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Os textos a seguir são do historiador Fábio Pestana, que pesquisou durante

longo tempo a Carreira da Índia e as Grandes Navegações.

A Carreira da Índia

As especiarias compreendiam um conjunto de


produtos, na maioria vegetais, mas também um pequeno
número de origem animal, ou misto, que serviam como
condimento, mezinhas, excitantes, relaxantes, perfumes
e unguentos coloridos, utilizados para três funções
básicas: tintura, tempero e medicamento. Dentre todas, a
mais importante das especiarias era a pimenta, devido ao
sabor pronunciado e o odor característico, importante
para disfarçar o gosto dos alimentos, particularmente da
carne.
Chegado o outono na Europa, era praxe sacrificar
grande parte dos rebanhos de gado, pois sabia-se que,
até a próxima primavera, não haveria alimento disponível
para os animais. Mesmo quando salgados ou defumadas,
as carnes de peixe e bovina apodreciam com facilidade, o que não impedia que
fossem exportadas para o interior do continente e consumidas, especialmente
durante o rigoroso inverno da maioria dos países. Assim, aqueles que não moravam
na costa e, por isso, não dispunham de peixe fresco durante todo o ano, eram
obrigados a temperar a carne com condimentos fortes, picantes e odoríferos,
disfarçando o mau cheiro e o sabor desagradável. Afinal, a carência de víveres não
permitia recusar nenhum alimento disponível.
Outras especiarias eram também utilizadas, mas com finalidades diferentes.
O cravo, também muito apreciado, tinha uso exclusivo na feitura de doces; o
gengibre, mais versátil, era empregado nos pastéis de peixe fresco, na salada e em
meio a legumes regados com azeite, vinagre e sal, aromatizando, também, as
conservas; enquanto o açafrão também servia para melhorar o sabor da carne.
Contudo, desde a antiguidade a especiaria mais indicada para tornar comestível a
carne salgada, e, com frequência, pútrida, era mesmo a pimenta forte.
Durante os tempos áureos do império romano, as especiarias circulavam
livremente pela Europa. Não obstante, com o continente posteriormente segmentado
em feudos, elas tornaram-se artigo de luxo, acessíveis apenas a algumas
localidades. Com as cruzadas, as cidades de Gênova, Florença e Veneza
beneficiaram-se das respectivas posições estratégicas, obtendo as especiarias
através da rota que partia do Oriente, revendendo os produtos em pequenas
quantidades e a preços altíssimos, o que restringia seu consumo a senhores feudais
e à alta burguesia. Servindo de mero entreposto comercial, logo os portugueses
tiveram a ideia de obter lucros exorbitantes com esse comércio, indo buscar a
mercadoria direto na fonte. Assim surgiu a Carreira da Índia e o que chamamos de
império da pimenta.
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.7.

Salve-se quem puder

Como alternativa, cada embarcação dispunha de apenas um batel, para


abrigar os sobreviventes, provocando mais conflitos e disputas, não raro violentas,
por um lugar a bordo. Nessas ocasiões, os oficiais ordenavam que se procurassem
por mantimentos, em especial água e biscoitos, para serem levados junto com os
escolhidos. Também eram trazidas armas e munições, para enfrentar os perigos em
terra e para impedir que alguém embarcasse sem permissão. Batel era um grande
bote a remos, às vezes também impulsionado por velas, que ficava alojado sobre a
coberta da nau ou vinha atracado à embarcação, utilizando normalmente para
transportar os passageiros da nau até praia, e, naturalmente, como salva-vidas em
caso de naufrágio. Não obstante, a capacidade era extremamente reduzida se
comparada ao contingente da nau, podendo transportar pouco mais de sessenta
pessoas.
Por isso, era comum serem salvos apenas os nobres e alguns técnicos
indispensáveis para a sobrevivência em terra. No entanto, em casos raros, havia
embarcações da Carreira da Índia que, além do grande batel, viajavam com outros
dois, menores, e com um esquife, pequeno bote estreito e comprido, com capacidade
para transportar de dez a vinte pessoas. Mesmo assim, só era possível acomodar
cerca de um quarto dos que estavam a bordo, dentre os que conseguiam escapar
de cair no mar ou de serem atingidos por pedaços do navio que se desmanchava.
[...] Além desses, havia outro perigos, como o de ser ferido ou morto pelos próprios
companheiros, que procurava diminuir o número de candidatos ao resgate.
Cabia ao capitão selecionar quem seria salvo, uma vez que ele mesmo,
contrariando o mito, nunca afundava com a embarcação. Nessas horas, a autoridade
prevalecia mediante o uso da força [...]Como foi dito, a precedência era de nobres e
técnicos graduados, tanto que, das cinquenta e sete pessoas que se salvaram do
naufrágio da nau Santiago, em 1585, havia dezenove fidalgos, nove religiosos, piloto,
contramestre, guardião, cirurgião, condestável, feitor, um único soldado, dois
carpinteiros, três criados do piloto, o criado de um dos fidalgos, sete passageiros e
nove marinheiros, necessário para remar a embarcação. [...]
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2006, p. 170-171.

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