de uva.
34
Em Números 23:19 está escrito: Deus não é homem, para que minta; nem filho do
homem, para que se arrependa
35
Em Gêneses 6:6 está escrito: Então se arrependeu o Senhor de haver feito o
homem na terra, e isso lhe pesou no coração
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historiador bíblico Orígenes comentou: “Presentemente é notório


que grandes foram os desvios sofridos pelas cópias dos livros
sagrados, quer pelo descuido de certos escribas, quer pela audácia
perversa de diversos corretores, quer pelas adições ou supressões
arbitrárias”36
- Nossa!
Mathias procura uma anotação em sua bíblia e depois disse:
– Eis aqui um exemplo. Veja as diferentes traduções para o
Salmo 18:8:
A lei do Senhor é perfeita, reconforta a alma37;
A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma38;
Sim, a lei do Senhor é sem defeitos, ela conforta a alma39;
A lei do Senhor é perfeita, ela dá a vida40;
A lei do Senhor é perfeita, ela devolve à nossa alma as
41
forças ;
A lei do Senhor que é imaculada, converte as almas42;
A lei de Iahveh é perfeita, faz a vida voltar43.

E o mais incrível, o original diz Torat Iahveh temimá mshibat


nafesh, cuja tradução é
simplesmente O ensinamento de
Deus é perfeito, faz o espírito
voltar.
- Nossa! Monge Mathias,
isso é muito interessante!
- Veja a famosa frase ‘O
Senhor é meus pastor e nada me

36
Mathias está citando uma obra antiga denominada “Patrologia Grega, Migne” -
vol. 13, col. 1.293.
37
Bíblia da Ed. Ave Maria
38
Bíblia da Sociedade Bíblica do Brasil
39
Bíblia da Ed. Loyola
40
Bíblia Tradução Ecumênica, Ed. Loyola
41
Bíblia da Ed. Mundo Cristão
42
Bíblia trad. Antonio P. Figueiredo
43
Bíblia de Jerusalém - Ed.Paulinas
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faltará’44 também é uma tradução muito errônea. O original diz


Iahveh ro’i lô echsar - e a tradução correta é: O Senhor é meu
pastor, não me faltará. Notou o grave problema da má tradução?
- Meu Deus! Isso causou um grande equívoco, fazendo do
Senhor um provedor de bens!
- Boa observação, meu jovem!

21. O Cristo

- O que você ia perguntar antes?


Recuperando-se da admiração, Gil demorou um pouco e
perguntou:
- O que me diz daquela frase de Jesus “Eu sou o caminho, a
verdade e a vida?45
Muito boa sua pergunta, meu jovem. Para te explicar o
significado desta frase, terei que explicar que Jesus não é sinônimo
de Cristo, mas espero que você não se assuste.
Gil arregalou os olhos e soltou um: “O Quê??”
- Tudo bem, pode se assustar, mas vou te explicar assim
mesmo. Cristo é força divina que está em tudo e em todos. Quando
uma pessoa desperta essa força, ela começa um longo processo
até se converte em um Cristificado, ou Kristus Solaris. Esses são
os Nirayas de altíssimo grau. Nós, Kirayas, também somos os
soldados destes Cristos46. Entre os Nirayas que são Kristus Solaris,
Jesus é um dos mais elevados. Tão divino e sagrado que é quase
impossível compreendê-lo. Normalmente, toda grande religião foi
fundada por um Cristo (homem ou mulher!). Agora consegue
entender que a frase que Jesus falou é muito mais profunda? Saiba
também que, segundo a tradição secreta, não foi exatamente isso
que ele falou. Dizem que ele falou mais ou menos assim: Eu sou o
Caminho que deves seguir. A Verdade que deves trilhar e a Vida
que deves esperar. Eu sou o Caminho sem perigo, a Verdade sem
erro e a Vida sem morte. Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida!
Afinal, Jesus é um Kristus! É curioso saber que alguns de seus

44
Salmos 23:1
45
João 14:6
46
Mateus 26:53
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discípulos já suspeitavam disso. Lembra-se daquela passagem em


que Jesus interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem as
pessoas acham que sou? Os apóstolos disseram: “uns dizem que é
João, o Batista; outros dizem que é Elias ou Jeremias, ou algum
dos profetas. E Jesus perguntou: mas vós, quem dizeis que eu
sou? Foi aí que Simão Pedro respondeu: Tu és o Cristo, o Filho do
Deus vivo. Então, Jesus ordenou aos discípulos que a ninguém
dissessem que ele era o Cristo”47. Interessante essa passagem,
não acha? Pois bem, Todo Cristo é, de fato, o Caminho, a Verdade
e a Vida. Lembre-se que o Cristo é uma força da Trindade
Sagrada... Uma outra face do Pai, digamos. Por isso, Jesus teve
direito de dizer: "Eu e o Pai somos um”.48
- Depois disso tudo que o senhor me ensinou, tenho a
impressão que há muita gente sendo enganada por aí, não é
mesmo?
- Sim e não!
- Não entendi.
- É que, a maioria das igrejas ignora isso por terem apenas o
lado exotérico, (o lado superficial), então eles não estão enganando
ninguém. Eles simplesmente não têm o conhecimento. Há o caso
também, e esse sim é grave, de igrejas que são conduzidas por
Toripas. Aí, há o intuito é de enganar e desviar a possibilidade de
avanços espirituais.
- Toripas metidos em igrejas???
- Ué, eu não sou um Kiraya e estou em uma igreja? Há
muitos Toripas fazendo papel de padre, pastor, rabino, mulá, etc...
Com um único objetivo: induzirem as pessoas a acreditarem que só
eles têm a verdade, que só eles sabem entender os livros
sagrados, querem matar a mística do amor em prol da mística da
crença. Quando você ampliar sua clarividência, poderá perceber
isso com facilidade.
Mathias alertou também que os toripas não são os únicos
problemas. Ele recordou que todo grande profeta falou de amor e
de união, os falsos profetas atuais semeiam a intolerância e a
divisão. Disse também que a intolerância é mãe do fanatismo e o
fanatismo derramou muito sangue inocente em nome de Deus.
47
Mateus 16:16
48
João 10:30
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Gil ficou perplexo. Após um silêncio, perguntou:


- O que o senhor pode falar sobre a Virgem Maria?
- Ah, muita coisa! Mas vou fazer um comentário rápido.
Preste atenção. O aspecto feminino é imprescindível para toda
grande religião. Maria, Ísis, Maia, Tonantzin, Devi Shakty, etc.,
todas elas são aspectos da Grande Mãe Cósmica da qual nasce o
Cristo Cósmico. Eis aí o aspecto feminino do Criador. Eis aí a
Mulher Sagrada, espelho para todas as mulheres. Sobre a Virgem
Maria, a adorável mãezinha de Jesus, nenhuma escultura ou
pintura (mesmo de Michelangelo e Da Vinci) conseguiu traduzir a
beleza luminosa daquela mulher. Não, ela não era uma mulher
esguia, de pele clara, mãos delicadas e rosto formoso. Aquela filha
da Luz era morena queimada pelo sol do deserto, de baixa
estatura. Não se vestia de seda e púrpura, mas de uma velha
túnica marrom. Maria foi educada dentro da doutrina secreta da
Tribo de Leví. Uma mulher sem igual!
- Alguém me disse que a bíblia cita os irmãos de Jesus... –
disse Gil.
- É uma história complicada. Acontece, meu jovem, que em
alguns idiomas antigos (e até hoje em alguns países do oriente e
em vários países africanos) não se usa a palavra primo, apenas
irmão. Além disso, é provável que José tenha filhos de seu primeiro
casamento. Deixe-me achar isso na Bíblia. Um minutinho... Tenho
algumas anotações sobre isso. Achei! Está escrito em Marcos 6:3
que o povo se perguntava sobre Jesus “...não é ele o carpinteiro,
filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão?
Não vieram aqui também entre nós suas irmãs?” No entanto, em
Lucas 6:15-16 se esclarece que Tiago e Judas eram filhos de Alfeu
ou Cleofás, portanto o eram também José e Simão. Já em Mateus
27:56 fala sobre a mãe deles que se chamava Maria também. Mas
para não confundir as Marias, vejamos o que diz João 19:25 “Junto
à cruz de Jesus estava sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria,
mulher de Cleofás”. Por isso, aparentemente Jesus não teve
irmãos... Mas, se teve, que importa isso?
- Ué, e a virgindade de Maria? – insistiu Gil.
- Sua relação com José ocorria de acordo com os
conhecimentos sagrados, e isso você aprenderá em outra ocasião,
mas Maria teve relação com José... Mas uma relação sem

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fornicação, por isso, ela será sempre virgem. O Espírito Santo –


como dizem os leigos - provocou a fecundação... Com apenas uma
semente de José!
Gil olhava admirado.
Mathias resolveu ir mais fundo nessas questões e explicou:
- Não leve muito ao pé da letra a história de Jesus, de seus
irmãos e da virgindade de Maria, pois toda verdadeira religião tem
uma lenda, que serve para encobrir os mistérios que escandaliza
os ignorantes, tolos e fanáticos.
Gil olhava admirado e o sorriso de sua alma permitiu o
monge aprofundar detalhes:
- Todas as religiões têm uma origem comum; a divergência
entre elas se deve ao desenvolvimento mental dos povos da terra.
A história é sempre a mesma, a mensagem é idêntica, mas os
homens não a compreendem. Veja: na pérsia antiga surgiu Mitra,
Deus da Luz e do Sol, Mitra tinha sua trindade: era representado
entre duas figuras jovens. Ele surgiu de uma pedra (uma pedra
angular?). Em sua luta contra os poderosos do mundo e contra
Arimã (o mal) Mitra foi advertido pelos deuses de um Dilúvio
Universal, construiu uma arca, salvando-se assim com o seu gado,
flutuando sobre a superfície das águas. Por fim, Mitra subiu aos
céus levado pelo Sol, em sua radiante carruagem (lenda de Elias
na Bíblia). Santificavam o domingo e celebravam o natalício do Sol
na noite de 24 para 25 de dezembro, data que, desde o século IV,
foi fixada como Natividade ou Nascimento de Cristo.
- Incrível!
- Saiba então que – o monge iniciava outra história – no
Egito antigo, quando Deus viu os homens se devorando uns aos
outros como animais selvagens e enviou Osíris. Ele nasceu como
escravo e chegou a ser rei do Egito, afastando os homens de suas
atitudes selvagens, ensinou-lhes a cultivar os cereais, deu-lhes as
leis e instituiu o culto aos deuses. Mas seu irmão Tífon-Set, tomado
por inveja, decidiu matá-lo. Os santos sacerdotes contavam essa
história ao povo e concluíram: “Osíris cai para levantar-se e
levantar os que caíram; morre para renascer ele mesmo e
ressuscitar os demais”. E mais: a virgem Isis, esposa de Osíris dá a
luz a Hórus na data de 25 de dezembro!

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- Meu Deus! – exclamava Gil, admirado com tamanha


semelhança.
- Os autênticos maçons (raros hoje em dia) conhecem bem a
lenda de Hiram Abiff, filho de uma virgem e que foi designado para
construir o Templo de Salomão. Foi morto, mas ressuscitou ao
terceiro dia.
Em silêncio, Gil começou a entender o amor divino,
manifestado em todas as culturas, mas sua reflexão foi
interrompida:
- Saiba Gil, que na Índia antiga, esse Krestus-Solaris, com
nome de Khrisna, nasceu da Virgem Deváki. Nasceu em 25 de
dezembro, numa gruta, mil anos antes de Jesus, o Nazareno. Uma
estrela brilhante avisava do ocorrido. Anjos e espíritos alegres
apareceram nos céus e deram a Boa Nova aos maravilhados e
atemorizados mortais. Grandes profetas e simples pastores vieram
prostrar-se diante do Divino Menino. Então, o tirano Kansa ordenou
a matança de todos os meninos nascidos em seu reino, por temor
a este rei recém-nascido. Mas ele escapou. Assim, pregou o amor
por todo lugar onde passou.
Repentinamente, alguém bateu na porta.
- Com licença, monge Mathias – era o padre Antonio –
podemos continuar aquela conversa?
- Claro, padre... – Mathias interrompeu, olhou para Gil que
logo entendeu o recado e imediatamente se despediu do padre e
do monge.
A conversa iria longe pensou Gil, mas foi para casa,
extasiado por tamanhas revelações.

22. Quando não se quer fazer uma coisa...

No outro dia, como de costume, Gil almoçava com Kelly. Ela


falou:
- Ontem liguei na sua casa e você não estava. Ia te convidar
para ir comigo à minha igreja, vamos hoje?
- Ué, você não foi ontem? Nós não iríamos ao cinema hoje?
- Primeiro Deus, depois a diversão – justificou ela.
- Já havíamos combinados de sair hoje!

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- E qual é o problema? Nós vamos sair hoje, só que para um


lugar mais interessante. Vamos até a casa do Senhor!
Gil se controlava. Lembrava de Mathias lhe dizendo que um
guerreiro que não controla seus impulsos é apenas um lutador.
Controlando-se, continuou o almoço e desviou o assunto, embora
concordasse em ir com ela.
Ao saírem do trabalho, Kelly lhe lembrou o horário que
passaria em sua casa para levá-lo à igreja. Gil sorriu e correu para
a igreja onde ficava o monge Mathias, queria lhe falar do sonho da
noite anterior, mas ele não estava lá. Gil foi para casa e se
preparou para sair com sua namorada.
Oito e quinze! Kelly buzina lá fora. Seguiram então para a tão
querida igreja de Kelly. Ao chegar lá, a recepção foi calorosa.
Jovens sorridentes vieram ao encontro do casal. Gil percebia que
eram pessoas boas e sinceras. E eis que um velho amigo apareceu
para recebê-lo:
- E aí, Gilmar, não se lembra de mim não? Assim falou um
rapaz negro, vestido formalmente com um blazer preto com botões
dourados.
Gil parou por alguns momentos.
- Marco?!
- E aí, Gil! Pensei que não iria me reconhecer! Faz tanto
tempo que não nos vemos! Praticamente não nos falamos mais
depois daquele acampamento, não é mesmo?
- É verdade. Fiquei sabendo que você se envolveu com
algumas coisas e por isso, mudou daqui. Mas que bom revê-lo! E
aí, como está a vida? – Gil falou com um tom feliz em rever um
velho conhecido!
- Ele era drogado e o Espírito Santo o tirou dessa vida. Ele
aceitou Jesus, sabia? – intrometeu-se Kelly.
Marco não gostou da intromissão da Kelly e Gil também não.
Mas Gil sabia que ela queria impressioná-lo, o que era muito
natural. Mas ela ignorava que Gil estava reencontrando um velho e
bom amigo e, por isso, não eram necessários os comentários dela.
Conversaram mais um pouco até Marco ser chamado por um
rapaz.
Também surgiram outros jovens que queriam dar as boas-
vindas ao Gilmar e isso deixava Kelly mais amável do que nunca.

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Gil sentiu a sinceridade e amizade ente eles, o que muito o


encantava.
Um jovem casal que se sentou quase na frente de Gil logo
começou a perturbá-lo. Ele prestava atenção no seu umbigo, pois
como lhe disse Mei-mei “o umbigo é a nossa antena, ela capta a
vibração do ambiente, por isso sempre preste atenção nele. E não
se esqueça, quando se sentir ameaçado, coloque a mão sobre o
umbigo, a direita sobre a esquerda, assim se evita o roubo de
energia”. A sensação de frio no umbigo aumentava estranhamente
quando chegou o Auxiliano de Jesus.
A cerimônia religiosa correu de acordo com as normas da
casa. Houve momentos para cânticos, havia pessoas que
exaltavam o Criador e assim tudo estava dentro de certa
normalidade. Em determinado momento, Gil começou a perceber
que o mal-estar em seu umbigo aumentava quando o Auxiliano de
Jesus se aproximava dele. No momento de receber a benção do
sacerdote, Gil se recusou a ir, deixando Kelly numa situação
embaraçosa.
- Vamos – cochichou ela – vai te fazer bem e pode inclusive
expulsar demônios que atrapalham sua vida.
Gil se negou veemente. Kelly foi até a fila que se formava em
frente ao altar. Ele então começou a observar uma pessoa que, no
momento da benção, caiu sob delírios. Rapidamente, um grupo de
pessoas seguraram-na fortemente pelos braços enquanto o
Auxiliano de Jesus fazia uma teatral expulsão do tal demônio. Após
gritos, uivos e orações, o “demônio” foi expulso e a pessoa se
acalmou. Todos deram glórias a Jesus, exceto Gil.
- O Espírito Santo me disse que há entre os irmãos, uma
pessoa de coração duro, que não têm fé e que por isso padece de
muitos problemas e dores. Irmão, você que está me ouvindo, tenha
humildade e venha até aqui, é o Senhor quem vos chama – disse o
sacerdote, enquanto olhava discretamente para Gil, que se
mantinha impávido.
- Gil, eu acho que é com você. Deixe de ser orgulhoso e
atenda ao pedido do Senhor.

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- Quando o Senhor quiser falar comigo, falará pessoalmente,


não precisará de meninos de recado! – retrucou Gil49.
- Credo!
Como o pedido do sacerdote não foi atendido, a cerimônia
prosseguiu conforme o costume e se encerrou quase às vinte e
duas horas. Gil não perdeu tempo, ao perceber o fim, saiu
rapidamente dali, pois sabia que o sacerdote iria falar com ele.
Kelly, sem entender nada, acompanhou os longos passos de
Gil até o carro. No caminho, ela o criticou:
- Credo, que pressa foi essa? Pelo jeito não gostou muito da
Igreja. Se negou a receber a benção do Senhor. Muito feio o que
você fez!
- O fato de eu gostar ou não... O fato de eu concordar ou
não... Nada disso prova ou não que as coisas são boas. Prova
apenas que não são para mim. Vá minha querida, participe e siga
as orientações do seu pastor. Seja sincera no que fala e faz... Mas,
por favor, não tente me evangelizar. Respeitarei suas opções, por
isso, respeite a minha. Não sou senhor da verdade, apenas um
buscador... Você já achou o que procura, eu não!
- Eu procuro por Deus e achei Deus. O que você procura
afinal?
- Procuro a Verdade... – Gil fez uma pausa diante do olhar
estupefato de Kelly e perguntou - Minha querida, você realmente
gosta da sua Igreja, não?
- Claro.
- Suponho que, conforme vi na cerimônia, Jesus Cristo é um
homem bom, venho trazer a paz, está a nossa disposição e basta
aceitá-lo para sermos felizes, certo?
- Certo!
- O que significa para você 'aceitar Jesus’?
- Significa amá-lo acima de tudo.
Gil fez uma pausa e pensava consigo mesmo: Oras, a Kelly
não tem sangue de guerreiros. Sua busca é a busca pelo bem-
estar. Não há maturidade para entender que se busca o Divino
porque é ali que está a nossa origem. Não se busca o divino para
49
Um equívoco de Gil, Deus pode sim usar os outros como instrumentos para nos
revelar algo.

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nosso bem-estar. Ela não entenderá as palavras de guerra de


Jesus!50 - seus pensamentos foram atropelados por Kelly.
- Continue Gil! Você parece que ia falar alguma coisa...
- Pois bem... Acho ótimo que tenha se encontrado e esteja
feliz ali! - com essa frase, Gil tentou compreender a pobreza na
busca daquela alma e tentava também evitar catequizá-la para ser
uma guerreira, pois como dizia Mathias ninguém respeita o Criador
se não respeitar o livre arbítrio do próximo.
- Que bom! Isso é sinal que voltará mais vezes comigo lá?
- Não. É sinal que te respeito e quero ser respeitado. Minha
busca é diferente da sua. Meu Deus me ensina a respeitar o
próximo para poder criar a base do amor. Não freqüento
assiduamente uma igreja porque quero amar todos meus irmãos e
normalmente as igrejas me impedem disso!
- O importante é seguir as leis que estão na Bíblia!
- O importante é amar o próximo... Mas como isso é difícil, é
mais fácil ficar julgando-o de acordo com a letra morta dos livros
sagrados.51
Kelly se calou e o levou para a casa dele. A despedida foi
fria, apenas um beijinho no rosto.
Em sua cama, Gil pensou: Que estranho, o ambiente era tão
agradável, por que será que me senti mal com a presença do
sacerdote?!
Cansado, adormeceu.
Acordou de madrugada, assustado. Sentiu a presença de
seres em seu quarto. As sensações não eram boas. Fechou os
olhos. Cobriu seu umbigo e fez várias vezes a respiração do
guerreiro (aspirava fundo pelas narinas e soltava o ar pela boca,
fazendo um sonoro sussurro). Foi enchendo-se de coragem. Abriu
os olhos, mas já não eram os olhos de um rapaz, eram os olhos de
um guerreiro pronto para combate. Olhou para o quarto escuro e
ainda sentia a presença de seres no local. Repleto de energia, mas
sem saber o que fazer exatamente, orou o Pai Nosso. Orou três
vezes... Acalmou-se. Demorou, mas conseguiu dormiu em paz.

50
Mateus 10:34 – Mateus 11:12
51
Gil parece ter assimilado o conselho “Julgar e condenar não é uma prerrogativa
humana”
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23. Espíritos

No outro dia, ao sair do trabalho, Gil que não acompanhou


Kelly até sua igreja, foi direto falar com Mathias. Relatou-lhe as
sensações estranhas que teve em seu quarto e de como os
afastou. Mas afinal, o que eram? O que queriam? Mathias, solícito,
começou a explicar a quantidade de seres que habitam o Plano
Astral ou mundo dos sonhos, ou Quinta Coordenada. Falou que
fantasmas ou defuntos são minorias nessa região. Explicou que há
espíritos bons e espíritos maléficos; espíritos planetários e anjos;
há os espíritos dos quatro elementos, e há milhares de classes
diferentes. Há centenas de tipos estranhos que perambulam por
nossas casas. Disse também que o fato de aparentemente eles
andarem apenas à noite, deve-se a nossa sensibilidade que
aumenta à noite, pois na verdade, eles andam de dia e de noite.
- Mas então, o que são os fantasmas? São as almas ou
espíritos dos desencarnados que ficam perambulando por aí?
- Gil, de uma vez por todas, coloque uma coisa nessa sua
cabeça dura: a alma é um conjunto de faculdades, poderes e
virtudes. A alma é o elo entre o corpo e o Espírito. Já o Espírito é a
natureza divina que nos faz semelhante ao Criador. Ambos não
ficam perambulando por aí. A alma não possui um corpo e o
Espírito é demasiadamente divino, por isso não entra em
comunicação com os mortais, porque não deseja nada terreno. Ela
não pensa ou especula sobre as coisas terrenas, nem sente
pesares por suas relações ou amigos. Vive em um estado de pura
graça, alegria e prazer.
- Ué... E o tão falado “espírito dos mortos” ou fantasmas?
- Com a morte, a mente humana continua com energia o
suficiente para se manifestar onde queira. Um grande médico que
morreu, continua pensando que é um grande médico e atua como
tal. Um homem que perdeu seu tesouro vai continuar pensando em
achá-lo. Além disso, esses “espíritos” vivem freqüentando os locais
que freqüentavam quando vivos. Essas formas mentais são o que
as pessoas chamam de espíritos, mas na verdade, trata-se da
personalidade.
- Nossa!!! Então se uma pessoa morreu com raiva de outra,
pode vir a lhe fazer mal?
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- A mente neste estado, com certeza será nociva para a


outra pessoa. Há casos de pessoas que se matam devido aos
inimigos ocultos que perturbam sua mente e acabam induzindo-as
ao suicídio.
- E por que nem sempre são visíveis?
- Eles são transparentes como o ar. Nós não conseguimos
ver o ar, a menos que façamos fumaça, e ainda nesse caso não
vemos o ar em si, apenas a fumaça que é levada pelo ar.
Entretanto, sentimos o ar em movimento e podemos também - em
algumas ocasiões - sentir a presença de tais entidades, se são
bastante densas para serem sentidas. Gil, meu filho, você deve se
lembrar que nossos sentidos têm a função de perceber os objetos
que existem no plano para o qual esses sentidos estão adaptados,
e por isso os sentidos físicos existem com o objetivo de ver coisas
físicas, e os sentidos do guerreiro interior são para ver as coisas da
alma. Quando os sentidos externos (ou físicos) estão inativos, os
sentidos interiores (ou do guerreiro) podem despertar e podemos
ver os objetos do plano astral. Entretanto, bem sabemos que sob
certas circunstâncias essas entidades, digamos assim, podem
fazer-se visíveis ou manifestar-se por meio de sons ou ruídos,
como toques, risadas, assobios, gemidos, suspiros, passos,
batidas. Podem mover os móveis ou outros objetos, e tudo isso o
faz com o intuito de chamar a atenção dos vivos, pois vivem
querendo fazer contato!
- Por que querem fazer contatos?
- Ah... Gil. A mente humana tem ou cria motivos para tudo!
Gil refletia por alguns instantes e perguntou:
- e como posso me defender?
- Hummmm. Por hora, aprenda a colocar a mão esquerda
sobre o umbigo, depois a direita. Ore o Pai-nosso com fé e
devoção, isso resolverá muita coisa.
- Ok! Mas me diga, além dessas formas mentais que ficam
perambulando por aí, há outras entidades também?
- Bem, há várias. Há, por exemplo, fantasmatas. Estes
seres, semelhantes a espectros, são espíritos noturnos que têm
raciocínio semelhante ao do homem. Tratam de apegar-se aos
homens, especialmente aos que têm muito pouco poder de
domínio próprio, aos quais podem dominar. Há muitas classes

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desses espíritos, tanto bons quanto maus. Gostam de estar perto


do homem, porém o homem não pode aproveitar nada de sua
companhia. São sombras vazias e só um estorvo para ele. O uso
de corais vermelho afasta esses seres. Outros seres interessantes
são os Íncubos (seres masculinos) e os Súcubos (femininos). São
os frutos de uma imaginação intensa e lasciva de homens e
mulheres. Dizem as tradições rabínicas que esses seres se formam
através da pratica do onanismo52·. Esses seres se produzem do
sêmen corrompido, fora da ordem natural das coisas. São maus e
inúteis, e vivem perseguindo as pessoas de imaginação luxuriosa,
a fim de obter a energia necessária para se manterem vivos.
- Caramba!
- Existem os nocivos Dracos. Seres invisíveis, que podem
fazer-se visíveis e aparecer em forma humana e coabitar com as
bruxas. Outro monstro horrível é o Basilisco, criado por Sodomia e
também o Aspis e Leo. Há inumeráveis formas bastardas, metade
homem, metade aranha ou sapo, etc., os quais habitam o plano
astral. Felizmente, as partículas que compõem os corpos destes
seres são frágeis e por isso temem o vento, a luz, o fogo, as lanças
e armas. Alguns desses seres influenciam os homens segundo
suas qualidades: os vigiam, aumentam e excitam suas faltas,
acham desculpas para seus erros, os fazem desejar o êxito de
suas más ações, e gradualmente absorvem sua vitalidade.
Fortificam e sustentam a imaginação nas operações de feitiçaria,
algumas vezes fazem predições falsas e dão oráculos errôneos. Se
um homem tem imaginação forte e má, com a intenção de
prejudicar o outro, esses seres estão sempre prontos para ajudar
no cumprimento de seu objetivo. A oração e abstinência de todos
os pensamentos maldosos são os únicos remédios verdadeiros
contra a influência desses seres.
- Nossa! Além deles, há mais ainda?
- Ahhh...Gil. O Universo é muito mais amplo que nossas
idéias. Há muitos seres distintos, por exemplo, há os
interessantíssimos Flages. São estranhas criaturas com os quais
podemos aprender todos os mistérios do Infinito, pelo fato de
estarem em relação direta com o Mistério Divino. Nas práticas de

52
Essa prática recebe esse nome devido a Onan, ver Gênesis 38.
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adivinhação por sortilégio é o Flage que guia a mão. Tais artes não
são nem de Deus nem do diabo, se não que são dos Flages. As
cerimônias que de costume se usam nessas ocasiões são mera
superstições, e foram inventadas para dar a tais ocasiões um ar de
solenidade. Os que praticam essa arte ignoram eles mesmos - com
frequência - as leis que os governam, e os resultados obtidos nas
cerimônias podem ser confundidos erroneamente com suas
superstições, além disso, há muitos Flages brincalhões.
- Nossa!!! – exclama novamente Gil – Isso é incrível, nunca
ouvi falar disso! É quase inacreditável!!!
Em tom mais sério, Mathias disse:
- Olhe Gil, muitas das coisas que te explico, falo com meu
coração na mão, pois sei que são verdades, mas são inacreditáveis
pelas pessoas comuns. As coisas que te digo podem ser negadas
pelo sábio mundano; mas dia chegará em que esses doutores e
sábios demonstrarão diante dos fatos, o quanto foram grandes em
sua ignorância. E te direi mais, os maus espíritos são, por assim
dizer, subalternos e executores de Deus (a Lei). Eles foram
produzidos pelas influências do mal e seguem seu destino. Porém
as pessoas comuns têm uma estima muita elevada dos poderes
desses seres. Além disso, há muitas invenções, ciências e artes
que se atribuem à atuação do diabo; porém lhe digo que o diabo
nada tem que ver com essas coisas.
Gil buscava compreender com o coração, pois sentiu que
assim é que e aprende de verdade. Então, replicou:
- Guardarei com carinho e me esforçarei para compreender
cada uma das suas palavras.
- Meu jovem. Há mais verdades dentro de você do que pode
imaginar. Não acredite em tudo que ouve ou lê, mas permita que a
Inteligência Suprema que há em você possa se manifestar -
Mathias terminou de falar e abriu os braços e inevitavelmente Gil
se aproximou e o abraçou.
- Posso fazer mais uma perguntinha? O que são os anjos?
- Minha Virgem Santíssima! Como você pergunta!
- É a ultima por hoje, eu prometo!
- Ta bom. Bem, nem só de espíritos nefastos vive o Plano
Astral. Há os poderosos anjos (angelus em grego ou malachins em
hebraico). Eles são os mensageiros. É claro que essa visão de

81
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anjos que nós temos, de jovens com túnicas brancas e asas, é


influência grega, a cultura grega difundiu os mensageiros do
Olimpo. Mas na verdade, Anjo é um grau que alguns homens
alcançam. Na Bíblia, ou melhor, na cultura hebraica, um anjo é
sempre um homem adulto, normalmente com barba e com roupas
da época, por isso sempre foi difícil reconhecê-los. Assim
aconteceu quando o anjo Rafael encontrou com Tobias53 ou
quando Gedeão era orientado por um anjo54. Até a mãe de Sansão
ficou preocupada com o tal ‘homem’ que lhe falou de sua
gravidez55. Bem, pessoas sensíveis podem reconhecê-los com
facilidade como aconteceu profeta Daniel em seu encontro com os
Anjos Gabriel56 e Miguel57.
- Nossa... Que interessante!
- Bem, meu caro, já falamos muito por hoje, mas antes que
se vá, deixe-me convidá-lo para um encontro de Purayas que
ocorrerá nesse final de semana. Os cincos Purayas que estão
sendo treinados no Brasil estarão juntos na Chapada dos
Veadeiros.
- Ué... Não foi lá que fotografei Naymaúde?
- Sim, exatamente naquele lugar. Organize-se para ir, será
muito interessante. Passarei na sua casa sábado por volta das 7h.
Ok?
- Sábado eu tô trabalhando.
- Isso é problema seu, não meu.

24. Que Droga!

Gil estava chegando em casa quando avistou Tucão.


- Ué, você? Tudo bem?
53
No livro de Tobias 5:5-6 diz: “Apenas saíra, Tobias encontrou um jovem de belo
aspecto, equipado como para uma viagem. Sem saber que se tratara de um anjo do
Senhor”
54
Ver Juízes 6:11-40
55
Ver Juízes 13:1-24
56
Em Daniel 9:21 diz: ”... enquanto estava eu ainda falando na oração, o varão
Gabriel, que eu tinha visto na minha visão ao princípio, veio voando rapidamente, e
tocou-me à hora da oblação da tarde”.
57
Ver Daniel 10:9-21
82
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- Tô não, cara. Eu tu fudid*. A polícia pegou o Guto e tenho


certeza que ele vai me dedurar. Tô ferrado.
- Caramba! Eu não falei para você parar com essa droga de
maconha? – Gil fez uma pausa, pensou e comentou – Mas você
não é traficante, é um usuário idiota, mas só um usuário, a regra é
outra!
- Porr* Gil, deixa de ser babaca. Onde tu acha que eu
consigo dinheiro pra pagar o Guto toda semana? Eu repasso p’ro
Chacrinha, p’ra Isabel, a Dany, o Marco e uma porrada de gente!
- Caracas!!!! O Marco tinha parado com isso!!! E a Dany, eu
não acredito!
- Tu tá em outro planeta mesmo! Mas o lance é o seguinte,
não sei o eu faço da vida!
Repentinamente, Gil se sentia diferente, um ar sagrado
pairava sobre sua mente e então disse, numa voz que saiu do seu
coração:
- Tucão, o que você está fazendo da sua vida? Me dê uma
chance e eu tiro você do inferno onde se meteu!
Tucão ficou assustado, arregalou os olhos, coçou a rala
barbicha e deixou boca se abrir sem nada falar. Sentiu um arrepio
na alma. Ficou apenas olhando o seu amigo até que desabou a
chorar. Gil o abraçou e falou em seu ouvido:
- Você é um guerreiro e vive como um verme.
Misturando choro e palavras, Tucão disse:
- Você sabe de onde eu venho.
- Não me interessa de onde vem, mas para onde vai! –
segurando-o nos ombros e olhando nos olhos, perguntou com voz
profunda: para onde você quer ir?
- Não sei!
- Então descubra.
Ele desabou a chorar. Chorou e soluçou. Como num relance,
Gil viu que havia algo negro e gosmento andando tal como uma
aranha nas costas do rapaz. Esticou o braço e pegou com a mão,
esmagando tal criatura. Ao esmagar, voltou a si, estava com os
braços cruzados e o Tucão já caminhava de volta para casa! Não
entendeu bem o que aconteceu, mas sabia que fez algum bem ao
seu amigo.

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Sexta à tarde, Gil saiu correndo para casa, queria arrumar as


malas para uma viagem interessantíssima, iria reencontrar amigos
e conhecer mais sobre os outros Kirayas. Sabia que muitas coisas
iriam acontecer e estava empolgadíssimo. O que será que iram lhe
ensinar? Afinal, no mundo dos Kirayas, há sempre surpresas!

Continua...

Fim da parte I

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volume II.

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