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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

CENTRO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO


DISCIPLINA: Estudos Gramaticais I
Profa. Carmen Matzenauer e Profa. Raquel Gomes Chaves

O adjetivo e o ornitorrinco (dilemas da classificação das palavras)

Mario Perini

Grande parte do labor científico consiste em classificar entidades e elaborar


justificativas para essa classificação. A ciência não se limita a isso, evidentemente: uma ciência
é muito mais que uma classificação de objetos. Mas, em geral, depende de classificações, até
mesmo para possibilitar o diálogo entre os cientistas.
Por exemplo, os zoólogos dividem os animais em diversas categorias: mamíferos,
répteis, peixes, insetos, aves, anfíbios, e assim por diante. Sem essas categorias seria muito
difícil fazer zoologia, ou mesmo falar de zoologia, pois elas permitem ao cientista referir-se
a tipos de animais, em vez de referir-se a cada animal (ou a cada espécie) individualmente.
Assim, podemos encontrar trabalhos descritivos sobre os mamíferos da América do Sul, ou
sobre a evolução dos répteis, ou sobre a fisiologia dos insetos etc. Esses trabalhos, e muitíssimos
outros, dependem da classificação prévia dos animais (em classes, ordens, famílias, gêneros e
espécies) para a definição de seu campo de interesse; nesse sentido, todo o trabalho da zoologia
repousa sobre classificações.
É preciso, naturalmente, dispor de critérios objetivos para colocar um animal nesta ou
naquela classe. Assim, os mamíferos se distinguem dos répteis graças a diversos traços de sua
estrutura e funcionamento: a temperatura do corpo dos mamíferos é constante, a dos répteis
depende da temperatura ambiente; os mamíferos dão à luz filhotes vivos, os répteis põem ovos;
os mamíferos amamentam os filhotes, os répteis não; os mamíferos têm pêlos, os répteis têm a
pele nua ou coberta de escamas. Com esses quatro critérios é possível, em geral, decidir
rapidamente se um animal é mamífero ou réptil: lagartixas e vacas não apresentam dificuldades
a esse respeito.
Mas dificuldades há, embora nem sempre sejam mencionadas nos livros de introdução
à biologia. Uma delas é o ornitorrinco. Esse estranho bicho australiano bota ovos, mas
amamenta os filhotes; tem a temperatura do corpo parcialmente dependente da temperatura
ambiente e tem pêlos. Será um mamífero, um réptil ou outra categoria qualquer? Isso depende
de darmos mais importância a um ou outro dos critérios que definem as classes. De qualquer
forma, é necessário admitir que as categorias "mamífero" e "réptil", embora convenientes e
úteis, não são perfeitas. A maioria dos animais se coloca claramente em uma ou outra das
diversas classes reconhecidas pelos zoólogos; mas há alguns, como o ornitorrinco, que ficam
mais ou menos no meio.
Bem, eu não comecei este ensaio para falar de animais. Meu campo de estudo é o da
linguagem – mas este tem um ponto importante em comum com a zoologia: depende muito de
classificações. Em lingüística, não falamos de mamíferos nem de répteis; falamos de adjetivos,
verbos, preposições, orações e sintagmas nominais: todos esses nomes designam classes de
formas linguísticas. Ora, veremos que nem sempre os limites entre essas classes são claros e
bem definidos: a lingüística também tem seus ornitorrincos.
Há muitos tipos de classes em gramática; aqui vou falar apenas de classes de palavras -
substantivos, adjetivos e verbos, velhos conhecidos nossos (e às vezes inimigos) desde os
tempos de escola.
Uma coisa que nos poderiam ter dito na escola (mas, em geral, não disseram) é para quê
a gente precisa separar as palavras em classes. Ora, a razão é semelhante à que nos obriga a
separar os animais em classes, ordens, espécies etc.: classificamos as palavras para podermos
tratar delas com um mínimo de economia. Vamos supor que não se definisse a classe dos
verbos, por exemplo. Nesse caso, teríamos de tratar na gramática das palavras que variam em
pessoa; como não haveria classes, seria necessário dar a lista completa delas: começaríamos
por abanar e iríamos até zumbir (uma lista de umas boas dez mil palavras). Depois, seria preciso
tratar das palavras que têm tempos (presente, pretérito, futuro) - e aí teríamos de dar a mesma
lista de dez mil palavras. É evidente que, desse modo, nossa gramática seria um pouco difícil
de manusear. E também é pouco provável que as pessoas aprendam uma língua desse jeito,
decorando listas imensas várias vezes. O que as pessoas fazem é reconhecer uma palavra como
pertencente a determinada classe, e aí atribuir à classe as propriedades relevantes.
Assim, um falante aprende a reconhecer um verbo, e é só os verbos que ele faz variar
em pessoa e em tempo. Isso não é coisa que se aprende na escola; faz parte do nosso
conhecimento gramatical implícito (ver o ensaio "Nossa sabedoria gramatical oculta"). Nenhum
falante, mesmo analfabeto, tenta conjugar a palavra computador, ou a palavra sempre, ou a
palavra e. Conjuga palavras como vender, ver e viver; andar, amar e amarrar; partir, ir e punir.
De um jeito ou de outro, os falantes reconhecem todas essas palavras como verbos e sabem que
podem dizer eu vendo, ele vende, eu vendi, ele vendeu.
O caso dos verbos é bastante favorável, porque eles são muito diferentes das outras
palavras da língua. Isto é, a classe dos verbos é muito fácil de definir: são as únicas palavras
que variam em pessoa, as únicas que fazem o plural com sufixos especiais como -mos, as únicas
que têm tempos. São como as vacas e as lagartixas, que têm várias características que as
colocam claramente em determinado lugar na classificação geral.
As coisas se tornam muito diferentes quando tratamos dos chamados "adjetivos" e
"substantivos". Essas duas classes, embora tradicionalmente separadas, são extremamente
difíceis de distinguir. Na verdade, depois de vários anos estudando o problema, acredito que
são impossíveis de distinguir, pelo menos em duas classes como fazem as gramáticas usuais. O
que temos aí é ou um grande número de classes ou, mais provavelmente, uma grande classe
composta de membros cujas propriedades são muito variadas.
É melhor começar a dar exemplos, para ilustrar o que estou querendo dizer.Para tratar
de adjetivos e substantivos como classes, a primeira coisa a fazer é definir essas classes. O que
é que faz de uma palavra um adjetivo ou um substantivo? Não podemos dar simplesmente a
lista dos adjetivos e a dos substantivos, porque, além de ser uma maneira antieconômica de
fazer as coisas, uma lista pode ser arbitrária, juntando alhos e bugalhos sob o mesmo rótulo.
Precisamos de definições, pois são a garantia de que estamos falando de classes que realmente
funcionam dentro da língua.
Tradicionalmente, diz-se que os substantivos são "nomes de coisas", e os adjetivos
expressam "qualidades". Ignorando por ora a vaguidão dessas definições (já sofremos bastante
com elas no primeiro grau), vamos fazer de conta que sabemos o que são nomes de coisas e o
que são qualidades; e vamos tentar aplicar essas definições a algumas palavras.
Se as palavras forem João e paternal, a aplicação é razoavelmente fácil. João é nome
de uma coisa (uma pessoa) e paternal exprime apenas uma qualidade; logo, João é substantivo
e paternal é adjetivo.
Mas como classificar maternal? Essa palavra parece, à primeira vista, ser idêntica
apaternal, com a única diferença de que se refere à mãe, não ao pai. Assim, dizemosatitudes
maternais do mesmo jeito que dizemos atitudes paternais. Mas na verdade há uma
diferença: maternal (mas não paternal) é também o nome de uma coisa, ou seja, designa um
tipo de escola infantil: meu menino ainda está no maternal.
E agora? Maternal é adjetivo, porque expressa uma qualidade; e é substantivo, porque
é o nome de uma coisa. Ou será um caso, com certeza excepcionalíssimo, de palavra que está
no limite das duas classes e tem as propriedades de ambas?
Nem isso, porque o caso de maternal não é raro nem excepcional. Há milhares de
palavras que se comportam de maneira semelhante. Basta ver os exemplos abaixo:
(l) a. Uma palavra amiga (qualidade)
b. Um amigo fiel (nome de coisa)
(2) a. Uma menina magrela (qualidade)
b. Essa magrela (nome de coisa)
(3) a. Um homem trabalhador (qualidade)
b. Os trabalhadores (nome de coisa)
(4) a. O carro verde (qualidade)
b. O verde está na moda (nome de coisa)
etc., etc., etc.

O leitor poderá facilmente aumentar a lista.


Agora dá para ver o problema com mais clareza: se aceitarmos as definições
tradicionais, dadas anteriormente, teremos pelo menos três classes, e não apenas duas: há as
palavras como João, xícara e alto-falante, que só podem ser nomes de coisas; depois, há as
palavras como paternal, genial e triangular, que só podem expressar qualidades; e, finalmente,
há as palavras como maternal, amigo, magrelo, trabalhador, verde, que podem ser as duas
coisas. E o pior é que estas últimas são as mais numerosas. O mínimo que podemos concluir é
que a distinção entre substantivos e adjetivos, tal como formulada nas gramáticas comuns, é
inadequada.
É como se as espécies de animais como o ornitorrinco fossem mais numerosas do que
os casos claros de mamíferos e répteis: teríamos de começar a desconfiar das próprias noções
de "réptil" e de "mamífero", pois não seriam suficientemente úteis para nos permitir reconhecer
a classe a que pertence um animal. Parece que não é isso o que acontece na zoologia; mas na
gramática a situação, como acabamos de ver, é mais incômoda.
Há muitas maneiras de classificar as palavras, e cada uma dessas maneiras atende a uma
necessidade específica. No exemplo anterior, vimos uma classificação pelo significado; mas
também podemos necessitar de uma classificação pela forma, isso quando estivermos tratando
da descrição dessa mesma forma. Assim, podemos definir o substantivo como a palavra que:
(a) p ode aparecer logo depois de um artigo, formando um sintagma, como em a xícara (mas
não *o paternal; e (b) aceita aumentativo e diminutivo, como em xicrinha. Essa definição pode
ter seus méritos, mas os resultados de sua aplicação discordam, mais uma vez, das classes
tradicionais. Assim, verde, tradicionalmente um adjetivo, pode ocorrer depois de artigo (o verde
está na moda) e aceita diminutivo, mesmo quando exprime qualidade (um pé de alface
verdinho). Também podemos definir o substantivo como a palavra que faz plural em -s; isso o
distingue eficazmente do verbo (cujo plural se faz de outra maneira) e das palavras que não têm
plural (preposições, advérbios etc.). Porém, a classe dos substantivos assim definida vai incluir
não só os substantivos tradicionais, mas também os adjetivos e os pronomes:xícaras, paternais,
eles.
A conclusão é que a classificação tradicional, no que se refere aos substantivos e aos
adjetivos (e ainda aos pronomes), não tem salvação. Não se conseguiu, até hoje, uma definição
que separasse com clareza essas três classes. Eu tendo a acreditar que são uma grande classe,
dentro da qual se distinguem muitos tipos de comportamento gramatical. Acredito que as
diferenças de comportamento dentro dessa grande classe (que podemos chamar a classe
dos nominais) provêm principalmente de diferenças de significado. No momento em que uma
palavra começa a ser usada com um novo significado (o que acontece com freqüência), ela
precisa mudar seu comportamento gramatical de acordo com sua nova função.
Isso se harmoniza com a flexibilidade que se observa no uso dos nominais. Por exemplo,
a palavra cabeça era, até há pouco, das que só se usavam como nomes de coisas. Um belo dia,
alguém teve a ideia de usá-la para designar uma pessoa ou coisa admirável de certo ponto de
vista; a partir daí, a palavra cabeça não só passou a ter o significado de "qualidade", mas
também passou a ser usada em estruturas tipicamente "adjetivais", como:

(5) Ontem fui ver um filme muito cabeça.

Essa flexibilidade, que todos conhecemos, segue estritamente a necessidade de


comunicação: no momento em que isso é necessário, um 'substantivo" vira "adjetivo", ou vice-
versa. O que aconteceu com cabeça também aconteceu com gato (ela tem um irmão gato) e
ultimamente com prego (mas que sujeito prego!). O processo se deu com maternal, que há
alguns anos só podia expressar qualidade, tal como paternal, e agora é também o nome de uma
coisa.
Como se vê, o que temos em mãos não são duas classes de palavras nitidamente
diferentes, mas uma classe que possui potencialidades expressivas variadas; entre outras coisas,
pode expressar nomes de coisas ou qualidades. E expressa uma ou outra dessas coisas no
momento em que é necessário. Acontece que, até hoje, ninguém teve a idéia de usar xícara para
exprimir uma qualidade; e é por isso, somente, que xícara continua sendo apenas nome de uma,
coisa. Também não ocorreu a ninguém utilizar paternal para designar urna coisa (um novo tipo
de escola?); e é por isso que paternal ainda é tão nitidamente qualificativo. A distinção entre a
classe dos "adjetivos" e a dos “substantivos" simplesmente não existe.
Sinto-me obrigado a dizer que a conclusão acima não é aceita pela maioria dos
linguistas. Muitos dos meus colegas rangem os dentes de raiva quando ouvem uma heresia
como essa. No entanto, até hoje ninguém respondeu aos argumentos apresentados de maneira
a me satisfazer. Por isso, continuo desacreditando de adjetivos e de substantivos, e continuo
fazendo gramática. Talvez eu tenha muito a pagar na outra vida.

PERINI, Mário A. Sofrendo a Gramática. São Paulo: Editora Ática, 1997.

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